Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1406/18.4T8OLH-E.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
SINAL
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O apenso de reclamação de créditos em insolvência não constitui o meio processual adequado para um credor deduzir um pedido de condenação da massa insolvente no cumprimento de determinado contrato.
2 – Decorre do artigo 102.º do CIRE que o administrador da insolvência é livre de optar entre a execução e a recusa de cumprimento de um negócio em curso, ressalvando-se apenas as hipóteses em que a actuação daquele configure um abuso de direito nos termos previstos genericamente no artigo 334.º do CC ou, especificamente, no n.º 4 do referido artigo 102.º do CIRE, bem como a existência de norma legal em sentido diverso.
3 – A opção do administrador da insolvência de não cumprir um contrato-promessa, com eficácia meramente obrigacional, em que foi constituído sinal e o imóvel prometido vender foi entregue pelo insolvente ao promitente comprador, é lícita, pelo que não equivale a incumprimento definitivo daquele contrato nem, logicamente, determina a aplicação do regime estabelecido pelo artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.
4 – Uma sociedade comercial que outorgou, como promitente compradora, em contrato-promessa como o descrito em 3, tendo como objectivo utilizar o imóvel para alojamento dos seus sócios quando estes se deslocassem à zona do país onde o mesmo se situa, não pode ser considerada consumidora à luz dos AUJ n.ºs 4/2014 e 4/2019.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1406/18.4T8OLH-E.E1

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Nestes autos de reclamação de créditos que correm por apenso ao processo de insolvência em que foi declarada insolvente “(…) – Investimentos Turísticos do Algarve, S.A.”, foi proferido despacho saneador no qual se decidiu, entre o mais, reconhecer o crédito de “(…), Lda.”, no valor de € 474.092,65, como crédito comum.

“(…), Lda.”, interpôs recurso do despacho saneador, tendo formulado as seguintes conclusões:

a) Na impugnação deduzida a recorrente alegou factos que, em seu entender, seriam demonstrativos que, in casu, o cumprimento do contrato pela massa insolvente não seria um direito potestativo do AI, mas antes um dever vinculado.

b) Designadamente, e conforme decorre dos factos assentes, que na data da declaração de insolvência já as partes haviam cumprido todas as obrigações decorrentes do contrato-promessa celebrado, isto é, pagamento da totalidade do preço e entrega do imóvel, apenas se aguardando a marcação da escritura pública de compra e venda pela insolvente, que devia ter sido realizada 60 (sessenta) dias após a entrega do imóvel, que ocorreu em 31/08/2017 (ponto 9 e 10 dos factos assentes).

c) Razão pela qual, a recorrente pugnou, em primeira linha, pelo cumprimento do contrato, ou seja, realização da escritura pública de compra e venda, e só subsidiariamente pelo regime do sinal em dobro.

d) Conforme melhor se alcança do contrato-promessa junto aos autos e da matéria de facto dada como provada, à data da declaração de insolvência a recorrente já havia cumprido todas as obrigações que para si decorriam do contrato-promessa celebrado.

e) Apenas aguardava que a insolvente agendasse a escritura pública de compra e venda.

f) No caso em apreço não estavam preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 102º do CIRE para que ao administrador assistisse a faculdade potestativa de optar entre executar o contrato ou recusar o seu cumprimento.

g) Atento o cumprimento pela recorrente das suas obrigações, o administrador estava vinculado ao cumprimento do contrato, sendo abusiva a opção pela recusa do cumprimento.

h) O âmbito normativo do artigo 102º do CIRE circunscreve-se aos contratos bilaterais em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento por qualquer das partes, dependendo, assim, a sua aplicação da verificação de um requisito positivo e de um requisito negativo. O requisito positivo é a existência de um contrato bilateral celebrado entre o insolvente e um terceiro. O requisito negativo é o de, à data da declaração de insolvência, não ter ainda havido cumprimento total por parte de nenhum dos contraentes – o que, como vimos, in casu, não se verifica.

i) A contrario, nos contratos bilaterais totalmente cumpridos, pelo menos por uma das partes, à data da declaração de insolvência, não assiste ao administrador o direito potestativo de optar pela execução do contrato ou recusar o seu cumprimento.

j) Neste caso, o cumprimento do contrato é antes um dever vinculado, pois o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato, antes ficando ambas as partes vinculadas à outorga do contrato definitivo.

k) Deveria, portanto, o administrador de insolvência cumprir o contrato prometido em causa nos precisos termos contratados.

l) Tanto mais que, a opção pelo cumprimento, ou não, dos contratos-promessa de compra e venda deve, pois, ter em conta o custo/beneficio que cada uma dessas opções traz para a massa insolvente e respectivos credores.

m) Na situação em apreço, a opção pelo cumprimento do contrato promessa de compra e venda faz operar a redução do passivo da Massa Insolvente com a “eliminação”, pelo menos parcial, do direito de crédito do aqui recorrente.

n) Certo é que, o tribunal a quo simplesmente não se pronunciou sobre tais factos, apenas limitando a sua apreciação à questão do sinal em dobro curou e do direito de retenção, mas não do pedido formulado a título principal – cumprimento do contrato – como era sua obrigação (artigo 608.º do CPC).

o) Pelo que a decisão em crise terá que ser declarada nula nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por omissão de pronúncia.

p) Sendo revogada a mesma, e substituída por outra que conheça os fundamentos do direito invocado pela recorrente quanto ao cumprimento do contrato, nos termos acima expostos, ordenando, atento o pagamento integral do preço e a entrega do imóvel, a marcação da escritura pública de compra e venda.

Caso assim se não entenda, o que não se concede,

Quanto à decisão sobre a matéria de facto

q) Por falta de resposta à matéria da impugnação e por se afigurar com interesse para a decisão, o tribunal a quo também devia ter dado como assentes os seguintes factos alegados na impugnação:

- “A reclamante fez obras no bem imóvel de modo a torná-lo habitável”;

- “O imóvel é utilizado para fins habitacionais”;

- “O imóvel foi adquirido para uso próprio e não com o escopo de revenda;”

- Apesar da traditio, a escritura nunca foi marcada pela promitente vendedora, conforme contratado.”

r) É nesta parte da matéria de facto que se discorda da decisão em crise, pois tais factos deviam ter sido dados como provados.

