Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1153/12.0TASTR.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CONFLITO DE DEVERES
ADMOESTAÇÃO
Data do Acordão: 04/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Não se verifica conflito de deveres, e de direito ou de estado de necessidade, na circunstância em que o gerente e a entidade empregadora retêm os valos deduzidos a título de contribuição para a Segurança Social, utilizando-os para pagamento de salários e de fornecedores, vale dizer, para manter a empresa em funcionamento;
II. O interesse, público, do Estado em arrecadar as contribuições para a Segurança Social releva sobre o interesse particular, da sociedade arguida, tendo em conta a força com a lei protege os bens jurídicos, critério este relacionado com o princípio ético-social vigente, no sentido da prevalência dos interesses de carácter público;
III. Além disso, o interesse dos arguidos em pagar os salários aos seus trabalhadores, bem como em pagar aos fornecedores, emerge da satisfação, em primeiro plano, do interesse próprio em assegurar a colaboração daqueles, em suma, o funcionamento do negócio.
IV. Nas circunstâncias descritas, dadas as necessidades de prevenção geral não se mostra adequada a aplicação da pena de admoestação.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1153/12.0TASTR.E1

Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

1 – Nos autos de processo comum em referência, precedendo acusação do Ministério Público, o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido, por sentença de 9 de Junho de 2015, decidiu nos seguintes termos:
«A-) Condenar o Arguido B… pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos art.ºs 107.° n.os 1 e 2, por referência ao artigo 105.°, n.os 1 a 4, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho e nos artigos 26.° e 30.°, ambos do Código Penal, na pena de 130 dias de multa a taxa diária de sete euros, o que perfaz a pena de multa de 910 euros;
B-) Condenar a Arguida C…, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelos art.ºs 107.° n.os 1 e 2, por referência ao artigo 105.°, n.os 1 e 4, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho e nos artigos 26.° e 30.°, ambos do Código Penal, na pena de 180 dias de multa a taxa diária de 10 euros, o que perfaz a pena de multa de 1.800 euros;
C-) Condenar os Arguidos individualmente, em taxa de justiça que se fixa em 2 U.s Cs, reduzida a metade nos termos do artigo, 344, nº 2, al. c, do C.P.P. e nas custas da acção penal».

