Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2548/19.4T8STR.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: ACIDENTE EM PASSAGEM DE NÍVEL
REGULAMENTO
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A constatação de erro de julgamento no âmbito da matéria de facto, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 662.º do C.P.C., impõe que se tenha chegado à conclusão que a formação da decisão devia ter sido em sentido diverso daquele em que se julgou, emergindo de um juízo conclusivo de desconformidade inelutável e objectivamente injustificável entre, de um lado, o sentido em que o julgador se pronunciou sobre a realidade de um facto relevante e, de outro lado, a própria natureza das coisas, o que se veio a verificar no caso em apreço, pois, no que tange à redacção de alguns pontos dos factos dados como provados e ao aditamento de outros factos (instrumentais), existiu erro notório na apreciação da prova testemunhal e documental carreada para os autos.
- Atenta a factualidade apurada nos autos constata-se que um veículo rodoviário com as características do envolvido no acidente, circulando no sentido em que ocorreu o acidente, demora, no mínimo, cerca de 25 segundos a atravessar o canal ferroviário, pelo que, nas condições determinadas para o funcionamento da passagem de nível, a meia barreira do sentido oposto atingirá sempre o veículo desde que o atravessamento seja iniciado até 9 segundos antes desta ser activada por um comboio em aproximação.
- Por isso, face ao requisito legal de ser proibido aos utentes demorar mais de 10 segundos a atravessar as passagens de nível – cfr. artigo 22.º, n.º 3, alínea e), do D.L. n.º 568/99, de 23/12 (Regulamento de Passagens de Nível) – pressuposto com base no qual foi definido o modo de funcionamento das passagens de nível com aviso automático, como a dos autos, seria necessário, e até imperioso, assegurar a alteração da configuração da via rodoviária naquele local ou, eventualmente, a imposição de limitação da passagem dos veículos que não conseguem cumprir aquele tempo máximo de atravessamento (10 segundos), para que as condições do seu atravessamento fossem compatíveis com os tempos de aviso regulamentares considerados na definição do seu sistema de funcionamento automático.
- Ora, as modificações ou alterações supra referidas são da responsabilidade e da incumbência do(s) respectivo(s) gestor(es) das infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, pelo que não existe nenhum comportamento imputável ao condutor do veículo segurado na R. que possa fundamentar a sua responsabilidade pelo acidente em causa – pois nada obstava à sua circulação naquele local nos termos em que o fez, nem qualquer outra conduta lhe poderia ser exigível nas circunstâncias com que foi confrontado no caso em apreço – não podendo, por isso, ser assacado à R. o dever de indemnizar o A. pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por este sofridos.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 2548/19.4T8STR.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) instaurou a presente acção declarativa comum contra (…) Seguros – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A. e Infraestruturas de Portugal, S.A., pedindo a condenação das RR. a pagarem-lhe a quantia global de € 42.589,72, acrescida de juros de mora, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, e em suma, alegou que, no dia 8/11/2016, pelas 17:50 horas, ocorreu um acidente de viação e ferroviário em que foram intervenientes o veículo pesado articulado com a matrícula (…) e o comboio de passageiros n.º (…). Tal acidente deveu-se ao facto de o condutor do veículo pesado segurado na 1ª R. ter parado o veículo que conduzia na passagem de nível e ter deixado o seu semi-reboque a ocupar os carris de ambos os sentidos da via férrea, onde o comboio 4425 veio a embater. Também se deveu ao facto de a 2ª R. não concebido um sistema de protecção por forma a permitir que o movimento descendente da cancela fosse interrompido até à conclusão da travessia, caso a passagem de nível ainda estivesse ocupada por algum veículo. Acrescentou ainda que, como consequência directa e necessária do acidente, foram arrancadas e projectadas pedras da linha férrea contra a sua habitação e dois veículos automóveis de sua propriedade, causando-lhe estragos cuja reparação ascende a € 12.589,72. Para além dos danos patrimoniais sofridos, também como consequência directa e necessária do acidente em discussão, desenvolveu um quadro clínico de ansiedade patológica que lhe vem causando ataques de pânico, insónias, tremores, aumento do ritmo cardíaco e dificuldade em respirar, devendo ser compensado pelos danos não patrimoniais sofridos no montante de € 30.000,00.
Devidamente citada veio a 1ª R. apresentar a sua contestação, onde pediu a sua absolvição do pedido, apesar de ter admitido a ocorrência de um acidente de viação na data e local identificados pelo A.