Valor do crédito da reclamante

s) Sem renunciar ao sobredito quanto ao cumprimento do contrato-promessa, subsidiariamente a recorrente reclamou a quantia de € 240.000,00, correspondente ao dobro do sinal pago no âmbito do contrato-promessa de compra e venda celebrado.

t) Contrariamente ao entendimento vertido na decisão em crise, entende a recorrente, pelas razões acima aduzidas, que na data da declaração de insolvência da promitente compradora, ora recorrente, do ponto de vista substantivo, já havia cumprido a totalidade das obrigações que para si decorriam do contrato-promessa celebrado, apenas aguardava o agendamento da escritura para proceder à respectiva formalização do contrato definitivo.

u) Tendo havido entrega do imóvel e pagamento da totalidade do preço antes da declaração de insolvência, não tem aplicação o disposto nos artigos 102º e seguintes do CIRE.

v) O administrador não tinha o direito de recusar o cumprimento do contrato definitivo, estando, ao invés, vinculado ao seu cumprimento.

w) Essa recusa do administrador configura a prática de um acto ilícito e culposo.

x) Razão pela qual, in casu, terá lugar a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil.

y) Devendo ser reconhecido à recorrente o valor correspondente ao sinal em dobro, isto é, € 240.000,00.

z) Recusando o cumprimento do contrato num caso como o presente, em que a promitente compradora já havia pago a totalidade do preço, sempre se dirá que o administrador agiu em manifesto abuso de direito, quer na sua vertente objectiva quer na subjectiva.

aa) Dúvidas não restam de que a opção pela recusa do cumprimento do contrato, no alegado exercício do direito consagrado no artigo 102º do CIRE, teve o propósito exclusivo de prejudicar a recorrente, com o correlativo benefício ilegítimo para a massa insolvente, para além de que, num caso como o presente, essa opção do administrador excede manifestamente o uso normal desse direito que lhe é concedido pelo n.º 1 do artigo 102º do CIRE.

ab) Atendendo ao manifesto abuso de direito do administrador, sempre a recusa de cumprimento do contrato se traduziria num acto ilícito e culposo e, por essa via, subsumível ao regime do artigo 442º do CC.

Sem prescindir,

ac) Se é certo que já existia mora da promitente vendedora, não ficou provado que a recorrente já tivesse perdido o interesse no negócio (muito pelo contrário) ou que tivessem dado à promitente vendedora o derradeiro prazo razoável para o comprimento do contrato promessa (cfr. artº 808º, nº 1, do Cód. Civil).

ad) Por isso considerou o tribunal a quo que, à data da declaração de insolvência, ainda não tinha ocorrido o incumprimento definitivo do contrato-promessa.

ae) Entendeu que a situação é de possível aplicação da orientação fixada no AUJ nº 4/2014, desde que os restantes pressupostos estejam reunidos.

af) Neste caso, provou-se que:

- A recorrente celebrou um contrato promessa de eficácia meramente obrigacional (cfr. número 6 dos factos provados);

- Sinalizou o contrato promessa (cfr. número 8 dos factos provados, sendo que as quantias têm de ser consideradas como “sinal” por força do disposto no artigo 441.º do Código Civil);

- E também obteve a traditio da coisa (a fracção autónoma) – cfr. número 10 dos factos provados.

ag) Concordando e reforçando esta fundamentação, acrescentamos que o aludido contrato mantinha-se em mora de cumprimento por parte da insolvente, conforme alegado na impugnação e que deverá ser dado como provado, sendo pacífico que não tinha ocorrido antes da declaração de insolvência extinção do contrato por resolução contratual – artigos 432º a 436º do Código Civil.

ah) Estamos perante um contrato promessa com mera eficácia obrigacional, em que a recorrente tinha obtido a tradição do bem imóvel prometido vender pela insolvente em data anterior à sentença declarativa da insolvência da promitente vendedora.

ai) Por força do disposto no artigo 441.º do Código Civil, as quantias entregues pela recorrente devem ser consideradas como “sinal”.

aj) E havendo incumprimento imputável à promitente vendedora, neste contrato, de efeitos meramente obrigacionais mas com traditio da coisa prometida vender, coloca-se a questão de se saber se tem aplicação ao caso o disposto no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.

ak) Não se ignora que nesta matéria a jurisprudência do STJ se tem dividido:

- Em sentido da não aplicação do artº 442º, nº 2, do Cód. Civil, por exemplo o acórdão do STJ de 21-06-2016, in www.dgsi.pt, onde se afirma que “Não é, assim, aplicável ao caso vertente de um contrato promessa com eficácia meramente obrigacional no contexto da insolvência o artigo 442.º do Código Civil. E o próprio artigo 755.º, n.º 1, alínea f), que para ele remete terá que ser interpretado com cautela tendo em conta a radical diferença de situações”;

- Em sentido da aplicação, por exemplo, o acórdão do STJ de 17/11/2015, in www.dgsi.pt, onde se pode ler “mesmo em caso de recusa pelo administrador da insolvência em cumprir o contrato-promessa de compra e venda, só no caso do promitente-comprador tradiciário ser consumidor é que goza do direito de retenção e tem direito a receber o dobro do sinal prestado ou aumento do valor da coisa – nºs 2 e 3 do art. 442º do Código Civil”.

al) O STJ, no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014 (supra referido), vem, na fundamentação, indicar que “Começaremos por referir que a norma do artigo 102º do CIRE acima transcrito se aplica, como se vê do próprio texto, “sem prejuízo do estatuído nos artigos seguintes”, conferindo de certa forma autonomia ao estatuído no artigo 106º; e aqui a lei é expressa ao referir que “no caso de insolvência do promitente vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador; (...) a omissão da regulamentação do contrato promessa com efeito obrigacional e tradição do objeto, ficará o nº 2 do artigo 106º aplicável apenas ao contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que não tenha havido aquela tradição ao promitente-comprador. Só aqui, e a menos que uma das partes tenha cumprido integralmente a sua obrigação, poderá o administrador optar por cumprir ou recusar a execução do contrato”.

am) E prossegue o mesmo acórdão, mais à frente “em suma, concluímos que não sendo afetado o contrato promessa, mantêm-se os efeitos do incumprimento a que se reporta o artº 442º, nº 2, do Código Civil”.

an) Este promitente comprador a que alude o acórdão de fixação de jurisprudência é apenas o promitente comprador que seja consumidor, como se refere no dispositivo do mesmo acórdão.

ao) Nesse mesmo acórdão de uniformização, considera-se que o legislador, no artº 106º, nº 1, do CIRE, estabeleceu uma previsão para a situação do contrato-promessa, com eficácia real, com tradição da coisa. Mas não se referiu nunca à situação concreta do contrato promessa com efeitos meramente obrigacionais, com tradição da coisa, existindo aqui uma lacuna legal.

ap) Existe aqui, segundo o acórdão, uma lacuna legal, recorrendo-se à analogia com o artº 104º, nº 1, do CIRE, que dispõe que “no contrato de compra e venda com reserva de propriedade em que o vendedor seja o insolvente, a outra parte poderá exigir o cumprimento do contrato se a coisa já lhe tiver sido entregue na data da declaração de insolvência”.

aq) Esta mesma disciplina será então de aplicar ao caso do contrato-promessa de compra e venda, sem eficácia real mas com tradição da coisa, não tendo, nesse caso, o administrador de insolvência o direito de, licitamente, se recusar ao cumprimento do contrato promessa.

ar) E por isso se afirma no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 que “tal omissão é ultrapassada fazendo apelo ao “lugar paralelo” resultante da conjugação dos arts. 106º, nº 2 e 104º, nº 1, do CIRE (respeitante à venda com reserva de propriedade) aplicável no caso em análise, já que as razões determinantes do que ali vem exposto quanto ao que lá se regula (compra e venda a prestações) são idênticas às que aqui estão em causa. Subjacente a esta tomada de posição está a forte expectativa que a traditio criou no “promitente-comprador” quanto à solidez do vínculo. Cimentada esta confiança, e “corporizada” destarte a posse, existe, na prática, do lado do adquirente um verdadeiro animus de agir como possuidor, não já nomine alieno, mas antes em nome próprio”.

as) É verdade que, como aliás é explícito o acórdão do STJ de 21/06/2016, supra referido, a fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência não faz parte do segmento uniformizador.

at) Assumindo-se como assente a jurisprudência do acórdão uniformizador de que o promitente comprador com traditio “goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil” e – uma vez que o direito de retenção, previsto no artº 755º, nº 1, al. f), do Cód. Civil, pressupõe, tal como expressamente é afirmado na lei, o “não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º” – com todo o respeito, não vemos como possível afastar a aplicação do artº 442º do Cód. Civil, como o faz o acórdão do STJ de 21/06/2016, supra referido. Ou então estaremos perante uma total incoerência jurídica.

au) Por uma questão de coerência jurídica, aqui se defende a fundamentação presente no acórdão uniformizador de jurisprudência 4/2014 e no acórdão do STJ de 17/11/2015, supra referidos.

