Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2384/18.5T8PTM.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
INCUMPRIMENTO
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A legitimidade ad causam é um pressuposto processual que traduz essencialmente uma relação entre os sujeitos e o objeto do processo, tendo em vista assegurar que as partes do processo sejam os titulares dos interesses nele disputados e a lei é hoje clara quanto à relação controvertida que serve de base à indagação deste interesse, é a relação controvertida tal como o autor a configura.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2384/18.5T8PTM.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. (…), S.A., com sede na Av. (…), Lote (…), 4º-A, em Lisboa, instaurou contra (…), residente no Sítio da (…), Armação de Pera, ação declarativa com processo comum.
Alegou, em resumo, que se dedica à aquisição de equipamentos informáticos, software e outros bens, com o propósito de os alugar e que no exercício desta sua atividade celebrou com Agrupamento de Escolas (…) um contrato de locação, referente a seis fotocopiadoras “Xerox”, pelo prazo de 60 meses, mediante a renda mensal de € 1.187,11, contrato subscrito pelo R. na qualidade de diretor da locatária.

A A. adquiriu as seis fotocopiadoras, pagou por elas a quantia de € 73.374,12, enviou ao Agrupamento de Escolas (…) as faturas correspondentes ao valor do aluguer contratado, este deixou de pagar os alugueres e a A., em 10/5/2016, considerou resolvido o contrato, por falta de pagamento.

Após a resolução do contrato, o Agrupamento de Escolas (…), representado pelo R., manifestou interesse em alcançar um entendimento com a A. e na reunião havida entre as partes, assumiu a intenção de proceder ao pagamento dos valores devidos, declarando então o R. que o contrato de locação celebrado não respeitava os pressupostos legais de contratação pública impostos ao Agrupamento.

Tendo o R. convencido a A. de que o contrato não sofria de quaisquer falhas ou irregularidades é responsável pelo prejuízo causado, decorrente do não cumprimento do contrato de locação, correspondente à diferença entre o total das rendas devidas à A. (€ 87.609,00) e as rendas pagas pelo Agrupamento (€ 29.203,00).

Concluiu pedindo a condenação do R. no pagamento da quantia de € 58.406,00, acrescida de juros.

Contestou o R. excecionando a sua ilegitimidade para a causa, porquanto o locatário no contrato é o Agrupamento e não o R., argumentando que a A. intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé uma ação contra o Agrupamento de Escolas (…) pedindo a condenação deste no pagamento da mesma quantia que peticiona nos autos, o que configura, considera, uma situação de litispendência e contradizendo os factos alegados pela A. defende, em síntese, que não lhe poderá ser assacada qualquer responsabilidade pelo incumprimento do contrato, uma vez que o mesmo não comporta, para si, nenhuma vinculação, como a A. reconhece ao alegar, com verdade, que o R. atuou na qualidade de diretor do Agrupamento e em representação deste.

Concluiu, na procedência das exceções, pela absolvição da instância e, em qualquer caso, pela improcedência da ação.

Respondeu a A. por forma a concluir pela improcedência das exceções suscitadas pelo R.


2. Finda a fase dos articulados, foi proferido despacho saneador que conheceu da exceção da ilegitimidade e, julgando-a procedente, absolveu o R. da instância.


3. O recurso
A A. recorre desta decisão e conclui assim a motivação do recurso:
“1 - A Autora intentou a presente ação declarativa de condenação em 04.09.2018 contra o aqui Réu, na qualidade de Diretor do Agrupamento de Escolas (…) que, subscreveu em representação desta o contrato de locação com a Autora;

2 - A Autora, na qualidade de locadora, celebrou com Agrupamento de Escolas (…), na qualidade de locatária, um Contrato de Locação que teve o n.º (…), o qual teve início em 31.03.2014;

3 - A Autora cumpriu com o contrato, tendo adquirido e pago ao fornecedor, os equipamentos escolhidos pelo Agrupamento de Escolas (…), que lhe foram entregues e assim colocados à sua disposição, e emitido e enviado ao Agrupamento de Escolas (…), que as recebeu, as faturas correspondentes ao valor do aluguer contratado;

