Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1022/13.7TBENT-D.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO
AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
MÁ FÉ PROCESSUAL
Data do Acordão: 11/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário:
I - Se a forma como a ora Recorrente conformou a respectiva defesa por excepção não permite em momento algum enquadrar a mesma na transmissão do contrato de arrendamento, que agora tenta colocar nos autos por via das alegações de recurso, porquanto na respectiva contestação, a sua defesa se consubstanciou na revogação real por via da alegada entrega das chaves do imóvel objecto do contrato de arrendamento, por se tratar de facto essencial, a mesma não é passível de enquadrar o «aperfeiçoamento» do articulado de contestação apresentado pela massa insolvente, isto porque todos os factos alegados pela mesma se referem a diferente fatispecie relativamente àquela que agora pretendem ver provada, não constituindo a decisão proferida «decisão-surpresa».
II - Para além da alegação explícita é também possível considerar na decisão a alegação implícita, e ainda os factos de que o Tribunal tenha conhecimento por via do exercício das suas funções.
III - Assim, tendo efectivamente sido alegado pela Ré que já não é esta que ocupa o locado e que os Autores têm conhecimento disso, devia tal matéria ter sido respondida, porque na base factual devem ser consideradas pelo juiz todas as soluções plausíveis da questão de direito, não se podendo olvidar que havia sido pedida a condenação dos Autores como litigantes de má fé e por actuarem com abuso de direito.
IV - Porém, ao invés do que entende a Recorrente, a prova de tais factos não tem no enquadramento legal do contrato de arrendamento a virtualidade que a Recorrente lhe pretende dar de serem causa da respectiva extinção, já que as causas desta são imperativamente fixadas, e a mesma não provou a invocada revogação real.
V - Acresce que, não só não se demonstrou que o senhorio tenha autorizado a ocupação do imóvel por terceiro, como não se demonstrou que - para a hipótese de a arrendatária ter transmitido a sua posição por via de alguma das regras especiais sobre locação de estabelecimento e transmissão da posição do arrendatário no arrendamento para fins não habitacionais, por acto entre vivos, designadamente por via de trespasse, que nos termos dos artigos 1109.º, n.º 2, e 1112.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, ambos do CC, não carecem de autorização do senhorio -, tais actos lhe foram comunicados.
VI - Assim, a terem existido tais actos, não tendo sido comunicados, os mesmos são ineficazes relativamente ao senhorio, o que significa que, faltando tal comunicação, o cessionário ou trespassário não chegam a adquirir a qualidade de arrendatários.
VII - Sendo até fundamento de resolução do contrato precisamente a ocupação do arrendado por terceiro, não se compreenderia que não fosse entre as partes do mesmo que tal resolução operasse, não tendo o senhorio que instaurar a acção de resolução do contrato de arrendamento contra o ocupante ilegítimo, não configurando o exercício do direito de resolução do contrato pelos senhorios abuso do direito, e constituindo apenas o mero exercício do mesmo.
VIII - Não tendo o contrato de arrendamento sido denunciado pelo Administrador da Insolvência, nos termos do artigo 108.º, n.º 1, do CIRE, a declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mantendo-se, consequentemente, os respectivos direitos e obrigações.
IX - Acresce que, não tendo sido encerrado o processo de insolvência, em face do deferimento pelo Senhor Juiz do pedido do Administrador nesse sentido, também não se verificam os efeitos do encerramento do processo previstos no artigo 133.º do CIRE - tanto assim que a presente acção se mantém a correr por apenso aos autos -, sendo consequentemente a massa insolvente responsável pelo pagamento das rendas e pela entrega do arrendado.
X - O facto de a Massa Insolvente não ter logrado demonstrar o facto extintivo em que fundou a sua defesa não significa que a mesma tivesse actuado com dolo ou negligência grosseira, fundadores da respectiva condenação como litigante de má-fé, ainda que a oposição deduzida tenha sido julgada improcedente.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I – RELATÓRIO
1. AA e BB, instauraram a presente acção contra Massa Insolvente de CC, Lda., pedindo que: i) seja declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre os autores e CC, Lda. por falta de pagamento das rendas; ii) seja a ré condenada a despejar o imóvel locado, entregando-o livre e devoluto de pessoas e bens, e nas condições de conservação em que o mesmo se encontrava à data da celebração do contrato de arrendamento; iii) seja a ré condenada a pagar as rendas em dívida até à presente data, no total de 2.394,24 €, e as que se vencerem na pendência da presente acção e até à efectiva entrega do locado, acrescidas de juros vencidos e vincendos desde a data da propositura da presente acção até efectivo e integral pagamento.
Em fundamento, alegaram, em síntese, que:
- no dia 8 de Junho de 2001, celebraram com a sociedade insolvente contrato de arrendamento sobre o imóvel correspondente ao R/C do prédio n.º …, na Rua …, no Entroncamento, pelo prazo de um ano, com início em 1 de Agosto de 2001 e mediante o pagamento mensal de 120.000$ (actualmente €598,56);
- a insolvente deixou de pagar as rendas a partir de Dezembro de 2012;
- após a declaração de insolvência, em Janeiro de 2014, nenhuma renda foi paga pela massa insolvente, representada pelo AI, apesar de o mesmo ter sido para tanto notificado; nem o AI procedeu à denúncia do contrato nos termos previstos no artigo 108.º, n.º 1 do CIRE.
2. Regularmente citada, a Massa Insolvente de CC, Lda. deduziu contestação invocando que o contrato de arrendamento já não se encontra em vigor, uma vez que o imóvel e as respectivas chaves foram entregues pela insolvente ao autor em finais de 2013/início de 2014, não se encontrando a insolvente a ocupar o imóvel, e pedindo a condenação dos autores como litigantes de má-fé, por actuarem em abuso de direito.

3. Os autores responderam, pronunciando-se quanto à litigância de má-fé e, por sua vez, requereram a condenação da ré como litigante de má-fé, por deduzir pretensão cuja falta de fundamento conhece, pretendendo confundir o presente contrato de arrendamento referente ao r/c com o contrato de arrendamento celebrado com a insolvente em relação ao primeiro andar do mesmo prédio, o qual foi oportunamente denunciado.

4. Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, procedendo-se à identificação do objecto do litígio e enunciação do único tema da prova: a entrega do imóvel pela insolvente em Novembro de 2013, designando-se logo o dia para audiência de julgamento.

5. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi seguidamente proferida sentença que julgou a presente acção procedente e, em consequência, decidiu:
«- Declaro resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre os autores e a insolvente relativo à fracção autónoma correspondente ao R/C do prédio n.º …, na Rua …, no Entroncamento, descrito na Conservatória do Registo Predial de Entroncamento sob o n.º …/20090513, freguesia de São João Baptista e concelho do Entroncamento, e inscrita na respectiva matriz sob o artigo …;
- Condeno a ré a entregar imediatamente aos autores o locado livre de pessoas e bens;
- Condeno a ré a pagar à autora as rendas vencidas no montante de €2.394,24, e as vincendas desde a data da propositura da presente acção até à efectiva entrega do locado, acrescidas de juros vencidos e vincendos desde a data da propositura da presente acção até efectivo e integral pagamento.
- Condeno a autora[2] como litigante de má-fé em multa no valor de 2 UC e em indemnização a fixar ulteriormente nos termos previstos no artigo 543º, n.º 3 do CPC».

6. Inconformada, a Ré apresentou o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«1.ª Salvo o devido respeito, o douto Tribunal a quo partiu de um pressuposto erróneo que inquinou a decisão alcançada. Assim, tendo desconsiderado a prova documental constante dos autos principais e para a qual foi a própria recorrente a remeter, como complemento à sua alegação, no art. 4.º da contestação apresentada; bem como a verdade alcançada em sede de julgamento, o que consideramos manifestamente injusto e desfasado do atual regime processual civil, deve o tribunal ad quem, mediante a reapreciação da prova, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto (não provada), dando como provado que a insolvente não ocupa o imóvel em causa e, em consequência, julgar a ação improcedente, sob pena de nos contentarmos com uma sentença que, na prática, não pode ser cumprida. Antes, porém,
2.ª No entendimento da recorrente a sentença sob recurso, padece da nulidade plasmada na al. d), n.º 1 do art. 615.º do CPC, na medida em que o juiz conheceu, na sentença, de questões de que não podia tomar conhecimento (cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, preleção no II Congresso de Processo Civil, Almedina, 9 e 10 de Outubro de 2014, Hotel Altis, Lisboa), pois nunca tendo o tribunal a quo deixado antever que, na sua perspetiva, faltava alegar certos factos nos articulados – da ocupação do locado por terceiros – para poder decidir em abono da verdade que estava a apurar – que quanto a nós é meramente concretizadora da realidade esgrimida pela recorrente, ab initio, na sua contestação, de que o imóvel já não era ocupado pela insolvente, o que de facto se veio a verificar que corresponde à verdade –, a decisão alcançada, sem previamente consultar as partes nesse sentido, representa uma verdadeira decisão surpresa, vedada pelos arts. 3.º, 7.º e 195.º/1 do CPC e pelos deveres da gestão processual e da cooperação (arts. 6.º e 7.º do mesmo Código). Na verdade,
3.ª O douto tribunal, na medida em que jamais – na audiência prévia ou no julgamento, por exemplo (cfr. art. 590.º/3 a 5 do CPC, Nuno Lemos Jorge, preleção no II Congresso de Processo Civil, Almedina, 9 e 10 de Outubro de 2014, Hotel Altis, Lisboa e “Os poderes instrutórios do juiz: alguns problemas”, Julgar, n.º 3, Setembro/Dezembro 2007; arts. 410.º e segs., 6.º, 526.º, 547.º, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 62 e s., MIGUEL MESQUITA, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 145.º, N.º 3995, Nov.-Dez. 2015, “: o «Santo Graal» do Novo Processo Civil?”, pp. 83 e segs., 88 e segs. e 93 e segs. e RLJ, Ano 143.º, N.º 3983, Nov.-Dez. 2013, “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno Processo Civil”, p. 145 e segs.) - questionou a Massa Insolvente acerca da alegada essencialidade na demonstração de quem estava, afinal, a ocupar o locado para provar a transmissão da posição de arrendatário e a consequente impossibilidade de entrega do locado aos recorridos, e, ainda assim, optou por decidir a contrario sensu do que “resultou amplamente demonstrado em sede de audiência de julgamento”, baseando a total procedência da ação em tal circunstância, proferiu uma verdadeira decisão surpresa (cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, preleção no II Congresso de Processo Civil, Almedina, 9 e 10 de Outubro de 2014, Hotel Altis, Lisboa. V., ainda, do mesmo Professor que, ademais, associa o princípio da cooperação ao dever de prevenção do tribunal para com as partes, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, 1997, p. 65).
4.ª Nessa medida, o tribunal a quo violou, pois, os princípios da adequação formal e da Gestão Processual, expressamente consagrados no atual regime processual civil em ordem a que o tribunal privilegie a decisão de mérito, o que nos leva a concluir que, salvo o devido respeito, tomou uma decisão desfasada do hodierno Processo Civil, pelo que a mesma só pode ser nula, impondo-se a sua revogação pelo tribunal ad quem, dando como provado o facto que o tribunal a quo deu por não provado, e, em consequência, alcançando-se uma solução completamente diferente na sentença (v. art. 265.º/3 do CPC e Ac. do TRP de 10-02-2014, P. 231/12.0TBCHV.P1 – MANUEL DOMINGOS FERNANDES).
5.ª A nulidade da sentença sob recurso com fundamento na referida alínea d) daquele inciso legal também advém do facto de estarmos, na prática, perante uma violação ao instituto do caso julgado, pois estando o locado a ser ocupado por um terceiro estranho ao processo – o Laboratório DD -, nunca podia ser a ora recorrente condenada, na prática, a substituir-se ao sobredito Laboratório só para que os recorridos consigam alcançar através do processo aquilo que pretendem; assim como também não podia o tribunal almejar, na prática, que tal terceiro, que nunca foi parte nesta ação, viesse, no fundo a ser condenado por ela, através da ordenada entrega das chaves do locado, o que configura uma autêntica e inadmissível violação aos limites subjetivos do caso julgado (v. A. VARELA/outros, Manual, pp. 720 e 727).