Caso assim se não entenda,

av) Pese embora a manutenção do interesse da promitente compradora na celebração do contrato prometido, em face da matéria de facto que vem provada, foi fixado à insolvente o prazo de 60 dias, contado da entrega do imóvel, que ocorreu em 31/08/2017 (números 9 e 10 dos factos provados), para a realização da escritura pública mencionada, prazo que não foi cumprido pela insolvente, sendo a insolvência decretada em 18/12/2018, tal comportamento, do ponto de vista da promitente vendedora, corresponde, a nosso ver, a uma tácita declaração antecipada de não cumprir nos termos acordados, equivalente ao incumprimento definitivo da insolvente. O que resultou posteriormente confirmado pelo administrador de insolvência, ao optar pelo não cumprimento do contrato. Conferindo, nessa conformidade, à recorrente o direito de exigir o sinal em dobro, como reclamou.

aw) Não podemos deixar de considerar o incumprimento definitivo por parte da insolvente como culposo.

ax) Sem renunciar ao sobredito quanto a especificidade do caso em apreço (pagamento da totalidade do preço e traditio), como também se refere no mesmo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, “Não se aduza ainda, contra o entendimento exposto, que não há imputação de culpa a fazer em caso de insolvência porque com a declaração desta última, a relação jurídica existente, então reconfigurada, não a poderá comportar, já que ao insolvente se substitui e passa a figurar em juízo apenas a massa falida e o administrador; é para nós claro o cariz redutor deste entendimento; a insolvência não surge do nada, radicando antes e à partida no comportamento de uma entidade que se mostrou não ter cumprido as suas obrigações. Nestes casos já foi decidido e bem, neste Supremo Tribunal de Justiça, que se verifica uma imputabilidade reflexa considerando o comportamento da insolvente na origem do processo falimentar; acresce que, seria sempre a esta última que cumpriria afastar a culpa, que se presume, em matéria de responsabilidade civil contratual – artigo 799º, nº 1, do Código Civil”.

ay) E não foi afastada a culpa da promitente vendedora incumpridora, sendo que esta culpa se presumia.

az) É a insolvente devedora do valor do sinal prestado, em dobro (cfr. artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil).

ba) É, assim, aplicável ao caso o disposto no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.

bb) Provou-se que a recorrente entregou, a título de sinal, o valor de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros) – cfr. número 8 dos factos provados.

bc) Por força do disposto no artº 442º, nº 2, do Cód. Civil, terá assim a recorrente direito ao sinal prestado em dobro, ou seja, ao valor de € 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros).

bd) Para além dos arestos já referidos, pronunciou-se também o Acórdão do STJ, de 13.11.2014, www.dgsi.pt, cujo sumário (em parte) se transcreve “II - A recusa de cumprimento do contrato em curso, por parte do administrador da insolvência, legitima que se endosse ao próprio insolvente, em termos de imputabilidade reflexa, o incumprimento definitivo daquele contrato; III - O art. 106.º, n.º 2, do CIRE, reclama uma interpretação restritiva, de molde a considerar-se que o mesmo se aplica apenas às promessas não sinalizadas, devendo aplicar-se às demais – promessas sinalizadas – a disciplina civilista do art. 442.º, n.º 2”.

Direito de retenção

be) A decisão recorrida julgou não reconhecido o direito de retenção relativamente ao imóvel identificado no número 6 dos factos assentes, sustentado no AUJ n.º 4/2014, de 20-03 (publicado no DR 1ª série, de 19-05-2014) e por entender que a recorrente, enquanto credora, não se integra no conceito de consumidor.

bf) Sem prejuízo do que acima se alegou quanto à manutenção do interesse da recorrente na celebração do contrato prometido, a recorrente defende a inaplicabilidade do decidido no AUJ n.º 4/2014 à situação dos autos, por o incumprimento do contrato promessa celebrado com a sociedade declarada insolvente ser anterior à declaração de insolvência, conforme supra se referiu, não decorrendo, pois, de acto do administrador da insolvência, que apenas o confirmou.

bg) Em face da matéria de facto que vem provada e dos documentos juntos aos autos, foi fixado à insolvente o prazo de 60 dias, contado da entrega do imóvel, que ocorreu em 31/08/2017 (números 9 e 10 dos factos provados), para a realização da escritura pública mencionada, prazo que não foi cumprido pela insolvente.

bh) Tendo a insolvência sido decretada em 18/12/2018, tal comportamento corresponde, a nosso ver e como já se referiu, a uma tácita declaração antecipada de não cumprimento do contrato promessa nos termos acordados, equivalente ao incumprimento definitivo da insolvente.

bi) O que resultou posteriormente confirmado pelo administrador de insolvência, ao optar pelo não cumprimento do contrato.

bj) O incumprimento definitivo do contrato-promessa em causa ocorreu em data muito anterior à declaração da insolvência e, como tal, não há que fazer observar, no caso, a doutrina fixada pelo AUJ n.º 4/2014, mostrando-se, por isso, irrelevante para o reconhecimento à recorrente do direito de retenção a circunstância da mesma não poder ser considerada consumidora ao intervir como promitente compradora nos negócios que firmou com a sociedade declarada insolvente.

bk) Não sendo de observar a jurisprudência fixada no AUJ n.º 4/2014, no caso sob apreciação, há que o submeter ao regime geral ínsito no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, que não faz depender o direito de retenção atribuído ao beneficiário da promessa de transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel da circunstância de o mesmo não ser um consumidor.

bl) Este direito de retenção, já existente e sendo garantia de um crédito não subordinado, não é afectado pela declaração de insolvência, como decorre do artigo 97.º do CIRE.

bm) Consequentemente, mostrando-se verificados, no caso, os requisitos previstos no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, há que reconhecer à recorrente o direito de retenção sobre o imóvel identificado no número 6 dos factos assentes.

