Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
723/20.8T8PTG.E1-A
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Cumulando-se na mesma ação vários pedidos contra o mesmo sujeito, se um desses pedidos não se enquadrar no âmbito de competência do respetivo tribunal, aplica-se o regime da exceção da incompetência absoluta, absolvendo-se o demandado da instância relativamente a esse mesmo pedido – cfr. artigos 96.º, alínea a), 99.º, 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a), do Código de Processo Civil.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: (…)
Recorrida / Autora: Câmara Municipal de (...)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação através da qual a A peticionou que a R seja condenada a ver resolvido o contrato de compra e venda identificado nos autos e a devolver o lote objeto desse negócio bem como todo e qualquer benfeitoria nele realizada, desimpedido e livre de ónus e encargos.
Para tanto invocou a celebração de um contrato de compra e venda de lote de tereno ficando a R, compradora, incumbida de apresentar o projeto de arquitetura e os projetos das especialidades no prazo de 180 dias a contar da data da escritura, e de concluir as obras no prazo de 2 anos a contar da aprovação dos projetos, sob pena de reversão do terreno e das benfeitorias nele introduzidas. Uma vez que a R não apresentou qualquer projeto nem iniciou a construção, decorridos que estão os prazos fixados, alega a A que lhe assiste o direito de retorno da propriedade do lote à sua esfera jurídica.
Em sede de contestação, a R invocou a caducidade do direito de que se arroga a A, a nulidade de cláusulas contratuais insertas no contrato celebrado, mais pugnando pela improcedência da ação.
Apresentou-se ainda a deduzir o seguinte pedido reconvencional: deve a A ser condenada a devolver o preço pago pelo lote de terreno identificado na p.i. no montante de € 9.501,60 (nove mil e quinhentos e um euros e sessenta cêntimos), bem como a quantia de € 7.900,18 (sete mil e novecentos euros e dezoito cêntimos) e ainda as quantias de € 4.450,00 e € 5.000,00 a título de benfeitorias e mais valias. A quantia de € 7.900,18 corresponde às quantias pagas desde o ano de 2007 a título de imposto municipal sobre imóveis, que considera dever ser-lhe restituída com fundamento no enriquecimento sem causa.
Os pedidos reconvencionais foram admitidos.
A R, notificada que foi para se pronunciar sobre a eventual cumulação ilegal de pedidos reconvencionais deduzidos, pugnou pela manutenção de todos eles.

II – O Objeto do Recurso
Foi proferido despacho onde consta, designadamente, o seguinte:
«Ora, tendo sido deduzido pedido reconvencional onde foram cumulados, simultaneamente pedidos de devolução do montante pago pela Ré a título de preço, benfeitorias e obras realizadas no lote de terreno e, bem assim, quantias pagas a título de IMI, verifica-se uma cumulação ilegal de pedidos na medida em que não é este tribunal materialmente competente para apreciação da eventual devolução dos valores pagos a título de IMI, quantias que como se sabe são devidas à autoridade tributária, logo à administração pública, agindo como tal, pertencendo à competência material dos tribunais administrativos e fiscais.
De acordo com o previsto pelo artigo 555.º, n.º 1, do CPC, podem ser deduzidos cumulativamente na mesma ação pedidos que sejam compatíveis se não se verificarem em concreto nenhumas das circunstâncias que obstam à coligação.
Nos termos e para os efeitos previstos pelo artigo 37.º, n.º 1, a coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.
Nos termos previstos pelo n.º 4 do mesmo artigo, se o tribunal verificar uma situação de cumulação ilegal de pedidos notifica a parte para, em prazo, indicar qual ou quais pedidos pretende ver apreciados sob pena de, não o fazendo, ser o réu absolvido da instância relativamente a todos eles.
Regularmente notificada a Ré não supriu a situação de cumulação ilegal de pedidos, mantendo, grosso modo, os termos dos pedidos reconvencionais deduzidos.
Razão pela qual e sem necessidade de ulteriores considerações, julgo verificada a exceção dilatória de cumulação ilegal de pedidos reconvencionais e, em consequência, absolvo a Autora da instância relativamente aos mesmos.»