6.ª Destarte, acaba o Tribunal, em virtude do seu formalismo extremado, por se contentar em proferir uma sentença que não é eficaz em relação à pessoa que ocupa o locado, não podendo, assim, a decisão ser cumprida na prática, a ponto de podermos afirmar, também por aí, que estamos perante uma verdadeira decisão surpresa.
Ainda que assim não se entenda, o que só por cautela aqui se admite,
7.ª Estamos fundadamente em crer que não podia o tribunal de 1.ª instância, fundar-se num ato omissivo da sua parte para, apesar da prova feita em sede de julgamento, da qual resultou que o Sr AI não tem nem nunca teve as chaves do imóvel, decidir não se preocupar com o meio que aquele terá de observar para atingir o fim a que foi condenado, não se vislumbrando qual o interesse público subjacente a uma decisão assim proferida. Pelo que a sentença há de sempre enfermar, pelo menos, de uma nulidade secundária, já que o tribunal não providenciou, ao abrigo dos seus poderes inquisitórios, pela satisfação da incompletude que julgava verificar-se na alegação da recorrente e que entendia ser crucial ao esclarecimento do tribunal, numa lógica de boa fé processual, pelo que não podia, de todo, fazer-se valer da sua própria “omissão patente”, pretendendo que a prova recaísse sobre factos de que não lhe era lícito deixar de conhecer (v. arts. 6.º, 411.º do CPC), o que sempre há de consubstanciar, pelo menos, uma nulidade secundária (art. 195.º/1 do CPC e NUNO LEMOS JORGE, ob. cit. p. 77).
Sem prescindir,
8.ª A sentença será, a nosso ver, sempre nula por outra ordem de razões: é que ela é, sem quebra do respeito devido, totalmente adversa à convicção formada em sede de julgamento, enfermando por isso da sanção cominada no art. 615.º/1 c) do CPC, porque os seus fundamentos estão em oposição com a decisão, em virtude de o tribunal reconhecer, em diversos momentos, que resultou provada em sede de julgamento muita factualidade que importaria aproveitar para a decisão, como é o caso de já não ser a recorrente quem ocupa o locado, mas sim outra sociedade, e de optar, depois, por não aproveitar tal facto, dando-o como não provado, o que, salvo o devido respeito, representa um verdadeiro non sense. A decisão, a final, alcançada, é, portanto, incompatível com os argumentos nela expendidos e alheada da realidade da vida, numa lógica extremadamente formalista e não de justiça efetiva, privilegiadora da decisão de fundo. Ainda assim,
9.ª Desde logo o tribunal a quo devia ter valorado devidamente a prova documental – designadamente o requerimento autónomo apresentado pelo Sr AI a 09/06/2014 nos autos da insolvência -, porquanto se não quisesse considerar o facto de ter sido a própria recorrente quem, ao abrigo dos princípios da cooperação, da boa fé e da economia processual, consagrados nos arts. 7.º e 8.º do CPC, remeteu para tal(tais) documento(s) no art. 4.º da sua contestação – o que não podia fazer, se não atente-se no entendimento da nossa mais autorizada doutrina, importantíssima na matéria: A. VARELA, MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 287 -, sempre se diga que se tratava de algo que lhe adveio ao conhecimento por virtude do exercício das suas funções, em resultado do processo principal de insolvência, do qual os presentes autos constituem um apenso (v. arts. 412.º/2, 413.º, 267.º/1 e 421.º do CPC) e, como tal, não podia adotar uma postura de justiça cega, arreigadamente formalista, sabedora da existência de um documento que faz prova suficiente do que é alegado, que esteve sujeito a contraditório pelas partes, com igualdade de armas, em sede de audiência de discussão e julgamento (v., ainda, o ponto 6 da matéria de facto provada e o art. 3.º do CPC), e negar-se a usá-lo na justa composição do litígio e na busca da verdade que lhe cumpre apurar só porque terá sido apresentado por outrem, como se, alegadamente, não integrasse o processo (v. art. 55.º do CIRE e, ainda, o art. 417.º do CPC), sobretudo quando se tivesse sido utilizado o referido requerimento autónomo do Sr AI como meio de prova, teria sido dado como provado o facto constante do ponto 2 da matéria de facto não provada, o que implicaria que a ação tivesse merecido sorte completamente diversa.
10.ª É que, para a Lei, o mais importante aos olhos do tribunal há de sempre ser a efetividade da justiça, em ordem à prossecução da sua missão de manifesto interesse público, de contributo para a utilidade do processo. Pelo que, o tribunal de 1.ª instância não devia, salvo o devido respeito, prender-se tanto com meras questões formais (v. CASTRO MENDES, Do Conceito de Prova em Processo Civil, p. 165), mas devia sim, ao invés, ter-se servido, com espírito de iniciativa e boa vontade (v. art. 411.º do CPC), de todos os instrumentos que a Lei lhe confere para tanto (v. LOPES DO REGO, Os princípios orientadores da Reforma do processo civil em curso: o modelo de ação declarativa, Julgar, n.º 16, Janeiro/Abril, 2012, p. 103 e o Ac. do TRL de 25-09-2013, P. 1389/09.1TTLSB.L1-4 – PAULA SANTOS).
11.ª Era fundamental que o tribunal a quo tivesse procedido a uma análise crítica da globalidade da prova produzida, não relegando para a matéria de facto não provada os documentos que podia e devia ter considerado, valorando-os como elementos probatórios. Isso estava ao seu alcance no processo, pelo que, ao agir como fez a sentença recorrida violou o disposto no art. 607.º/4 do CPC, porque não procedeu a uma adequada e completa análise crítica das provas que se lhe ofereceram (v., na doutrina, MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 278, Prof. A. VARELA, Manual de Processo Civil, 1ª edição, 1984, pág. 598 e VAZ SERRA, Provas-Direito probatório material, BMJ 110, págs. 78/82 e 190/3; e, na jurisprudência, o Ac. do TRL de 29-05-2014, P. 444/12.5TVLSB.L1-6 – ANTÓNIO MARTINS).
12.ª Tendo resultado do julgamento da causa que a insolvente não se encontra a ocupar o locado, e tendo todos os intervenientes processuais ficado a conhecer, do referido requerimento autónomo do Sr AI, que o imóvel estava a ser ocupado por terceiro, tal como se vertera desde logo no art. 4.º da contestação, o tribunal a quo não podia, na sentença proferida, reduzir a questão ao alheamento daquele meio de prova da tramitação processual e, fazendo uso do mesmo, como era seu dever, de acordo com todos os preceitos legais convocados, devia ter dado como provado o seguinte facto que, lamentavelmente, consta da matéria de facto não provada: A insolvente não ocupa o imóvel identificado em 1). Assim,
13.ª Deve o tribunal ad quem fazê-lo, agora, ao abrigo do disposto no art. 662.º do CPC, transpondo para a matéria de facto provada aquilo que decorre da documentação apresentada (v. Ac. do TRG de 02-07-2013, P. 132585/10.1YIPRT.G1 – ANTÓNIO SANTOS). Com efeito,
14.ª Se o tribunal a quo tivesse valorado o documento que lhe competia ter tido em consideração não podia condenar o Sr AI a entregar as chaves do imóvel que não ocupa, porquanto, sendo outra entidade a ocupar as ditas instalações, ademais com o conhecimento do senhorio, não faz qualquer sentido pretender fazer crer que a ora recorrente ainda tenha na sua posse as referidas chaves para poder entregar um locado de que já há muito não se serve; não podia condenar a ora recorrente a pagar aos recorridos os valores das rendas em falta pela utilização do locado; teria aceitado o argumento expresso pelo Sr AI em tal documento no sentido de não serem as rendas devidas pela massa insolvente (cfr. nota de rodapé 1 supra), por não ser esta quem ocupa o espaço.
15.ª Mas o tribunal a quo decidiu pôr de lado todos os factos adquiridos no julgamento da causa, remetendo-se a uma visão redutora do processo que está há muito ultrapassada – aquela que entendia que quod non est in actis non est in mundo – porque julgou que a ocupação do locado por terceiros era facto essencial que devia ter sido alegado na contestação para poder ser considerado na decisão da causa.
16.ª Esquece-se, no entanto, o douto tribunal, que, por um lado, como já vimos, do requerimento autónomo do Sr AI que foi posteriormente submetido ao regime do contraditório e da prova durante o julgamento, já constavam os factos que se deviam extrair para decisão da causa e, por outro lado, que a ocupação do imóvel por terceiro foi alegada pela Ré, aqui recorrente, a título de exceção, nos arts. 4.º, 5.º e 11.º da sua contestação (cfr. arts. 5.º/1 e 572.º, c) do CPC), pelo que aquilo que se impunha depois ao tribunal, quanto mais não fosse em sede de julgamento, era concretizá-lo, pois é precisamente para isso que se produz prova recorrendo à fase crucial da imediação e à prova rainha do processo, que é a prova testemunhal - os depoimentos das testemunhas têm precisamente a função de servir para apurar a verdade delineada nos articulados, sendo esse o objetivo da audiência de discussão e julgamento (v. Acs. do TRP de 12-06-2014, P. 17/11.0TVPRT-A.P1 – LEONEL SERÔDIO e do TRC de 23-02-2016, P. 2316/12.4TBPBL.C1 – ANTÓNIO CARVALHO MARTINS).
17.ª Olvida o tribunal a quo que o moderno Processo Civil postula uma flexibilização do pedido, a qual pressupõe que o juiz investigue e aponte às partes o caminho que devem seguir em ordem à justa composição do litígio, numa perspetiva de justiça efetiva e de economia processual. Isto vale por dizer que, se ao ler a contestação o tribunal a quo sentiu que de lá não constava a alegação de todos os factos essenciais, devia ter alertado imediatamente a(s) parte(s) nesse sentido, e não devia, pelo contrário, ter permitido que o processo avançasse para, no fim, lhe ser dada uma inusitada “machadada” com justificações que, a final, já tinham sido identificadas muito atrás, e que, ainda assim, não foram apontadas na audiência prévia, nem para as quais o juiz “diretor do processo” e “condutor dos trabalhos” chamou minimamente a atenção no decurso do julgamento, muito pelo contrário. Salvo o devido respeito, mais parece, então, que o tribunal esteve todo o julgamento a tentar tapar os ouvidos, de forma a não vir a apurar – dando como provado - algo que, supostamente, não podia conhecer, por não estar escrito no articulado próprio e por quem considerava que o devia ter trazido ao processo!
18.ª Forçoso é, pois, concluir que nada obstava – antes impunha, segundo o Novo Código de Processo Civil – que o já referido ponto 2 da matéria de facto não provada tivesse sido dada como provado na sentença, com as legais consequências (v. ABÍLIO NETO, Glosa ao art. 5.º, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª Edição Revista e Ampliada, Janeiro/2014, p. 25). Acresce ainda que,
18.ª merece ser reapreciada a prova testemunhal, com gravação, produzida, na medida em que resulta inequívoco dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como da restante prova (documental) produzida nos autos que devia ter sido dado como provado o facto que, na sentença do tribunal a quo, foi dado como não provado. Na verdade,
19.ª dado que o locado já não se encontrava ocupado pela insolvente à data da insolvência, não pode a recorrente entregar as chaves do locado, pelo que, não tendo sido produzida contraprova, ainda que tivesse tido a oportunidade para tanto, deviam ter sido dados como provados os respetivos factos.