Sem prescindir,

bn) Segundo o tribunal a quo, nesta matéria há que considerar a interpretação que foi dada ao artigo 755º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão n.º 4/2014, que uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º, n.1, alínea f), do Código Civil.” Para resolver o diferendo suscitado pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2014, quanto ao conceito de consumidor, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu novo Acórdão de Fixação de Jurisprudência, n.º 4/2019, publicado no DR 141, série I, de 25.7.2019, com o seguinte teor: “na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para efeitos do disposto no Acórdão nº 4 de 2014 do Supremo Tribunal de justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa.”

bo) Refere-se, ainda, na decisão em crise, que o Ac. do STJ de 17 de Outubro de 2019, processo 1012/15, a propósito da possibilidade de uma pessoa coletiva ser considerada consumidor, pronunciou-se, ao afirmar que “apenas as pessoas singulares poderão ser havidas, pelo menos em princípio, como consumidores, nos termos e para os efeitos em presença.”

bp) Conclui dizendo que as “pessoas coletivas adquirirem os bens ou os serviços no âmbito da sua capacidade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, atividades ou objetos profissionais. Por isso, muito dificilmente poderão ser consideradas consumidores, para os efeitos de beneficiarem da proteção legal que a estes é destinada e que, por regra, visa defender o consumidor como parte mais fraca da relação contratual.”

bq) Como a própria terminologia utilizada nos referidos arestos faz indiciar, o regime regra acabado de citar, de que em princípio apenas as pessoas singulares poderão ser consideradas consumidores ou de que muito dificilmente as pessoas coletivas poderão ser consideradas consumidoras, comporta excepções que deverão ser encontradas casuisticamente e segundo as especificidades de cada caso.

br) Importa, assim, para apreciação desta questão que se analisem os factos que, nesta matéria, poderão comportar uma excepção à referida “regra geral”.

bs) O tribunal a quo deu como provado que:

- “A reclamante pagou à insolvente a totalidade do preço acordado (...)”;

- “A 31 de Agosto de 2017, a insolvente entregou à reclamante a fração prometida vender;”

- Desde essa data a reclamante mobilou e passou a utilizar a referida fração para alojamento dos seus sócios quando se deslocam ao Algarve.”

bt) Deverão, ainda, ser dados como provados, atento o que ficou referido quanto à impugnação da matéria de facto, os seguintes factos:

- “O reclamante fez obras no bem imóvel de modo a torná-lo habitável;”

- “O imóvel é utilizado para fins habitacionais;”

- “O imóvel foi adquirido para uso próprio e não com o escopo de revenda.”

bu) Conforme decorre do próprio objecto social da insolvente, promitente vendedora, é esta, e não a recorrente, quem se dedicava à compra, e venda de bens imobiliários.

bv) A factualidade dada como assente é quanto basta para que se considere a recorrente como consumidora no contrato promessa celebrado.

bw) É, assim, evidente que a recorrente, promitente-compradora destinou o imóvel a uso particular (habitação dos seus sócios), no sentido de não o comprar para revenda nem o afectar a uma actividade profissional ou lucrativa.

bx) Perante a factualidade provada e a que assim deverá ser considerada (desde Setembro de 2017 os sócios da recorrente habitam a referida fracção), considerando o uso que a recorrente deu ao imóvel, resulta demonstrada a sua qualidade de consumidora e, consequentemente, há que reconhecer à mesma o direito de retenção sobre o imóvel.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso de apelação merecer provimento e a douta decisão recorrida ser declarada nula, devendo Vossas Excelências, reapreciando a questão sub judice e subsumindo-a nos comandos normativos aplicáveis, revogar a decisão recorrida, e ordenar a sua substituição por outra que reconheça o direito da recorrente ao cumprimento do contrato celebrado. Caso assim se não entenda, o que não se concede, deve o tribunal ad quem declarar verificada a existência de incumprimento definitivo imputável à promitente vendedora e, em conseguinte, deve o crédito a recorrente ser reconhecido no montante do dobro do sinal prestado, garantido pelo direito de retenção e graduado em conformidade, assim se fazendo justiça.

O Estado, representado pelo Ministério Público, contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido.


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As questões a resolver são as seguintes:

1 – Nulidade da decisão recorrida;

2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

3 – Direito da recorrente à restituição do sinal em dobro;

4 – Direito de retenção.


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Na parte da decisão recorrida respeitante à recorrente, foram julgados provados os seguintes factos:

1. A reclamante dedica-se à actividade de acabamentos de edifícios, nomeadamente estucagem, montagem de trabalhos de carpintaria e caixilharia, incluindo a fixação de tectos falsos e divisórias, revestimento de pavimentos e paredes e pintura;

2. No âmbito dessa actividade, forneceu diversos materiais e prestou diversos serviços à insolvente, que importaram no valor total de € 239.001,69;

3. A insolvente não pagou o referido valor na data de vencimento das facturas emitidas pela reclamante nem posteriormente;

4. Desde a data de vencimento das faturas os montantes pelas mesmas titulado venceram juros no valor total de € 24.820,21;

5. A insolvente deve ainda à reclamante o valor de € 90.270,75, correspondente ao valor que reteve a título de garantia dos trabalhos a fazer pela reclamante, sendo certo que tais trabalhos já estão concluídos;

6. A 22 de Junho de 2017 a insolvente prometeu vender à reclamante, pelo preço de € 120.000,00, a fracção autónoma correspondente ao primeiro andar, T1, do prédio sito na (…), freguesia de Alvor, concelho de Portimão, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º (…);

7. Essa fracção corresponde à fracção G, do referido prédio, que se encontra apreendida sob a verba n.º 37-G, do auto de apreensão de bens imóveis;

8. A reclamante pagou à insolvente a totalidade do preço acordado no valor de € 120.000,00, da seguinte forma: € 40.000,00 na data da assinatura do contrato promessa, e € 80.000,00, através da compensação na conta corrente existente entre ambas pelos serviços que a insolvente contratou com a reclamante;

9. Ficou previsto no contrato-promessa que a escritura de compra e venda deveria ser outorgada no prazo de sessenta dias após a entrega do imóvel à promitente compradora;

10. A 31 de Agosto de 2017, a insolvente entregou à reclamante a fracção prometida vender;

11. Desde essa data a reclamante mobilou e passou a utilizar a referida fracção para alojamento dos seus sócios quando se deslocam ao Algarve.


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1 – Nulidade da decisão recorrida:

A recorrente sustenta que a decisão recorrida é nula, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC, porque não se pronunciou sobre o pedido principal, de condenação da massa insolvente no cumprimento do contrato-promessa.

Importa começar por lembrar que estamos em sede de reclamação de créditos em processo de insolvência, cujas características essenciais resultam das normas que em seguida citaremos.

Nos termos do artigo 128.º, n.º 1, do CIRE, dentro do prazo para o efeito fixado na sentença declaratória da insolvência, os credores da insolvência devem reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual procedam às indicações previstas nas diversas alíneas do preceito. Esse requerimento é endereçado ao administrador da insolvência (n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo).

O artigo 129.º, n.º 1, do CIRE estabelece que, nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, ambas por ordem alfabética, relativamente, não só aos que tenham deduzido reclamação, como àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento. Tais listas devem conter as especificações previstas nos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo.

O artigo 130.º, n.º 1, do CIRE, dispõe que, nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista.

Havendo impugnações, é admitida resposta nos termos previstos no artigo 131.º do CIRE.