Para tanto, e em síntese, sustentou que a culpa do acidente não foi do condutor do veículo pesado, mas antes do condutor do comboio e da 2ª R. Por um lado, o local onde ocorreu o acidente é precedido de uma recta com, pelo menos, um quilómetro e o atravessamento efectuado pelo veículo pesado era perfeitamente visível ao condutor do comboio, que deveria ter dado início à travagem assim que a passagem de nível e o pesado se lhe tornaram visíveis. De outra banda, o equipamento de segurança que guarnecia a passagem de nível era desadequado ao local e deveria estar munido de um sistema de segurança que informasse automaticamente o condutor do comboio de que a barreira não estava fechada ou que, pelo menos, impedisse que as barreiras fechassem caso a via estivesse ocupada por algum veículo que ainda estivesse a passar, o que teria igualmente evitado o acidente. Por último, veio dizer que, ainda que tivesse o dever de indemnizar o A., sempre o valor peticionado a título de danos não patrimoniais se mostra completamente exagerado.
Regularmente citada veio a 2ª R. apresentar, também, a sua contestação, onde deduziu a excepção dilatória de incompetência do tribunal para conhecer da sua responsabilidade civil extracontratual e, por outro lado, impugnou a factualidade alegada pelo A. na sua petição inicial, no que tange à sua responsabilização na produção do acidente em causa.
De seguida, foi proferido despacho saneador, no qual se julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal para conhecer da responsabilidade civil extracontratual da 2ª R. e, em consequência, absolveu-se a mesma da instância. Além disso, foi ainda fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
Posteriormente foi realizada a audiência de julgamento, com a observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenou a R. seguradora a pagar ao A. a quantia global de € 14.070,22, vencendo juros desde a citação a parcela de € 12.570,22, fixada a título de indemnização pelos danos patrimoniais, e vencendo juros desde a sentença a parcela de € 1.500,00, fixada a título de compensação pelos danos não patrimoniais.

Inconformada com tal decisão dela apelou a R. seguradora, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
I. O Tribunal a quo não decidiu corretamente ao condenar a Ré (Recorrente) a pagar ao Autor (Recorrido), a quantia de € 14.070,22, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, sofridos na sequência de uma colisão entre o veículo seguro na Recorrente e um comboio, numa passagem de nível.
II. Tendo em consideração o depoimento desta testemunha (…), condutor do camião seguro na Recorrente, mostrou ter conhecimento, tendo, no seu depoimento (que se encontra registado e disponível no sistema Habilus Media Studio e em ficheiro informático com a designação 20200618104505_2859943_2871714), a Recorrente entende que a matéria de facto constante dos pontos 16) a 22) deve ser alterada, passando a ter a seguinte redação:
16) Ao aperceber-se de tal facto, o condutor do veículo de matrícula (…) imobilizou-o por não mais de cinco segundos,
17) Durante os quais, sem desligar o camião, em ato contínuo, abriu a porta do camião, desceu para o segundo degrau da cabine, por forma a verificar onde havia embatido a referida meia cancela.
18) Ficando, durante esse período de tempo, a plataforma de carga a ocupar os carris de ambos os sentidos da via férrea.
19) Apercebendo-se da aproximação do comboio na linha obstruída, regressou à cabine do veículo e voltou a avançar, partindo a meia cancela.
20) Ao motorista não foi possível fazer avançar o veículo rodoviário o suficiente para evitar este ser atingido pelo comboio, devido ao talude sobranceiro à via rodoviária.
21) Ficando a traseira do atrelado a ocupar um dos rails da linha no sentido Lisboa-Santarém.
22) Ao chegar à passagem de nível, o comboio (…) embateu com a frente esquerda na traseira esquerda do semi-reboque.
III. Tendo em consideração os depoimentos das testemunhas (…), condutor do camião seguro na Recorrente (cujo depoimento se encontra registado e disponível no sistema Habilus Media Studio e em ficheiro informático com a designação (20200618104505_2859943_2871714), e (…), maquinista do comboio (cujo depoimento se encontra registado e disponível no sistema Habilus Media Studio e em ficheiro informático com a designação (20200618113413_2859943_2871714), a Recorrente entende que deve ser aditado o seguinte facto à matéria dada como provada:
22-A) Na zona da passagem de nível, junto à linha do comboio, existia um extenso canavial que impedia que os veículos intervenientes no acidente fossem visíveis um para o outro.