20.ª Atente-se, nesse conspecto ao depoimento de parte e declarações de parte de EE, Administrador de Insolvência (doravante AI), cujo depoimento se encontra gravado a 09.03.2016, entre as 10:00:41 e as 10:35:41, cfr. registo gravação áudio (sistema digital CITIUS) e ata de audiência de julgamento da sessão de 09.03.2016, com a referência 70999637, que referiu, quanto ao ponto 2 da matéria de facto não provada, as transcrições efetuadas no ponto II do presente recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos, entre os minutos 01:26/02:27, 02:40/04:17, 05:41/06:58, 07:52/10:44, 11:48/14:16, 14:54/17h58, 18:13/18h45, 23:27/24:09, 24:15/26:04, 28h47/30:13, 30:24/31:01, 31:08/34:55; bem como às declarações de parte de AA (Autor), cujo depoimento se encontra gravado a 09.03.2016, entre as 10:36:46 e as 11:17:19, cfr. registo gravação áudio (sistema digital CITIUS) e ata de audiência de julgamento da sessão de 09.03.2016, com a referência 70999637, que também se referiu, quanto ao ponto 2 da matéria de facto não provada, sendo pertinentes, em ordem à alteração da decisão ao mesmo subjacente as transcrições efetuadas no ponto II do presente recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos, entre os minutos 10:35/11:24, 12:44/13:47, 14:21/14:41, 18:38/19:17, 21:37/24:47, 26:44/27:51, 30:41/31:12 e 39:07/29:48; observem-se, ainda, as declarações da testemunha Maria …, cujo depoimento se encontra gravado a 09.03.2016, entre as 12:11:16 e as 12:25:03, cfr. registo gravação áudio (sistema digital CITIUS) e ata de audiência de julgamento da sessão de 09.03.2016, com a referência 70999637, que também se referiu ao ponto 2 da matéria de facto não provada, cfr. as transcrições efetuadas no ponto II do presente recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos, entre os minutos 12:10/13:07; por fim, as declarações da testemunha Maria T. …, cujo depoimento se encontra gravado a 09.03.2016, entre as 12:26:57 e as 12:45:39, cfr. registo gravação áudio (sistema digital CITIUS) e ata de audiência de julgamento da sessão de 09.03.2016, com a referência 70999637, que igualmente se pronunciou com pertinência relativamente ao ponto 2 da matéria de facto não provada, cfr. as transcrições efetuadas no ponto II do presente recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos, entre os minutos 02:54/03:35, 06:47/07:20, 12:48/13:12 e 14:44/15:48.
21.ª Da reapreciação da aludida prova testemunhal gravada conclui-se, assim, que a matéria de facto que foi considerada não provada está em flagrante contradição com esses depoimentos prestados, pois das passagens acabadas de transcrever resulta, pelo menos, que o locado já não se encontrava ocupado pela insolvente, mas sim por Teresa Nogueira, à data da insolvência, sendo essa dissonância com o que foi decidido na sentença sob recurso manifesta. Assim,
22.ª O tribunal ad quem não poderá deixar de conceder provimento ao presente recurso, alterando/acrescentando as respostas à matéria de facto em apreço, com a seguinte formulação: o autor e algumas trabalhadoras da insolvente que estiveram presentes na assembleia de credores confirmaram que a insolvente não ocupa o imóvel identificado em 1, o que deve ser dado como provado, (v. art. 662.º/1 do CPC). Ademais,
23.ª Em face dos já referidos relatórios do Sr AI e respetivo relatório de visita, bem como do requerimento junto aos autos em 09.06.2014, só podia ser aquela a conclusão a retirar – a de que o locado não se encontra ocupado pela insolvente.
24.ª Da prova produzida resulta, assim, à saciedade patente, a verificação, in casu, da desrazão dos recorridos, de onde, sendo aquela reapreciada, como se impõe, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, tanto mais que não podia, em todo o caso, a primeira instância, fazer-se valer da sua própria omissão patente (NUNO LEMOS JORGE, ob. cit.).
25.ª Por fim, no que concerne à litigância de má fé em que a sentença recorrida também condenou a recorrente é inelutável que esta, que alegou na sua contestação aquilo que sabia, com base nos documentos que já constavam dos autos (o Relatório elaborado nos termos do art. 155.º do CIRE e o requerimento autónomo do Sr AI), mais não tendo precisado porque não era da sua esfera de conhecimento, nem tinha outros meios de prova para tanto, e por isso relegou tal aprofundamento dos factos para a fase ulterior, do julgamento, onde os mesmos se vieram a confirmar/complementar, não incorreu em nenhum comportamento abusivo (v. Ac. do TRC de 23-02-2016), jamais se podendo identificar a eventual incompletude da sua peça processual – que o tribunal podia e devia atempadamente ter sanado - com qualquer comportamento ofensivo para com os intervenientes do processo.
26.ª Os factos alegados pela recorrente no seu articulado de defesa estavam à vista/eram do conhecimento transparente de todos os intervenientes processuais e para eles o tribunal foi inclusive, de boa fé, ao abrigo dos princípios da colaboração, da cooperação e da economia processual alertado pela parte, no art. 4.º da contestação, parte essa que baseou a sua alegação num documento exarado por entidade idónea, em que o Sr AI diz que o referido imóvel está a ser ocupado por outra entidade com o conhecimento do senhorio, aqui recorrido. Assim, isso era do conhecimento dos recorridos, pelo que os mesmos puderam pronunciar-se e produzir (contra)prova acerca de tal facto, não tendo, portanto, sido minimamente prejudicados processualmente com nenhuma conduta da recorrente, era o que mais faltava! (v. ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, pp. 391 e s.).
27.ª Ora, atentos os autos, cremos que a aludida litigância de má fé, contrariamente ao juízo desenvolvido pelo tribunal de 1ª instância, não resulta minimamente indiciada, quanto mais provada, nem se manifesta no processo, onde não se demonstra qualquer atuação dolosa, temerária ou gravemente negligente da aqui recorrente com vista a conseguir um objetivo ínvio e ilegal, a impedir a descoberta da verdade, ou a entorpecer a ação da justiça. Com efeito, a recorrente nem sequer induziu o tribunal em erro, fundado em negligência que fosse, pois tudo quanto alegou na sua contestação – e tudo quanto já resultava dos (documentos dos) autos - veio a revelar-se corresponder à verdade, o que convoca situação em que urge ver revogada, in limine, a sentença em causa.».

7. Os autores apresentaram contra-alegações, que finalizaram com as seguintes conclusões:
«I. O Douto Tribunal, na sua decisão final e ao longo de todo o processo, apenas e só respeitou a nossa legislação processual, os princípios e preceitos legais aplicáveis ao caso em concreto.
II. Em boa verdade, o Douto Tribunal deu oportunidade à Recorrente de tentar defender a sua pretensão da forma que entendeu mais conveniente, mas na Sentença só teve em conta o que a lei lhe permite, ou seja, valorar, considerar, o que estava enquadrado no tema de prova e nos factos alegados pelas partes.
III. Não se pode entender a flexibilização do processo civil como uma total anarquia processual, desprovida de regras, nem impor aos Juízes uma atitude paternalista e de formador em Direito em relação à forma de elaboração das peças pelas partes e de que provas deverão ser oferecidas para ver provado o que se pretende.
IV. Cfr. Faria, Paulo e Loureiro, Ana (2014), Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina, Lisboa, pp. 34: “O princípio dispositivo não foi abandonado pelo novo Código.”, pelo que, às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções, o que, segundo os mesmos Autores, só ganha verdadeiramente sentido em articulação com o disposto no n.º 2 do artigo 608.º: «o juiz “não pode ocupar-se senão das questões [de facto] suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.»
V. Se é para ser feita justiça não podemos desvalorizar os seguintes factos:
• Havia um contrato de arrendamento em vigor, que nunca cessou de qualquer forma, sendo somente agora declarado resolvido com a decisão da primeira instância.
• São devidas rendas vencidas e vincendas até à efetiva entrega do locado.
• A Insolvente declarou que utilizava e iria continuar a utilizar o locado.
• O locado nunca foi entregue aos Autores/Recorridos.
• O tema de prova era unicamente a entrega do locado.
• Não sendo provado que a Recorrente entregou aos Recorridos o locado, pois de facto não entregou e continua na sua posse, tudo o mais não interessa, pois está fora do tema de prova. A poder constituir matéria de exceção, não foi provada.
• Esta situação tem acarretado elevados prejuízos para os Autores/Recorridos, que não recebem o pagamento das rendas pela Ré nem podem celebrar novo contrato de arrendamento com interessados.
VI. Só mantendo a Douta Sentença do Tribunal a quo, será feita a já costumada justiça, devolvendo aos Autores/Recorridos a posse do seu imóvel e ressarcindo os mesmos dos elevados prejuízos que lhe foram causados pela atitude da Ré/Recorrente, que os privou do uso e disposição deste imóvel, impedindo-o de arrendar a interessados.
VII. Pelo que, foi inteiramente bem decidido, com o devido apoio das normais legais aplicáveis, a condenação da Ré/Recorrente na entrega do locado e pagamento das rendas devidas, vencidas e vincendas, e respectivos juros, vencidos e vincendos, bem como a condenação em litigância de má-fé.
VIII. Atente-se que por Despacho (Conclusão de 14/05/2014), no âmbito do Processo 1022/13.7TBENT, que corre os seus termos na Comarca de Santarém - Inst. Central - Sec. Comércio - J1, ao qual o presente processo corre por apenso, foi decidido:
“Considerando o valor ora apreendido, não se declara encerrado o processo por insuficiência de massa insolvente para suportar as custas e despesas da mesma.”
Pelo que, não sendo declarado encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa, é ao Administrador de Insolvência, em representação da Massa Insolvente/Ré/Recorrente, que cabe cumprir a Douta Decisão proferida».

8. No despacho que admitiu o recurso, em cumprimento do disposto no artigo 617.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a Senhora Juíza pronunciou-se sobre as nulidades invocadas pela Recorrente, concluindo que em seu entender as mesmas não foram cometidas.

9. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, as questões a apreciar no presente recurso, atenta a sua ordem lógica, são as de saber se:
- Se verifica a nulidade da decisão:
i) - por a Senhora Juíza não ter aproveitado a factualidade demonstrada, considerando-a ao invés como não provada, existindo contradição entre os fundamentos e a decisão, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;
ii) - por excesso de pronúncia, ao abrigo da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por ter o Tribunal proferido decisão surpresa, na medida em que não questionou a ré quanto à essencialidade de alegar quem ocupava o locado;
- A matéria de facto deve ser alterada;
- Deve ser revogada a decisão recorrida;
- Deve ser revogada a condenação da ré por litigância de má fé.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. A fracção autónoma correspondente ao R/C do prédio n.º …, na Rua …, no Entroncamento, descrito na Conservatória do Registo Predial de Entroncamento sob o n.º …/…, freguesia de São João Baptista e concelho do Entroncamento, e inscrita na respectiva matriz sob o artigo …, encontra-se registado a favor dos autores, pela Ap. 8 de 1986/06/13.
2. Por documento particular, datado de 08 de Junho de 2001, os AA., como primeiros outorgantes e a insolvente, CC, Lda., como segunda outorgante declararam, além do mais:
“1º. O primeiro outorgante dá de arrendamento à sociedade, segundo outorgante, uma loja correspondente ao R/c e arrecadação na cave, sito na Rua …, n.º …, r/C, inscrita na matriz predial urbana sob o n.º … e inscrita na Conservatória do Registo Predial da Golegã sob o n.º …, nas seguintes condições:
2º. O arrendamento é pelo prazo de um ano com início no dia 1 de Agosto de 2001, renovando-se automaticamente nos termos legais.
3º. O locado destina-se exclusivamente à actividade industrial de análises clínicas.
4º. A renda mensal a pagar pelo segundo outorgante ao primeiro outorgante é de 120.000$00, paga no domicílio do senhorio ou no de quem legalmente o representar, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito (…)”
3. A sociedade arrendatária deixou de pagar as rendas a partir de Dezembro de 2012.
4. Em 10 de Janeiro de 2014, foi proferida sentença de declaração de insolvência da sociedade arrendatária.
5. Até à declaração de insolvência, encontravam-se em dívida, a título de rendas vencidas e não pagas, pelo arrendamento desta fracção, a importância global de 8.978,40 €, correspondentes ao mês de Dezembro de 2012, aos meses de Janeiro a Dezembro de 2013 e aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2014.