Cumprida a tramitação prevista nos artigos 133.º a 135.º do CIRE, o tribunal, nos termos do artigo 136.º, n.º 1, do mesmo código, declara verificados, com valor de sentença, os créditos incluídos na respectiva lista e não impugnados, salvo o caso de erro manifesto, e pode designar dia e hora para uma tentativa de conciliação a realizar dentro dos 10 dias seguintes, para a qual são notificados, a fim de comparecerem pessoalmente ou de se fazerem representar por procuradores com poderes especiais para transigir, todos os que tenham apresentado impugnações e respostas, a comissão de credores e o administrador da insolvência. Na tentativa de conciliação, são considerados como reconhecidos os créditos que mereçam a aprovação de todos os presentes e nos precisos termos em que o forem (n.º 2). Concluída a tentativa de conciliação, o processo é imediatamente concluso ao juiz, para que seja proferido despacho, nos termos previstos nos artigos 595.º e 596.º do CPC (n.º 3). Consideram-se ainda reconhecidos os demais créditos que possam sê-lo face aos elementos de prova contidos nos autos (n.º 5). O despacho saneador tem, quanto aos créditos reconhecidos, a forma e o valor de sentença, que os declara verificados e os gradua em harmonia com as disposições legais (n.º 6). Se a verificação de alguns créditos necessitar de produção de prova, a graduação de todos os créditos tem lugar na sentença final, a menos que o juiz considere que as impugnações sob apreciação, dado o seu montante ou natureza, não impedem a prolação imediata, observando-se o disposto no n.º 1 do artigo 180.º (n.º 7). Caso o juiz entenda que não se mostra adequado realizar a tentativa de conciliação, profere de imediato o despacho previsto no n.º 3 (n.º 8).

Havendo lugar a audiência de julgamento e finda a mesma, o tribunal profere sentença de verificação e graduação dos créditos, nos termos do artigo 140.º, n.º 1, do CIRE.

Nos termos do artigo 132.º do CIRE, as listas de créditos reconhecidos e não reconhecidos pelo administrador da insolvência, as impugnações e as respostas são autuadas num único apenso.

Perante o regime processual descrito, é evidente que o apenso de reclamação de créditos em insolvência não constitui o meio processual adequado para um credor deduzir um pedido de condenação da massa insolvente no cumprimento de determinado contrato. Visa-se aí, exclusivamente, reconhecer créditos e proceder à sua graduação. Portanto, se a recorrente tivesse deduzido pedido de condenação no cumprimento do contrato-promessa pela massa insolvente nos presentes autos, teria ocorrido erro na forma de processo, determinante de nulidade processual nos termos do artigo 193.º do CPC.

Porém, o recorrente não deduziu tal pedido. Na parte conclusiva da sua impugnação, a ora recorrente escreveu: “Nestes termos e nos melhores de direito, requer a V. Exa. se digne considerar a presente impugnação provada e procedente e, em consequência, o crédito da impugnante aqui reclamado de € 594.092,65 (quinhentos e noventa e quatro mil, noventa e dois euros, sessenta e cinco cêntimos), seja considerado reconhecido, justificado, verificado e graduado no lugar que lhe competir.” Coerentemente, a recorrente indicou, como valor da causa, a referida quantia de € 594.092,65 (cfr., a propósito, o disposto no artigo 297.º, n.º 3, do CPC).

O pedido deduzido pela recorrente foi, pois, exclusivamente o de reconhecimento e graduação do crédito que invocou, pedido esse conhecido na decisão recorrida. Logo, esta última não padece da nulidade arguida pela recorrente.

2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

A recorrente pretende que sejam aditados os seguintes factos à matéria de facto provada:

a) A reclamante fez obras no bem imóvel de modo a torná-lo habitável;

b) O imóvel é utilizado para fins habitacionais;

c) O imóvel foi adquirido para uso próprio e não com o escopo de revenda;

d) Apesar da traditio, a escritura nunca foi marcada pela promitente vendedora, conforme contratado.

Tal como a recorrente afirma, os factos referidos em a), b) e d) foram por si alegados, nos artigos 21.º e 31.º da sua impugnação, e não foram contraditados, pelo que, nos termos dos artigos 131.º, n.º 3, do CIRE, e 574.º, n.º 2, do CPC, consideram-se admitidos por acordo.

Já o facto referido em c) não corresponde exactamente à alegação constante do artigo 33.º da impugnação, pois a recorrente nunca pretendeu ter adquirido efectivamente o imóvel. A recorrente alegou, sim, que o imóvel que prometeu comprar e que a insolvente lhe prometeu vender se destinava a uso próprio e não a revenda. Como essa alegação também não foi contraditada, considera-se admitida por acordo, nos termos dos citados artigos 131.º, n.º 3, do CIRE, e 574.º, n.º 2, do CPC.

Apesar de, como adiante demonstraremos, não alterarem o sentido da decisão, os factos em questão não podem, à partida, ser considerados inúteis, pois fornecem uma imagem mais completa da situação dos autos e permitem uma análise da mesma com maior detalhe. Razão suficiente para a sua inclusão no elenco dos factos provados.

Assim, determina-se a inclusão, no elenco dos factos provados relativos à situação da recorrente, dos seguintes:

12 – A reclamante fez obras no imóvel de modo a torná-lo habitável;

13 – O imóvel é utilizado para fins habitacionais;

14 – A reclamante pretendeu adquirir o imóvel para uso próprio e não com o escopo de revenda;

15 – Apesar da entrega referida em 10, a escritura nunca foi marcada pela promitente vendedora, conforme contratado.

3 – Direito da recorrente à restituição do sinal em dobro:

A recorrente pretende que seja reconhecido que ela é titular de um crédito no montante de € 240.000,00, correspondente ao dobro do sinal por si constituído no âmbito do contrato-promessa de compra e venda celebrado com a insolvente, em vez de um crédito de € 120.000,00, correspondente à restituição do mesmo sinal em singelo. Invoca diversos argumentos com vista a fundamentar tal pretensão, que passamos a analisar.

Não é exacto que, na data da declaração de insolvência da promitente vendedora, a recorrente, na qualidade de promitente compradora, já tivesse cumprido a totalidade das obrigações que para si decorriam do contrato-promessa. É certo que ela já constituíra sinal de montante equivalente à totalidade do preço estipulado e que a insolvente já lhe entregara o imóvel prometido vender. Não obstante, estavam por cumprir as obrigações principais que resultavam do contrato-promessa para ambas as partes, que eram a emissão das declarações negociais necessárias à celebração do contrato de compra e venda prometido. O contrato-promessa era, pois, nesta perspectiva, um negócio em curso à data da declaração da insolvência, nos termos do artigo 102.º, n.º 1, do CIRE. Não era, seguramente, um contrato já extinto por cumprimento, como, aliás, a própria recorrente reconhece noutros pontos das suas alegações.

Também não é exacto que o contrato-promessa se encontrasse extinto em consequência de incumprimento definitivo. A recorrente ensaia uma argumentação nesse sentido nas conclusões av) a bd), embora se contradiga na conclusão ag).