IV. Considerando a investigação efetuada pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) que, sob a tutela do Ministério do Planeamento e das Infraestruturas, tem especificamente como missão a investigação de acidentes e incidentes com aeronaves civis e transportes ferroviários com o objetivo de contribuir para a prevenção de futuros acidentes e incidentes, visando a identificação das respetivas causas, cujo relatório foi junto, sem qualquer oposição, a fls. … , pelo próprio Recorrido, no seu requerimento 34371854, de 19.12.2019, a Recorrente entende que devem ser aditados à matéria de facto considerada provada, os seguintes factos:
3-A) O motorista do veículo rodoviário estava devidamente habilitado para a função;
11-A) O atravessamento da passagem de nível por um veículo rodoviário com o comprimento do envolvido no acidente, no sentido este-oeste, é difícil, sendo bastante provável a necessidade de fazer uma manobra de recuo por causa da configuração da via rodoviária à saída da passagem de nível;
11-B) Não estava imposta naquela estrada, incluindo a passagem de nível, qualquer restrição dirigida aos condutores de veículos rodoviários do tipo daquele envolvido no acidente;
20) Ao motorista não foi possível fazer avançar o veículo rodoviário o suficiente para evitar este ser atingido pelo comboio, devido ao talude sobranceiro à via rodoviária;
22-B) Um veículo rodoviário com as características do envolvido no acidente, circulando no sentido em que ocorreu o acidente, demora, no mínimo, cerca de 25 segundos a atravessar o canal ferroviário, pelo que, nas condições determinadas para o funcionamento da passagem de nível, a meia barreira do sentido oposto atingirá sempre o veículo desde que o atravessamento seja iniciado até 9 segundos antes desta ser ativada por um comboio em aproximação;
22-C) Em Portugal, e contrariamente às práticas de outros países, os condutores rodoviários não recebem formação ou informação sobre os comportamentos mais seguros a adotar em situação de bloqueio ou emergências similares numa passagem de nível;
V. Não existe nenhuma conduta imputável ao condutor do veículo seguro na Recorrente suscetível de fundamentar a sua responsabilidade pelo acidente, pois nada obstava à sua circulação no local nos termos em que o fez, nem outra conduta lhe poderia ter sido exigida nas circunstâncias com que foi confrontado.
VI. Pelo contrário, ficou demonstrado que o acidente apenas se verificou por causa na conduta omissiva negligente da entidade responsável pela manutenção da ferrovia e daquela passagem de nível em particular – a Infraestruturas de Portugal, SA. que não efetuou a manutenção da vegetação que crescia no local e não dotou a passagem de nível das medidas necessárias que permitissem a passagem de veículo rodoviários de 18 metros, como o seguro na Recorrente, ou, pelo contrário, que impedisse que tais veículos pudessem circular naquele local.
VII. Conforme conclui, designadamente, o referido GPIAAF, “… a PN foi automatizada sem estar previamente garantido que a configuração da via rodoviária onde aquela se insere não implicava constrangimentos ao cumprimento dos requisitos legais estipulados quanto ao tempo máximo de atravessamento da PN pelo universo de veículos utilizadores daquela estrada ou, em alternativa, interditada a circulação de veículos longos incompatíveis com os constrangimentos existentes. Da análise feita considera-se que o GI subavaliou o risco na PN para a sua utilização, nas condições existentes, por veículos rodoviários com características similares ao envolvido no acidente, não sendo os constrangimentos causados pela envolvente da via rodoviária a um veículo da tipologia daquele envolvido no acidente compatíveis com os tempos de funcionamento estipulados para a PN.”.
VIII. Foi absolutamente irrelevante para a ocorrência do acidente o facto de o condutor do veículo seguro na Recorrente ter parado cinco segundos para verificar as consequências do embate da meia cancela no seu veículo, pois esses cinco segundos nunca seriam suficientes para realizar as manobras necessárias para retirar o veículo do local perante o talude que se apresenta à saída da passagem de nível, nem pode a segurança de qualquer passagem de nível estar dependente de margem tão mínima para o respetivo atravessamento.
IX. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou, designadamente, o disposto no artigo 483.º do Código Civil.
X. Nestes termos, e com o muito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, com todas as consequências legais. Decidindo-se assim, far-se-á Justiça.
Pelo A. foram apresentadas contra-alegações de recurso, nas quais pugna pela manutenção da sentença recorrida.
Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela R., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (testemunhal e documental) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada;
2º) Saber se o condutor segurado na R. não teve qualquer culpa na produção do acidente em causa e, por via disso, não poderá aquela ser responsabilizada civilmente pelo pagamento de uma indemnização ao A. pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por este sofridos.

Antes de nos pronunciarmos sobre as questões supra referidas importa ter presente qual a factualidade que foi dada como provada no tribunal “a quo” e que, de imediato, passamos a transcrever:
1) … transferiu para a ré (…) Seguros – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A a responsabilidade civil obrigatória pelos danos causados a terceiros pelo veículo pesado articulado marca Renault, com a matrícula (…), nos termos do acordo de vontades titulado pela apólice n.º (…).
2) No dia 08 de Novembro de 2016, pelas 17:50 horas, na passagem de nível da estrada do (…), nos Casais do (…), em Vale de Santarém, concelho de Santarém, ocorreu um acidente de em que foram intervenientes o veículo pesado articulado marca Renault, com a matrícula (…), propriedade de (…), conduzido por (…), e o comboio de passageiros número (…), conduzido por (…).
3) O referido veículo articulado transportava no atrelado uma máquina retroescavadora com a matrícula (…).
