Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
252/12.3TBFAL-A.E1
Relator: FLORBELA MOREIRA LANÇA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
ÓNUS DA PROVA DA CADUCIDADE
DOCUMENTO AUTÊNTICO
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I. Como decorre do art.º 345.º do CPC, a tempestividade da dedução dos embargos de terceiro é uma questão de conhecimento oficioso, assim se excepcionando a regra que evola do n.º 2 do art.º 333.º do Cod. Civil. No entanto e à míngua de outros elementos, o juiz, para aferir se os embargos são tempestivos, deve unicamente atentar na data da diligência judicial de penhora e nos factos que resultam da petição inicial, o que bem se percebe, pois a tempestividade da dedução dos embargos não constitui um pressuposto do exercício do direito que deva ser demonstrado pelo embargante.
II. A caducidade do direito de acção (em que se consubstanciam os embargos de terceiro, apesar de a lei os qualificar como um incidente da instância) constitui uma excepção peremptória, cabendo, pois, ao embargado o ónus de alegação e prova dos pertinentes factos na fase contraditória (art.ºs. 342.º, n.º 2 e 343.º, n.º 2, ambos do Cod. Civil).
II. O despacho que receber os embargos de terceiro determina a restituição provisória da posse (art.º 347.º do CPC). Até à reforma do CPC encetada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95 tal efeito mostrava-se obrigatoriamente condicionado pela prestação de caução pelo terceiro embargante. Na actualidade, a sujeição desse efeito à prestação de caução depende de decisão judicial, a qual assenta num poder discricionário (n.º 4 do art.º 152.º do CPC) conferido ao julgador.
III. Os embargos de terceiro têm a finalidade de garantir a um terceiro a efectividade do seu direito ameaçado por uma diligência judicial que afecte bens sobre os quais é possuidor ou sobre os quais incida um direito incompatível com a diligência judicialmente ordenada que não teve a oportunidade de defender na acção onde foi decretada a diligência.
IV. O INFARMED é uma entidade pública (n.º 1 do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 46/2012, de 24 de Fevereiro) que, ademais, tem competência para organizar e manter “um registo permanentemente atualizado de cada farmácia e de todos os atos sujeitos a averbamento” (n.º 1 do art.º 19.º-A do Dec.-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto).
V. A certidão emitida pelo INFARMED constitui um documento autêntico (n.º 1 do art.º 363.º e n.º 1 do art.º 369.º, ambos do Cod. Civil), presumindo-se a genuidade do documento em causa (n.º 1 do art.º 370.º do Cod. Civil), susceptível de arguição da sua falsidade (n.º 1 do art.º 372.º do Cod. Civil).
VI. No alvará de funcionamento, são averbados, ademais, a alteração da propriedade da farmácia (n.º 5 do art.º 25.º do Dec.-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto), pelo que o documento junto faz prova plena da existência dessa escritura de trespasse (n.º 1 do art.º 371.º do Cod. Civil), na medida em que tal facto foi, como consta do mesmo, directamente percepcionado pelo subscritor.
Decisão Texto Integral:






Proc. n.º 252/12.3TBFAL-A.E1
Beja – Juízo Central Cível e Criminal – Juiz 1
Comarca de Beja


ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
AA LDA. deduziu oposição à execução, em que é exequente BB e executada CC, mediante embargos de terceiro, requerendo que “os presentes Embargos ser recebidos e julgados totalmente procedentes, por provados, e em consequência ser ordenado o levantamento da penhora do estabelecimento comercial sito na R. … n.º … em Ferreira do Alentejo e das rendas devidas pela cessão de exploração do estabelecimento, e a entrega do mesmo e das rendas à Embargante, sua legítima proprietária”.
Para tanto alegou, em síntese, que nos autos de execução acima referidos foi efectuada a penhora do estabelecimento comercial sito na R. … n.º … em Ferreira do Alentejo, bem como a penhora das rendas devidas pela cessão de exploração do mesmo estabelecimento, sendo que o estabelecimento comercial não é da propriedade da Executada CC, mas sim da aqui Embargante.
