Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
123/19.2T9LAG.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Não tanto pelas fórmulas, mas pelo conteúdo, o requerimento para abertura da instrução terá de ser necessariamente diverso conforme seja o arguido a pretender fazer comprovar judicialmente a decisão de acusar ou o assistente a pretender fazer intervir o juiz de instrução para confrontar a decisão de arquivamento.

2 - Sendo assim, poderemos concluir que, por força da conjugação dos art.º 287.º, n.º 2, com o art.º 309.º, n.º 1, a instrução requerida pela assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo M.ºP.º, não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho.

3 - Deste modo, o requerimento do assistente não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório: o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, que é a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo Ministério Público
Decisão Texto Integral:
I
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos autos de inquérito acima identificados, do Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Portimão, da Comarca de Faro, o assistente (...) não se conformou com o despacho de arquivamento do inquérito ordenado pelo M.º P.º e apresentou o seguinte requerimento de abertura de instrução (RAI):
1— DA ABERTURA DE INSTRUÇÃO
1.
Os presentes autos foram arquivados, porquanto e em referência aos Denunciados "que não foram colhidos indícios suficientes que os ora denunciados tenham intencionalmente falseado a realidade dos factos no decurso do seu depoimento, de forma a impedir o correto exercício da justiça."
2.
Salvo o devido respeito discorda em absoluto o Assistente de tal decisão.

3.
Vejamos os factos alegados na participação do ora Assistente que, grosso modo, estão demonstrados nos documentos juntos aos autos:
a) Da decisão no processo 142/15.8 GALGS, foi absolvido do crime de gravações e fotografias ilícitas na forma continuada, por que vinha acusado, assim como do crime de ofensa à integridade física, mas condenado pelo crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada, nos termos do artigo 209, n21 do Código Penai.
b) Por este crime referido em último, foi o Assistente condenado a uma pena de trinta dias de multa, à razão diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante global de € 150,00 (cento e cinquenta euros) e a que correspondiam vinte dias de prisão subsidiária.
c) Não se conformando com a douta decisão da 12 Instância, recorreu o Assistente da sentença que o condenou, tendo nas suas alegações de motivação do recurso, invocado que a sentença não havia corretamente apreciado e valorado as declarações prestados pelo próprio, assim como das testemunhas inquiridas.
d) Que ante a incorreta valoração das declarações das testemunhas, foram dados como provados factos que o não deveriam ter sido, pelo que se impunha a revogação dessa sentença recorrida.
e) Considerou depois o Tribunal da Relação de Évora, que o recurso deveria ter provimento, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, alterando a matéria de facto dado como provada constante dos pontos 4 e 6 da mesma sentença e absolvendo-se o Assistente da prática do crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou coisa achada, prevista e punida pelo artigo 209, n21 do Código Penal.

II-DO PREENCHIMENTO DOS ELEMENTOS DO CRIME DE FALSIDADE DE TESTEMUNHO
4.
O crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360, n21 e 3, do Código Penal, tem como bem jurídico protegido no seu essencial, a realização ou administração da justiça como função do Estado, sendo elementos objetivos do tipo:
a) o agente se encontrar investido numa dada função processual (neste caso de testemunha);
b) prestar uma declaração falsa;
c) após ter prestado juramento e sido advertido das consequências penais a que se expõe por autoridade com competência.
5.
Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, trata-se de um tipo doloso, que exige a verificação de dolo genérico em qualquer das suas modalidades.
6.
Ora os denunciados em sede de audiência e julgamento denunciaram atuações do Assistente de ficar na sua posse com bolas atiradas para a sua propriedade, de nunca as entregar e as cortar.
7.
Sendo certo, que dos locais onde os denunciados alegaram que estariam e conseguiam ver o denunciante praticar tais atos, não conseguiam na realidade ver tais acontecimentos, se os mesmos tivessem efetivamente acontecido, o que não foi sequer o caso.
8.
Nomeadamente, a denunciada (...), ocultou que durante cerca de dois anos, acompanhava os menores (filhos de …), à propriedade do assistente para irem buscar as bolas, que eles mesmos atiravam para lá.
9.
A mesma denunciada mentiu dizendo que o Assistente ficava sempre com as bolas e não as entregava.
10.
O denunciado (…) declarou que o Assistente todos os dias ficava com bolas, que as cortava e não devolvia nada a ninguém.
11.
Este denunciado também declarou em sede de inquérito que viu o Assistente a apanhar bolas, mas não o viu a cortar bolas, mas como as bolas nunca apareciam, devia ser o Assistente que as destruía.