2 – Os arguidos, conjuntamente, interpuseram recurso da sentença.
Extraem da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«I.- Os arguido, ora Recorrentes, estavam acusados, e foram condenados pela prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma consumada e continuada, previsto e punido nos termos do Art.º 107, n.ºs 1 e 2, com referência ao Art.º 105, n.ºs 1 a 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, e dos Art.ºs e 26 e 30, n.º 2, ambos do Código Penal de que vinham acusados, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete) euros, o que perfaz a quantia de € 910,00 (novecentos e dez) euros o arguido B…, e 180 dias de multa à taxa diária de € 10,00 (dez) euros, o que perfaz a quantia de € 1.800,00 (mil e oitocentos) euros a arguida C…Lda.
II.- No entanto, por dever de patrocínio, e sem condescender, embora se reconheça que a maior parte da jurisprudência entende que o conflito de deveres existente no caso em apreço (Art.º 36 do Código Penal), deve ser decidido a favor do dever de fazer a entrega do montante devido à segurança social, não prevalecendo o dever da manter os postos de trabalho e em consequência a própria sociedade arguida.
III.- Os arguidos entendem que o dever funcional de manter a sociedade arguida em funcionamento e de pagar os salários aos trabalhadores deve prevalecer em detrimento da obrigação legal de entregar as cotizações à Segurança Social.
IV.- E neste sentido, seria feita justiça absolvendo-se os arguidos dos crimes por que foram condenados.
V.- No entanto, sem condescender, e por dever de patrocínio, diga-se que a moldura penal prevista no Art.º 107, com referência ao Art.º 105, ambos do RGIT, é de multa até 360 dias ou de prisão até três anos.
VI.- Ora, face à matéria dada como provada quanto às circunstâncias em que o crime terá sido, alegadamente, cometido, e
VII.- Face à situação económica e financeira em que se encontram os arguidos – o arguido B…auferindo mensalmente uma quantia que ronda os e 500,00 euros, e a sociedade C…, Lda. encontrando-se em pleno PER, tendo que respeitar o plano de pagamentos aprovado, não podendo beneficiar nenhum dos credores – entendemos que 60 dias de multa ao arguido B… e 90 dias de multa à sociedade arguida C…, ambos à taxa diária mínima de multa prevista na nossa legislação (€ 5,00 euros), eram o suficiente e as penas mais adequadas ao caso sub judice.
VIII.- Entendemos no entanto que é de aplicar o disposto no Art.º 60 do Código Penal, ou seja, de substituir as penas de multa a aplicar a cada um dos arguidos, por uma admoestação a cada um deles.
IX.- O supra referido Art.º 60 do Código Penal dispõe que “se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o Tribunal limitar-se a proferir uma admoestação.”
X.- Assim, mesmo que V. Exas. entendam que as penas de multa aplicadas aos arguidos (130 dias, à taxa diária de € 7,00 euros ao arguido B…, e 180 dias, à taxa diária de € 10,00 euros) sejam adequadas e ajustadas ao caso concreto, devia o meritíssimo Juiz recorrido ter ponderado sobre a possibilidade do Tribunal se limitar a proferir uma admoestação a cada um dos arguidos,
XI.- Já que se encontram preenchidos todos os requisitos impostos pelo referido Art.º 60 do Código Penal na redacção que lhe foi dada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro.
XII.- O arguido B… procedeu à reparação integral do dano provocado pela não entrega das cotizações à Segurança Social, referentes aos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2011, conforme consta na matéria dada como provada.
XIII.- O Estado encontra-se assim completamente ressarcido do dano provocado pela falta de entrega, nos prazos legais, dos montantes referentes às cotizações referentes aos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2011.
XIV.- Com a admoestação proferida a cada um dos arguidos será realizada de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
XV.- Assim, e em resumo, tendo presente que neste momento o dano provocado em consequência da conduta dos arguidos se encontra totalmente reparado, e
XVI.- Encontrando-se assim pagas todas as quantias (capital e juros) referentes às cotizações de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho de 2011, que eram objecto dos presentes autos e à época devidas à Segurança Social (vide ponto 10 dos factos provados da douta sentença recorrida).
XVII.- E que a conduta do arguido B…, por si, e na qualidade de representante legal da arguida C…, Lda., ao confessar de forma integral e sem reservas os factos constantes na acusação, terá de contribuir de forma decisiva para que se possa efectuar um juízo favorável no que concerne à sua personalidade e à sua capacidade de auto-censura,
XVIII.- Ponderando ainda a ausência de antecedentes criminais e a estabilidade familiar e pessoal do arguido B… e,
XIX.- Por último, o esforço despendido, quer pelo arguido B…, quer pela arguida C…, Lda., no sentido de manter a sobrevivência desta.
XX.- Termos em que, na pior das hipóteses, as penas de multa em que os arguidos foram condenados, devem ser substituídas, devendo o Tribunal limitar-se a proferir uma admoestação a cada um dos arguidos.
Assim, deverão os arguidos ser absolvidos dos crimes pelos quais foram condenados, pelo reconhecimento de que no caso dos autos estamos perante uma situação de conflito de deveres, que exclui a ilicitude, nos termos do Art.º 36 do Código Penal, ou, se assim não se entender, serem as penas de multa a aplicar a cada um dos arguidos substituídas por uma admoestação, nos termos do Art.º 60 do Código Penal».

3 – O recurso foi admitido, por despacho de 8 de Setembro de 2015.

4 – A Ex.ma Magistrada do Ministério Público em 1.ª instância respondeu ao recurso, sem extractar conclusões da respectiva minuta, defendendo a confirmação do julgado.

5 – Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, louvada na resposta, é de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente.