4 - O Agrupamento de Escolas (…) incumpriu o contrato, e como consequência direta desse incumprimento – falta de pagamento dos alugueres – considerou-se o referido contrato resolvido a partir de 10.05.2016;

5 - Após a resolução do contrato, o Agrupamento de Escolas (…), manifestou junto da Autora, interesse em alcançar um entendimento acerca deste contrato;

6 - Tendo apenas após a resolução do contrato celebrado, o Réu alegado que o contrato de locação celebrado entre a Autora e o Agrupamento de Escolas (…), não havia respeitado os pressupostos legais de contratação pública impostos ao Agrupamento;

7 - Ora se o Réu não tinha poderes para representar o Agrupamento neste negócio, a sua atuação – que este dominou em exclusivo – causou evidente prejuízo à Autora, que se viu privada do cumprimento do contrato Agrupamento de Escolas (…), locatária no contrato;

8 – Aliás, foi o Réu que convenceu a Autora de que o contrato não sofria de quaisquer falhas ou irregularidades, pelo que é responsável pelo prejuízo causado, decorrente do não cumprimento do contrato de locação;

9 - Neste sentido veja-se o artigo 30.º do Código de Processo Civil;

10 - As partes serão legítimas quando são elas os sujeitos da relação material controvertida tal como é desenhada pelo autor na petição, e ilegítimas quando, tomada essa relação jurídica configurada pelo Autor, não sejam sujeitos da mesma;

1 - Assim, tem legitimidade como Réu a pessoa que, juridicamente, pode opor-se à procedência da pretensão da Autora, por ser ele a pessoa cuja esfera jurídica seria diretamente atingida com a procedência da providência requerida;

2 - In casu, a Autora alega, como causa de pedir, que o Réu lhe submeteu a proposta de locação e que dominou todas as circunstâncias e condições em que o contrato de locação foi assinado, nomeadamente no que concerne aos pressupostos legais de contratação pública impostos ao Agrupamento de Escolas (…), concluindo com a alegação de que o Réu usou desse domínio causando evidente prejuízo à Autora que se viu privado do cumprimento do contrato pela Locatária;

3 - Cumpre ainda realçar o facto de que nunca ter sido posto em causa a entrega ou funcionamento dos bens locados, nomeadamente das 6 (seis) fotocopiadoras da marca Xerox;

4 - Ou seja, o Agrupamento de Escolas (…) beneficiou dos bens, utilizou os mesmos em seu proveito e inclusivamente efetuou o pagamento de diversas faturas até à resolução do contrato;

5 - Tendo assim a Autora, invocado a responsabilidade do Réu no pagamento da indemnização correspondente pelo prejuízo causado pelo não cumprimento do contrato de locação;

6 - Porquanto a Autora é parte lesada neste contrato uma vez que cumpriu com o acordado, tendo pago o preço do bem escolhido pela locatária e viu assim defraudada a sua expectativa de recuperar o valor pago;

7 - Face ao exposto, é notório que a Autora alega e imputa ao Réu, factos que constituem a causa de pedir e que fundamentam a sua pretensão;

8 - Laborando o Réu em erro uma vez que a Autora não o demanda na qualidade de representante da Locatária mas sim de pessoa singular pela sua intervenção no contrato com a aposição da assinatura no contrato, pedindo a sua condenação no pagamento da indemnização pela sua responsabilidade pessoal e não representativa;

9 - Sendo que naturalmente invoca na sua petição inicial que o Réu subscreveu, à data, o contrato de locação na qualidade de diretor do Agrupamento de Escolas (…) para contextualizar toda a factualidade que de seguida se descreveu;

10 - Importa ainda salientar que, de facto a aqui Autora já instaurou ação contra o Agrupamento de Escolas (…) no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé;

11 - A Autora nesta ação fundamenta o seu pedido com base, no domínio do Réu de todas as circunstâncias e condições em que o contrato de locação foi assinado pelo mesmo, que de forma consciente, o que veio a confirmar junto da Autora, que defraudou a Autora criando-lhe a pela convicção do cumprimento de todos os procedimentos legais aplicáveis à locatária no momento da assinatura do contrato;