3-A) O motorista deste veículo rodoviário pesado estava devidamente habilitado para a função (aditado neste aresto – fls. 19).
4) O veículo articulado circulava na dita Estrada do (…) no sentido do lugar de (…) para Santarém, de nascente para poente.
5) O condutor do veículo segurado na ré seguia na Estrada do (…) a uma velocidade não superior a 50 Km/hora.
6) No dia, local e por volta da hora mencionada estava bom tempo e a visibilidade era boa.
7) A referida estrada é atravessada ao quilómetro 69,474 pela linha férrea do Norte, situando-se neste local a mencionada passagem de nível.
8) A denominada linha do Norte é electrificada e é constituída por duas vias, uma no sentido Sul/Norte e outra no sentido Norte/Sul.
9) Na referida passagem de nível, existe um dispositivo de protecção constituído por sinalização automática luminosa e acústica, bem como cancelas que impedem o atravessamento da via-férrea quando se aproximam do local as composições ferroviárias.
10) Com a aproximação das composições ao local da passagem de nível, o sistema de protecção é activado.
11) A referida Estrada do (…), junto à entrada da passagem de nível tem uma largura de 7,20 metros e à saída tem uma largura de 8,50 metros, desembocando numa curva apertada para o lado esquerdo, atento o sentido de marcha do veículo (…).
11-A) O atravessamento da passagem de nível por um veículo rodoviário com o comprimento do envolvido no acidente, naquele sentido este-oeste, é difícil, sendo bastante provável a necessidade de fazer uma manobra de recuo por causa da configuração da via rodoviária à saída da passagem de nível (aditado neste aresto – fls. 19).
11-B) Não estava imposta naquela estrada, incluindo a passagem de nível, qualquer restrição dirigida aos condutores de veículos rodoviários do tipo daquele envolvido no acidente (aditado neste aresto – fls. 19).
12) Chegado à passagem de nível, o condutor do veículo (…), (…) iniciou a sua travessia.
13) Quando já se encontrava a efectuar a travessia, accionou-se o sistema de alarme e protecção em virtude da aproximação da composição n.º (…), iniciando-se a descida das meias cancelas e a sinalização luminosa e acústica.
14) Quando começaram a ser emitidos sinais visuais e sonoros, informando-o da aproximação de um comboio, o condutor do veículo pesado procurou acelerar o atravessamento.
15) Como naquele momento o condutor ainda não havia concluído a travessia, a meia cancela situada à saída da passagem de nível no sentido de marcha em que seguia, ao baixar, embateu no pára-brisas da retroescavadora de matrícula (…) transportada na plataforma de carga do semi-reboque de matrícula E-(…), que o veículo de matrícula (…) atrelava.
16) Ao aperceber-se de tal facto, o condutor do veículo de matrícula (…) parou-o na passagem de nível (alterada a redacção neste aresto – fls. 16).
17) E saiu da cabine para tentar libertar a retroescavadora da meia cancela, sem as danificar, acompanhado por … (alterada a redacção neste aresto – fls. 16).
18) Ficando a plataforma de carga a ocupar os carris de ambos os sentidos da via-férrea (alterada a redacção neste aresto – fls. 17).
19) Após o referido em 17. e 18., apercebendo-se da circulação do comboio na linha obstruída e da sua aproximação a alta velocidade, de imediato o condutor do pesado regressou ao veículo para forçar a sua deslocação contra a barreira (alterada a redacção neste aresto – fls. 17).
20) E avançou em frente, partindo a barreira (alterada a redacção neste artesto – fls. 17).
21) Não obstante, não conseguiu concluir a manobra de viragem à esquerda (alterada a redacção neste aresto – fls. 17).
22) E, ao chegar à passagem de nível, o comboio (…) embateu na traseira do semi-reboque, que ainda se encontrava sobre os carris em virtude do referido em 16. a 19. (alterada a redacção neste aresto – fls. 17).
22-A) Na zona da passagem de nível, junto à linha férrea, existia um extenso canavial que impedia que o camião e o comboio intervenientes no acidente fossem visíveis um para o outro (aditado neste aresto – fls. 18).
22-B) Um veículo rodoviário com as características do envolvido no acidente, circulando no sentido em que ocorreu o acidente, demora, no mínimo, cerca de 25 segundos a atravessar o canal ferroviário, pelo que, nas condições determinadas para o funcionamento da passagem de nível, a meia barreira do sentido oposto atingirá sempre o veículo desde que o atravessamento seja iniciado até 9 segundos antes desta ser activada por um comboio em aproximação (aditado neste aresto – fls.19).
23) Em consequência do embate referido em 22., foram arrancadas pedras do balastro da via-férrea.
