Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
311/14.8TBABT.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: EXTREMA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: É entendimento dominantemente aceite que não basta a mera transcrição de depoimentos e a alegação genérica de que devem ser atendidos no elenco dos factos provados para fundar uma pretensão de impugnação da matéria de facto.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 311/14.8TBABT.E1-2ª (2017)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)


ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO:

Na presente acção de processo comum, actualmente a correr termos na Secção Cível da Instância Local de Abrantes da Comarca de Santarém (depois de iniciada no Tribunal Judicial de Abrantes), instaurada por (…) e mulher, (…), contra (…) e mulher, (…), foi pelos AA. alegado serem proprietários de determinado prédio misto, sito em Vale da (…) – Sardoal – Abrantes, parcialmente confinante com prédio rústico de pertença dos RR., que se situa num plano superior em relação aos dos AA., confrontando esses prédios numa extensão de 48 metros, em que a estrema é demarcada por um muro de pedra solta totalmente situado dentro da propriedade dos RR., o qual desabou (em 2011) para o interior da propriedade dos AA. numa extensão de 26 metros, sem que os RR. até hoje tenham procedido à limpeza do entulho do muro que se encontra dentro do prédio dos AA., apesar das várias insistências destes para os RR. o fazerem, e com o que causam danos aos AA. por estes estarem impedidos da normal utilização agrícola do espaço ocupado por aquele entulho – pelo que, nessa base, pediram os AA. a condenação dos RR. nos seguintes termos: a) a reconhecer a propriedade dos AA. sobre o seu prédio misto; b) a reconhecer que o referido muro se situa no interior da propriedade dos RR., sustentando as terras deste, e sobre estrema confinante com o prédio dos AA.; c) a proceder à limpeza no terreno dos AA. do entulho resultante do desabamento parcial desse muro; d) a proceder à reparação e consolidação desse muro na parte confinante; e) a pagar aos AA. a quantia de 900,00 €, a título de danos patrimoniais, acrescida de 300,00 € anuais, desde 2014 até à concretização da limpeza e reparação mencionadas; f) a pagar aos AA. a quantia de 1.000,00 €, a título de danos não patrimoniais; g) a pagar aos AA. juros vincendos sobre as verbas indicadas, desde a citação até integral pagamento; e, h) a pagar aos AA. uma sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento daquelas limpeza e reparação.

Na contestação, os RR. impugnaram os pedidos e alegaram, no essencial, que o muro em causa já se encontrava no estado actual quando adquiriram o seu prédio, em 2003, e que não reconhecem que tal muro lhes pertença na totalidade, por não estarem definidas as margens entre os prédios, pelo que sustentam que esse muro se deve presumir comum, cabendo a ambas as partes reconstruí-lo na respectiva proporção, com a divisão da despesa pela metade – e ainda invocam o abuso de direito dos AA., por estes conhecerem a situação do muro desde 2003, sem nada terem providenciado, e por terem contribuído para o agravamento da situação, rebaixando o seu terreno e plantando árvores junto ao muro (e cujas raízes se têm entranhado no muro, degradando-o ainda mais).

Depois de várias vicissitudes processuais (que incluíram a realização de perícia, com relatório a fls. 123-125 e esclarecimentos a fls.131-132, e levantamento topográfico, documentado a fls. 162-164 e com esclarecimentos a fls. 173), foi realizado o julgamento, na sequência do qual foi lavrada sentença (a fls. 227-241) em que se decidiu julgar parcialmente procedente a acção, condenando os RR. nos seguintes termos: a) a reconhecerem os AA. como proprietários do prédio misto em referência; b) a reconhecerem que faz parte integrante do prédio dos RR. o muro situado junto da estrema confinante dos prédios de AA. e RR.; c) a procederem à limpeza, a suas expensas, no terreno dos AA. do entulho resultante do desabamento parcial desse muro; d) a procederem à reparação e consolidação, a suas expensas, desse muro na parte confinante, de modo a evitar novo desabamento; e, e) a pagarem aos AA. a quantia de 20,00 € por cada dia de atraso no cumprimento do determinado em c) e d), desde o trânsito em julgado da decisão.