12 - Pelo que tal ato é ilícito, culposo e criou um prejuízo grave na esfera patrimonial da Autora pelo não cumprimento do contrato de locação dando origem ao dever de indemnizar nos termos peticionados;

13 - A este propósito veja-se o disposto no art.º 11º da Lei n.º 8/2012, de 21 de Fevereiro, Lei dos Compromissos e Pagamentos em Atraso das Entidades Públicas;

14 - E ainda o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, processo n.º 02730/14.0BEPRT, publicado in www.dgsi.pt;

15 - E o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 28.02.2018, processo n.º 6/14.2BEFUN, in www.dgsi.pt;

16 - Pelo que, e salvo melhor entendimento, contrariamente ao doutamente ordenado pelo Tribunal a quo, o Réu é parte legítima na presente ação, devendo por esse motivo a exceção dilatória de ilegitimidade ser julgada improcedente;

17 - Assim, deve ainda a presente decisão ser revogada e substituída por outra que determine que seja o Réu condenado no pagamento à Autora no valor por si peticionado.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado inteiramente procedente, sendo a decisão proferida pelo Tribunal a quo revogada e substituída por decisão que determine que o Réu seja considerado parte ilegítima da presente ação, condenando-se o mesmo no pagamento do valor peticionado pela Autora.

Só assim, Venerandos Desembargadores, se fará a ESPERADA E COSTUMADA JUSTIÇA
Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Vistas as conclusões da motivação do recurso e sendo estas que delimitam o seu objeto [artºs. 635º, nº 4, 639º, nº 1, ambos do CPC], importa apreciar se o R. tem legitimidade para a causa.

III. Fundamentação
1. Factos
Relevam os factos em referência no relatório supra.

2. Direito

2.1. Se o R. tem legitimidade para a causa
Depois de anotar que o R. não é parte no contrato de locação cujo incumprimento justifica o pedido, a decisão recorrida julgou o R. parte ilegítima para a causa.

A A. diverge argumentando, em essência, que “nesta ação fundamenta o seu pedido com base, no domínio do Réu de todas as circunstâncias e condições em que o contrato de locação foi assinado pelo mesmo, que de forma consciente, o que veio a confirmar junto da Autora, que defraudou a Autora criando-lhe a pela convicção do cumprimento de todos os procedimentos legais aplicáveis à locatária no momento da assinatura do contrato”, “pelo que tal ato é ilícito, culposo e criou um prejuízo grave na esfera patrimonial da Autora pelo não cumprimento do contrato de locação dando origem ao dever de indemnizar nos termos peticionados”.

Sob a epígrafe conceito de legitimidade dispõe o artº 30º do Código de Processo Civil (CPC):

“1. O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quanto tem interesse direto em contradizer.

2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

3. Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”

A legitimidade ad causam é, assim, um pressuposto processual que traduz essencialmente uma relação entre os sujeitos e o objeto do processo tendo em vista assegurar que as partes do processo sejam os titulares dos interesses nele disputados e a lei é hoje clara quanto à relação controvertida que serve de base à indagação deste interesse, é a relação controvertida tal como o autor a configura.

“A justificação deste requisito (…) está em que, sem ele, seria inútil a sentença, visto não poder, sem violência, obrigar os verdadeiros interessados” [Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 84].

É, pois, pelos termos em que o autor formula a causa de pedir e o pedido e pela utilidade ou prejuízo que da procedência deste possa advir, respetivamente, para o autor e para o réu, que se afere e determina a legitimidade ativa e passiva.

A falta de legitimidade de alguma das partes impõe que o juiz se abstenha de conhecer do pedido e absolva o réu da instância [artº 278º, nº 1, al. d), do CPC].

O recurso supõe, alias, esta disciplina, ou seja, não questiona o sentido e alcance do conceito de legitimidade tal como enunciado, a divergência subsiste, tão só, na subsunção dos factos ao direito e isto porque a A. defende, em oposto ao decidido em 1ª instância, que na configuração que deu à causa, o R. é sujeito da relação material controvertida.

Importa, pois, partir da análise da estrutura da relação jurídica material controvertida expressa pela causa de pedir e pelo pedido, tal como configurados pela A. e averiguar se o R. é seu sujeito, ou seja, se é titular do interesse ali posto em jogo.