Mais alegou que sendo a ora Embargante a proprietária do estabelecimento sito em R. … n.º … em Ferreira do Alentejo, penhorado nos autos de Execução acima referenciados, tem legitimidade para deduzir os presentes Embargos e que está em prazo para a sua apresentação, na medida em que somente tomou conhecimento da penhora no dia 15.05.2017, através de comunicação electrónica do Ilustre Mandatário do cessionário do estabelecimento comercial penhorado.
Proferido despacho liminar de recebimento dos embargos [Por tempestivos e legais, e sendo certo que não se afigura necessária a realização de qualquer diligência probatória, admito liminarmente os presentes embargos de terceiro – art.º 342º, 344º e 345º do CPC. Nos termos do art.º 347º do CPC suspende-se a execução quanto ao estabelecimento comercial sito na Rua … n.º …, em Ferreira do Alentejo, denominado DD, bem como das rendas devidas pela cessão de exploração do estabelecimento. Mais se determina a restituição provisória da posse do estabelecimento e das rendas aos embargantes. Cumpra o 348º do CPC] e notificada a embargada, esta interpôs recurso daquele despacho liminar, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
1 – A primeira tarefa do julgador, perante uma petição de embargos de terceiro, é verificar a sua tempestividade.
2 – No caso dos autos, a Embargante limitou-se a alegar que tinha tido conhecimento da penhora em data que se continha no período de 30 dias anteriores à apresentação dos embargos,
3 – Acrescentando que tinha tido conhecimento dessa penhora através de e-mail do ilustre Mandatário da entidade cessionária do estabelecimento penhorado;
4 – A Embargante, porém, não juntou a impressão desse e-mail.
5 – É intuitivo que o Meritíssimo Juiz a quo não devia ter confiado na alegação de tempestividade, perante a omissão da junção do referido documento, tal a facilidade desse princípio de prova.
6 – É falso que a petição de embargos tenha sido apresentada tempestivamente.
7 – O Meritíssimo Juiz a quo não devia ter julgado a petição tempestiva, pois não havia nesse articulado elementos suficientes para decidir nesse sentido e a omissão da junção do documento probatório alegado pela Embargante era indício suficiente para pôr em causa a tempestividade,
8 – Sendo certo que o Meritíssimo Juiz a quo sempre teria de tomar a decisão liminar apenas com os elementos disponíveis nesse momento nos autos.
9 – A decisão de dispensar a Embargante de prestar caução mostra-se infundamentada, pelo que é ilegal e nula.
10 – Foram ofendidos os preceitos dos artigos 345.º, n.º 2, 247.º e 154.º, n.º 1, do CPC, bem como o n.º 1 do art. 205.º da Constituição.
NESTES TERMOS, E NOS MAIS DE DIREITO DOUTAMENTE SUPRIDOS POR VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE O DOUTO DESPACHO RECORRIDO SER REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE DETERMINE A INTEMPESTIVIDADE DOS EMBARGOS E, CONSEQUENTEMENTE, A SUA REJEIÇÃO, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, ASSIM SE REALIZANDO A HABITUAL E ESPERADA JUSTIÇA!”.
A embargante respondeu às alegações, pugnado pela improcedência do recurso.
A embargada, contestou os embargos, por excepção e impugnação.
Realizou-se a audiência prévia, tendo sido proferido o despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção dilatória da legitimidade da embargante e relegada para decisão final a excepção peremptória da caducidade. Foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.


Realizada a audiência final foi proferida sentença, tendo sido julgados “totalmente improcedentes os presentes embargos de terceiro”, ordenando-se “a cessação da suspensão da execução anteriormente determinada”.
A embargante não se conformando com a sentença prolatada dela interpôs recurso, juntando um documento, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
“A DD é propriedade da Embargante, ora Recorrente que efectuou o pedido de averbamento dessa mesma propriedade há mais de 5 anos, mais concretamente, em 05.02.2013, junto do Infarmed, entidade competente para tal.
B) A recorrente demostrou, por certidão emitida pelo Infarmed o pedido de averbamento da alteração da propriedade da farmácia no alvará respectivo.