6 – O objecto do recurso reporta ao exame das questões atinentes ao erro de julgamento em matéria de direito, seja pela presença de um conflito de deveres, como causa de exclusão da ilicitude, seja em sede de escolha e medida da pena.
II

7 – O Mm.º Juiz do Tribunal recorrido julgou a matéria de facto nos seguintes termos:
«A) FACTOS PROVADOS.
1.- A arguida, "C…, LDA", com sede social na Rua (…), tem por objecto social o "comércio por grosso de vestuário e acessórios, com importação e exportação, estilismo e modelismo, confecção de artigos de vestuário em série, formação profissional nas áreas da especialidade".
2.- A gerência da Sociedade arguida cabia ao arguido B…, sendo este quem tomava todas as decisões, por conta e no interesse da sociedade arguida.
3.- No período de Janeiro a Junho de 2011, a Sociedade arguida entregou à Segurança Social as declarações das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, relativas a esses períodos, mas não procedeu ao desconto nos salários dos mesmos das contribuições legalmente devidas por aqueles ao Centro Regional da Segurança Social, descontos esses que perfizeram o montante global de € 13.184,69, a saber:
Janeiro de 2011 - € 2.087,89, Fevereiro de 2011 - € 2.180,48, Março de 2011 - € 2.122,75, Abril de 2011 - € 2.297,1, Maio de 2011 - € 2.065,05, Junho de 2011 - € 2.431,42,
Valor total - € 13.184,69
4.- Após ter descontado e retido aquelas contribuições, a sociedade arguida, em todo o período referido, não procedeu à entrega dos montantes respectivos ao Conselho Directivo do Centro Regional de Segurança Social, nem até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias imediatos após o decurso daquelas datas e tão-pouco no prazo de 30 dias após ter sido notificada para o efeito.
5.-O Arguido B… apropriou-se das importâncias referidas, que sabia não lhe pertencerem e serem devidas à Segurança Social, afetando as mesmas a pagamento de salários e fornecedores para manter a sociedade arguida a laborar, a qual passava por período de grandes dificuldades financeiras motivadas pela redução de facturação por quebra abrupta de vendas.
6.-Actuou o arguido B… no seu interesse e no da sociedade arguida, com a perfeita consciência de que lhe competia providenciar, em nome e em representação da sociedade arguida, pelo cumprimento da mencionada obrigação legal, apesar do que, de modo igualmente consciente e deliberado e com o propósito de alcançar, como alcançou, para si e para a sua representada um indevido e ilegítimo benefício patrimonial, não permitindo ao Centro Regional da Segurança Social o devido recebimento de tais contribuições (nem até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias imediatos após o decurso daquelas datas e tão-pouco no prazo de 30 dias após ter sido notificado para o efeito), delas se apoderando.
7.-O arguido B… agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que aquele dinheiro pertencia à segurança social e a esta devia fazer chegar, actuando com intenção de alcançar para a sociedade arguida um benefício a que sabia esta não ter direito, assim causando à segurança social uma diminuição das receitas de montante idêntico ao benefício alcançado (no valor global de € 13.184,69).
8.-O B… arguido actuou, no período temporal em causa nos autos, sempre da mesma forma e repetindo as descritas condutas obedecendo a uma resolução previamente tomada em função das dificuldades económicas porque passava a sociedade arguida.
9.-Bem sabia o arguido B…, ao agir da forma descrita, que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, e tinham a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.
10.-Na pendência deste processo, os arguidos pagaram junto da Secção de Processo Executivo de Santarém do IGFSS, IP, as quotizações e respectivos juros de mora relativas ao mês de Março de 2011 e a segurança social veio a reaver todas as restantes quantias supra referidas em II- A ) 3.-.
11.- O arguido B…trabalha como socio gerente da arguida "C…, LDA", auferindo mensalmente cerca de 500 euros, tendo tido ajuda de amigos.
12.- O arguido B… teve de vender a sua casa e vive num anexo da das instalações da sociedade arguida.
13.- O arguido B… vive maritalmente com uma companheira e com dois filhos menores que estão a cargo.
13.- O certificado de registo criminal do arguido B… Tavares junto a folhas 375, datado de 16/2/2015não insere qualquer condenação sua.
14.- A arguida "C…, LDA", no âmbito de um processo de revitalização de empresa celebrou um acordo de pagamento das dívidas que tem para com a segurança Social, tendo em 2013/2014 tido um prejuízo de um milhão de euros.
15.- A arguida "C…LDA", actualmente tem oito empregados e facturou em 2014 entre 300 mil e 400 mil euros.
16.- O certificado de registo criminal da arguida "C…, LDA", junto a folhas 374, datado de 16/2/2015 não insere qualquer condenação sua.