12.
Ora este denunciado é funcionário da concessão de praia, que trabalhava na praia e não perto da casa do Assistente, pelo que não poderia ter presenciado os factos que relata.
13.
Ora, já em sede de recurso, o Tribunal da Relação de Évora veio dar razão ao Assistente e afastou a prática do crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada.
14.
Assim, nesta linha de pensamento, percebe-se que os denunciados, não falaram a verdade em tribunal, o que prejudicou o Assistente na sua honra e reputação, tendo o mesmo sofrido uma condenação em 12. instância por causa das suas declarações, além de que com as suas atuações colocavam em causa a realização da Justiça.
15.
Os denunciados atuaram com a intenção concretizada de prestar depoimento falso quando inquiridos na qualidade de testemunhas, quer na fase do inquérito, quer na fase do julgamento, não obstante terem sido advertidas de que caso não falassem a verdade, incorriam em responsabilidade criminal.
16.
Este tipo de crime é um crime de perigo abstrato, nem sendo necessário que a declaração falsa prejudique efetivamente o esclarecimento da verdade suporte da decisão.
17.
É um crime de mera atividade em que o comportamento se esgota logo no momento da efetivação da conduta proibida, bastando a existência de contradição de depoimentos, independentemente de se apurar qual deles é o verdadeiro.
18.
No caso em concreto nos presentes autos, ainda se apresenta uma situação mais gravosa, na medida em que por causa dos depoimentos falsos dos denunciados, resultou na condenação do Assistente em 12 instância, por um crime que depois veio a ser absolvido em sede de recurso no Tribunal da Relação de Évora, provando-se efetivamente que esses testemunhos não tinham qualquer credibilidade.
19.
Sem esquecer que tanto é falso o depoimento expresso de não dizer a verdade, como a omissão intencional de factos ou situações que possam esclarecer a verdade.

III-INQUÉRITO SEM INVESTIGAÇÃO – INSUFICIENCIA – NULIDADE
20.
O Assistente lamenta ter de começar por dizer que, quiçá por lapso ou distração do MP, não foram devidamente investigados todos os fatos, nem devidamente analisadas as provas contidas nos autos, e em sentença proferida pelo Tribunal da Relação de Évora que suscitou a dúvida das declarações dos denunciados, pelo que o Assistente se sente injustiçado e daí o presente Requerimento de Abertura de Instrução.
21.
Pelo que antecede, sempre respeitando opinião contrária, pode concluir-se que o MP não cuidou de investigar devidamente o sucedido, não fez correta apreciação dos factos, quer por desprezar alguns, quer por não reparar noutros ou não as analisar concertadamente, acabando por arquivar os autos por insuficiência de indícios (art.° 2772, n.22 do CPP), quando tal insuficiência, salvo melhor e mais douta opinião, resulta da sua própria insuficiência investigatória e de uma análise mais racional das que tinha perante si.
22.
Da análise do depoimento dos vários denunciados, parece-nos evidente a contradição entre os seus relatos, ao qual não será alheia à vontade de proteger os menores que propositadamente jogavam as bolas para dentro do logradouro do Assistente.
23.
Além do mais, é claro que os denunciados sabendo agora que poderiam eles próprios vir a ser acusados de um crime de falso depoimento, e em suas defesas, vêm dizer que não é verdade que tenham faltado à verdade nos seus depoimentos e tentado de qualquer forma prejudicar o Assistente, sendo que efetivamente foi o que aconteceu.
24.
O modo como atuaram agora em sede de declarações do presente inquérito, porque são eles que têm interesse direto no desfecho deste processo, demonstram os seus depoimentos como sendo desmerecedores de qualquer credibilidade.
25.
Nem poderia o MP se conformar com esses depoimentos para decidir sem mais pelo arquivamento do inquérito.
Porquanto,
26.
Pelo exposto não restam dúvidas que os denunciados praticaram cada uma deles, um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360 do Código Penal.
Aliás conforme resulta, desde logo, dos elementos probatórios que constam dos autos.
Termos em que e nos mais de direito requer a V. Exá.:

-Seja declarada a abertura de instrução e, em consequência, proferindo despacho de pronúncia dos participados pela prática cada um de um crime de falsidade de testemunho.