C) Não pode a Recorrente substituir-se ao Infarmed e averbar, ela própria essa alteração no alvará da farmácia.
D) A propriedade da farmácia não pertence à executada, pelo que não pode a embargante, ora Recorrente responder com os seus próprios bens por uma dívida que não é sua.
E) Se a DD Lda. se encontra ainda averbada no Infarmed, erradamente, em nome da executada, tal facto deve-se a um grande atraso nas actualizações dos alvarás por parte do Infarmed e não é responsabilidade da Recorrente;
F) É o próprio Infarmed que, por meio de certidão atesta que ainda não efectuou os averbamentos requeridos, mas atesta também que o averbamento da alteração da propriedade a favor da embargante, ora Recorrente se deveu a trespasse e foi requerido em 05.02.2013.
G) Da certidão emitida pelo Infarmed não resulta que a Recorrente não é a proprietária da farmácia.
H) Resulta sim, que sendo proprietária da farmácia e nessa mesma qualidade, a Recorrente requereu o pedido de averbamento da sua propriedade no alvará da farmácia e que, até agora ainda não foi efectuado.
I) Não resulta claro e inequívoco da certidão do infarmed que a farmácia penhorada é propriedade da executada.
J) A propriedade da DD, Lda encontra-se averbada no Infarmed pelo Alvará nº … em nome da ora Recorrente.
Nestes termos, nos mais de Direito e com o sempre Mui Douto suprimento de Vs. Exas. deve a presente Apelação ser julgada procedente por provada e, em consequência, ser ordenado o levantamento da penhora da DD Lda. com todas as consequências legais”.
A apelada respondeu às alegações, concluindo pela confirmação da sentença recorrida.


Providenciados os vistos e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir
II. Objecto do Recurso
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC),
Importa, pois, decidir:
- se deveriam ter sido liminarmente rejeitados os embargos de terceiro;
- da falta de fundamentação do despacho que os recebeu;
- da admissibilidade da junção documental em sede de recurso;
- da modificação da matéria de facto;
- da propriedade da “DD”.
II. Fundamentação
1.De Facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos, ora disposto por ordem cronológica:
1.A DD encontra-se desde 27.05.1994, averbada em alvará a favor da executada;
2. Por contrato celebrado em 03.02.2013 a embargante cedeu a cessão da exploração do estabelecimento comercial denominado DD, sita na Rua … n.º …, em Ferreira do Alentejo;
3. Em 05.02.2013 deu entrada no Infarmed pedido de alteração da propriedade da Farmácia a favor da embargante, não tendo ainda sido efectuado o averbamento no alvará.
4. Em 29.11.2016 a embargada intentou contra CC execução para cobrança da quantia de € 270.925,87;
5. No âmbito de tal execução foi efectuada a penhora do estabelecimento comercial sito na Rua … n.º …, em Ferreira do Alentejo, bem como das rendas devidas pela cessão de exploração do mesmo estabelecimento;
6. A embargante teve conhecimento da penhora no dia 15.05.2017;
E não provado: “O estabelecimento comercial é da propriedade da Embargante”.


2. De Direito
1.ª questão solvenda
No art.º 10.º da petição de embargos de terceiro, a apelada escreveu:
E está em prazo para a sua apresentação, na medida em que somente tomou conhecimento da penhora no dia 15-05-2017, através de comunicação electrónica do Ilustre Mandatário do cessionário do estabelecimento comercial penhorado.
O despacho impugnado tem o seguinte teor:
Por tempestivos e legais, e sendo certo que não se afigura necessária a realização de qualquer diligência probatória, admito liminarmente os presentes embargos de terceiro – art.º 342º, 344º e 345º do CPC.
Nos termos do art.º 347º do CPC suspende-se a execução quanto ao estabelecimento comercial sito na Rua … n.º …, em Ferreira do Alentejo, denominado DD, bem como das rendas devidas pela cessão de exploração do estabelecimento. Mais se determina a restituição provisória da posse do estabelecimento e das rendas aos embargantes. Cumpra o 348º do CPC. “.