B) FACTOS NÃO PROVADOS.
Não se provou que:
1.-Que os arguidos actuaram enquanto foram conseguindo, de modo idêntico de todas as vezes em que não efectuaram a entrega mensal das quantias devidas à Segurança Social, motivados em cada uma delas pelo facto de nenhuma acção inspectiva por parte dos Serviços da Segurança Social ter ocorrido nessa altura e de as suas condutas não terem tido qualquer tipo de consequência imediata.

C-) Fundamentação da convicção do tribunal quanto aos factos provados e não provados.
O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados nas declarações prestadas pelo Arguido B…, que prestou declarações confessando os factos constantes da acusação dados como provados integralmente e sem quaisquer reservas, tendo igualmente prestado declarações sobre a sua actual situação pessoal social familiar e económica e actual situação da Arguida "C…, LDA", matérias nas quais o tribunal se fundou igualmente nestas declarações.
O tribunal fundou-se ainda na prova documental na análise dos documentos juntos aos autos - mapa com a identificação das quotizações em dívida de fls. 6, - certidão permanente da sociedade arguida de fls. 65, - notificações do art.º 105°, n° 4, alínea b) do RGIT de fls. 70 a 78,273 a 276, - declarações de remunerações de fls. 107 a 190, - recibos de vencimento e declarações de rendimentos de fls. 225 a 227,231 a 234,238, 240, 244 a 246, e certificados de registo criminal dos arguidos, de fls. 374 a 375, 343360, 394 a 410 424, documentos, examinados em audiência de julgamento.»

8 – De ofício e muito em síntese (ressalvando-se a generalização), não pode deixar de reconhecer-se que, do texto e na economia da decisão revidenda, não se verifica qualquer nulidade de que cumpra conhecer, nos termos do n.º 3 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal (CPP) nem qualquer dos vícios prevenidos no n.º 2 do mesmo preceito.

9 – Com efeito, investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, não se vê que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos julgados provados ou entre estes e os factos julgados não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e, de igual modo, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras da experiência comum, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.

10 – Os arguidos pretextam a evidência de um conflito de deveres, tal como prevenido no artigo 36.º n.º 1, do Código Penal (CP), alegando «que o dever funcional de manter a sociedade arguida em funcionamento e de pagar os salários aos trabalhadores deve prevalecer em detrimento da obrigação legal de entregar as cotizações à Segurança Social».

11 – Afigura-se, sem qualquer desdouro para o esforço argumentativo dos recorrentes, que o respectivo argumentário não pode proceder.

12 – Ao comutar-se o destino legalmente devido das contribuições devidas à Segurança Social para o pagamento de salários e de fornecedores – como vem provado –, não pode considerar-se que se visou a salvaguarda de um interesse superior, relativamente ao dito interesse do Estado.

13 – Estando em confronto interesses de natureza essencialmente patrimonial, o mais que se pode conceder é que um e outro são igualmente relevantes, admitindo-se até, por rigor interpretativo, que o interesse do Estado aqui protegido, de natureza pública, releva sobre o interesse, particular, da sociedade arguida, tendo em conta a força com que a lei protege os bens jurídicos, critério este relacionado com o princípio ético-social vigente no sentido da prevalência dos interesses de carácter público – veja-se, neste sentido, por mais significativo, o Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-2-2002 (Proc. 4234/01 – 5.ª S, in www.dgsi.pt, como os demais citandos sem menção de origem).

14 – Por outro lado, o invocado conflito de deveres (art. 36.º, do Código Penal) não tem lugar para salvaguarda de interesses próprios.