24) As quais foram projectadas da linha férrea e atingiram a habitação do autor sita em Casal do (…), nº 1, bem como os veículos automóveis de sua propriedade que ali se encontravam estacionados, de marca Mercedes-Benz com a matrícula (…) e Mitsubishi L-200 com a matrícula (…).
25) A casa de habitação do autor sofreu estragos nas paredes, no telhado, nos portões, cantarias e soleiras.
26) A reparação dos estragos referidos em 25. ascende ao montante global de € 6.680,84, assim discriminado: pintura € 730,50; vidros € 525,89; cantarias e soleiras € 250,00; telhado € 2.568,82; e portões: € 2.605, 63.
27) A viatura Mitsubishi L-200 com a matrícula (…) sofreu estragos na chapa e pintura.
28) Cuja reparação importa em € 2.458,31.
29) A viatura de marca Mercedes-Benz com a matrícula (…) sofreu estragos na chapa, pintura e óculo traseiro partido.
30) Cuja reparação importa em € 3.431,07.
31) Na sequência do acidente o autor desenvolveu um quadro clínico de ansiedade patológica.
32) E, por período não concretamente apurado, teve necessidade de tomar medicação ansiolítica.
33) Apresentou tremores, aumento do ritmo cardíaco e dificuldade em respirar, com receio da ocorrência de novos acidentes.
34) E sofreu insónias.
35) O condutor do veículo identificado em 1. sabia que era proibido parar em cima de uma passagem de nível e sabia também que a sinalização luminosa e acústica quando accionada indica a aproximação de comboios.
36) O local onde ocorreu o acidente era precedido, no sentido em que circulava o comboio, de uma recta com cerca de 900 metros.
37) Como o veículo seguro na ré já tinha transposto parcialmente os carris, a parte do semi-reboque que neles permanecia era baixa e a zona pouco iluminada, o veículo apenas se tornou visível ao condutor do comboio a uma distância entre 200 e 300 metros.
38) A passagem de nível não tinha um sistema de segurança que impedisse que as barreiras fechassem caso a via estivesse ocupada por algum veículo que ainda estivesse a passar.

Apreciando, de imediato, a primeira questão suscitada pela R., ora apelante – saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (testemunhal e documental) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como provada – importa dizer a tal respeito que sustenta a recorrente a sua pretensão tendo por base os depoimentos prestados pelas testemunhas (…) e (…), ambos ouvidos em audiência de julgamento, bem como o teor do documento junto aos autos pelo A. em 19/12/2019 (relatório elaborado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários – GPIAAF).
Ora, a este respeito, o n.º 1 do artigo 662.º do C.P.C., estipula o seguinte:
- “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (sublinhado nosso).
Por sua vez, o artigo 640.º do C.P.C. especifica ou concretiza qual o ónus que incumbe ao recorrente quando pretender impugnar a matéria de facto, sendo que a alínea b) do n.º 1 do referido preceito legal é bem clara nesta matéria ao mencionar (também aqui) que o recorrente deve especificar quais os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, não se contentando o legislador nesta matéria com uma mera faculdade (como por exemplo “podiam dar lugar” em vez de “impunham”), mas antes consagrando um imperativo – sublinhado nosso.
Ora, no caso dos presentes autos, houve gravação dos depoimentos testemunhais prestados em julgamento e, por isso, a recorrente podia impugnar, com base neles, a decisão da matéria de facto, seguindo, naturalmente, as regras impostas pelo citado artigo 640.º do C.P.C.
Com efeito, verifica-se que, como vimos supra, a recorrente indicou, nas suas alegações e conclusões de recurso, quais os concretos meios probatórios que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, identificando o documento junto aos autos em 19/12/2019, bem como as testemunhas inquiridas em sede de julgamento e concretizando, ainda, com exactidão as respectivas passagens da gravação dos depoimento das ditas testemunhas, sendo que, por isso, nesta parte, deu cumprimento ao estatuído no n.º 1, alíneas a), b) e c) e n.º 2, alínea a), do citado artigo 640.º do C.P.C.
In casu”, verifica-se que a R., desde logo, pretende que seja alterada a redacção das respostas que foram dadas aos pontos 16 a 22 dos factos provados (concretizando, de forma mais objectiva, todo o circunstancialismo fáctico que antecedeu o momento da colisão entre o comboio e o camião), tendo por base o depoimento da testemunha … (condutor do veículo pesado que atravessava a linha férrea na passagem de nível e no qual veio a embater o comboio), única testemunha que terá presenciado o acidente (além do maquinista do referido comboio).
Assim, após a audição da gravação do respectivo depoimento, constatamos que o (…), relativamente ao acidente em causa, veio a afirmar, de forma credível, isenta e cristalina, o seguinte: ao atravessar aquela passagem de nível, já depois de estar com parte do camião fora do, aquilo era um camião porta-máquinas. Parte, depois de estar já parte do camião fora da passagem de nível, a passagem de nível fechou e quando fechou, parei para não partir a máquina (uma retroescavadora) e a cancela e quando olhei já vinha o comboio lá ao fundo. Arranquei na mesma, mas já, a coisa já não deu e o comboio apanhou, acabou por apanhar a parte traseira do porta-máquinas.