Sustenta a apelante que, perante o facto de não ter sido junta a impressão do e-mail aludido no art.º 10.º da petição inicial, a Mma. Juiz a quo deveria ter indeferido liminarmente os embargos.
Não é assim.
Como decorre do art.º 345.º do CPC, a tempestividade da dedução dos embargos de terceiro é uma questão de conhecimento oficioso, assim se excepcionando a regra que evola do n.º 2 do art.º 333.º do Cod. Civil. No entanto e à míngua de outros elementos, o juiz, para aferir se os embargos são tempestivos, deve unicamente atentar na data da diligência judicial de penhora e nos factos que resultam da petição inicial[1], o que bem se percebe, pois a tempestividade da dedução dos embargos não constitui um pressuposto do exercício do direito que deva ser demonstrado pelo embargante[2].
É que, em regra, a caducidade do direito de acção (em que se consubstanciam os embargos de terceiro, apesar de a lei os qualificar como um incidente da instância) constitui uma excepção peremptória, cabendo, pois, ao embargado o ónus de alegação e prova dos pertinentes factos na fase contraditória (art.ºs. 342.º, n.º 2 e 343.º, n.º 2, ambos do Cod. Civil[3]).
Ora, no momento em que, nos presentes autos, se proferiu o despacho liminar, não existiriam motivos para desacreditar a versão da embargante, tendo em conta o que se alegou na petição inicial e considerando a data em que foi efectuada a penhora. A simples omissão de junção de um documento não determina, por si, a conclusão de que os embargos de terceiro eram intempestivos, até porque, como vimos, não se impunha à embargante tal prova.
De resto e como mais adiante se comprovou os embargos de terceiro foram, de facto, tempestivamente apresentados.
Decidiu-se, pois, bem em não indeferir liminarmente os embargos por intempestividade.
2.ª questão
Advoga também a recorrente que a decisão de dispensar a prestação de caução é nula por estar infundamentada.
O despacho que receber os embargos de terceiro determina a restituição provisória da posse (art.º 347.º do CPC). Até à reforma do CPC encetada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95 tal efeito mostrava-se obrigatoriamente condicionado pela prestação de caução pelo terceiro embargante.
Na actualidade, a sujeição desse efeito à prestação de caução depende de decisão judicial, a qual assenta num poder discricionário (n.º 4 do art.º 152.º do CPC) conferido ao julgador[4].
No caso, o despacho apelado não contém qualquer decisão respeitante a essa questão, pelo que, à primeira vista, mal se perceberia a arguição em apreço.
Não foi, por seu turno, tempestivamente arguida a nulidade processual (n.º 1 do art.º 195.º do CPC) em que se consubstanciaria a falta da decisão a que se refere a parte final do art.º 347.º do CPC.




Ora, sendo o dever de fundamentação, por natureza, incompaginável com a existência de decisões implícitas, é evidente que não se pode arguir a falta de fundamentação de um despacho que nunca chegou a existir.
E ainda que se pudesse argumentar que fora implicitamente proferida uma decisão de dispensa da prestação de caução, o certo é que a mesma fora tomada ao abrigo de um poder discricionário.
Ora, como se sabe, não são recorríveis as decisões tomadas no exercício legal de um poder discricionário (n.º 1 do art.º 630.º do CPC).
Não se divisando que a putativa decisão tenha sido tomada ao arrepio do quadro legal fixado no art.º 347.º do CPC ou em desvio do poder discricionário, haveria que concluir pela sua inadmissibilidade.
Improcede, pois, o recurso interposto pela embargada/apelante BB, S.A.
Apelação da embargante:
3.ª questão
A título de questão prévia, importa notar que, com as alegações, a embargante apelante juntou um documento.