6. Os autores reclamaram o montante aludido em 5) em sede de reclamação de créditos, o qual foi reconhecido pelo Sr. Administrador de Insolvência.
7. Após a declaração de insolvência, a massa insolvente da sociedade arrendatária, não pagou as rendas referentes aos meses de Março, Abril, Maio e Junho de 2014.
8. Os AA., através da sua mandatária, notificaram o Administrador de Insolvência para que procedesse aos pagamentos em falta.
9. O Administrador da Insolvência não comunicou aos AA. a denúncia do contrato aludido em 2).
10. A insolvente não se encontra a laborar no imóvel.
11. Por escritura pública, outorgada em 13-03-1998, os AA., como primeiros outorgantes e a insolvente, CC, Lda., como segunda outorgante declararam, além do mais:
“1º. O primeiro outorgante dá de arrendamento à sociedade, segundo outorgante, o primeiro andar do prédio urbano sito na Rua …, com os n.ºs …, … e … de polícia, inscrita na matriz sob o artigo … (…)”
12. A insolvente remeteu ao autor carta datada de 22-11-2013, com o seguinte teor:
“CC, Lda. (…) neste acto representada pela gerente FF, arrendatária da fracção autónoma correspondente ao primeiro andar do prédio nº … e … sito na Rua …, … – Entroncamento, nos termos do artigo 1100º do Código Civil, vem pela presente comunicar a V. Exas. que procede à denúncia do contrato de arrendamento, celebrado em 13 de Março de 1998.
A denúncia do contrato de arrendamento produz efeitos no dia 30 de Novembro de 2013.”
13. Por documento datado de 30 de Novembro de 2013, denominado “Termo de Entrega”, a insolvente declarou:
“(…) arrendatária da fracção correspondente ao primeiro andar do prédio n.º … e … sito na Rua …, … Entroncamento (…), vem pelo presente declarar, para todos os efeitos legais, que entrega a fracção supra identificada aos senhorios, no dia 30 de Novembro de 2013, data em que a denúncia do contrato de arrendamento produz os seus efeitos.
Mais declara que no dia 30 de Novembro de 2013 entrega a fracção livre e devoluta de pessoas e bens e que o interior da mesma se encontra em bom estado de conservação.
A senhoria declara para os devidos efeitos que aceita o estado em que o locado se encontra, desde que tenha sido fechada a ligação entre a supra citada fracção e o rés do chão, que é e continuará a ser utilizado pela arrendatária CC, Lda. (…).
Tendo sido considerado não provado que:
1. As chaves do locado foram entregues aos AA. em finais de 2013/ início de 2014.
2. O autor e algumas trabalhadoras da insolvente que estiveram presentes na assembleia de credores confirmaram que a insolvente não ocupa o imóvel identificado em 1).
*****
III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Das nulidades
Invoca a Recorrente nas suas extensas conclusões 8.ª a 18.ª que a sentença é nula por totalmente adversa à convicção formada em sede de julgamento, enfermando por isso da sanção cominada no art. 615.º/1 c) do CPC, porque os seus fundamentos estão em oposição com a decisão, em virtude de o tribunal reconhecer, em diversos momentos, que resultou provada em sede de julgamento muita factualidade que importaria aproveitar para a decisão, como é o caso de já não ser a recorrente quem ocupa o locado, mas sim outra sociedade, e de optar, depois, por não aproveitar tal facto, dando-o como não provado; e ainda que a sentença é nula por excesso de pronúncia, na medida em que o juiz conheceu, na sentença, de questões de que não podia tomar conhecimento, pois nunca tendo o tribunal a quo deixado antever que, na sua perspectiva, faltava alegar certos factos nos articulados – da ocupação do locado por terceiros – para poder decidir em abono da verdade que estava a apurar –, a decisão alcançada, sem previamente consultar as partes nesse sentido, representa uma verdadeira decisão surpresa, vedada pelos arts. 3.º, 7.º e 195.º/1 do CPC e pelos deveres da gestão processual e da cooperação (arts. 6.º e 7.º do mesmo Código) (conclusões 2.ª a 7.ª).
Apreciaremos conjuntamente ambas as nulidades porque, em síntese, ambos os vícios assacados à sentença recorrida decorrem de o tribunal ter considerado que não tinha sido alegada matéria que permitisse considerar a prova carreada aos autos em sede de instrução da causa.
Disse a este respeito a Senhora Juíza no despacho em que admitiu o presente recurso, que «Na sentença proferida, o facto que o Tribunal considera como não provado prende-se com o que sucedeu na Assembleia de Credores e não com a efectiva ocupação ou não do locado.
A demais factualidade, não alegada por qualquer das partes e que resultou da produção de prova (factualidade inerente à ocupação do locado por uma terceira entidade) não foi tomada em consideração pelo Tribunal, o que foi feito de forma fundamentada.
Assim, entende-se inexistir qualquer contradição entre a fundamentação e os factos provados ou a decisão proferida que acarreta a nulidade da decisão.
Por outro lado, da análise das peças processuais constantes dos autos – Petição Inicial e Contestação, o Tribunal entendeu que a ré alegava não se encontrar a ocupar o imóvel, em virtude de o ter entregue aos autores (entendimento que resulta patente do único tema da prova enunciado e que não foi objecto de qualquer reclamação), motivo pelo qual, nada tendo sido alegado na contestação para além disto, se entende não caber ao Tribunal indagar da ocorrência de outros factos (novos) e da necessidade da sua alegação/concretização.
Em face do que, se conclui, pela desnecessidade de aperfeiçoamento da contestação e da inexistência de qualquer decisão surpresa, já que a decisão proferida teve em consideração a factualidade alegada e aquela que fundamentadamente entendeu poder tomar em consideração».
Apreciemos, pois.
Atento o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Esta causa de nulidade da sentença, é facilmente compreensível se atentarmos que os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão estão intrinsecamente ligados, impondo-se que a decisão proferida seja o corolário lógico dos respectivos fundamentos.
Assim, se as premissas em que assentou a fundamentação estiverem em contradição com o silogismo judiciário que das mesmas devia decorrer, existe a referida contradição, fulminando a decisão com a nulidade pelo invocado fundamento.
Ora, no caso em apreço, basta uma leitura minimamente atenta da sentença recorrida para se concluir que não existe a apontada contradição entre os fundamentos e a decisão já que, conforme a Senhora Juíza expendeu quer na decisão recorrida quer no despacho em que admitiu o presente recurso, mostra-se fundamentada a razão pela qual a prova produzida em julgamento a respeito da matéria em causa não foi por si atendida.
A recorrente discorda desse entendimento. Porém, essa discordância não configura nulidade, enquadrando-se antes no erro de julgamento, já que aquilo que se pretende salientar é que a decisão tomada pelo julgador está errada, não sendo a arguição de tal nulidade que justifica a discordância quanto ao que foi decidido[4].
No caso vertente, o raciocínio vertido na sentença recorrida quanto à fundamentação de facto e de direito, conduz de forma lógica à decisão proferida nos autos, donde concluímos que a mesma não enferma da invocada nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão.
Deste modo, a questão suscitada pela Recorrente, será objecto de apreciação no momento oportuno que é o da reapreciação da matéria de facto.
Como vimos, pretende ainda a Recorrente que a sentença recorrida é nula por excesso de pronúncia, já que o tribunal proferiu uma decisão surpresa ao entender que não foram alegados pela parte os factos necessários à procedência da excepção invocada, sem que previamente e no decurso do processo a tivesse alertado para a essencialidade de tal alegação.
Ora, a respeito do vício da nulidade da sentença por omissão ou excesso de pronúncia rege actualmente o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC na redacção introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, o qual tem integral correspondência com a previsão anteriormente constante no artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC, mantendo-se consequentemente válidas todas as considerações que já se encontravam sedimentadas a respeito da respectiva interpretação.
Assim, dispõe o referido preceito legal que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta causa de nulidade da sentença consiste, portanto, na omissão de pronúncia, sobre as questões que o tribunal devia conhecer; ou na pronúncia indevida, quanto a questões de que não podia tomar conhecimento[5].
É entendimento pacífico que esta nulidade está em correspondência directa com o anteriormente preceituado no artigo 660.º, n.º 2, do CPC, e agora vertido no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, que impõe ao juiz a resolução de todas as questões que as partes submeteram à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras, não podendo, porém ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo as que sejam de conhecimento oficioso, constituindo, portanto, a sanção prevista na lei processual para a violação do estabelecido no referido artigo[6].
Ora, no domínio do novo CPC tem sido entendido que configurando a sentença proferida uma decisão-surpresa, o meio próprio para atacar a violação do princípio do contraditório plasmado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, seria a invocação do incumprimento pelo juiz da audição prévia à decisão, gerando uma nulidade processual nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1, do CPC.
Porém, como acontece na situação presente, nos casos em que tal nulidade processual decorrente da violação do princípio do contraditório se encontra coberta por uma decisão judicial que admite recurso, aquela é consumida pela nulidade da sentença por excesso de pronúncia, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, porquanto, sem a prévia audição das partes, o tribunal conhece de questão que não podia conhecer, por outras palavras, “o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão”[7].
Portanto, existindo uma efectiva decisão surpresa, verifica-se a comissão de tal nulidade.
Acontece que, no caso presente, a sentença recorrida não pode, de forma alguma, ser qualificada como uma decisão surpresa.
Na verdade, a proibição da decisão surpresa constitui um desenvolvimento do princípio do contraditório vertido no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, e postulado pelo direito a um processo equitativo que decorre do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, princípio que o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, salvos os casos de manifesta desnecessidade.
A lei impõe, portanto, que a desnecessidade seja manifesta, indicando portanto, que este princípio do contraditório deve ser cumprido mesmo quando possa apresentar-se aparentemente como desnecessária a audição, só podendo ser afastado relativamente a questões cuja decisão não tenha, ainda que reflexamente, qualquer repercussão sobre o desenvolvimento da instância e consequentemente sobre a decisão do litígio, ou mais evidentemente, naquelas que pela sua natureza não compreendam o contraditório prévio e que se encontram aliás ressalvadas no n.º 2 do indicado artigo.
Efectivamente, “[e]ste princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte de participação efectiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussão no objecto da causa”.
Assim, “o problema surgido no contexto da questão de facto está liminarmente resolvido: o tribunal não pode, salvo a coberto da norma contida no n.º 2 deste artigo, decidir com base em factos desconhecidos pela parte ou sobre os quais ela não teve oportunidade de se pronunciar”[8].
Ora, no caso em apreço, o Tribunal não decidiu com base em factos que as partes não tenham alegado - é, aliás, contra a não consideração de outros factos que a Recorrente se insurge -, nem decidiu com base em questões de direito que as partes não conhecessem ou não tivessem a obrigação de conhecer, em face das posições por cada uma delas vertidas nos articulados[9], razão pela qual, também não ocorre a nulidade da sentença com base no invocado excesso de pronúncia.
Questão diversa, e que também será apreciada no local próprio, é a de saber se a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, porque os factos tidos por assentes ou a prova produzida impunham decisão diversa, nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
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III.2.2. – Da impugnação da matéria de facto
Insurge-se a Recorrente por ter sido considerado não provado o facto supra referido em 2. da matéria de facto não provada, pretendendo que o mesmo seja considerado assente.
Conforme decorre do preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC, quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição.
De tal artigo resulta que a lei exige o cumprimento pelo Recorrente dos seguintes requisitos cumulativos:
i)a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
ii) a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados;
iii) a indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto;
iv) a indicação, com exactidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Mostrando-se cumpridos os ónus a cargo da recorrente previstos no indicado preceito, incumbe a este Tribunal proceder à requerida reapreciação da prova.