Inconformada, a R apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que tenha em consideração o pedido reconvencional na totalidade e/ou a procedência deste com exceção do pedido formulado quanto ao IMI. Concluiu a alegação de recurso nos seguintes termos:
«I - O enquadramento legal efetuado na decisão e enquadrado na previsão do artigo 555.º do CPC não se verifica e é leitura incorreta de cada um dos pedidos que constituem o conjunto do pedido reconvencional: receber o preço pago, receber as benfeitorias realizadas e introduzidas no imóvel, receber as mais valias acrescidas ao valor do prédio e ser compensada pelos IMI’s pagos.
II - Do ponto de vista da apelante, havendo obrigação de restituir, há a obrigação de pagar ao empobrecido os valores por esta gastos no prédio; a natureza do pedido de restituição, autoriza a reconvenção e a devolução à empobrecida dos valores gastos – artigos 480.º, 432.º e seguintes e 437.º do Código Civil.
III - A leitura que a sentença fez para verificar a exceção dilatória de cumulação ilegal de pedidos reconvencionais e consequente absolvição do pedido reconvencional, não se verifica; no que tange aos IMI’s pedidos a título de compensação, não está em causa o imposto em si, nem a sua natureza, nem quaisquer outras questões com ele conectas, de natureza fiscal e/ou administrativa.
IV - Acresce que, a sentença sob crítica não teve em atenção o princípio da adequação formal plasmado no artigo 547.º do C.P.Civil, porquanto, o Tribunal não teve em consideração as especificidades da causa e não adaptou o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim a atingir.
V - E, ao violar o princípio da adequação formal, violou também o princípio da equidade; ademais, os pedidos reconvencionais formulados na reconvenção não são substancialmente incompatíveis, pois que, não excluem a possibilidade de uns originarem a impossibilidade de se verificarem os outros.
VI - Posto isto, deve a decisão em análise e sob crítica ser revogada e substituída por outra que tenha em consideração a procedência do pedido reconvencional, na totalidade e/ou a procedência deste com exceção do pedido formulado quanto aos IMI’s.
VII - Assim procedendo, V. Exªs farão justiça.»

Em sede de contra-alegações, a Recorrida sustentou que se verifica a exceção dilatória de cumulação ilegal de pedidos, já que o pedido de devolução dos montantes pagos a título de IMI apenas pode ser apreciado no foro administrativo e fiscal, pelo que o Tribunal a quo, estava impedido, nos termos do disposto pelo n.º 2 do artigo 576.º do CPC, de conhecer o mérito de todos os pedidos reconvencionais da Recorrente, implicando na absolvição da Recorrida da Instância. Considera que deve, pois, manter-se a decisão recorrida em todos os seus termos e com todas as suas consequências.

Cumpre apreciar se existe fundamento para a absolvição da A da instância reconvencional por cumulação ilegal dos pedidos reconvencionais.

III – Fundamentos
A – Dados a considerar: os que constam do supra relatado.