Dispõe o art.º 425.º do CPC que, no caso de recurso, as partes só poderão juntar os documentos após o encerramento da discussão em 1.ª instância cuja junção não tenha sido possível até aquele momento. Acrescenta o n.º 1 do art.º 651.º do mesmo diploma, que as partes apenas poderão juntar documentos com as alegações de recurso, nas situações excepcionais referidas no art.º 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
O documento junto é o alvará de funcionamento da “DD”, onde consta averbada a propriedade da mesma a favor da recorrente. Não se alega nem se divisa que a sua junção tenha sido inviável até ao encerramento da audiência de julgamento. Aliás, a audiência de julgamento decorreu em 15 de Janeiro de 2018 e o documento junto foi emitido em 3 de Agosto de 2017, o que sempre conduziria à conclusão de que era perfeitamente viável até à conclusão dessa diligência.
Porém, o certo é que a recorrente já fizera menção à excessiva delonga na emissão do averbamento da propriedade da “DD” a seu favor junto do INFARMED (atente-se no que se escreveu no art.º 4.º da petição inicial de embargos de terceiro), sendo que a certidão junta com esse articulado também aludia ao correspondente pedido.
Ora, para justificar a indemonstração do único facto não provado, a sentença apelada considerou que “O facto não provado resulta da circunstância de o documento junto pela embargante tendente a demonstrar que o estabelecimento comercial lhe pertence não permitir tal conclusão. Com efeito, consta a fls. 5v uma certidão emitida pelo Infarmed, de onde se extrai os factos provados 5 e 6. Ora tais factos inviabilizam a pretensa propriedade da embargante sobre o estabelecimento comercial. Por outro lado a embargante não juntou aos autos o contrato de trespasse que alega ter celebrado com a executada.”.
Temos assim que o resultado probatório alcançado pelo tribunal a quo baseou-se na valoração que efectuou acerca da dita certidão.
Essa valoração traduz a necessidade de consideração de prova documental adicional para a demonstração daquele facto, pelo que nos deparamos com um caso em que a junção se haja tornado necessária pelo desfecho do julgado em 1.ª instância.
Deve, por isso, ser admitida a junção documental.
4.ª questão
Pretende a recorrente que se acrescentem factos ao conteúdo do ponto n.º 1 do elenco factual e que se dê como provado o facto que a sentença apelada teve como indemonstrado.
Ora, a referência à entrega do pedido de alteração da propriedade da Farmácia no dia 5 de fevereiro de 2013 consta já do ponto n.º 3 do elenco factual, pelo que mal se percebe que se aponte um erro de julgamento em matéria de facto. Acrescente-se ainda que o mais que se pretende inserir naqueloutro ponto da matéria de facto reveste natureza conclusiva, sendo, como tal, insusceptível de figurar nesse elenco.
Abordando a indemonstração da propriedade da farmácia, temos que o negócio translativo invocado pela recorrente como fonte do seu direito real (um trespasse) sobre a farmácia penhorada deve revestir a forma escrita (n.º 4 do art.º 18.º do Dec.-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto).
Significa isto que a respectiva prova apenas pode ser efectuada por esse documento ou por meio de prova de valor superior (n.º 1 do art.º 364.º do Cod. Civil), pelo que bastaria à recorrente juntar aos autos a escritura que documentou o trespasse que ajustou com a executada.




Sucede, porém, que o documento junto com a apelação comprova que foi registada pelo INFARMED a alteração da propriedade da “DD” a favor da apelante, mediante escritura de trespasse de 28 de Janeiro de 2013.
Como se sabe, o INFARMED é uma entidade pública (n.º 1 do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 46/2012, de 24 de Fevereiro) que, ademais, tem competência para organizar e manter “um registo permanentemente atualizado de cada farmácia e de todos os atos sujeitos a averbamento” (n.º 1 do art.º 19.º-A do Dec.-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto).
Temos, pois, que o documento em causa constitui um documento autêntico (n.º 1 do art.º 363.º e n.º 1 do art.º 369.º, ambos do Cod. Civil).
Assim, presume-se a genuidade do documento em causa (n.º 1 do art.º 370.º do Cod. Civil), pelo que é irrelevante a impugnação genérica feita pela recorrida. Caber-lhe-ia arguir a sua falsidade (n.º 1 do art.º 372.º do Cod. Civil).
Acresce que, no alvará de funcionamento, são averbados, ademais, a alteração da propriedade da farmácia (n.º 5 do art.º 25.º do Dec.-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto), pelo que é inexacto que o documento ora junto seja inidóneo para a demonstração da propriedade da farmácia.