Como é sabido, nesta apreciação, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo[10].
Ora, a convicção do Tribunal, quer de primeira instância, quer da Relação, não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e sendo evidentemente apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.
De facto, «[o] “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto -, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência.
O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr.,v.g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01)» [11].
Assim, a Senhora Juíza expendeu a seguinte fundamentação a respeito do indicado facto que considerou não provado: «Quanto à abordagem da situação referente ao contrato de arrendamento e ocupação do imóvel no âmbito da Assembleia de Credores não logrou o Tribunal apurar com segurança o que ocorreu, uma vez que nenhuma das testemunhas presentes naquela data soube esclarecer o assunto».
Previamente à fundamentação da matéria de facto, a Senhora Juíza explicou nos seguintes termos a razão pela qual não considerava factos que assumidamente resultaram da discussão da causa (e é este segmento da decisão que merece as críticas tecidas pela Recorrente como fundamento das nulidades invocadas): «Cabe ainda esclarecer que resultou do julgamento da causa que, embora a insolvente não tenha procedido à entrega das chaves, já não se encontra a ocupar o locado, estando o mesmo ocupado por uma outra sociedade do mesmo grupo.
No caso, em sede de contestação, a massa insolvente limitou-se a alegar que já tinha procedido à entrega do imóvel, não se encontrando a ocupar o mesmo, não fazendo em qualquer momento referência ao facto do mesmo estar ocupado por terceiros, estranhos à relação contratual estabelecida com o autor.
Apenas em requerimento autónomo, junto pelo Sr. Administrador da Insolvência, é feita uma alusão à ocupação do imóvel por terceiro. Porém, tal requerimento é subscrito pelo próprio AI (e não pelo respectivo mandatário) e é totalmente alheio à tramitação processual.
Tal facto – a ocupação por terceiros, seria passível, em abstracto, de enquadrar uma situação de transmissão da posição do arrendatário, caso se mostrassem preenchidos os pressupostos previstos nos previstos no artigo 1112º do Código Civil, eventualmente impeditiva da procedência da acção, na medida em que impediria ou extinguiria, quanto à ré, o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.
Trata-se, contudo, de um facto essencial ao preenchimento de tal excepção, pelo que carecia de ser alegado pela parte que dele pretendia beneficiar – a ré.
Ora, conforme dispõe o artigo 5º do CPC:
1. Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.
2. Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. (…)”.
Ideia que é concretizada no artigo 572º do CPC, que prescreve que: “Na contestação deve o réu: (…) c) Expor os factos essenciais em que se baseiam as excepções deduzidas, (…).
Neste caso, conforme supra explanado, estamos perante factos essenciais, pelo que cabia à ré alegá-los.
E tal alegação, conforme resulta do artigo 573º do CPC, deve ser deduzida na contestação e não em qualquer outro requerimento anómalo ao processo.
Por outro lado, não são mera concretização dos factos já alegados, nem são factos notórios, pelo que não podem ser por outra forma considerados na decisão da causa.
Em face do exposto, muito embora tenha resultado da discussão da causa, que o imóvel se encontra ocupado por terceiros, tal facto poderá ser tomado em consideração, pelo que não foi considerado nos factos provados.
Ao que acresce que, para que o mesmo pudesse enquadrar eventual transmissão da posição do arrendatário, conforme prevista no artigo 1112º do C.C., necessitaria de ser complementada por outros factos, nomeadamente a celebração por escrito e comunicação ao senhorio. Factos que não só não foram igualmente alegados, como não resultaram por qualquer foram da prova produzida.
Vejamos, pois, se assiste ou não razão à Recorrente, começando por ver o que a respeito da matéria que qualificou como «defesa por excepção». e que considera impeditiva do direito dos senhorios, a mesma alegou na respectiva contestação.
Invocou a Ré que: 1.º Os Autores têm pleno conhecimento da extinção do contrato de arrendamento que vigorava entre as partes; 2.º Na verdade, bem sabem que as chaves do locado lhes foram entregues em finais de 2013 ou início de 2014; 3.º tanto mais que quer o próprio Autor AA; 4.º quer algumas trabalhadoras da Ré que estiveram presentes na assembleia de credores, confirmaram que inexiste ocupação das instalações em causa pela CC, Lda. – cfr. requerimento já junto aos autos nesse sentido, e o próprio relatório do Administrador de Insolvência; 5.º Assim, já não sendo a Ré quem ocupa o locado, e tendo os Autores conhecimento disso mesmo; 6.º tanto que se aceitaram as chaves do locado; 7.º foi porque consentiram com o termo posto ao contrato de arrendamento comercial.
Conforme é consabido, as peças processuais são interpretadas, exactamente nos termos previstos para as declarações negociais, nos termos previstos nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil[12].
Assim, da contestação apresentada pela Ré, não resultam quaisquer dúvidas de que a mesma invoca como fundamento da alegada extinção do contrato de arrendamento, a denominada revogação real. Aliás, se dúvidas houvesse, bastava ver que é precisamente esta a situação tratada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-05-2010, processo 06A1001, que citam em abono da respectiva tese.
Ora, em face do preceituado no artigo 1079.º do Código Civil, que rege sobre as formas de cessação do contrato, - lembrando-se que o disposto na secção em que esta norma se insere tem natureza interpretativa (artigo 1080.º) -, o arrendamento urbano cessa por acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outras causas previstas na lei. Dentre estas avulta, para o que ora importa em face da alegação da ora Recorrente, a revogação bilateral prevista no artigo 1082.º do CC, de acordo com o qual, as partes podem, a todo o tempo, revogar o contrato, mediante acordo escrito a tanto dirigido: i) quando o mesmo não seja imediatamente executado; ii) quando contenha cláusulas compensatórias; iii) e quando contenha cláusulas acessórias.
Porém, em face do disposto no n.º 2 do preceito, se o acordo de revogação for imediatamente cumprido, com a efectiva desocupação material do locado, não é necessária a observância de qualquer forma, e estamos então em presença da causa de cessação do contrato por acordo entre as partes, que foi invocada pela Massa Falida na respectiva contestação: a chamada “revogação real” a que já nos referimos.
E, como dito, sendo as causas de cessação do contrato as que constam da lei, e tendo esta formulação imperativa, não podem existir outras causas de extinção do contrato, que não tenham na alegação da parte qualquer enquadramento, ainda que imperfeitamente expresso.
Efectivamente, como é sabido, na fixação da matéria de facto provada e não provada o juiz tem de atender a todos os factos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e não apenas aos factos que suportam a solução da questão de direito que considera aplicável, devendo ter em consideração quando agora responde à matéria de facto na sentença, que o deve fazer por forma a possibilitar «a ulterior e ampla discussão da matéria de facto, de modo a que seja viável encontrar a solução de direito que decida com justiça, sem condicionar o debate a uma única perspectiva da questão de direito – que, afinal, pode nem ser a adequada –, mas a outras que se mostrem legalmente possíveis»[13].
Assim, tal e qual acontecia no regime de pretérito, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, com excepção daquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, a não ser que a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras – cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
Ora, tais questões - a que se reporta a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC já referido -, «são os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções»[14].
É certo que, em face do actual CPC, «a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto, já não valendo argumentos de pendor formalista» sendo agora possível ao juiz «optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art. 5.º, n.º 2, do NCPC».
Porém, tal liberdade não é possível relativamente aos factos essenciais, relativamente aos quais continua a funcionar o princípio da auto-responsabilização das partes.
De facto, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do CPC, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e, no caso, aqueles em que baseiam as exceções invocadas, porquanto nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, para além destes, apenas podem ser considerados pelo juiz os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, e os factos que sejam complemento ou concretização daqueles que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, e quanto a estes, apenas desde que as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciar sobre eles. Ou seja, da correlação entre estes dois números do preceito, extrai-se que as partes estão oneradas com a invocação dos factos essenciais à procedência da acção ou da excepção, incumbindo-lhes alegar os factos concretos em que assentam a sua pretensão ou a sua defesa, com a efectiva identificação e concretização do conjunto de factos em que se consubstancia a relação material controvertida, na vertente da acção ou da defesa, pois só estes podem ser conhecidos pelo tribunal e são subsumíveis às regras de direito.
Na verdade, à semelhança do que ocorre com a indicação da causa de pedir, que «é feita através da alegação de factos da relação material que, integrando a fatispecie da norma pertinente, permitem a sua identificação»[15] sendo «fixada por referência ao instituto jurídico pertinente», também para a procedência da defesa por excepção, é necessário que o réu invoque o conjunto de factos da relação material que integram a norma pertinente à respectiva defesa.
Porém, tal qual pode ocorrer com os fundamentos da acção, também pode acontecer na defesa que não tenham «ocorrido (na relação material) todos os factos que a norma elege como requisitos do nascimento do direito invocado». Neste caso, a alegada causa pretensamente extintiva ou modificativa do direito do autor não procede, ainda que o réu alegue e prove exaustivamente todos os factos que invocou.
E, continuam os citados autores, «Pode também suceder que todos os factos exigidos pela norma substantiva tenham ocorrido, mas que o autor não os tenha alegado (al. D) do n.º 1 do art. 552.º): na narração que faz da relação material, por incompetência sua – ou do seu mandatário -, omite factos que, na economia da demanda por si desenhada, servem de fundamento ao pedido formulado”. Neste caso, pode haver lugar ao aperfeiçoamento da articulação. Mas, “se este não tiver lugar, a acção improcede, não porque ao autor não assista o direito, mas porque fracassou na alegação dos factos que o revelam e que integram essa causa de pedir».
Porém, se é certo que a narração dos factos essenciais pode ser completada, não é menos certo que «embora a narração feita no articulado inicial não seja forçosamente definitiva, ela é determinante, pois, através da identificação da causa de pedir que oferece, ela ancora o objecto da instância, apenas permitindo a alegação de novos factos essenciais que respeitem à causa de pedir identificada, embora não exaustivamente descrita».
Ora, no caso dos autos, como vimos supra, a forma como a ora Recorrente conformou a respectiva defesa por excepção não permite em momento algum enquadrar a mesma na transmissão do contrato de arrendamento, que agora tenta colocar nos autos por via das alegações de recurso, porquanto como dito, dos artigos 1.º a 8.º da respectiva contestação, verificamos que a sua defesa se consubstanciou na revogação real por via da alegada entrega das chaves do imóvel objecto do contrato de arrendamento, não permitindo, portanto, em qualquer vertente de análise, por se tratar de facto essencial, enquadrar o «aperfeiçoamento» do articulado de contestação apresentado pela massa insolvente, isto porque todos os factos alegados pela mesma se referem a diferente fatispecie relativamente àquela que agora pretendem ver provada.
Concluímos, pois, que com o novo Código de Processo Civil, «atribui-se ao juiz um poder mais interventor, sem que tal signifique, porém, o fim do princípio dispositivo e a sua substituição pelo princípio inquisitório, uma vez que continua a caber às partes a definição do objecto do litígio, através da dedução das suas pretensões e da alegação dos factos que integram a causa de pedir ou suportam a defesa»[16].
Portanto, não temos qualquer dúvida em sufragar o entendimento a este respeito expresso pela Senhora Juiz a quo no segmento da decisão recorrida em que refere que ao ora Recorrente incumbia ter oportunamente alegado os factos necessários a enquadrar uma transmissão da posição contratual, e acrescentamos, dos quais resultasse que a mesma fosse válida e eficaz perante o senhorio.
Não obstante, o juiz tem agora uma maior amplitude na conformação de facto da acção porquanto, face ao disposto nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC, para além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados, os factos instrumentais que resultem da instrução da causa e os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes tenham alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles aquelas tenham tido a possibilidade de se pronunciarem, bem como os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, que o juiz já podia considerar no regime anterior.
Para o efeito, atento o princípio do contraditório ínsito no artigo 411.º do CPC, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, mas sempre e apenas quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, nos termos acabados de referir.