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Tendo então o Mmo. Juiz de Instrução Criminal proferido o seguinte despacho (citado apenas na parte que agora mais interessa ao caso):
(…)
Concretizando, analisando o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (...) verifica-se que o mesmo avança as razões da sua discordância com o despacho final de arquivamento proferido pelo Ministério Público, contudo, parece olvidar a referida estrutura acusatória. Lidos todos os factos, o que se verifica é que o assistente veio trazer novamente todos os fundamentos que deram origem à denúncia, mas não individualizou e explanou quais os factos que se subsumem aos tipos criminais em causa e que devem ser sujeitos ao crivo judicial.
Repare-se que o assistente não faz referência material aprofundada à forma como se terão desenvolvido os factos denunciados, impondo ao juiz de instrução, dada a forma como alegou, a busca nos elementos constantes dos autos dos factos que poderão consubstanciar a prática dos imputados crimes. Isto é, estamos perante uma alegação genérica de factos, sendo que é ao Juiz de Instrução que compete “escolher” os factos que posteriormente serão sujeitos a debate. Tal situação, à luz dos preceitos citados, não é admissível.
Note-se ainda que não se mostram individualizados os factos que correspondem aos elementos dos tipos criminais. O assistente aborda as declarações dos arguidos que, na sua optica, constituem crime, mas não elenca qualquer factualidade a ser submetida à instrução e que poderia vir a ser objecto de julgamento. Nem tão pouco o princípio do contraditório poderia ser assegurado a aceitar-se a pressente instrução, pois os arguidos não saberiam qual a concreta matéria imputada.
Constatamos, assim, que, e ao contrário daquilo a que estava obrigado, o assistente não fez no requerimento de abertura da instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto não enumerou de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, susceptíveis de integrarem a prática por um concreto indivíduo de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena. Ou seja, (...) não elaborou um requerimento de abertura da instrução onde desse cumprimento às imposições legais supra referidas, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação.
(…)
Nestes termos, (…) decido rejeitar, por inadmissível, o requerimento de abertura da instrução em apreço.
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Inconformado com o assim decidido, o assistente interpôs o presente recurso, que motivou concluindo:
1. O presente recurso tem por objeto o despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.
2. O Tribunal “a quo” considerou que o Recorrente não fez no requerimento de abertura de instrução a necessária inventariação dos fatos equivalente a uma acusação pública, considerando este Tribunal que a instrução requerida pelo Recorrente não pode destinar-se a simples impugnação do despacho de arquivamento.
3. Contrariamente ao alegado no despacho recorrido, o Recorrente veio apresentar uma exposição dos factos praticados pelos arguidos de forma a integrar as razões de facto e de direito relativamente à não acusação, não se limitando o Recorrente a fazer uma mera impugnação do despacho de arquivamento do Ministério Público.
4. O Recorrente fez mais do que isso, por alegou os factos praticados pelos Arguidos e consequentemente, a subsunção dos mesmos à previsão do tipo de crime em causa (falsidade de testemunho), isto é, foi feita na verdade uma “acusação” por parte do Recorrente na sua qualidade de Assistente.
5. Na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, o Assistente/Recorrente requereu a abertura de Instrução, na qual narrou os factos criminalmente censuráveis, o contexto em que tais factos ocorreram e a intervenção direta dos Arguidos nos mesmos e, para tal, apresentou e requereu a correspondente produção de prova, cumprindo, assim, o disposto no artigo 287, nº2 do CPP.
6. Todos os factos narrados no requerimento de abertura de instrução demonstram claramente que os Arguidos não falaram verdade em Tribunal, o que prejudicou o Recorrente e levou a que este último fosse condenado em 1ª Instância por causa dessas declarações dos Arguidos, além de que com as suas atuações colocaram em causa a realização da Justiça.
7. Portanto, não estamos perante insuficiente factualidade, sabendo através de tal Requerimento de Abertura de Instrução quem, quando e de que forma foram praticados determinados factos pelos Arguidos e que esses factos constituem crime, no caso em apreço, um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360 do CP.
8. Não só o Recorrente descreveu os factos, como alegou quais as disposições violadas, sendo perfeitamente inteligível o entendimento de quais os factos que estão em causa, e a razão pela qual o Recorrente entende que deve haver acusação, pelo que o Requerimento de Abertura de Instrução deveria ter sido admitido.
9. Não concorda o Recorrente, que não tenha assim alegado os factos imputáveis a cada Arguido de forma genérica, alargando para cada um deles a descrição dos factos trazidos em sede da sua denúncia.
10. Salvo melhor opinião, o Recorrente fez no Requerimento de Abertura de Instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto enumerou de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados e suscetíveis de integrarem a prática concreta por cada concreto Arguido de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena.