Refira-se, enfim, que o documento ora junto faz prova plena da existência dessa escritura (n.º 1 do art.º 371.º do Cod. Civil), na medida em que tal facto foi, como consta do mesmo, directamente percepcionado pelo subscritor. Daí que, antecipando a argumentação da recorrida, se deva considerar que a prova do trespasse se mostra efectuada pelo teor da certidão ora junta.
Assim, tendo em conta o teor desse documento, modifica-se a decisão recorrida, de modo a constar do elenco factual provado que: “A DD está actualmente averbada a favor da embargante”, passando, assim a inexistir qualquer factualidade não provada.
Mostra-se, assim, consolidado o quadro fáctico provado (art.º 662.º, n.º 1 do CPC), nos seguintes termos:
1.A DD foi, em 27.05.1994, averbada em alvará a favor da executada;
2. Por contrato celebrado em 03.02.2013 a embargante cedeu a cessão da exploração do estabelecimento comercial denominado DD, sita na Rua … n.º …, em Ferreira do Alentejo;
3. Em 05.02.2013 deu entrada no Infarmed pedido de alteração da propriedade da Farmácia a favor da embargante.
4. Em 29.11.2016 a embargada intentou contra CC execução para cobrança da quantia de € 270.925,87;
5. No âmbito de tal execução foi efectuada a penhora do estabelecimento comercial sito na Rua … n.º …, em Ferreira do Alentejo, bem como das rendas devidas pela cessão de exploração do mesmo estabelecimento;
6. A embargante teve conhecimento da penhora no dia 15.05.2017;
7. A propriedade “DD” está actualmente averbada a favor da embargante;
5.ª questão
A modificação da decisão de facto influi decisivamente na decisão de direito.
A matéria dos embargos de terceiro sofreu alterações significativas com a reforma do Código de Processo Civil operada em 1995.
Anteriormente configurados como um incidente da acção executiva, os embargos de terceiro são, agora, uma subespécie do incidente de oposição espontânea, sistematicamente integrado no capítulo relativo aos incidentes da instância.
Foi-lhes igualmente configurada maior amplitude, nomeadamente ao nível da legitimidade para a sua dedução uma vez que, anteriormente, apenas podiam embargar de terceiro o possuidor em nome próprio e, excepcionalmente, o locatário, depositário, comodatário e parceiro pensador (n.º 2 do art.º 1037.º, n.º 2 do art.º 1188.º, n.º 2 do art.º 1125.º e n.º 2 do art.º 1133.º, todos do Cod. Civil), enquanto que, face ao regime actual, para além do possuidor, qualquer terceiro titular de um direito incompatível com a diligência ordenada pode deduzir embargos de terceiro para defesa do seu direito.
Os embargos de terceiro têm, assim, a finalidade de garantir a um terceiro a efectividade do seu direito ameaçado por uma diligência judicial que afecte bens sobre os quais é possuidor ou sobre os quais incida um direito incompatível com a diligência judicialmente ordenada que não teve a oportunidade de defender na acção onde foi decretada a diligência.
Nos termos do n.º 1 do art.º 342.º do CPC apenas podem embargar de terceiro o possuidor ou o titular de um direito incompatível com a diligência ordenada.
Assim, pode embargar de terceiro quem actua de facto sobre uma coisa, correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real, ou seja, quem é detentor de uma coisa e age com a intenção de agir como titular de um direito real (art.º 1251.º do Cod. Civil).
Mas igualmente o titular de um direito incompatível com a diligência ordenada pode embargar de terceiro. Tal implica que pode embargar de terceiro o titular de um direito de conteúdo patrimonial ilegalmente afectado com a diligência judicial, considerando-se direito incompatível aquele cuja natureza impede a realização da função do acto judicial objecto dos embargos.