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: quanto ao reconhecimento da propriedade dos AA., decorre o mesmo da existência a seu favor de registo predial, fundado em compra, pelo que gozam da respectiva presunção registral, nos termos do artº 7º do Código do Registo Predial, a qual não foi ilidida; quanto à localização do muro em discussão, resultou da perícia e do levantamento topográfico que o mesmo se encontra totalmente no prédio dos RR., pelo que se deu como provado tal facto e existe fundamento para impor o reconhecimento desse facto aos RR.; quanto aos pedidos de limpeza de entulho decorrente do desabamento do muro e de reparação do mesmo, resulta do artº 1350º do C.Civil que os danos consequentes de desmoronamento de obra para o prédio vizinho devem ser ressarcidos pelo respectivo dono, nos termos do artº 492º do C.Civil, pelo que devem esses pedidos proceder, uma vez que os RR. não conseguiram provar, para efeitos do citado preceito, que não tiveram culpa na derrocada ou que não a podiam ter evitado; quanto aos pedidos de indemnização, não se provaram os respectivos pressupostos, pelo que devem improceder; quanto ao pedido de condenação em sanção pecuniária compulsória, prevista no artº 829º-A do C.Civil, verificam-se os respectivos pressupostos, por estarem em causa obrigações infungíveis que não exigem especiais qualidades científicas ou artísticas, pelo que deve proceder tal pedido, cujo valor foi fixado tendo em conta critérios de razoabilidade e equidade.

Inconformados com tal decisão, dela apelaram os RR., formulando as seguintes conclusões:

«I. Foram os recorrentes condenados a “b) a reconhecerem que faz parte integrante do prédio dos Réus, o muro que se encontra junto da estrema norte e poente deste prédio, com a estrema sul e nascente do prédio dos Autores; c) a procederem à limpeza do terreno dos Autores de todas as pedras e entulhos que resultaram do desabamento parcial desse muro, junto à zona em que os prédios de ambas as partes confrontam entre si, suportando os Réus os custos dessa mesma limpeza; d) a procederem à reparação e consolidação de todo o muro, junto à estrema de ambos os prédios, a fim de evitar que o mesmo volte a desabar para o interior do prédio dos Autores, a expensas dos Réus; e) e pagarem, aos Autores, a quantia de vinte euros, por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações aludidas nas als. c) e d) do dispositivo desta sentença, a contar da data do trânsito em julgado da mesma.

II. Não obstante, entendem os recorrentes que, não só não contribuíram – nem contribuem – para a degradação do muro, como não sendo titulares da plenitude do direito de propriedade do muro, não devem custear, por si só, a sua reparação – mas conjuntamente com os recorridos.

III. Entendem os recorridos que a matéria de facto não tida em conta pelo tribunal, levaria a uma decisão diversa da recorrida, indo ao encontro das pretensões referidas no ponto II.

IV. Não se deve dar como provado o facto E, pois a redação do mesmo é, com o devido respeito, incongruente, uma vez que se o muro acompanha toda a estrema entre as propriedades, não podia o douto tribunal considerar que este se situa dentro do prédio dos recorrentes.

V. Ainda relativamente ao facto E – tendo a sua prova por base os relatórios e o depoimento do Sr. Perito (…) – do depoimento deste aos 00:02:50 a 00:03:03 e 00:21:37 a 00:23:29, decorre que não se pode retirar a localização precisa do muro dentro do prédio dos recorrentes, devido às margens de erro.

VI. Porquanto, se a margem de erro pode ser “mais metro ou menos metro”, também o muro pode estar dentro do terreno dos recorrentes (como foi julgado provado), como dentro do terreno dos recorridos, como também metade em cada um dos terrenos, pertencendo metade a cada uma das partes – esta a versão mais sensata sempre defendida pelos recorrentes.