11. Ou seja, o Recorrente no seu Requerimento de Abertura de Instrução, deu cumprimento às disposições legais aplicáveis, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar que estamos perante uma “verdadeira acusação”, nos termos do artigo 283, nº3, alínea b) do CPP, por remissão do artigo 287, nº2 do CPP.
12. Andou mal a decisão recorrida uma vez que, o Recorrente no seu RAI cumpriu o estipulado no artigos 287.º, n.º 2, do CPP, assim como, as imposições do artigo 283.º, n.º 3, al. b) e c), do CPP, na medida em que não se limitou a repetir a denúncia intentada anteriormente, mas explicitou de forma clara e percetível os factos praticados pelos Arguidos, o seu enquadramento espácio temporal e a subsunção destes factos ao tipo de crime p. e p. pelo artigo 360.º, do CP, de falsidade de testemunho.
13. Por tudo isto, entende o Recorrente que os factos trazidos à colação no RAI, são suficientes para, a manterem-se em julgamento, conduzirem fortemente à condenação dos Arguidos pela prática do crime em causa.

Termos em que, deve revogar-se a decisão recorrida e substituir-se por outra que conduza a admissão do Requerimento de Abertura de Instrução, assim se fazendo, JUSTIÇA!
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O Digno Magistrado do M.º P.º junto da 1.ª Instância respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do decidido.
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Nesta Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que a questão a desembargar no presente recurso é, pois, a de saber se, na sequência do despacho de arquivamento do inquérito ordenado pelo M.º P.º, o Senhor Juiz decidiu bem ao indeferir o requerimento de abertura de instrução (RAI) formulado pelo assistente por o mesmo não conter as indicações exigidas pelos art.º 283.º, n.º 3 al.ª b) e 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, isto é, não conter «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente teve neles e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».
Ora bem.
Importa começar por sublinhar que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art.º 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, – no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação.
Como está consagrado no n.º 5 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios subordinados ao princípio do contraditório. Esta estrutura do processo penal significa que o seu objecto é fixado pela acusação que delimita a actividade cognitiva e decisória do tribunal, tendo em vista assegurar as garantias de defesa do arguido, protegendo-o contra a alteração ou alargamento do objecto do processo.
Também a orientação da Comissão Europeia dos Direitos do Homem é no sentido de que o artigo 6.°, n.º 3, da Convenção, impõe que o acusado seja informado de todos os elementos necessários para que possa preparar a sua defesa, isto é, não só os factos materiais que lhe são imputados (causa da acusação), mas também a sua qualificação jurídica (natureza da acusação), o que implica que o acusado seja também informado de toda a alteração da qualificação jurídica (cf. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, I, Editorial Verbo, 2000, pág. 367, nota de rodapé n.º 5).
Quanto a este ponto, é pertinente chamar à colação o que expenderam os Prof. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na “Constituição da República Anotada”, 3.ª edição, pág. 206: a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação.
Daqui resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar.
A estrutura acusatória do processo exige que a intervenção do juiz não seja oficiosa e, além disso, que tenha de ser delimitada pelos termos da comprovação que se lhe requer sobre a decisão de acusar ou, se não tiver sido deduzida acusação, sobre a justificação e a justeza da decisão de arquivamento.
Por isso, e não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura da instrução: tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura da instrução, como refere o n.º 4 do art.º 288.º do Código de Processo Penal.
O requerimento de abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução.
O requerimento, sendo livre de fórmulas, não o é de conteúdo material vinculante.
Deste modo, constituem elementos essenciais ao requerimento para abertura da instrução a enunciação das razões de facto e de direito da discordância em relação à decisão de acusação ou de arquivamento.
Porém, não tanto pelas fórmulas, mas pelo conteúdo, o requerimento para abertura da instrução terá de ser necessariamente diverso conforme seja o arguido a pretender fazer comprovar judicialmente a decisão de acusar ou o assistente a pretender fazer intervir o juiz de instrução para confrontar a decisão de arquivamento.
Sendo assim, poderemos concluir que, por força da conjugação dos art.º 287.º, n.º 2, com o art.º 309.º, n.º 1, a instrução requerida pela assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo M.ºP.º – aquele que aqui importa ter agora em conta –, não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho.
Este requerimento, embora não sujeito a formalidades especiais, deve conter, mesmo em súmula, os elementos que são enunciados no art.º 287.º, n. ° 2, do mencionado diploma: a indicação das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283.º n.° 3 al.ª b) e c).