Acrescentando ainda que: quando estava já do outro lado, porque para fazer aquela passagem de nível com, com um veículo daquela envergadura, obriga-nos a fazer uma manobra depois de entrar dentro da linha, não é? Quando do atravessamento somos obrigados a fazer uma manobra para depois podermos sair porque aquilo é, é, o ângulo de saída é muito, muito apertado para aquele tipo de veículos. E então já ia com o camião já depois dessa pequena manobra, já ia com o camião tirado de lá, já tinha passado o “tractor” e parte do “pescoço de cavalo”, quando a cancela deu em fechar (…), batendo no vidro (para-brisas) da máquina e eu, ao ver isso pelo espelho, parei, abri a porta, saí para os degraus do “tractor”, olhei para ver o que é que ia partir, nunca pensando que a passagem do comboio, a aproximação era tão rápida. Que não sei se o Sr. Doutor sabe, mas aquilo, a aproximação daquilo, aquilo entre comboio, entre cancela e sinal e aquela coisa toda e o comboio chegar ali são 25 segundos.
Além disso, veio a saber mais tarde que: quando começa a campainha a tocar, 7 segundos depois começa a baixar a cancela.
Esclareceu ainda que: já tinha passado a cabeça do tractor, chamemos-lhe assim, o tractor já tinha passado, já estava a passar o porta-máquinas e quando a máquina, que ia já atrás é que aquilo foi, a cancela foi apanhar a máquina. Portanto, já tinha uma parte do camião fora. Ou seja, podemos concluir que a cancela fechou-se mais ou menos em cima da máquina (retroescavadora) que aquele transportava no camião com reboque por si conduzido.
E, sendo perguntado à testemunha o que tentou fazer, referiu ele o seguinte: eu saí, eu abri a porta do camião, do tractor e como o senhor não sei se sabe, aquilo tem três degraus e abri e saí para o segundo degrau para olhar para ver onde é que aquilo, o que é que aquilo me ia partir. E quando vejo aquilo, quando, quando saí, olhei e vejo que vem lá o comboio. Entretanto, meto-me dentro do camião de novo e tentei, pronto, subir até inclusivamente a barreira, que aquilo tem uma barreira muito grande. Tentei subir a barreira para tirar de lá, mas mesmo assim não foi suficiente porque apanhou-me ali a galera cá de trás, ali já do eixo de trás para trás. (…) Arranquei com o camião contra a barreira. Mas como a barreira é perpendicular praticamente, não consegui, não consegui avançar mais porque necessitava daquele tempo para a manobra. (…) Não se consegue deslocar a barreira porque aquilo é como uma parede, aquilo é cortado, é um talude. Portanto, não há barreira física, não há, é um talude. À saída da linha do comboio, em frente é um talude que há, um monte que foi cortado.
Especificou também que entre ter imobilizado o camião e ter arrancado novamente (ao avistar o comboio) foram cerca de 5 segundos.
Além disso, referiu ainda que: no local a linha férrea é constituída por duas linhas, portanto, uma das linhas, a que estaria mais próxima da do sentido norte, no sentido sul, sentido Santarém-Lisboa, pronto, no sentido, essa já estava liberta. Portanto, só havia um rail, um rail que estava ainda com a máquina em cima.
Mais acrescentando que: o comboio embateu na traseira esquerda do reboque. Exactamente, no rodado de trás, no rodado, aquilo tem três rodados, portanto, apanhou-me já no rodado, do terceiro rodado para trás.
Por sua vez, o comboio terá batido, pela sua descrição, com a frente esquerda da primeira carruagem, ou seja, da locomotiva.
Mais referiu que o camião com o reboque (que levava em cima a retroescavadora) tem mais de 18 metros de comprimento.
Ora, face ao teor do depoimento prestado pela testemunha supra identificada e à forma isenta, genuína e credível como foi prestado, é nossa convicção que os pontos 16. a 22. dos factos provados devem ser alterados, passando a ter a seguinte redacção (a negrito) que, desde já, vamos transcrever:
16) Ao aperceber-se de tal facto, o condutor do veículo de matrícula 30-RJ-39 imobilizou-o por não mais de cinco segundos.
17) Durante os quais, sem desligar o camião, em ato contínuo, abriu a porta do camião, desceu para o segundo degrau da cabine, por forma a verificar onde havia embatido a referida meia cancela.
18) Ficando, durante esse período de tempo, a plataforma de carga a ocupar os carris de ambos os sentidos da via férrea.
19) Apercebendo-se da aproximação do comboio na linha obstruída, regressou à cabine do veículo e voltou a avançar, partindo a meia cancela.