Ao contrário daquilo que a recorrente sugere na conclusão av), não foi fixado, à insolvente, um prazo de 60 dias para a celebração do contrato prometido, contado da data da entrega do imóvel (31.08.2017), para o efeito previsto no artigo 808.º, n.º 1, do CC. Esses 60 dias a contar da data da entrega do imóvel à recorrente constituem o prazo estipulado para o cumprimento do contrato-promessa, através da celebração do contrato prometido, findo o qual, por não ter procedido à marcação da escritura pública para o efeito necessária, a insolvente, promitente vendedora, entrou em mora, nos termos dos artigos 804.º, n.º 2, e 805.º, n.º 2, al. a), do CC. Essa mora nunca foi convertida em incumprimento definitivo, nomeadamente através da interpelação admonitória prevista no referido artigo 808.º, n.º 1, do CC. Consequentemente, o contrato-promessa não podia ser, como efectivamente não foi, resolvido pela recorrente, pelo que, também sob esta perspectiva, estamos perante um negócio em curso à data da declaração da insolvência, nos termos do artigo 102.º, n.º 1, do CIRE.

Na referida conclusão av), a recorrente afirma, embora sem fundamentação jurídica, que o incumprimento do prazo estipulado para a celebração do contrato prometido, aliado à declaração de insolvência em 18.12.2018, corresponde a “uma tácita declaração antecipada de não cumprir nos termos acordados, equivalente ao incumprimento definitivo da insolvente”. É evidente a falta de razão da recorrente. Como vimos, o incumprimento, pela promitente vendedora, do prazo de cumprimento do contrato-promessa, apenas a fez incorrer em mora. A ulterior prolação da sentença que declarou insolvente a promitente vendedora não constitui, sequer, um acto desta, mas de um tribunal. Não há, pois, motivo para concluir no sentido da existência de “uma tácita declaração antecipada de não cumprir nos termos acordados, equivalente ao incumprimento definitivo da insolvente”.

Ainda na conclusão av), a recorrente invoca a opção do administrador da insolvência de não cumprir o contrato-promessa para concluir que se verificou incumprimento definitivo. Adiante veremos que tal opção não tem este último efeito.

Sintetizando aquilo que até aqui afirmámos, à data da declaração de insolvência da promitente vendedora, o contrato-promessa não se encontrava extinto, nem por cumprimento, nem por resolução fundada em incumprimento definitivo, nem devido a uma tácita declaração antecipada de não querer cumprir. Ao invés, o contrato-promessa estava em vigor, encontrando-se a promitente vendedora insolvente em mora. Consequentemente, repetimos, estamos perante um negócio em curso à data da declaração da insolvência, nos termos do artigo 102.º, n.º 1, do CIRE.

O artigo 102.º, n.º 1, do CIRE, estabelece que, sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento. Foi isto que aconteceu ao contrato-promessa celebrado entre a recorrente e a insolvente, pelas razões anteriormente referidas.

O administrador da insolvência optou pelo não cumprimento do contrato-promessa, como se infere da inclusão do crédito da recorrente à restituição do sinal em singelo na lista de créditos reconhecidos. A recorrente sustenta que esta actuação do administrador da insolvência é ilícita e culposa, gerando uma situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa e o consequente dever de restituição do sinal em dobro nos termos previstos no artigo 442.º, n.º 2, do CC.

A recorrente não tem razão. Decorre do artigo 102.º do CIRE que a opção do administrador da insolvência pelo não cumprimento de um negócio em curso é livre, ressalvando-se apenas as hipóteses em que a actuação daquele configure um abuso de direito nos termos previstos genericamente no artigo 334.º do CC ou, especificamente, no n.º 4 do referido artigo 102.º do CIRE, bem como a existência de norma legal em sentido diverso, como o artigo 106.º, n.º 1, do CIRE, nos termos do qual, no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador. Aliás, esta última norma, interpretada a contrario sensu, corrobora a conclusão de que o administrador da insolvência pode licitamente recusar o cumprimento de um contrato-promessa que não se enquadre na sua previsão, como é o caso daquele que insolvente e recorrente celebraram, que, apesar da entrega do imóvel a esta última e da constituição de sinal, ainda que correspondente à totalidade do preço estipulado para o contrato prometido, tem eficácia meramente obrigacional.

Escreve, a propósito desta problemática, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO[1]: “Falhando algum dos pressupostos da aplicação do n.º 1 do art. 106.º (insolvência do promitente-vendedor, tradição, eficácia real), valerá o princípio geral previsto no artigo 102.º. Assim, nas promessas reais sem tradição, nas promessas meramente obrigacionais (com ou sem tradição) e nas promessas em que o insolvente é o promitente-adquirente (com ou sem eficácia real, com ou sem tradição), o administrador da insolvência pode optar entre a recusa e o cumprimento (ou seja, a celebração do contrato definitivo). Se o administrador da insolvência optar pela recusa, o art. 106.º, n.º 2, remete expressamente para o art. 104.º, n.º 5, a disciplina dos efeitos dessa recusa.”

O princípio geral previsto no artigo 102.º do CIRE é, como vimos, o da liberdade de opção do administrador da insolvência pela execução ou pela recusa do cumprimento dos negócios em curso, tendo em conta o interesse da massa insolvente. Carece, pois, de fundamento a afirmação da recorrente segundo a qual o administrador da insolvência não tinha o direito de recusar o cumprimento do contrato-promessa dos autos e estava, ao invés, vinculado a esse cumprimento, através da celebração do contrato prometido. Citamos, sobre este ponto, GISELA CÉSAR[2]: “É pacífico que, assistindo ao administrador da insolvência o direito de executar ou não executar o contrato-promessa, a opção por si tomada corresponde à prática de um acto lícito, ao qual não pode, em regra, imputar-se qualquer juízo de censura, qualquer culpabilidade – para o incumprimento ser ilícito terá de, previamente, haver um dever de cumprir.” Segundo a mesma autora, “(…) o exercício desta faculdade de escolha pelo administrador da insolvência é perfeitamente lícito e consentâneo com as finalidades do processo de insolvência. Não há, por isso, lugar a responsabilidade civil da massa insolvente pelo não cumprimento. (…) O contraente in bonis não deixa, evidentemente, de ter direito a uma indemnização, mas em termos muito restritos (…).”[3]

Resulta do que temos vindo a expor que a opção do administrador da insolvência de não cumprir, em nome da massa insolvente, o contrato-promessa que a insolvente celebrou com a recorrente, não é um acto ilícito, pelo que nem sequer faz sentido equacionar se o mesmo é culposo. Consequentemente, tal recusa não gera uma situação de incumprimento definitivo da promessa de venda do imóvel, a qual pressupõe a prática de um acto ilícito e culposo do devedor. Daí que não seja aplicável o regime da restituição do sinal em dobro estabelecido pelo artigo 442.º, n.º 2, do CC.

A recorrente também fundamenta a sua pretensão de aplicação do regime da restituição do sinal em dobro estabelecido pelo artigo 442.º, n.º 2, do CC, mediante a invocação de abuso de direito, por parte do administrador da insolvência, ao recusar o cumprimento do contrato-promessa dos autos. Isto, segundo a recorrente, porque ela já havia pago a totalidade do preço acordado, tendo aquela recusa o propósito exclusivo de a prejudicar, com o correlativo benefício ilegítimo para a massa insolvente. Conclui a recorrente que a referida recusa excede manifestamente o uso normal do direito conferido pelo artigo 102.º, n.º 1, do CIRE, pelo que sempre se traduziria num acto ilícito e culposo, subsumível ao regime do artigo 442.º do CC.