Finalmente, o artigo 607.º, n.º 4 impõe-lhe, para além do mais, que na fundamentação da sentença declare quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais elementos que foram decisivos para a sua convicção, tudo tendo em vista a prevalência do fundo sobre a forma.
Ora, revertendo ao concreto pedido de reapreciação da matéria de facto, tendo efectivamente sido alegado pela Ré que já não é esta que ocupa o locado e que os Autores têm conhecimento disso, devia tal matéria ter sido respondida, porque na base factual devem ser consideradas pelo juiz todas as soluções plausíveis da questão de direito, não se podendo olvidar que havia sido pedida a condenação dos Autores como litigantes de má fé e por actuarem com abuso de direito.
Acresce que, como dito, para além da alegação explícita é também possível considerar a alegação implícita, e ainda os factos de que o Tribunal tenha conhecimento por via do exercício das suas funções. Deste modo, verificando-se que efectivamente a Ré havia alegado na contestação que já não é a insolvente quem ocupa o locado, remetendo para o requerimento de resposta apresentado pelo Administrador de Insolvência e para o Relatório deste, apresentado na Assembleia de Credores, e constando na acta dessa Assembleia que o senhorio se encontrava presente e que os credores deliberaram aprovar o relatório apresentado, factos e elementos processuais estes que eram do conhecimento das partes, não pode deixar de se considerar provado que «Não é a insolvente quem ocupa o locado, sendo o mesmo ocupado por uma outra empresa», já que tal constava expressamente no referido relatório que referia ainda «do mesmo grupo». Porém, não existindo nos autos certidões da Conservatória do Registo Comercial que tal comprovem, não pode tal segmento da afirmação produzida no relatório ser dado como provado.
Para além desta alegação, havia ainda a insolvente invocado que os autores têm conhecimento de que não é a insolvente que ocupa o imóvel.
Ora, para além do sobredito relatório constante dos autos, em audiência de julgamento, ouvidos em declarações de parte, o Administrador de Insolvência referiu que «foi lido o relatório na assembleia e foi explicado», aduzindo ainda em resposta à pergunta da Mandatária da Ré se o senhorio ficou perfeitamente ciente do que estava no relatório de visita, «claro (…), foi levantada a questão pelo Sr. AA e foi-lhe explicado exactamente essa situação, que ele teria que, que, que fazer o despejo uma vez que o que estava ali em causa era o encerramento, e que portanto, com as consequências naturais do encerramento, ele teria que fazer o despejo e que não estava nas competências do Administrador de Insolvência ele entregar qualquer imóvel a partir desse momento».
Por seu turno, o autor confirmou que no dia da Assembleia de apreciação do relatório teve conhecimento de que lá estaria outra ou outras empresas. Assim, quando instado pela mandatária dos Autores para dizer perante o tribunal “na assembleia de credores o que é o Sr respondeu [ao AI]?”, retorquiu: “Eu respondi-lhe: Olhe, eu tenho contrato com o CC mas vejo lá pessoas estranhas que eu não sei quem são (…) Era isso que eu lhe disse: O Sr. não me entrega a chave? É que eu vejo lá pessoas estranhas e não sei o que é que hei-de fazer. E o que ele me respondeu era que eu fizesse uma acção de despejo. Mas eu disse: eu não posso fazer de despejo a uma pessoa que não tem contrato (…) Também não sabia quem era, exactamente. Quer dizer, as pessoas é que me informaram cá fora que me disseram que realmente estava lá o GG, estava lá escrito GG, estava lá escrito HH (…) Às vezes sabia algumas coisas porque me telefonavam, uma das Senhoras me telefonava a dizer: olhe que está lá fulana, está lá sicrana e tal».
Acresce que, também as testemunhas Maria e Maria T…., depuseram confirmando estas declarações, referindo expressamente que em termos de identificação das empresas, ainda em 2013, retiraram as letras azuis que estavam escritas no vidro com CC e colocaram uma placa a dizer HH.
E a testemunha Maria T…, explicou ainda à Senhora Juíza que “Em 2013, talvez, o laboratório CC integrou-se no laboratório HH e as colheitas que eram feitas no CC iam para a HH e aí é que faziam as análises.(…)
M. Juiz: Quando diz “integrou-se”, que quer dizer exactamente o quê com isso?
Testemunha: O CC acabou, como laboratório, e passou a ser HH, lá também, ficou como posto no Entroncamento e todos os postos que pertenciam ao CC ficaram como postos da HH (…)
M. Juiz: Portanto aquilo que aconteceu, do que eu estou a perceber, a CC entrou em insolvência, é integrada em HH, que fica com alguns clientes, com alguns trabalhadores, utiliza o espaço.
Testemunha: Sim.
M. Juiz: Depois acontece o mesmo com HH que passa a II. (…)”.
Consequentemente, não restam dúvidas em face da sobredita prova de que o ponto 2 da matéria de facto considerada não provada onde consta: «O autor e algumas trabalhadoras da insolvente que estiveram presentes na assembleia de credores confirmaram que a insolvente não ocupa o imóvel identificado em 1)», deve ser considerado provado.
Procede, pois, na parte referente à impugnação da matéria de facto, a pretensão da Recorrente.
Porém, ao invés do que entende o Recorrente, a prova de que «Não é a insolvente quem ocupa o locado, sendo o mesmo ocupado por uma outra empresa», e que «o autor e algumas trabalhadoras da insolvente que estiveram presentes na assembleia de credores confirmaram que a insolvente não ocupa o imóvel identificado em 1)», não têm no enquadramento legal do contrato de arrendamento a virtualidade que a Recorrente lhe pretende dar de serem causa da respectiva extinção, como melhor explicaremos infra.
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III.2.3. – Do Direito
A Recorrente defende que, efectuada a pretendida alteração relativamente à matéria de facto, não pode ser condenada na presente acção.
Conforme vimos na parte referente à matéria de facto, a Recorrente havia alegado a extinção do contrato, por revogação real, como fundamento da respectiva oposição à pretensão deduzida pelos Autores de resolução do contrato de arrendamento celebrado entre estes e a ora insolvente, com base na falta de pagamento das rendas devidas pela Massa Insolvente após a declaração de insolvência da arrendatária, pagamento que esta, de harmonia com a defesa apresentada, não alegou ter efectuado.
Não tendo a Ré demonstrado a extinção do contrato de arrendamento, pela alegada entrega das chaves do arrendado ao senhorio, cabe verificar, atentas as respectivas conclusões, se a prova de que são terceiros e não a insolvente quem ocupa o arrendado, e que tal facto era do conhecimento do senhorio, subentende-se, à data em que interpôs a presente acção, tem na economia dos autos o valor que a Recorrente pretende atribuir-lhe.
Dir-se-á, desde já, que não tem razão, como tentaremos demonstrar.
Efectivamente, nos termos do artigo 1022.º do CC, sendo o contrato de arrendamento o acordo mediante o qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição, do mesmo emergem para cada uma delas obrigações, de entre as quais avultam as previstas para o senhorio no artigo 1031.º do CC - de entregar a coisa e assegurar o gozo desta para os fins a que se destina; e para o arrendatário no artigo 1038.º do CC, onde - para além das demais que ora não importam ao caso -, consta expressamente na alínea a), a obrigação de pagar a renda, e nas alíneas f) e g) a obrigação de não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar; e a obrigação de comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada.
A violação de qualquer uma destas obrigações pelo arrendatário, constitui causa de resolução do contrato de arrendamento, nos termos previstos no artigo 1083.º, n.ºs 1, 2, alínea e), e 3, do CC.
Assente que a obrigação de pagamento da renda não foi satisfeita, e que esta, por si só, torna inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento, vejamos se, previamente à insolvência da arrendatária, existiu ou não a válida transmissão da posição desta a terceiro.
Como vimos, a este respeito provou-se que à data da instauração da presente acção a insolvente já não exercia actividade no locado, e que este se encontrava ocupado por outra(s) sociedade(s), situação que era do conhecimento do senhorio, pelo menos desde a data da Assembleia de Apreciação do Relatório, em 11-3-2014.
Porém, tais factos não têm a virtualidade de configurar a existência de uma transmissão válida e eficaz da posição da arrendatária aos terceiros ocupantes do arrendado.
Efectivamente, para que tal pudesse ocorrer necessário seria que os senhorios tivessem consentido no uso e fruição do locado por terceiro, por tolerância da arrendatária[17], ou que tivesse ocorrido a referida transmissão válida e eficaz, não tendo qualquer uma destas situações sido demonstradas.
Na verdade, conforme resulta das sobreditas normas, «é permitida a cedência do gozo da coisa nos casos de comodato (autorizado pelo locador), sublocação, subarrendamento (autorizado ou ratificado pelo senhorio), locação de estabelecimento, trespasse de estabelecimento comercial ou industrial e continuação do exercício de profissão liberal no locado.
Mesmo quando tenha sido dada autorização pelo locador à cedência ou nos casos em que esta não seja necessária (designadamente locação de estabelecimento, trespasse e continuação do exercício de profissão liberal no locado), deverá, sob pena de ineficácia, ser comunicada ao locador, no prazo de 15 dias. No caso especial da locação de estabelecimento, o prazo para a comunicação é alargado para 1 mês – cfr. art.º 1109.º, n.º 2, do CC»[18].
Ora, no caso dos autos, não só não se demonstrou que o senhorio tenha autorizado a ocupação do imóvel por terceiro, como não se demonstrou que, para a hipótese de a arrendatária ter transmitido a sua posição por via de alguma das regras especiais sobre locação de estabelecimento e transmissão da posição do arrendatário no arrendamento para fins não habitacionais, por acto entre vivos, designadamente por via de trespasse, que nos termos dos artigos 1109.º, n.º 2, e 1112.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, ambos do CC, não carecem de autorização do senhorio, soçobrou ainda a demonstração de que tais actos lhe foram comunicados.
Assim, a terem existido, como dito, não tendo sido comunicados, são ineficazes relativamente ao senhorio, o que significa que, faltando tal comunicação, o cessionário ou trespassário não chegam a adquirir a qualidade de arrendatários[19].
Na verdade, se assim já era quanto ao trespasse, quanto à cessão, o n.º 2 do artigo 1109.º, introduzido pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, veio «pôr fim à discussão na doutrina e na jurisprudência sobre a questão de saber se eram necessárias a autorização e a comunicação ao senhorio para a cessão de exploração de estabelecimento instalado em local arrendado. Fica agora claro que essa autorização não é necessária, mas que a comunicação da transferência é indispensável, devendo ser efectuada no prazo de um mês e, preferencialmente, de acordo com o regime constante dos art.ºs 9.º a 11.º da Lei n.º 6/2006»[20].
Deste modo, para além da referida ineficácia de eventuais negócios de transmissão da posição entre o arrendatário e terceiros, a falta de comunicação dos mesmos nos prazos assinalados nas referidas normas constitui fundamento de resolução do contrato [cfr. art.º 1083.º, n.ºs 1 e 2, al. e), do CC], desde que o senhorio entretanto não reconheça o beneficiário da transferência como tal (art.º 1049.º do CC).
Ora, no caso dos autos, também não existiu esse reconhecimento, já que o senhorio não recebeu qualquer renda por parte dos terceiros ocupantes, nem, por alguma forma, se mostra verificado qualquer comportamento concludente do mesmo de que se possa concluir que os considera como arrendatários.
Tudo para dizer que, ao invés do pretendido pela Recorrente, por via das indicadas disposições legais, a prova dos factos que indicou - e persiste em sede recursória em considerar bastantes para o efeito -, poderia redundar na improcedência da presente acção.
Importa ainda referir que, também contrariamente ao invocado pela Recorrente, o facto de o arrendado se encontrar ocupado por terceiros que não o arrendatário, não constitui qualquer obstáculo à resolução do contrato de arrendamento com aquele nem à condenação do mesmo na respectiva entrega.