VII. Devia o tribunal ter considerado o muro como a estrema dos dois prédios, sendo ambas as partes na presente ação seus comproprietários – não se podendo dar como não provado o facto G), num caso em que não só as partes não estão de acordo quanto às estremas, como também as margens de erro do mapa cadastral têm, pelo menos “mais metro ou menos um metro”.

VIII. Sempre se teve como assente que o muro dividia os dois prédios – tanto que tal entendimento até decorre do senso comum –, não existindo qualquer marco delimitativo das estremas, encostado ao muro, que o insira dentro do prédio dos recorrentes.

IX. Como não existem, in casu, quaisquer factos que preencham as alíneas a), b) e c) do nº 3 do artigo 1371º do Código Civil, nem do nº 5 do mesmo artigo, há aqui uma presunção de compropriedade do muro, decorrente da indefinição das margens entre os dois prédios – que, assim, se presume comum (vide artigo 1371º, nº 2, do Código Civil).

X. Havendo uma ruína do muro, deve este ser reconstruído por recorridos e recorrentes, em proporção das suas partes, ou seja, dividindo a despesa pela metade correspondente a cada uma das partes (vide 1375º, nº 1, e 1411º, nº 1, todos do Código Civil).

XI. Daquilo que decorre do depoimento do Recorrido marido aos 00:02:48 e 00:03:12 a 00:03:18; do Sr. Perito (…) aos 00:13:57 a 00:14:21; da testemunha (…) aos 00:03:11, 00:03:55, 00:05:21 a 00:05:42, 00:07:34 a 00:07:47; da testemunha (…) aos 00:05:27, 00:09:21, 00:09:25 e 00:09:30; da testemunha (…) aos 00:07:19 a 00:08:09, 00:12:06 a 00:12:11 e 00:13:07 a 00:13:15; da testemunha (…) aos 00:05:02 a 00:05:23 e 00:07:49 a 00:08:30; e da testemunha (…) aos 00:03:27 e 00:08:38 a 00:08:45, conhecedores dos terrenos dos recorrentes e recorridos, alguns inclusive em data anterior à compra do terreno pelos recorrentes em 2003 – pois as testemunhas (…) e (…) eram os anteriores proprietários do terreno dos recorrentes –, não pode o tribunal dar como provado que os danos ocorreram depois de 2003.

XII. No caso concreto, como existem elementos probatórios demonstrativos do estado de degradação do muro em data anterior à compra do prédio pelos recorrentes, e até da própria atuação dos recorridos contrária à boa conservação do muro (com a plantação intensiva de árvores junto ao mesmo), não podem os recorrentes ser responsabilizados pelo desmoronamento do muro, precisamente por não serem responsáveis pelos danos causados – e tal é o que decorre do artigo 1350º do Código Civil.

XIII. Mais devia ainda o douto tribunal ter tido em conta o facto dos recorridos terem plantado centenas de marmeleiros (e oliveiras), junto ao muro, permitindo que as raízes de tais árvores se insiram na estrutura deste e o próprio tronco das árvores o empurre, causando a sua ruína – como decorre do depoimento do recorrente aos 00:15:46 a 00:16:19; do Sr. Perito (…) aos 00:10:50 a 00:11:05; da testemunha (…) aos 00:05:23 a 00:05:41; e da testemunha (…) aos 00:07:21 a 00:07:35, 00:10:12, 00:17:35 e 00:17:51.

XIV. Os recorridos não conseguiram adquirir o prédio dos recorrentes na ação de preferência intentada no ano de 2003, com o número processual 763/03.1TBABT, do 1º Juízo do Tribunal de Abrantes, sendo que então o muro já se encontrava nas condições atuais – mas nessa altura não causava incómodo nenhum aos recorridos. Somente 11 anos depois é que os recorridos ficaram aborrecidos com o muro em ruínas…

XV. Ora, será pelo facto de ficarem aborrecidos com as condições do muro que estes plantaram, precisamente junto ao muro, uma quantidade abismal de marmeleiros (e oliveiras)? Poder-se-ia acreditar que seria para tapar a vista do muro em ruínas, mas certamente a plantação de árvores junto ao muro não favorece a sua manutenção – antes pelo contrário!