20) Ao motorista não foi possível fazer avançar o veículo rodoviário o suficiente para evitar este ser atingido pelo comboio, devido ao talude sobranceiro à via rodoviária;
21) Ficando a traseira do atrelado a ocupar um dos rails da linha no sentido Lisboa–Santarém.
22) Ao chegar à passagem de nível, o comboio (…) embateu com a frente esquerda na traseira esquerda do semi-reboque.
Por outro lado, pretende a R. que seja aditado outro facto à matéria fáctica apurada, relativo ao canavial existente junto à linha do comboio, no local da passagem de nível, que tapava até a antiga casa da guarda ainda ali existente, o qual dificultava a visão para ambos os intervenientes no acidente (o condutor do camião e o maquinista do comboio).
Ora, a tal respeito, constata-se da audição da gravação dos depoimentos do … (camionista) e do … (maquinista) – ambos sinceros, genuínos e, por isso, credíveis – que os mesmos foram consentâneos ao referir o canavial em questão, tendo o primeiro afirmado que, sentado na posição de condução do camião, não tinha visibilidade para a linha férrea, por causa do dito canavial, acrescentando o segundo que havia imensas canas que tapavam a visão no local, as quais impediram que se apercebesse, desde logo, da presença do camião na passagem de nível, pois, com as canas todas cortadas, já tinha visibilidade total.
Assim sendo, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do C.P.C., entendemos que deve ser aditado um facto instrumental aos factos dados como provados - que passa a ser o ponto 22-A. dos factos provados – com a seguinte redacção (a negrito) que, de imediato, passamos a transcrever:
22-A) Na zona da passagem de nível, junto à linha férrea, existia um extenso canavial que impedia que o camião e o comboio intervenientes no acidente fossem visíveis um para o outro.
Finalmente, sustenta a recorrente que – relativamente à dificuldade da travessia da linha férrea naquela passagem de nível por um veículo pesado das dimensões do segurado na R. – importa ter presente o documento junto aos autos pelo A. em 19/12/2019, nomeadamente a factualidade aí apurada quanto à reconstituição do acidente ora em análise, a qual deve ser aditada aos factos dados como provados, por se mostrar essencial para a boa decisão da causa, sendo certo que o seu teor não foi impugnado por qualquer das partes, tendo sido elaborado por uma entidade isenta e imparcial.
Com efeito, a investigação do acidente em questão e a sua reconstituição foi efectuada pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários – GPIAAF, o qual, sob a tutela do Ministério do Planeamento e das Infraestruturas, tem especificamente como missão a investigação de acidentes e incidentes com aeronaves civis e transportes ferroviários, com o objectivo primordial de contribuir para a prevenção de futuros acidentes e incidentes, visando a identificação das respetivas causas para a sua ocorrência.
Ora, do teor do referido documento constatamos que foram realizados vários ensaios no local do acidente – de modo a verificar, não só as condições de funcionamento das cancelas/barreiras da própria passagem de nível, como também as condições do seu atravessamento por um veículo rodoviário pesado similar e conduzido pelo mesmo motorista interveniente no dito acidente – vindo a apurar-se diversa factualidade que consideramos relevante para a decisão a proferir e, por via disso, entendemos ser de aditar aos factos dados como provados os seguintes factos instrumentais, por força do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do C.P.C. – que passam a ser os pontos 3-A., 11-A., 11-B. e 22-B. dos factos provados – com a seguinte redacção (a negrito) que, de imediato, passamos a transcrever:
3-A) O motorista deste veículo rodoviário pesado estava devidamente habilitado para a função.
11-A) O atravessamento da passagem de nível por um veículo rodoviário com o comprimento do envolvido no acidente, naquele sentido este-oeste, é difícil, sendo bastante provável a necessidade de fazer uma manobra de recuo por causa da configuração da via rodoviária à saída da passagem de nível.
11-B) Não estava imposta naquela estrada, incluindo a passagem de nível, qualquer restrição dirigida aos condutores de veículos rodoviários do tipo daquele envolvido no acidente.
22-B) Um veículo rodoviário com as características do envolvido no acidente, circulando no sentido em que ocorreu o acidente, demora, no mínimo, cerca de 25 segundos a atravessar o canal ferroviário, pelo que, nas condições determinadas para o funcionamento da passagem de nível, a meia barreira do sentido oposto atingirá sempre o veículo desde que o atravessamento seja iniciado até 9 segundos antes desta ser activada por um comboio em aproximação.

Analisando agora a segunda questão levantada pela R., ora apelante – saber se o condutor segurado na R. não teve qualquer culpa na produção do acidente em causa e, por via disso, não poderá aquela ser responsabilizada civilmente pelo pagamento de uma indemnização ao A. pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por este sofridos – haverá que referir a tal propósito que, atenta a factualidade apurada nos autos, é nosso entendimento que não poderá ser imputada qualquer culpa na produção do acidente ao condutor do veículo pesado segurado na R.