15 – Os deveres em conflito hão-de ser, necessariamente, deveres para com os outros.

16 – Se é certo que, ao pagar os salários dos trabalhadores da empresa, os co-arguidos satisfizeram (também) o interesse dos seus colaboradores, tal situação é secundária e emerge, necessariamente, da satisfação, em primeiro plano, do interesse próprio em assegurar essa mesma colaboração, em suma, o funcionamento do negócio.

17 – Daí que, à partida, haja de ter-se por excluída a possibilidade de verificação do invocado conflito de deveres, na medida em que um dos deveres alegadamente conflituantes não é alheio, antes se configurando como um dever do arguido e para consigo próprio: pagar a quem deve para assegurar o funcionamento do negócio.

18 – Ademais, sendo paralela a situação de conflito de deveres com a do estado de necessidade, também invocado, tem de conceder-se que será, também aqui, de exigir que tal situação de necessidade desculpante não deva ser causada pelo agente do facto necessário.

19 – Tal voluntariedade do facto, pese embora a expressão divergente do CP («não ter sido voluntariamente criada»), equivale, no entanto, à culpa a que se refere o direito civil.

20 – Ora, no rol de factos sedimentados como provados na instância, não se descortina, reconheça-se, a emergência de qualquer situação extraordinária e imprevisível porventura comprometedora das premissas de que os arguidos partiram para gerir as ditas dificuldades financeiras – veja-se, neste sentido, por mais significativo, o Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 8-11-2001 (Proc. 2988/01 – 5.ª S).

21 – Vejam-se ainda, a respeito, por mais recentes e significativos, com sistemática recopilação da mais pertinente jurisprudência, os acórdãos, deste Tribunal da Relação de Évora, de 06/30/2015 (proc. 295/11), e de 01/13/2011 (Proc. 54/09), o Tribunal da Relação do Porto, de 06/20/2012 (Proc. 6651/08) e, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/22/2004 (Proc. 4855/2004-3) e de 02/03/2009 (Proc. 2519/2007-5).

22 – De par, mantém actualidade o ponderado e decidido, a respeito, nos acórdãos, do Tribunal Constitucional, n.º 312/2000 (no Diário da República, 2.ª série. de 17 de Outubro de 2000) e de 29 de Novembro de 2000 (no Diário da República, 2.ª série, de 31 de Janeiro de 2001).

23 – Importa ademais fazer lembrete da lição de Claus Roxin (citado por Figueiredo Dias e Costa Andrade, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6, tomo 1.º, pág. 76), no sentido de que a garantias das prestações necessárias à existência (e disso se trata no caso do sistema fiscal e de impostos, atento o disposto nos artigos 103.º e ss. da Constituição) constitui tarefa tão legítima do direito penal como a tutela de bens jurídicos.

24 – No mesmo sentido, ressalta Anabela Miranda Rodrigues (Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria penal fiscal, Direito Penal Económico e Europeu, II vol. Pág. 481 ss.), é hoje um dado adquirido a eticização do direito penal fiscal, o que legitima a expansão do direito penal a um domínio tradicionalmente alheio a esta dignificação. Este fundamento ético do imposto, está contido claramente na Constituição (artigos 103.º e 104.º), que aponta ao sistema fiscal uma finalidade de repartição justa dos rendimentos e da riqueza, a diminuição das desigualdades, a igualdade dos cidadãos e a justiça social.

25 – Daí que haja de entender-se a impropriedade do falado conflito de deveres, e de direito ou de estado de necessidade, em casos como o presente, em que o gerente e a entidade patronal, retêm os valos deduzidos a título de contribuição para a Segurança Social, utilizando-os para pagamento de salários e de fornecedores, vale dizer, para manter a empresa em funcionamento.

26 – Os recorrentes pretextam, ademais, em sede de escolha e medida da pena, que, face ao comprovado contexto atenuativo, atinente à reparação do dano, à confissão e à ausência de pretérito delitivo, o Tribunal a quo se deveria ter limitado a admoestar os arguidos, nos termos prevenidos no artigo 60.º, do CP.