Efectivamente, de acordo com o disposto no artigo 1081.º, n.º 1, conjugado com o previsto no artigo 1087.º, ambos do CC, da cessação do contrato decorrem desde logo para o arrendatário as obrigações de: i) desocupar o locado; ii) efectuar a sua entrega; e iii) efectuar as reparações que lhe incumbam.
Diz a Recorrente que não pode entregar o arrendado que não ocupa. Porém, na economia do contrato, não é apenas a entrega voluntária que está em causa. Do ponto de vista do senhorio, a sentença condenatória constitui título executivo para a desocupação do mesmo, por quem quer o ocupe, sem título.
Na verdade, sendo até fundamento de resolução do contrato precisamente a ocupação do arrendado por terceiro[21], nem se compreenderia que não fosse entre as partes do mesmo que tal resolução operasse, não tendo o senhorio que instaurar a acção de resolução do contrato de arrendamento contra o ocupante ilegítimo.
Finalmente, o exercício deste direito pelos senhorios não configura abuso do direito, constituindo apenas o mero exercício do mesmo.
De facto, ao contrário do que veio sempre a ser defendido pelo Senhor Administrador de Insolvência, o mesmo podia ter oportunamente resolvido o contrato de arrendamento, já que, ao contrário do que inicialmente propôs, o processo de insolvência não foi efectivamente encerrado. E não o foi precisamente na sequência de um seu requerimento nesse sentido.
Ora, já após este requerimento do Administrador de Insolvência, os senhorios pediram no processo de insolvência que «nos termos e para efeitos do artigo 108.º CIRE, requer-se a V. Exa. que denuncie o contrato de arrendamento em vigor, prescindindo a requerente do período de pré-aviso previsto no n.º 1 da referida disposição legal», o que aquele não fez, respondendo que o arrendado não estava ocupado por terceiros e não pela insolvente.
Como visto, partiu do pressuposto, errado, como vimos, que tal constatação extinguia o contrato de arrendamento. Porém, não sendo assim, e não tendo o mesmo sido denunciado pelo Administrador da Insolvência, nos termos do artigo 108.º, n.º 1, do CIRE, a declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mantendo-se, consequentemente, os respectivos direitos e obrigações.
Acresce que, não tendo sido encerrado o processo de insolvência, em face do deferimento pelo Senhor Juiz do pedido do Administrador nesse sentido, também não se verificam os efeitos do encerramento do processo previstos no artigo 133.º do CIRE - tanto assim que a presente acção se mantém a correr por apenso aos autos -, sendo consequentemente a massa insolvente responsável pelo pagamento das rendas e pela entrega do arrendado, nos termos decididos na sentença recorrida que, nesta parte, é de manter integralmente.
Nestes termos, improcedem nos termos expostos, ou mostram-se deslocadas, todas a conclusões do recurso a este respeito.
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III.2.4. – Da Litigância de má-fé
A Recorrente sustenta a sua pretensão de revogação do segmento decisório da sentença que a condenou como litigante de má-fé, com fundamento em que, tendo alegado na sua contestação aquilo que sabia, com base nos documentos que já constavam dos autos (o Relatório elaborado nos termos do art. 155.º do CIRE e o requerimento autónomo do Sr AI), mais não tendo precisado porque não era da sua esfera de conhecimento, nem tinha outros meios de prova para tanto, e por isso relegou tal aprofundamento dos factos para a fase ulterior, do julgamento, onde os mesmos se vieram a confirmar/complementar, não incorreu em nenhum comportamento abusivo jamais se podendo identificar a eventual incompletude da sua peça processual com qualquer comportamento ofensivo para com os intervenientes do processo.
E a este respeito dir-se-á, desde já, que lhe assiste razão.
Efectivamente, nos termos do disposto no artigo 542.º, n.º 2, do CPC, “diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
A actual redacção do preceito, é exactamente igual à que anteriormente constava do artigo 456.º, n.º 2, do CPC e que foi introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, visando consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.
Visou-se assim estender a possibilidade de condenação da parte como litigante de má-fé, também aos casos de actuação com negligência grave, já que anteriormente se cingia apenas à respectiva actuação dolosa. “O elemento subjectivo é, pois, um pressuposto constitutivo da figura”[22].
Portanto, “com a reforma de 95/96 passou-se a sancionar a litigância temerária ao lado da litigância dolosa, como integrando o conceito de litigância de má fé.
As partes devem, em obediência ao princípio da sua auto responsabilidade, praticar os actos indispensáveis e idóneos a fundamentar e desenvolver os seus respectivos posicionamentos em termos de adequação ao fim que visam e de não contraditoriedade com a verdade material, assim devendo agir de acordo com a boa fé, expondo os factos em juízo sem formularem pretensões que sabem ser destituídas de qualquer razoável fundamento”[23].
De facto, à proibição de auto-defesa consagrada no artigo 1.º do CPC, contrapõe a Constituição (artigo 20.º) e a lei adjectiva (artigo 2.º do CPC), a garantia de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos: o direito de acção, e a garantia de que, salva a excepção prevista no n.º 2 do artigo 3.º, a outra parte é sempre chamada para deduzir oposição: o direito de defesa por via da contradição. Consagrado no n.º 1 deste mesmo artigo.
Por isso, a todo o direito corresponderá, em princípio, uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou a reparar a respectiva violação, e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil de tal acção – artigo 2.º, n.º 2, do CPC – e só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
Ora, tanto o direito de levar determinada pretensão ao conhecimento do órgão jurisdicional competente, solicitando a abertura de um processo com vista à composição do litígio com emissão de pronúncia final mediante decisão fundamentada, como o direito à dedução de oposição, assentam dentro do quadro normativo vigente, no respeito por parte daquele que o exerce e daquele que se lhe opõe, dos deveres de probidade e de leal colaboração, de boa fé processual e de recíproca correcção, devidos ao tribunal e à parte contrária (artigos 7.º a 9.º do CPC), deveres cujo cumprimento e escopo último visam afinal uma pronta, justa e serena aplicação da justiça ao caso concreto.
Daí que o legislador tenha entendido, para potenciar a salvaguarda do respectivo cumprimento, sancionar aqueles que adoptam condutas reprováveis à luz daqueles princípios, constituindo o elenco das consagradas no n.º 2 do referido artigo 542.º, seguramente actuações censuráveis, a merecer clara reprovação pelos tribunais que, verificando a existência de tais condutas, nem sequer estão dependentes do pedido das partes para as censurarem, bastando a sua prévia audição, em cumprimento do preceituado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
Efectivamente, “as partes, recorrendo a juízo para defesa dos seus interesses, estão sujeitas aos deveres de cooperação, probidade e boa fé com o tribunal, visando a obtenção de decisões conformes à verdade e ao Direito, sob pena de a protecção jurídica que reclamam não ser alcançada, no que muito saem desacreditadas a Justiça e os tribunais.
A actuação processual do litigante de boa fé postula uma actuação verdadeira, correcta no tempo e modo processuais, não se compadecendo com subterfúgios e meias verdades, que mais não visam senão uma egoísta defesa de posições próprias que, prejudicando o opositor, acabam por não conduzir o tribunal à célere e correcta percepção da realidade.
Uma das condutas em que se exprime a litigância de má fé consiste na alegação, voluntária e consciente, de factos que seriam relevantes para a decisão da causa, mas que a parte sabe que, ao alegar como alega, desvirtua a realidade por si conhecida, visando, por isso, intencionalmente um objectivo censurável.
Também actua de má fé a parte que litiga com propósitos dilatórios, obstando, pela sua conduta temerária, a que o tribunal almeje uma rápida decisão, pondo assim em causa o objectivo da realização de uma justiça pronta, que, decidindo o litígio com rapidez, reponha a certeza, a paz social e a segurança jurídica, afrontadas pelo litígio.(…)
Se é certo que o direito de recorrer aos tribunais para aceder à justiça constitui um direito fundamental – art. 20.º da CRP – já o mau uso desse direito implica uma conduta abusiva, sancionada nos termos do art. 456.º do CPC”[24].
Por isso que, nesta sede não está o juiz, sequer, sujeito à alegação das partes, podendo considerar factos alegados pelas partes, mas podendo também alicerçar a sua decisão em quaisquer outros factos que constem dos autos e que relevem para o efeito.
“Isto porque, a probidade da actividade processual não está na disponibilidade das partes, razão pela qual, independentemente de requerimento de qualquer delas, possa o juiz condenar alguém como litigante de má fé, ou condenar por fundamento diverso do invocado pela parte”[25].
Assim, as condutas que integram tais comportamentos censuráveis a título de dolo ou negligência grave, são amiúde alvo de condenação pelos tribunais, confirmadas, mormente pelo Supremo Tribunal de Justiça, sendo exemplo de situações de correcta condenação como litigantes de má fé aquelas em que:
- “não se trata apenas de os autores não conseguirem demonstrar a justeza dos seus argumentos, mas sim de afirmações frontalmente contrárias à realidade dos factos e de que não podiam deixar de estar conscientes”[26];
- “A conduta do agente processual que, sabendo que está a usar o processo para um fim processualmente reprovável ou censurável ou pelo menos desconforme a um justo e arrimado objectivo jurídico-processualmente justo e leal, deve ser considerada desvaliosa e adversa a uma necessária adequação do meio processual ao direito que pretende fazer valer”[27];
Extrai-se dos mencionados exemplos o ensinamento de que o incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa-fé processual, mormente das relativas ao exercício de actividade processual com o conhecimento pela parte de que a mesma é desconforme à verdade material, é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má-fé.
Inversamente, e precisamente porque este instituto sancionatório das condutas abusivas, não pode ser usado como um impedimento para o acesso à justiça, tem sido entendido que quando os factos provados não evidenciam um comportamento censurável por parte do litigante, que lhe possa ser assacado a título de dolo ou negligência grave, quer ao accionar quer ao contestar a acção, quer ainda ao longo da sua intervenção processual, não se verificam os pressupostos necessários à respectiva condenação por litigância de má-fé.
Assim, e novamente de forma meramente exemplificativa mas absolutamente pacífica:
- “O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do artº 456º, CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a e b, do nº2. Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má fé. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual”[28];
- “A condenação por litigância de má fé, em qualquer das suas vertentes – material e instrumental – pressupõe sempre a existência de dolo ou de negligência grave (art. 456.º, n.º 2, do CPC) pelo que se torna necessário que a parte tenha procedido com intenção maliciosa ou com falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida”[29];
- “O sancionamento por litigância de má fé não se justifica nos casos de dedução de pretensão ou de oposição cujo decaimento se verificou por mera fragilidade da prova ou mercê da discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos: é que a sustentação de posições jurídicas antagónicas quanto à correcta interpretação e aplicação da lei não deve implicar a qualificação da lide como dolosa ou reprovável”[30];
Podemos, pois, concluir destes claros exemplos que, constituindo a má fé um claro limite ao exercício do direito de acção ou de defesa quando este seja actuado de forma ilícita em qualquer uma das circunstâncias referidas nas várias alíneas do n.º 2 do art. 542.º do CPC, não se encontram abrangidas pela previsão da norma as situações em que a parte não provou factualidade alegada por fragilidade da prova, bem como os casos de discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, ou na defesa séria e conscienciosa de uma posição que, ainda assim, não se venha a provar, em virtude de a parte não ter conseguido convencer o tribunal da bondade do invocado.
Assentes estes princípios e enquadrados nos exemplos que antecedem, voltemos ao caso dos autos para decidir.
Na sentença sob recurso, fundamentou-se a condenação da Ré como litigante de má-fé nos seguintes termos:
«No presente caso, face à posição assumida pelas partes na petição inicial e na contestação caberia apenas discutir e demonstrar a entrega/falta de entrega das chaves do imóvel pela insolvente aos autores.
Nenhum outro facto resultava dos articulados ou foi mencionado em sede de audiência prévia.
Porém, da discussão da causa em sede de audiência de julgamento, resultou amplamente demonstrado, nomeadamente através do depoimento de parte do AI, por um lado que o imóvel nunca foi entregue; por outro que estará uma outra sociedade a laborar no locado.