A propósito dos embargos de terceiro como meio de oposição à penhora, ensina TEIXEIRA DE SOUSA[5]: “São incompatíveis com a realização ou o âmbito da penhora os direitos de terceiros sobre os bens penhorados que não se devam extinguir com a sua venda executiva”. Também LEBRE DE FREITAS[6] salienta: “Sabido que a penhora se destina a possibilitar a ulterior venda executiva, é com ela incompatível todo o direito de terceiro cuja existência, tido em conta o âmbito com que é feita, impediria a realização desta função”.
No que respeita à posição do embargante, dispunha o n.º 2 do art.º 1037.º do CPC que: “considera-se terceiro aquele que não tenha intervindo no processo ou no acto jurídico de que emana a diligência judicial, nem representa quem foi condenado no processo ou quem no acto se obrigou“.
Tal norma, revogada na revisão do CPC de 1995/1996, era mais explicativa do que aquela que consta actualmente no n.º 1 do art.º 342.º do mesmo diploma.
Contudo, cremos que se pode continuar a entender, como defendia ANSELMO DE CASTRO[7] que terceiro é “(...) aquele, e só aquele, cujos bens estejam a ser executidos como se fossem do executado, isto é, dissimuladamente dados como bens deste (...)”, o que vale por dizer que “(...) é terceiro em relação à penhora, todo aquele que não é exequente, nem executado (...)“[8].
Como é natural, a diligência ordenada deverá afectar a posse ou o direito de conteúdo patrimonial titulado pelo embargante.
Ora, como é sabido, a penhora constitui uma prévia apreensão dos bens do executado, “ao mesmo tempo paralisando ou suspendendo, na previsão dos actos executivos subsequentes, a afectação jurídica desses bens à realização de fins do executado, que fica consequentemente impedido de exercer plenamente os poderes que integram os direitos de que sobre eles é titular, e organizando a sua afectação específica à realização dos fins da execução.(...)”[9].
Em termos processuais, cumpre assinalar que os embargos de terceiros devem ser deduzidos no prazo de caducidade de 30 dias a contar da diligência ou a contar da data em que o titular do direito ofendido teve conhecimento da mesma (n.º 2 do art.º 353.º do CPC).
Tendo presentes estas considerações, cabe regressar ao caso dos autos.
Da factualidade provada resulta que foi penhorada uma farmácia cuja propriedade que está registada a favor da embargante, a qual não figura como executada nos autos.
Face à factualidade provada, temos, pois, que concluir que a embargante é titular do direito de propriedade – cfr. art.º 1305.º do Cod. Civil –, exercendo sobre ela posse por intermédio de outrem a quem cedeu a sua exploração (n.º 1 do art.º 1252.º do mesmo diploma legal).
Por outro lado, a penhora é um acto que, além do mais, limita os poderes de oneração e disposição da coisa (cfr. art.º 819.º do Cod. Civil), o que é conflituante com o pleno exercício do direito de propriedade que a posse exercida pela embargante reflecte (cfr. art.º 1305.º do Cod. Civil).
Assim é de concluir que a propriedade da embargante é afectada pela penhora.
Os embargos de terceiro devem proceder, determinando-se consequentemente, o levantamento da penhora efectuada nos autos principais, incidente sobre o bem imóvel, determinando-se o seu cancelamento, porquanto, em regra, só os bens do executado respondem pela dívida exequenda (n.º 1 do art.º 601.º do CPC).
Do que viemos de expor resulta a improcedência da apelação da embargada e da procedência da apelação da embargante.
As custas de ambos os recursos serão suportadas, porque vencida, pela embargada/apelante (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Sumário
I. Como decorre do art.º 345.º do CPC, a tempestividade da dedução dos embargos de terceiro é uma questão de conhecimento oficioso, assim se excepcionando a regra que evola do n.º 2 do art.º 333.º do Cod. Civil. No entanto e à míngua de outros elementos, o juiz, para aferir se os embargos são tempestivos, deve unicamente atentar na data da diligência judicial de penhora e nos factos que resultam da petição inicial, o que bem se percebe, pois a tempestividade da dedução dos embargos não constitui um pressuposto do exercício do direito que deva ser demonstrado pelo embargante.