XVI. Neste sentido, se os recorridos já tinham conhecimento da situação em que se encontrava o muro, pelo menos, em 2003 e somente em 2014 é que tomam algum tipo de iniciativa para exercício do seu (hipotético) direito – assim como plantam árvores junto ao mesmo, que o degrada –, entendem os recorrentes que a atuação dos recorridos está eivada de abuso do direito.

XVII. O não exercício do direito por um certo lapso de tempo, impede que, por contrariar a boa-fé, venha depois a ser exercido, de forma não só a penalizar a inação do agente, como também a proteger a confiança do beneficiário de que não haverá exercício desse direito. Além disso, os valores apontados pelos recorridos para a reconstrução do muro, ultrapassam, em larga escala, o valor do prédio destes. Como tal, entendem os recorrentes que a conduta dos recorridos está prevista no artigo 334º do Código Civil, na modalidade de suppressio.

XVIII. Entendem ainda os recorrentes que a douta sentença recorrida viola o disposto nos artigos 615º, nº 1, als. b) e c), do Código de Processo Civil, por ter feito uma aplicação incorreta do direito ao caso concreto – conforme indicado nos pontos IX, X e XII – e ignorado factos essenciais à resolução do litígio.»


Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações dos apelantes extraem-se as seguintes questões essenciais a discutir:

1) nulidades de sentença enquadráveis no artº 615º, nº 1, als. b) e c), do NCPC, por alegadas falta de fundamentação e oposição dos fundamentos com a decisão, respectivamente;
2) modificabilidade da matéria de facto;
3) consequências, no plano jurídico, da eventual procedência dessa impugnação da matéria de facto – sendo que é pretensão dos RR. apelantes obter a integral improcedência dos pedidos dos AA. que foram julgados procedentes pelo tribunal a quo –, ainda com aferição da ocorrência de alegado abuso de direito por parte dos AA. recorridos, ao accionarem a presente acção mais de 10 anos após o desabamento do muro em que fundam a sua pretensão.

Cumpre apreciar e decidir.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«A. Os Autores são proprietários do prédio misto, sito em Vale de (…), freguesia e concelho de Sardoal, composto, na parte urbana, de edifício de rés­-do-chão, destinado a comércio e anexos, com a superfície coberta de 400 m2, logradouro com 720 m2 e, na parte rústica, de olival, solo subjacente de cultura arvense com olival, pomar de citrinos, oliveiras, pereiras, pomar de pereiras, figueiras e macieiras, actualmente com uma área total de 10.630 m2, a confrontar do norte com (…); do sul com Réus; do nascente com estrada nacional e do poente com estrada nacional, inscrito na matriz urbana sob o artº (…) e rústica sob o artº (…) da Secção X, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sardoal com o nº …/19940308.

B. Por escritura de compra e venda, outorgada em 13/2/2003, no Cartório Notarial de Sardoal, exarada de fls. 10 a 11 v., do livro de notas nº (…), os Réus compraram o prédio rústico, composto de cultura arvense, sito em Vale da (…), freguesia e concelho de Sardoal, inscrito na matriz sob o artº (…) da Secção X, com o valor patrimonial de € 42,02, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sardoal com o nº (…), actualmente descrito, na mesma Conservatória, com o nº …/271003/freguesia de Sardoal.

C. Os prédios aludidos em A) e B) confrontam entre si, a sul e nascente do prédio aludido em A) e a norte e poente do prédio aludido em B).

D. Na parte em que ambos os prédios confrontam entre si, a estrema, entre ambos, forma um «L», situando-se a aba maior do «L» na estrema sul do prédio aludido em A), onde tem 43 m de comprimento, na parte em que confronta com o prédio mencionado em B), até à vedação em rede aí instalada pela «Estradas de Portugal», enquanto que a outra aba do «L» forma a estrema a nascente do prédio aludido em A), e tem cerca de 7 metros, na parte em que confronta com o prédio dos Réus.