A matéria de facto provada, mesmo ampliada nos termos acima determinados, não sustenta esta conclusão. A circunstância de o sinal entregue corresponder à totalidade do preço estipulado para o contrato prometido é, para o efeito, irrelevante. A própria recorrente não indica qualquer fundamento juridicamente aceitável para uma diferença de tratamento entre situações como a descrita e aquelas em que é constituído sinal de valor inferior ao preço estipulado para o contrato prometido. A alegação de que a recusa do administrador da insolvência em cumprir o contrato-promessa teve o exclusivo propósito de a prejudicar carece de fundamento factual. No que concerne ao benefício que da recusa de cumprimento tenha resultado para a massa insolvente, inexiste fundamento factual para o julgar ilegítimo. É, até, natural e desejável que, da recusa de cumprimento, tenha resultado benefício para a massa insolvente, pois isso significará que o administrador da insolvência cumpriu os seus deveres.

Refira-se, a propósito, que, nas conclusões l) e m), a recorrente parece criticar a recusa de cumprimento do contrato-promessa sob a perspectiva do interesse da massa insolvente, contradizendo a sua própria afirmação de que aquela recusa proporcionou um benefício ilegítimo a esta última. Seja como for, se não tiver havido benefício para a massa insolvente, não é esta a sede própria para apreciar a diligência do administrador da insolvência no cumprimento das suas funções. Se tal benefício tiver ocorrido, não há fundamento para o considerar ilegítimo.

Inexiste fundamento factual para considerar que a recusa de cumprimento do contrato-promessa excede manifestamente o uso normal do direito de opção conferido pelo artigo 102.º, n.º 1, do CIRE. A recorrente não indica esse fundamento e a matéria de facto provada não sustenta tal conclusão.

Em abono da sua pretensão de aplicação do regime da restituição do sinal em dobro estabelecido pelo artigo 442.º, n.º 2, do CC, a recorrente invoca ainda vários trechos da fundamentação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014. Resulta da exposição anterior que não acompanhamos inteiramente essa fundamentação, pelas razões que ali indicámos e não iremos repetir. Saliente-se que apenas no segmento uniformizador da jurisprudência o acórdão é vinculativo. É o seguinte o teor desse segmento: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.” Não é, pois, abrangida a questão, que temos vindo a analisar, de saber se, num contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, sinalizado e com tradição da coisa, o promitente comprador tem direito à restituição do dobro do sinal, nos termos estabelecidos no artigo 442.º, n.º 2, do CC, na hipótese de o promitente vendedor ser declarado insolvente e o administrador da insolvência optar pelo não cumprimento do contrato. O segmento uniformizador do referido acórdão apenas reconhece um direito de retenção, nos termos do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC, ao promitente comprador que seja consumidor, sem especificar os exactos contornos do direito de crédito por ele garantido[4]. Como bem se notou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.09.2018 (proc. n.º 1210/11.0TYVNG-D.P1.S1; relator: JOSÉ RAINHO), “O AUJ n.º 4/2014 não decidiu, pois que não era essa a questão fundamental de direito a que foi chamado a pronunciar-se, sobre a questão de saber se, recusada a celebração do contrato-promessa pelo administrador da insolvência, o credor promissário tem direito a ver reconhecido na insolvência o dobro do que prestou a título de sinal.”

Concluindo este ponto, não procede qualquer dos argumentos invocados pela recorrente no sentido de que ela tem direito à restituição do sinal em dobro, nos termos estabelecidos no artigo 442.º, n.º 2, do CC. Em vez disso, como procurámos demonstrar, a recorrente apenas tem direito à restituição do sinal em singelo, sendo esse o direito de crédito que deve ser reconhecido neste apenso. Foi isso que o tribunal a quo fez, pelo que decidiu acertadamente.

4 – Direito de retenção:

Nas conclusões bf) a bm), a recorrente retoma a argumentação que desenvolveu nas conclusões av) a bd), agora com vista a fundamentar a tese de que o seu crédito decorrente da inexecução do contrato-promessa se encontra garantido por direito de retenção. Afirma a recorrente que o AUJ n.º 4/2014 não é aplicável à situação dos autos “por o incumprimento do contrato-promessa celebrado com a sociedade declarada insolvente ser anterior à declaração de insolvência”.

Já demonstrámos a improcedência de tal argumentação. Nem a recorrente fixou, à promitente vendedora, qualquer prazo nos termos do artigo 808.º, n.º 1, do CC, nem aquela praticou qualquer acto que que possa ser considerado como “uma tácita declaração antecipada de não cumprimento do contrato-promessa nos termos acordados”, pelo que inexiste fundamento para concluir que se verificou um incumprimento definitivo daquele contrato. Diversamente, como acima concluímos, à data da declaração de insolvência, verificava-se uma situação de mora da insolvente no cumprimento do contrato-promessa, não estando, por isso, reunidos os pressupostos da aplicação do regime do artigo 442.º, n.º 2, nem, acrescentamos agora, do artigo 755.º, n.º 1, al. f), ambos do CC. Naquela data, o contrato-promessa era um negócio em curso, sendo a sua inexecução definitiva imputável (objectivamente, pois já vimos que se tratou de um acto lícito e, logo, não culposo) ao administrador da insolvência, em representação da massa insolvente, e não à insolvente. Daí que a situação dos autos tenha de ser analisada à luz do estabelecido pelo AUJ n.º 4/2014, complementado pelo AUJ n.º 4/2019, como se fez na decisão recorrida.

Recordamos o teor do segmento uniformizador do AUJ n.º 4/2014: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.”

O segmento uniformizador do AUJ n.º 4/2019 é o seguinte: “Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objecto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afecta a uma actividade profissional ou lucrativa.”

O tribunal a quo considerou que a recorrente não pode ser qualificada como consumidora para o efeito de lhe ser reconhecido um direito de retenção, sobre o imóvel que a promitente vendedora lhe entregou, para garantia do seu direito de crédito à restituição do sinal em singelo. A fundamentação do tribunal a quo é, resumidamente, a seguinte: As sociedades comerciais têm por objecto a prática de actos de comércio, adquirindo bens tendo em vista “a prossecução dos seus fins, actividades ou objectos profissionais”, pelo que “muito dificilmente poderão ser consideradas consumidores, para os efeitos de beneficiarem da protecção legal que a estes é destinada e que, por regra, visa defender o consumidor como parte mais fraca da relação contratual”. A utilização que é feita do imóvel dos autos satisfaz um interesse da própria sociedade, ora recorrente, pelo que “não se coaduna com um mero uso privado ou um uso não profissional” daquele.