II. A caducidade do direito de acção (em que se consubstanciam os embargos de terceiro, apesar de a lei os qualificar como um incidente da instância) constitui uma excepção peremptória, cabendo, pois, ao embargado o ónus de alegação e prova dos pertinentes factos na fase contraditória (art.ºs. 342.º, n.º 2 e 343.º, n.º 2, ambos do Cod. Civil).
II. O despacho que receber os embargos de terceiro determina a restituição provisória da posse (art.º 347.º do CPC). Até à reforma do CPC encetada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95 tal efeito mostrava-se obrigatoriamente condicionado pela prestação de caução pelo terceiro embargante. Na actualidade, a sujeição desse efeito à prestação de caução depende de decisão judicial, a qual assenta num poder discricionário (n.º 4 do art.º 152.º do CPC) conferido ao julgador.
III. Os embargos de terceiro têm a finalidade de garantir a um terceiro a efectividade do seu direito ameaçado por uma diligência judicial que afecte bens sobre os quais é possuidor ou sobre os quais incida um direito incompatível com a diligência judicialmente ordenada que não teve a oportunidade de defender na acção onde foi decretada a diligência.
IV. O INFARMED é uma entidade pública (n.º 1 do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 46/2012, de 24 de Fevereiro) que, ademais, tem competência para organizar e manter “um registo permanentemente atualizado de cada farmácia e de todos os atos sujeitos a averbamento” (n.º 1 do art.º 19.º-A do Dec.-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto).
V. A certidão emitida pelo INFARMED constitui um documento autêntico (n.º 1 do art.º 363.º e n.º 1 do art.º 369.º, ambos do Cod. Civil), presumindo-se a genuidade do documento em causa (n.º 1 do art.º 370.º do Cod. Civil), susceptível de arguição da sua falsidade (n.º 1 do art.º 372.º do Cod. Civil).
VI. No alvará de funcionamento, são averbados, ademais, a alteração da propriedade da farmácia (n.º 5 do art.º 25.º do Dec.-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto), pelo que o documento junto faz prova plena da existência dessa escritura de trespasse (n.º 1 do art.º 371.º do Cod. Civil), na medida em que tal facto foi, como consta do mesmo, directamente percepcionado pelo subscritor.
IV. Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação de Évora em:
- negar provimento ao recurso interposto pela apelante/embargada;
- admitir o documento junto pela apelante/embargante;
- em julgar procedente o recurso interposto pela apelante e, consequência, em revogar a sentença apelada e determinar o levantamento da penhora da “DD” efectuada nos autos principais.
Custas de ambos os recursos pela embargada/apelante.
Registe.
Notifique.

Évora, 28 de Junho de 2018
Florbela Moreira Lança (Relatora)
Elisabete Valente (1.ª Adjunta)
Ana Margarida Leite (2.ª Adjunta)


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[1] Assim SALVADOR DA COSTA, Os Incidentes da Instância, 6.ª ed., Almedina, pp. 174, o Ac. do STJ de 27.06.2006, proferido no processo n.º 1239/06, aí citado, sumariado em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2006.pdf)
[2] Assim SALVADOR DA COSTA, op. cit., pp. 172 e, entre outros, o Ac. do STJ de 11.04.2013, proferido no processo n.º 29808/97.0TVLSB-D.L1.S1 e sumariado em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2013.pdf)
[3] Assim SALVADOR DA COSTA, op. cit., pp. 172
[4] Assim LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, CPC Anotado, I, 3.ª ed., pp. 673 e Ac. do STJ de 05.03.2002, proferido no processo n.º 320/02 e sumariado em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2002.pdf)
[5] “A Acção Executiva Singular”, Lex, Lisboa, pp. 303
[6] “A Acção Executiva à Luz do Código Revisto”, 2.ª ed.; Coimbra Editora, pp. 233
[7] “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, Coimbra, 3.ª ed.., pp. 357
[8] Assim EURICO LOPES-CARDOSO, “Manual da Acção Executiva”, Petrony, 3.ª ed., 1996, pp. 353
[9] LEBRE DE FREITAS “A Acção Executiva – Depois da Reforma”, 4.ª ed., Coimbra Editora, pp. 205