E. Dentro do prédio dos Réus, encontra-se um muro de pedra solta, com um comprimento que acompanha toda a estrema entre as propriedades.

F. Desde 2003, até ao momento, que ao longo dos anos, o muro de pedra solta, por falta de obras de conservação, tem desabado para o interior do prédio dos Autores, sendo que, até ao momento, já desabou numa extensão de 26 metros.

G. O entulho constituído por pedras soltas, em número não concretamente apurado, e terras, ficou a ocupar o prédio dos Autores, numa área de cerca de 100 m2.

H. Os Autores contactaram os Réus, mais do que uma vez, de forma a que estes procedessem à limpeza dessas pedras e terras que desabaram para o interior do prédio dos Autores.

I. Os Réus não efectuam a limpeza, porque entendem que o muro não está implantado no terreno deles (Réus).

J. O prédio dos Réus encontra-se situado num plano superior ao prédio dos Autores.

L. O muro tem uma altura variável, entre os 0,70 m e os 1,50 m.

M. Destina-se à sustentação das terras do prédio rústico dos Réus, encontrando­-se totalmente dentro deste último prédio.

N. Existe o perigo do muro continuar a ruir para o interior do prédio dos Autores, atendendo ao mau estado de conservação do mesmo.

O. Os Autores encontram-se aborrecidos com esta situação.

P. Em 7/4/1995, os ora Autores transferiram, para a Junta Autónoma das Estradas, uma parcela de terreno do prédio aludido em A), com a área de 1.610 m2, que seria a desanexar do dito prédio, pelo que, actualmente, o dito prédio tem uma área de 10.630 m2 (12.240 m2 – 1.610 m2 = 10.630 m2).»


B) DE DIREITO:

1. Quanto às questões de nulidade da sentença, comece-se por salientar que é apenas na última conclusão (XVIII) das suas alegações de recurso que os RR. apelantes aludem a tais nulidades e fazem uma menção genérica às als. b) e c) do nº 1 do artº 615º do NCPC. Em momento algum do corpo das alegações se referenciam essas nulidades e, muito menos, se sustentam as mesmas: a sua arguição surge inopinadamente na referida conclusão – e sem que se consiga alcançar verdadeiramente o seu fundamento.

Em todo o caso, e até pela precedência lógica da matéria de nulidades de sentença, importa tecer algumas considerações sobre a sua suscitação, com referência ao artº 615º, nº 1, als. b), e c), do NCPC.

Desde logo, há que assinalar que a escassa motivação apresentada para tal suscitação se resume a uma alegada «aplicação incorreta do direito ao caso concreto» e a uma alegada «ignor[ância de] factos essenciais à resolução do litígio». Ora, discordar da solução de direito é colocar questão substantiva ou de direito material, e invocar falta de factos é suscitar uma impugnação da matéria de facto. Ou seja: as nulidades arguidas não têm existência real, mesmo na configuração que os apelantes lhes deram; não se apresentam como verdadeiras questões de nulidade, sendo antes meras impugnações de facto e de direito, que se situam num outro plano de discussão.

A situação assim configurada reconduz-se à frequente constatação da impropriedade da suscitação de nulidades de sentença nos recursos interpostos nos tribunais portugueses. Com efeito, há uma recorrente confusão entre a invocação de nulidades de sentença e a mera discordância substantiva quanto às decisões judiciais, de que decorre um frequente uso errado desse instituto nos recursos interpostos nos nossos tribunais, com a consequência de inúteis retardamentos processuais. Acerca desta situação, acompanha-se de pleno ABRANTES GERALDES quando, a propósito daquilo que caracteriza como a dificuldade em «descortinar que interesses presidem à estratégia comum de introduzir as alegações de recurso com um rol de pretensas nulidades da sentença, sem qualquer consistência», esse autor tece o seguinte comentário: «É frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades» (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 132-133).

Mas ainda que nos debrucemos nas concretas arguições formuladas, também não se vislumbra qualquer viabilidade das mesmas.