A esta fundamentação, a recorrente opõe, também resumidamente, o seguinte: A regra segundo a qual consumidores são apenas as pessoas singulares comporta excepções, que deverão ser encontradas casuisticamente. Os factos provados nos autos, incluindo aqueles cujo aditamento foi acima determinado, bem como a ponderação do objecto social da insolvente e da recorrente, impõem a conclusão de que esta última actuou como consumidora no contrato-promessa. A recorrente destinou o imóvel a uso particular, consistente na habitação dos seus sócios, não visando, portanto, a compra do mesmo imóvel para o revender ou afectar a uma actividade profissional ou lucrativa.

Mais uma vez, a recorrente não tem razão.

O artigo 980.º do CC define o contrato de sociedade como aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade. O conceito de sociedade comercial tem aquele como pressuposto, como decorre do artigo 1.º, n.º 2, do CSC, segundo o qual são sociedades comerciais aquelas que tenham por objecto a prática de actos de comércio e adoptem o tipo de sociedade em nome colectivo, de sociedade por quotas, de sociedade anónima, de sociedade em comandita simples ou de sociedade em comandita por acções. O artigo 21.º, n.º 1, al. a), do CSC, estabelece que todo o sócio tem direito a quinhoar nos lucros. Portanto, a primeira ideia a reter é a de que as sociedades, civis ou comerciais, têm como finalidade a obtenção de lucros e a distribuição destes pelos sócios.

Com o objectivo de obterem lucros, as sociedades desenvolvem determinada actividade económica que não seja de mera fruição. Tal actividade constitui o objecto da sociedade. Como já vimos, são comerciais as sociedades que tenham por objecto a prática de actos de comércio e adoptem um dos tipos acima referidos.

Com vista à prossecução do seu objecto, tendo sempre em vista o escopo lucrativo que constitui o seu fim, cada sociedade pratica uma multiplicidade de actos materiais e jurídicos. Em circunstâncias normais, a generalidade desses actos respeita directamente àquilo que constitui o objecto social. Alguns outros actos, em si mesmos considerados, não se enquadram na descrição do objecto social constante dos estatutos, mas mostram-se necessários para a prossecução, ou para uma mais eficaz prossecução, do mesmo objecto. Todos esses actos são parte de uma actividade que, na sua globalidade, tem de visar a obtenção de lucros que possam ser distribuídos pelos sócios. E cada um dos referidos actos tem de ser compreendido como parte dessa actividade global que tem como finalidade de obtenção de lucros pela própria sociedade. A distribuição desses lucros, se existirem, pelos sócios, vem depois.

Assentes estas ideias básicas, atentemos na situação dos autos.

O objecto social da recorrente é a actividade de acabamentos de edifícios, nomeadamente estucagem, montagem de trabalhos de carpintaria e caixilharia, incluindo a fixação de tectos falsos e divisórias, revestimento de pavimentos e paredes e pintura. Integra-se, portanto, no ramo da construção civil, que não se resume à construção da estrutura dos edifícios, antes abrangendo todas as actividades necessárias para que estes últimos fiquem concluídos e, por via disso, sejam susceptíveis de licenciamento administrativo e subsequente utilização para os fins a que se destinam.

A recorrente forneceu materiais e prestou serviços à insolvente, que importaram no valor total de € 239.001,69. Estamos perante um valor significativo, indiciador de que a dimensão da empresa de que a recorrente é titular também o é.

A insolvente prometeu vender à recorrente e esta prometeu comprar-lhe uma fracção autónoma sita em Alvor, concelho de Portimão. O sinal entregue pela recorrente correspondeu à totalidade do preço acordado para a compra e venda. A fracção foi entregue à recorrente. Desde a data da entrega, a recorrente fez obras, mobilou e passou a utilizar a fracção para alojamento dos seus sócios quando estes se deslocam ao Algarve, ou seja, para fins habitacionais. A recorrente pretendeu adquirir a fracção para uso próprio, como é o descrito, e não com o escopo de revenda.

São estes os factos.

Na argumentação que desenvolve em sede de recurso, a recorrente confunde o seu interesse social com os interesses particulares dos sócios, ao afirmar que destinou a fracção “a uso particular (habitação dos seus sócios), no sentido de não o comprar para revenda nem o afectar a uma actividade profissional ou lucrativa” (conclusão bw). Não foi isto que a recorrente alegou no artigo 33.º da sua impugnação, de acordo com o qual “(…) o imóvel em apreço é para uso próprio e não com o escopo de revenda (…)”. Uso próprio da sociedade recorrente, como é óbvio, consistente em proporcionar alojamento aos seus sócios quando estes se deslocassem ao Algarve. Foi isto que a recorrente alegou e foi isto que se provou. Por isso se afirmou, acertadamente, na decisão recorrida, que a utilização que é feita do imóvel satisfaz um interesse da própria sociedade, ora recorrente. Nem poderia deixar de ser assim, sob pena de os sócios que deliberaram a compra da fracção estarem a utilizar dinheiro da sociedade recorrente em proveito próprio. O interesse prosseguido através do dispêndio de dinheiro da recorrente foi o desta, não o dos sócios. Por razões que não foram trazidas aos autos, a compra da fracção correspondeu a um interesse da recorrente. Repetimos, foi isso o alegado e provado. Provavelmente, seria vantajoso para a recorrente dispor de alojamento para os seus sócios quando tivesse obras na zona do Algarve, sendo certo que a sua sede social se situa, segundo a lista dos créditos reconhecidos, em Lugar do (…) ou Rego do (…), lote 18, … (fls. 75), ou seja, na região de Braga. Isto não passa, contudo, de especulação. Certo é, porque provado está, que a aquisição da fracção correspondeu a um interesse da própria recorrente e não dos seus sócios, ou de alguns destes.

É altura de recordar o conceito de consumidor fixado pelo AUJ n.º 4/2019: É consumidor, para os efeitos do disposto no AUJ n.º 4/2014, o promitente-comprador que destina o imóvel, objecto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afecta a uma actividade profissional ou lucrativa.

Está provado que a recorrente não quis comprar a fracção para a revender. Porém, também resulta da matéria de facto provada que a recorrente quis comprar a fracção para seu uso próprio, mais precisamente para que os seus sócios nela habitassem durante as suas deslocações ao Algarve. O mesmo é dizer que a recorrente teve em vista afectar a fracção à prossecução do seu objecto social e da sua finalidade necessariamente lucrativa. Consequentemente, à luz do conceito restrito de consumidor fixado pelo AUJ n.º 4/2019, a recorrente não pode ser qualificada como tal. Daí que não seja titular de um direito de retenção sobre a fracção para garantia do seu crédito à restituição do sinal em singelo.

Concluindo, o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, ainda que alterada, nos termos expostos mas sem consequências, no tocante à matéria de facto provada.


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Sumário: (…)

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Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida, ainda que alterada, sem consequências, no que concerne à matéria de facto provada.

Custas pela recorrente.

Notifique.


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Évora, 14 de Julho de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata




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[1] Manual de Direito da Insolvência, 7.ª edição - Reimpressão, Edições Almedina, 2019, p. 217.

[2] Os Efeitos da Insolvência sobre o Contrato-Promessa em Curso, 2.ª edição, Edições Almedina, 2017, p. 217.

[3] Obra citada, páginas 98-99.

[4] Acerca deste aspecto, leia-se Gisela César, obra citada, p. 229.