Com efeito, importa salientar, desde já, que, naquela estrada incluindo a passagem de nível, não estava imposta qualquer restrição ou proibição à circulação de veículos rodoviários pesados do tipo daquele envolvido neste acidente (cfr. ponto 11-B. dos factos provados).
Além disso, o atravessamento da passagem de nível por um veículo rodoviário com o comprimento do envolvido no acidente, naquele sentido este-oeste, é difícil, sendo bastante provável a necessidade de fazer uma manobra de recuo por causa da configuração da via rodoviária à saída da passagem de nível (cfr. ponto 11-A. dos factos provados).
Isto porque, um veículo rodoviário com as características do envolvido no acidente, circulando no sentido em que ocorreu o acidente, demora, no mínimo, cerca de 25 segundos a atravessar o canal ferroviário, pelo que, nas condições determinadas para o funcionamento da passagem de nível, a meia barreira do sentido oposto atingirá sempre o veículo desde que o atravessamento seja iniciado até 9 segundos antes desta ser activada por um comboio em aproximação (cfr. ponto 22-B dos factos provados).
Ora, no que tange a esta matéria, o artigo 22.º do D.L.568/99, de 23/12 – Regulamento de Passagens de Nível – define as condições de atravessamento pelos utentes das passagens de nível públicas, apenas o devendo fazer depois de tomadas todas as precauções para poderem realizar o atravessamento sem perigo, quer para si, quer para terceiros. E, entre as várias condições, estipula o n.º 3, alínea e), do referido preceito legal que é proibido aos utentes demorar mais de 10 segundos a atravessar as passagens de nível (PN), excepto em caso de situação anormal e de cuja ocorrência não lhe seja imputável responsabilidade.
Assim sendo, resulta claro que, de tal normativo, decorre imediatamente a obrigatoriedade de qualquer passagem de nível ter de assegurar as condições para que qualquer veículo rodoviário que a possa utilizar, numa situação normal e sem restrição especial imposta, a atravesse no tempo máximo de 10 segundos.
Todavia, no caso em apreço, forçoso é concluir que, atentas as características do veículo pesado (camião com reboque com mais de 18 metros de comprimento) e a configuração da estrada naquele local (no sentido este-oeste, antes e depois da passagem de nível) a travessia do canal ferroviário demora, no mínimo, cerca de 25 segundos, ou seja, mais do dobro do que é permitido legalmente!
Por isso, torna-se por demais evidente que, sempre que a passagem de um veículo rodoviário com características similares ao envolvido no acidente venha a coincidir com a aproximação de um comboio aquela passagem de nível, exista uma probabilidade séria e elevada da ocorrência de um acidente como aquele que se veio a verificar “in casu” (tendo algumas testemunhas e o próprio A. referido em julgamento que já ali ocorreram alguns acidentes…).
Deste modo, conclui-se que, face ao requisito legal de ser proibido aos utentes demorar mais de 10 segundos a atravessar as passagens de nível, pressuposto com base no qual foi definido o modo de funcionamento das passagens de nível com aviso automático, como a dos autos, seria necessário, e até imperioso, assegurar a alteração da configuração da via rodoviária naquele local ou, eventualmente, a imposição de limitação da passagem dos veículos que não conseguem cumprir aquele tempo máximo de atravessamento (10 segundos), para que as condições do seu atravessamento fossem compatíveis com os tempos de aviso regulamentares considerados na definição do seu sistema de funcionamento automático.
Ora, as modificações ou alterações supra referidas são da responsabilidade e da incumbência do respectivo gestor das infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, nomeadamente as Infraestruturas de Portugal, S.A. (tendo sido esta R. absolvida da instância por incompetência absoluta do tribunal) e/ou a Câmara Municipal de Santarém.
Nestes termos, conclui-se que não existe nenhum comportamento imputável ao condutor do veículo segurado na R. que possa fundamentar a sua responsabilidade pelo acidente em causa – pois nada obstava à sua circulação naquele local nos termos em que o fez, nem qualquer outra conduta lhe poderia ser exigível nas circunstâncias com que foi confrontado no caso em apreço – pelo que não pode ser assacado à R. o dever de indemnizar o A. pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por este sofridos.
Daí que, pelas razões e fundamentos acima explanados, resulta claro que a decisão sob censura não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade e, em consequência, absolve-se a R. do pedido.
***
Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, nos exactos e precisos termos acima explanados, absolvendo-se a R. do pedido formulado pelo A.
Custas pelo A., ora apelado.
Évora, 11 de Fevereiro de 2021
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás

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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr. neste sentido Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3.º, p. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3.º, 1972, pp. 286 e 299).