Sobre a nulidade por falta de fundamentação, dizia ALBERTO DOS REIS, perante norma de teor idêntico ao actual artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC, que «o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 140).

Sobre a nulidade por contradição entre fundamentos e decisão (artº 615º, nº 1, al. c), do NCPC), refira-se que tal situação se reporta à correlação entre os fundamentos da própria decisão, tal como apresentados pelo juiz, e essa mesma decisão, e que ALBERTO DOS REIS dizia ocorrer quando «os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 141).

Quanto à nulidade por falta de fundamentação, é óbvio que não ocorre uma absoluta omissão de motivação, sendo manifesta a existência de um elenco de factos provados e a apresentação, com base neles, de uma perceptível argumentação, de que a recorrente pode discordar, mas que foi produzida – pelo que estará arredada tal nulidade. Com efeito, a discordância quanto aos fundamentos enunciados já não se resolve no plano da nulidade da sentença, mas no do eventual erro de julgamento inscrito na decisão recorrida, o que coloca a questão no plano da sua eventual revogação por ilegalidade – o que se relegará para apreciação no momento da discussão das demais questões suscitadas.

E algo de semelhante se dirá quanto à nulidade por alegada contradição entre fundamentos e decisão. Esta tem sempre de ser aferida pelo confronto entre os concretos fundamentos invocados e a orientação definida na parte decisória. E, no caso presente, o tribunal desenvolveu na fundamentação um conjunto de considerandos que conduziam, coerentemente, à conclusão que acabou por ser vertida na decisão. Mais uma vez se sublinha que questão diversa é a parte discordar dos fundamentos enunciados – mas aí já estamos no domínio da discussão substantiva da decisão, a apreciar infra.

Resta, pois, concluir pela improcedência das nulidades arguidas pelos recorrentes. E passemos, então, a apreciar a substância da impugnação ínsita no presente recurso.

2. Quanto à impugnação da matéria de facto, e se atentarmos nas conclusões das alegações de recurso dos RR. apelantes, verificamos que estes pretendem pôr em crise a conclusão vertida no ponto E) da factualidade provada, em que se declara o seguinte: «Dentro do prédio dos Réus, encontra-se um muro de pedra solta, com um comprimento que acompanha toda a estrema entre as propriedades». E, além disso, parece haver a intenção de questionar a referência temporal inscrita no ponto F) da factualidade provada, em que se declara que o desmoronamento do muro se iniciou em 2003.

Sustentam os apelantes que outro deveria ter sido o facto declarado pelo tribunal a quo sobre o tópico da localização do muro, ainda que sem uma afirmação clara sobre o sentido a dar a esse facto: tanto poderia ser que aquele muro estava na totalidade dentro do prédio dos apelados, como poderia ser que estava metade em cada um dos terrenos das partes no processo (conforme se afirma na conclusão VI das alegações de recurso). E, em relação ao tópico do desmoronamento do muro, não se chega a sugerir qualquer outra temporização do mesmo ou outra formulação do ponto de facto. Além disso, verifica-se a situação inusitada de os apelantes terem juntado uma transcrição integral dos depoimentos prestados em julgamento, a fls. 265-397, a qual não é necessária, nem exigida pela lei, que apenas impõe a indicação das concretas «passagens da gravação em que se funda o recurso» e que apenas prevê a possibilidade de «transcrição dos excertos relevantes», tudo conforme artº 640º, nº 2, al. a), do NCPC.

Ora, para aferir da viabilidade de uma pretensão formulada nestes termos, importa, antes de mais, atender às condicionantes legais da impugnação da matéria de facto.

Do modelo legalmente consagrado nesse domínio decorrem duas asserções essenciais que devem parametrizar toda esta matéria da apreciação da impugnação da matéria de facto: por um lado, a noção de que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode subverter o princípio da livre apreciação da prova; por outro, a ideia de que o tribunal de 2ª instância não deve ir além de um juízo sobre a razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância, face aos elementos disponíveis nos autos.