27 – Em matéria de concretização da sanção, o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido ponderou nos seguintes termos:
«O crime de abuso de confiança fiscal praticado pelo arguido B… é punido com uma moldura penal abstracta de prisão até três anos ou de multa até trezentos e sessenta dias, variável entre 1 (um euro) e 500 (quinhentos euros) diários, (artigos 105º, n.º 1 e 15º, n.º 1, do RGIT).
No que respeita à sociedade arguida "C…, LDA", a pena aplicável é a de multa de vinte a setecentos e vinte dias ao montante diário de cinco euros a cinco mil euros (artigos 12º, n.º 3, 15º, n.º 1 e 105º, n.º 1, todos do RGIT).
Os critérios de determinação das medidas das penas estão previstos nos artºs 70 e 71 do código penal.
Ter-se-á, assim, em conta na determinação das penas concretas a aplicar aos Arguidos pelo crime que praticaram, o grau de intensidade do ilícito, considerando a respectiva natureza medianamente mediano, o dolo do Arguido B…, na modalidade de dolo directo, ( art.º 14º, n.º1, do CP ), e as consequências gravosas resultantes do ilícito.
Considerando as circunstâncias da prática dos factos, o lapso de tempo em que o arguido B… praticou os factos o valor global do montante de que se apropriou, o facto de a sociedade arguida estar ainda com dificuldades económicas e a ausência de antecedentes criminais por parte dos arguidos entende o Tribunal, atenta actual situação pessoal do arguido B…que em relação a este Arguido a pena de multa é de molde a satisfazer de forma adequada os fins das penas, recorrendo, por isso, à aplicação da pena de multa na punição deste Arguido.
Visto que, no caso dos autos, os critérios de determinação das medidas concretas das penas dos Arguidos apontam para penas situadas tendencialmente mais próximas do respectivo limite mínimo, devendo a taxa diária da pena de multa do arguido B… situar-se em sete euros e da arguida em 10 euros atentas as suas situações económicas.»

28 – A pretextada admoestação, tal como prevenida no artigo 60.º, do CP, configura «uma sanção quase-penal: declarando-se a culpabilidade, determina-se a pena e desaprova-se publicamente o crime cometido, mas não se impõe a pena», no dizer de Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, (no «Código Penal Anotado», Vol. I, 4.ª edição, Rei dos Livros, 2014, pág. 858) que, no caso, se não vê justificada, vistas as ingentes necessidades de prevenção geral.

29 – Ademais, importa ter presente (faz doutrina e jurisprudência de há muito sedimentadas) que, em sede de escolha e medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico (na expressão de Cunha Rodrigues), no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, (também) neste particular, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normação que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstracta determinada na lei.

30 – Vale por dizer que o exame da concreta medida da pena estabelecida na instância, suscitado pela via recursiva, não deve aproximar-se desta senão quando haja de prevenir-se e emendar-se a fixação de um determinado quantum em derrogação dos princípios e regras pertinentes, cumprindo precaver (desde logo à míngua da imediação e da oralidade de que beneficiou o Tribunal a quo) qualquer abusiva evicção relativamente a uma concreta pena que ainda se revele congruente e proporcionada.

31 – No caso, não se vê que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo haja valorado as circunstâncias apuradas com inadequado peso prudencial, por isso que a sentença revidenda não merece nem suscita, também neste particular, qualquer intervenção ou suprimento reparatório.

32 – Em conclusão, o recurso interposto pelos arguidos não pode, de todo em todo, lograr provimento.

33 – O decaimento total no recurso impõe a condenação dos arguidos em custas, sendo individual a taxa de justiça, nos termos e com os critérios previstos nos artigos 513.º e 514.º do CPP, e no artigo 8.º e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais – ressalvado apoio judiciário e nos estritos termos de tal benefício.
III

34 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: (a) negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos B… e C…,LDA; (b) condenar os arguidos nas custas, com a taxa de justiça (individual) em 3 (três) unidades de conta.

Évora, 12 de Abril de 2016
António Manuel Clemente Lima (relator)
Alberto João Borges (adjunto)