Ora, sendo aquele (entrega) o único fundamento invocado pela ré para sustentar a contestação que deduziu, constata-se que a mesma tinha conhecimento da falta de fundamento do quanto alegou.
Na verdade, à ré, considerando existir outros fundamentos que impediam a entrega do imóvel, cabia alegá-los de forma clara, para que pudessem ser contraditados pelos autores e tomados em consideração pelo Tribunal, ao invés de os omitir nos articulados e os introduzir de forma encapotada e lacónica apenas em audiência de julgamento e perante a evidente falta de confirmação do quanto havia inicialmente alegado.
Tal conduta da ré, ao alegar em sede de contestação factos que sabia não corresponderem à realidade, olvidando transmitir outros factos (essenciais) que conhecia e dos quais se pretendeu posteriormente valer, excedeu os limites permitidos para o legítimo exercício dos seus direitos.
Ora, salvo o devido respeito, afigura-se-nos que o juízo formulado é excessivamente severo.
Na verdade, conforme resulta da tramitação processual, a Ré alegou apenas o referido fundamento da entrega das chaves do arrendado como defesa por excepção e não o provou, designadamente pelas próprias declarações do Senhor Administrador da Insolvência, tendo-se demonstrado pelas mesmas que este sabia que a fracção não tinha sido entregue.
Porém, não podemos olvidar que também se demonstrou que previamente à declaração de insolvência a arrendatária havia denunciado o contrato de duas fracções e do relatório de visita efectuado por uma empresa e não pelo Senhor Administrador da Insolvência, constava que no local exerciam a actividade outra(s) sociedade(s) do mesmo grupo. Ora, conforme aquele declarou, não atentou nos contratos de arrendamento porque a insolvente já ali não exercia a sua actividade, parte esta que alegou. Assim, não tendo a massa insolvente acesso a toda a informação, não seria uma temeridade a mesma presumir e, por tal, alegar, que, para esta situação de facto ocorrer, devia ter existido a entrega das chaves ao senhorio. De facto, conforme a matéria de facto espelha, tinha havido previamente denúncia do contrato de arrendamento celebrado entre as partes, no que se referia a outras duas fracções. Claro está que, desconhecendo todos os contornos, pode dizer-se que a mesma podia também ter alegado factos tendentes a demonstrar a existência de uma válida transmissão da posição contratual da arrendatária para as actuais ocupantes da fracção. Porém, também nesta parte, se tivermos presentes as declarações do Administrador da Insolvência e do Senhorio, podemos concluir que não existia base factual segura para o fazer, tanto mais que os factos que se vieram a demonstrar em sede de audiência de julgamento a esse respeito não constituiriam fundamento bastante para a existência de uma válida e eficaz transmissão da posição contratual relativamente ao senhorio.
Nestes termos, concluímos que o facto de a Massa Insolvente não ter logrado demonstrar a matéria que havia alegado quanto à entrega do arrendado, a qual foi julgada “não provada”, não implica que a mesma tenha dolosamente ou com negligência grosseira falseado a verdade dos factos, apenas significando, na economia dos autos, que não efectuou previamente à contestação a desejável averiguação de factos que, na sua qualidade não conhecia directamente, mas devia ter indagado.
Por isso, consideramos que o insucesso da apresentada defesa por excepção, pela não prova do facto extintivo do contrato, não justifica pelo que decorre dos autos, que a Ré sofra a sanção decorrente da sua condenação como litigante de má-fé.
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II.3. – Síntese conclusiva:
I - Se a forma como a ora Recorrente conformou a respectiva defesa por excepção não permite em momento algum enquadrar a mesma na transmissão do contrato de arrendamento, que agora tenta colocar nos autos por via das alegações de recurso, porquanto na respectiva contestação, a sua defesa se consubstanciou na revogação real por via da alegada entrega das chaves do imóvel objecto do contrato de arrendamento, por se tratar de facto essencial, a mesma não é passível de enquadrar o «aperfeiçoamento» do articulado de contestação apresentado pela massa insolvente, isto porque todos os factos alegados pela mesma se referem a diferente fatispecie relativamente àquela que agora pretendem ver provada, não constituindo a decisão proferida «decisão-surpresa».
II - Para além da alegação explícita é também possível considerar na decisão a alegação implícita, e ainda os factos de que o Tribunal tenha conhecimento por via do exercício das suas funções.
III - Assim, tendo efectivamente sido alegado pela Ré que já não é esta que ocupa o locado e que os Autores têm conhecimento disso, devia tal matéria ter sido respondida, porque na base factual devem ser consideradas pelo juiz todas as soluções plausíveis da questão de direito, não se podendo olvidar que havia sido pedida a condenação dos Autores como litigantes de má fé e por actuarem com abuso de direito.
IV - Porém, ao invés do que entende a Recorrente, a prova de tais factos não tem no enquadramento legal do contrato de arrendamento a virtualidade que a Recorrente lhe pretende dar de serem causa da respectiva extinção, já que as causas desta são imperativamente fixadas, e a mesma não provou a invocada revogação real.
V - Acresce que, não só não se demonstrou que o senhorio tenha autorizado a ocupação do imóvel por terceiro, como não se demonstrou que - para a hipótese de a arrendatária ter transmitido a sua posição por via de alguma das regras especiais sobre locação de estabelecimento e transmissão da posição do arrendatário no arrendamento para fins não habitacionais, por acto entre vivos, designadamente por via de trespasse, que nos termos dos artigos 1109.º, n.º 2, e 1112.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, ambos do CC, não carecem de autorização do senhorio -, tais actos lhe foram comunicados.
VI - Assim, a terem existido tais actos, não tendo sido comunicados, os mesmos são ineficazes relativamente ao senhorio, o que significa que, faltando tal comunicação, o cessionário ou trespassário não chegam a adquirir a qualidade de arrendatários.
VII - Sendo até fundamento de resolução do contrato precisamente a ocupação do arrendado por terceiro, não se compreenderia que não fosse entre as partes do mesmo que tal resolução operasse, não tendo o senhorio que instaurar a acção de resolução do contrato de arrendamento contra o ocupante ilegítimo, não configurando o exercício do direito de resolução do contrato pelos senhorios abuso do direito, e constituindo apenas o mero exercício do mesmo.
VIII - Não tendo o contrato de arrendamento sido denunciado pelo Administrador da Insolvência, nos termos do artigo 108.º, n.º 1, do CIRE, a declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mantendo-se, consequentemente, os respectivos direitos e obrigações.
IX - Acresce que, não tendo sido encerrado o processo de insolvência, em face do deferimento pelo Senhor Juiz do pedido do Administrador nesse sentido, também não se verificam os efeitos do encerramento do processo previstos no artigo 133.º do CIRE - tanto assim que a presente acção se mantém a correr por apenso aos autos -, sendo consequentemente a massa insolvente responsável pelo pagamento das rendas e pela entrega do arrendado.
X - O facto de a Massa Insolvente não ter logrado demonstrar o facto extintivo em que fundou a sua defesa não significa que a mesma tivesse actuado com dolo ou negligência grosseira, fundadores da respectiva condenação como litigante de má-fé, ainda que a oposição deduzida tenha sido julgada improcedente.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso, revogando a sentença recorrida na parte em que condenou a Massa Insolvente como litigante de má-fé, e confirmando a sentença recorrida na parte em que julgou procedente a acção.
Custas pela Recorrente, a calcular de acordo com o integral decaimento na acção; e pelos Autores na parte relativa à litigância de má-fé, cuja condenação haviam peticionado.
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Évora, 17 de Novembro de 2016
Albertina Pedroso [31]
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

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[1] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Francisco Xavier;
2.º Adjunto: Maria João Sousa e Faro.
[2] A referência à autora constitui evidente lapso, já que a condenação como litigante da má fé é da Ré, conforme cristalinamente decorre da sentença.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Cfr., Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2014, pág. 139.
[5] Cfr. José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, págs. 142 e ss; e Ac. STJ de 19-04-2012, processo n.º 9870/05.5TBBRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. neste sentido, exemplificativamente, Ac. STJ de 12-01-2010, processo n.º 630/09.5YFLSB; Ac. TRL de 20-12-2010, processo n.º 1650/10.2TBOER-A.L1-1; e Ac. TRC de 29-02-2012, processo n.º 144732/10.9YIPRT.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Este entendimento jurisprudencial pacífico estriba-se na doutrina já defendida por José Alberto dos Reis que a propósito do correspondente normativo afirmava que se impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, resultando a nulidade, precisamente, da infracção pelo juiz desse dever que lhe está legalmente cometido. Mais recentemente, cfr. no mesmo sentido, Jorge Augusto Pais de Amaral, in Direito Processual Civil, 7.ª edição, Almedina 2008, pág. 391.
[7] Cfr. posição expressa pelo Professor Miguel Teixeira de Sousa neste sentido, no blog do IPPC.
[8] Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. e loc. cit., pág. 31.
[9] Cfr. Ac. STJ de 5-4-2016, proferido no processo n.º 1538/11.0TBFIG.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 313; e na jurisprudência de forma meramente exemplificativa, Ac. STJ de 24-05-2012, processo n.º 850/07.7TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Acórdão do STJ de 25.01.2006, proferido no Processo n.º 05P3460, e disponível em www.dgsi.pt.
[12] Doravante abreviadamente designado CC.
[13] Cfr. Ac. STJ 22-04-2015, Revista n.º 568/12.9TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos, de onde serão os demais que venham a ser citados sem outra menção de fonte.
[14] Cfr. Ac. STJ de 22-10-2015, Revista n.º 2844/09.9T2SNT.L2.S1 - 7.ª Secção.
[15] Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, Almedina 2014, vol. I, 2.ª edição, págs. 37 a 39, de onde se retiram as expressões mencionadas e que seguimos de perto para a posição idêntica em caso de defesa por excepção.
[16] Cfr. Ac. STJ de 10-09-2015, Revista n.º 819/11.7TBPRD.P1.S1 - 2.ª Secção.
[17] Cfr. Ac. STJ de 15-10-1996, Revista n.º 474/96 – 1.ª, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[18] Cfr. Laurinda Gemas, Albertina Pedroso (ora Relatora) e João Caldeira Jorge, in Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 3.ª edição, Quid Juris, 2009, pág. 203.
[19] Cfr. Ac. STJ de 14-10-1997, Revista n.º 617/97, 1.ª secção, disponível no já indicado sítio do STJ.
[20] Idem, pág. 508.
[21] Cfr. exemplificativamente, Ac. STJ, de 03-11-2005, Revista n.º 2721/05 – 7.ª, em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[22] Cfr. Pedro de Albuquerque, in Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina 2006, pág. 92.
[23] Cfr. Ac. STJ de 30-06-2011, Revista n.º 1103/08.9TJPRT.P1.S1 - 2.ª Secção, com sumário disponível no sítio www.stj.pt, Sumários de Acórdãos, do qual constam ainda todos os sumários de acórdãos que se irão referir sem outra menção de fonte.
[24] Ac. STJ 09-03-2010, Revista n.º 420/08.2TBFVN.C1.S1 - 6.ª Secção.
[25] Ac. STJ de 26-04-2012, Agravo n.º 81-E/1999.S1 - 7.ª Secção.
[26] Ac. STJ de 03-02-2011, Revista n.º 320/1999.P1.S1 - 2.ª Secção.
[27] Ac. STJ de 07-06-2011, Revista n.º 1581/07.3TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção.
[28] Cfr. Ac. STJ de 11-12-2003, processo 03B3893, disponível in www.dgsi.pt.
[29] Ac. STJ de 03-02-2011, Revista n.º 351/2000.L1.S1 - 2.ª Secção.
[30] Ac. STJ de 01-07-2010, Revista n.º 3493/06.9TBOER.L1.S1 - 7.ª Secção.
[31] Texto elaborado e revisto pela Relatora.