B – O Direito
Considerou-se em 1.ª Instância que a apreciação do pedido de devolução da quantia paga a título de IMI cabe ao foro administrativo e fiscal.
Na verdade, assim é. Por via do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea o), do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, a apreciação dos litígios que tenham por objeto questões relativas à devolução de impostos pagos por via da revisão e anulação da respetiva liquidação, à luz do regime inserto no Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Por via disso, tal pedido não pode ser cumulado com os demais pedidos deduzidos em reconvenção pela R contra a A (pedidos de restituição do preço pago e do pagamento do valor das benfeitorias realizadas no prédio cuja reversão vem peticionada pela A) – cfr. artigos 555.º, n.º 1 e 37.º do Código de Processo Civil.
Ora vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 555.º, n.º 1, do CPC, podem ser deduzidos cumulativamente contra o mesmo sujeito e na mesma ação pedidos que sejam compatíveis se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação.
Os obstáculos à coligação encontram-se previstos no artigo 37.º, n.º 1, do CC, nos seguintes termos: a coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia. Os n.ºs 2 e 3 do mencionado normativo legal conferem ao juiz o poder de autorizar a cumulação mesmo nos casos em que aos pedidos correspondam diversas formas de processo, adaptando convenientemente o processado; o n.º 4, contrariamente ao exarado na decisão recorrida, não regula os casos em que o tribunal verifica ser ilegal a cumulação dos pedidos, mas antes os casos em que, verificando-se os requisitos que permitem a coligação de sujeitos/ cumulação de pedidos, o tribunal considera haver inconveniente grave na instrução, discussão e julgamento conjunto das causas. Reza assim: se o tribunal, oficiosamente ou a requerimento de algum dos réus, entender que, não obstante a verificação dos requisitos da coligação, há inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente, determina, em despacho fundamentado, a notificação do autor para indicar, no prazo fixado, qual o pedido ou os pedidos que continuam a ser apreciados no processo, sob cominação de, não o fazendo, ser o réu absolvido da instância quanto a todos eles, aplicando-se o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo seguinte.
No caso em apreço, o pedido de devolução de IMI não pode ser cumulado com os demais pedidos por ofensa das regras de competência em razão da matéria – artigo 37.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 555.º, n.º 1, do CPC. Logo, não tem cabimento a aplicação do disposto no n.º 4 da citada disposição legal.
Por se tratar de pedido que não se enquadra no âmbito de competência do tribunal onde é deduzido, aplicando-se o regime da exceção da incompetência absoluta, impõe-se a absolvição da instância relativamente a esse mesmo pedido – cfr. artigos 96.º, alínea a), 99.º, 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a), do Código de Processo Civil.
«A cumulação de pedidos pressupõe a identidade do foro competente para deles conhecer (artigo 37.º, n.º 1), de modo que a cumulação apenas é admitida se o tribunal tiver competência internacional, material e hierárquica para todos os pedidos (…). A falta de competência absoluta para algum dos pedidos corresponderá a uma exceção que implica a absolvição da instância relativamente ao pedido ou pedidos que não se inscrevam na esfera de competência absoluta do tribunal.
(…)
Com exceção dos casos em que os pedidos são materialmente incompatíveis, gerando a ineptidão da petição inicial (artigo 186.º, n.º 2, alínea c)), a cumulação ilegal, à semelhança da coligação ilegal (…), corresponde a uma exceção dilatória sanável com posterior aproveitamento do pedido que se enquadre nos requisitos materiais e formais dos artigos 36.º e 37.º, não determinando de imediato uma decisão de absolvição total da instância.»[1]
Nestes termos, a absolvição da instância reconvencional apenas tem lugar relativamente ao pedido de condenação no pagamento da quantia de € 7.900,18 (sete mil e novecentos euros e dezoito cêntimos) a título de devolução dos montantes de IMI liquidados com fundamento no enriquecimento sem causa.
O que implica na revogação da decisão recorrida no que respeita aos demais pedidos reconvencionais, impondo-se a prossecução da reconvenção relativamente a eles.

As custas recaem sobre a Recorrida – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Concluindo: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida relativamente aos pedidos reconvencionais de condenação da A. a devolver o preço pago pelo lote de terreno no montante de € 9.501,60 (nove mil e quinhentos e um euros e sessenta cêntimos) e a pagar as quantias de € 4.450,00 e de € 5.000,00, a título de benfeitorias e mais valias, determinando-se o prosseguimento da reconvenção relativamente a tais pedidos.
Custas pela Recorrida.
Évora, 13 de janeiro de 2022
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite

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[1] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Sousa, CPC Anotado, vol. I, 2.ª edição, pág. 639. Cfr. ainda págs. 73 e 74.