Deste modo, o requerimento do assistente não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório: o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, que é a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo Ministério Público (cf. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", vol. III, pág. 141, e, entre outros, o AC. da Rel. Lisboa de 12-5-1998, BMJ n.º 477, pág. 555; da Rel. Porto de 15-4-1998, BMJ n.º 476, pág. 487; da Rel. Lisboa de 2-12-1998, Boletim do Ministério da Justiça n.º 482, pág. 294; da Rel. Lisboa de 21-10-99, CJ, 1999, IV-158; e da Rel. Lisboa de 9-2-00, CJ, 2000, I-153).
Como se referiu no Ac. do TC de 19-5-2004, publicado no Diário da República n.º 150, II Série, de 28 de Junho de 2004 a estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Ora, se o requerimento do assistente se limita a apreciar os elementos de prova já trazidos aos autos e, embora conclua pedindo sejam os denunciados pronunciados pela prática, cada uma deles, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.º 360.º, do Código Penal, no RAI aparece apenas a identificação de dois e a imputação aos mesmos de um conjunto vago e pouco preciso de circunstâncias, quando afinal do requerimento que dá início ao inquérito se constata que são quatro os denunciados, não constando do RAI a identificação dos demais denunciados, nem se lhes imputando qualquer factualidade, embora se peticione afinal a sua pronúncia e não é indicada a data nem o local dos factos – não reúne o mesmo as características fundamentais de uma acusação em sentido material, implicando violação do princípio da acusação e da verdadeira natureza da instrução, bem como da decisão instrutória.
Em face de tais omissões, qualquer descrição factual que viesse a ser feita numa eventual pronúncia para preencher essas lacunas do RAI, redundaria, sobretudo em relação aos dois denunciados que o requerente nem sequer nomeia no seu RAI apesar de constarem do rol dos participados que quer ver pronunciados, numa alteração substancial do requerimento, pois implicaria uma total inscrição de factos "novos", da inteira responsabilidade do Juiz de Instrução, que assim se substituiria àquele requerimento e, como tal, estaria ferida da nulidade cominada no art.º 309.° do Código de Processo Penal (acórdão da Relação de Coimbra de 24-11-94, Colectânea de Jurisprudência, 1994, V-61).
Deste modo, o requerimento que o assistente apresentou para abertura da instrução não contém os elementos essenciais à função processual que lhe é assinalada e não é processualmente prestável para tal finalidade, o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado.
O RAI tem de valer por si e não pelo que consta de outras peças processuais e o apresentado pelo assistente não contém um suporte que se adeqúe à exigência da delimitação ou vinculação temática do tribunal, em ordem a assegurar as garantias de defesa do arguido, existindo deficiências incontornáveis ao nível da estrutura acusatória do pedido de instrução.
Aliás, quanto à estrutura e valência em si do RAI não são poucos os arestos que se lhe têm referido, citando-se, a título de exemplo, o Ac. da Rel. de Lisboa de 20-5-97 (C.J., 1997, III, pág. 143), onde se exara: "O requerimento do assistente para abertura da instrução, no caso de arquivamento do processo pelo M.º P.º é que define e limita o respectivo objecto, de processo, a partir da sua formulação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim, e além do mais, deverá dele constar a descrição dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições penais incriminatórias". O que realmente não acontece no caso em apreço, pelo que, e na linha de toda uma alargada corrente jurisprudencial, se pode falar em falta ou insuficiência de objecto, que conduz à inadmissibilidade legal da instrução a que refere o art.º 287.º, n.º 3 (acórdão da Relação do Porto de 21-11-01, Colectânea de Jurisprudência, 2001, V-225; Ac. Rel. Évora de 14-4-95, Colectânea de Jurisprudência, 1995, II, pág. 280; Ac. Rel. Lx. de 9-2-00, Colectânea de Jurisprudência, 2000, I, pág. 153; Ac. Rel. Porto de 5-5-93, Colectânea de Jurisprudência, 1993, III, pág. 243 e Ac. STJ de 27-2-02, proc. 3153/01-3ª).
Qual, então, a consequência da falta ou deficiência da indicação de daqueles elementos?
É a da rejeição do requerimento, como o fez o despacho recorrido, pelo que a decisão dele constante está correcta e é para manter.
III
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC (art.º 515.º, n.º 1 al.ª b) do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 5, do RCP e tabela III anexa).
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Évora, 16-12-2021
Martinho Cardoso, relator
Maria Leonor Esteves, adjunta
(assinaturas digitais)