Causa de pedir e pedido formulado na ação e não no recurso; por força do princípio da estabilidade da instância (artº 260º do CPC), o pedido e a causa de pedir só podem ser alterados ou ampliados, no recurso, por acordo das partes e desde que não haja inconveniente perturbação para o julgamento (artº 264º do CPC) e na falta de acordo devem permanecer inalteráveis.

Justifica este parêntesis, a circunstância da A. pretender, no recurso, fundar a responsabilidade do R. na previsão do artº 11º, nº 1, da Lei nº 8/2012, de 21/2, segundo o qual, “os titulares de cargos políticos, dirigentes, gestores ou responsáveis pela contabilidade que assumam compromissos em violação do previsto na presente lei incorrem em responsabilidade civil, criminal, disciplinar e financeira, sancionatória e ou reintegratória, nos termos da lei em vigor”, ou seja, (re)fundar o pedido de condenação do R. na assunção de compromissos que excedem as verbas disponíveis a muito curto prazo (artºs 5º, nº 1 e 3º, al. f), da referida Lei 8/2012) matéria que não foi alegada na petição inicial e colocaria, aliás, a controvérsia no âmbito de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e, assim, no domínio da competência dos tribunais administrativos (cfr. v.g. Acórdão Conflitos de 25-01-2007, proferido no processo n.º 019/06, disponível em www.dgsi.pt).

Inexistindo qualquer alteração, ou ampliação, da causa de pedir, ou do pedido, processualmente admissível, a relação controvertida relevante para afirmar a legitimidade do R. é a configurada pela A. na petição inicial.

E na configuração desta, o elemento central é o incumprimento do contrato de locação, alegadamente celebrado entre a A. e o Agrupamento de Escolas (…), subscrito pelo R., na qualidade de diretor e em representação deste (artº 3º, da p.i.).

A responsabilidade que a A. visa efetivar resulta do incumprimento deste contrato, tal como expresso na alegação - “(…) tendo o réu convencido a A. de que o contrato não sofria de quaisquer falhas ou irregularidades, é responsável pelo prejuízo causado, decorrente do não cumprimento do contrato de locação” (artº 22º da p.i.) – e implícito no pedido de condenação do R. (€ 58.406,00), que exprime, nada mais, nada menos, a diferença entre o total das rendas devidas à A. por força do contrato de locação celebrado com o Agrupamento de Escolas … (€ 87.609,00) e as rendas por este pagas (€ 29.203,00), ou seja, a A. pretende a condenação do R. no cumprimento do contrato que celebrou com o referido Agrupamento.

O contrato é “o acordo por que duas ou mais partes ajustam reciprocamente os seus interesses, dando-lhe uma regulamentação que a lei traduz em termos de efeitos jurídicos” [Galvão Telles, Direito das Obrigações, pág. 48], por isto que a disciplina contratual, os direitos e obrigações que emergem do contrato, se aplica aos contraentes e só excecionalmente – nos casos e termos especialmente previstos na lei (artº 406º, nº 2, do CC) – a terceiros.

O R. não é parte no contrato, nem a disciplina instituída neste excecionalmente o vincula e, assim, ainda que a A. houvesse que provar todos os factos que articula na petição inicial o R. teria necessariamente que ser absolvido do pedido, porquanto o prejuízo que alega é, tão só, o que decorre do incumprimento do contrato, o que significa que o R. não tem interesse direto em contradizer e, assim, é parte ilegítima na causa.

Aliás, a A. – decorre dos autos – demandou em ação própria o Agrupamento de Escolas (…), formulando contra esta o mesmo pedido de condenação que formula contra o R., assim sinalizando não ignorar que a responsabilidade pelo ressarcimento do prejuízo que alega nos autos é daquele Agrupamento e não do R.

A decisão recorrida justifica confirmação e o recurso é improcedente.

2.2. Custas.

Vencida no recurso, incumbe à A. o pagamento das custas (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC).


IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto na improcedência do recurso em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.
Évora, 19/12/2019
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho

Mário Branco Coelho