Quanto ao primeiro aspecto, saliente-se o que já dizia o Ac. RE de 3/6/2004 (CJ, XXIX, t. III, p. 249): «(…) o sistema legal, tal como está consagrado, [mesmo] com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa». Têm-se aqui em mente aqueles «elementos intraduzíveis e subtis», como a «mímica e todo o aspecto exterior do depoente», de que falava LOPES CARDOSO (in BMJ, nº 80, pp. 220-221, citado por ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 4ª ed, Almedina, Coimbra, 2004, p. 247).

Sobre o segundo ponto, pronuncia-se assim o Ac. RC de de 3/10/2000 (CJ, XXV, t. IV, p. 27): «o tribunal da 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si». Trata-se aqui de «através das regras da ciência, da lógica e da experiência, (…) controlar a razoabilidade daquela convicção [do tribunal de 1ª instância] sobre o julgamento do facto como provado ou não provado», conforme se expressa TEIXEIRA DE SOUSA (in Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, Lisboa, 1997, p. 348).

Diremos, pois, na linha de outros arestos desta Relação, que a constatação de erro de julgamento no âmbito da matéria de facto impõe que se tenha chegado à conclusão de que a formação da decisão devia ter sido em sentido diverso daquele em que se julgou, como decorrência de «um juízo conclusivo de desconformidade inelutável e objectivamente injustificável entre, de um lado, o sentido em que o julgador se pronunciou sobre a realidade de um facto relevante e, de outro lado, a própria natureza das coisas» (cfr., por todos, Ac. RE de 23/9/2004, Proc. 1027/04-2, in www.dgsi.pt).

Num outro plano, é ainda de exigir, para que ocorra uma verdadeira e própria impugnação da matéria de facto, que seja dado pelo recorrente o devido cumprimento aos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC: indicação concreta dos pontos de facto a alterar e dos meios probatórios relevantes para tal alteração, com o estabelecimento de uma correlação entre cada um desses factos e específicos meios probatórios relevantes.

Quanto a este último ponto, é entendimento dominantemente aceite que não basta a mera transcrição de depoimentos e a alegação genérica de que devem ser atendidos no elenco dos factos provados para fundar uma pretensão de impugnação da matéria de facto (cfr. LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 61-64, em anotação ao artº 685º-B do anterior CPC, com correspondência, sem diferenças significativas nessa parte, no actual artº 640º do NCPC). É necessário que haja uma indicação especificada dos pontos de facto a alterar – i.e., tem de haver uma indicação ponto por ponto (facto a facto) do que deve ser alterado, em que sentido e com que particular fundamento, com referência a concretos trechos de depoimentos (ou outros meios probatórios). Em particular, quanto à concreta indicação dos factos que devem ser dados ou deixar de ser dados como provados, a respectiva exigência saiu, aliás, reforçada com a versão conferida ao artº 640º do NCPC, na medida em que nele foi introduzida uma nova al. c) que expressamente impõe ao recorrente a indicação da «decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Por sua vez, o incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC tem como inelutável consequência a rejeição do recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, ao abrigo do proémio do nº 1 desse artº 640º (reiterado, quanto à indicação exacta dos trechos relevantes da prova gravada, na al. a) do nº 2 da mesma disposição legal), e sem possibilidade de despacho de aperfeiçoamento (neste sentido, em anotações ao artº 685º-B do anterior CPC, LEBRE DE FREITAS et alii, ob. cit., pp. 61-62, embora criticamente de iure condendo, e ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, p. 138; e, já à luz do actual artº 640º, igualmente ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 127-128) – mas sem prejuízo do prosseguimento do recurso quanto a outros fundamentos alegados pelo apelante, já no âmbito da impugnação de direito.

Como sublinha ABRANTES GERALDES, a apreciação do cumprimento desses ónus deve ser feita segundo «um critério de rigor» – e esclarece: «Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (Recursos no Novo Código…, cit., p. 129).

a)No caso dos autos, como já se assinalou, os apelantes não indicaram, de forma exacta e rigorosa, os concretos factos que pretendiam ver declarados provados. Se é certo que se alcança, apesar da alguma imprecisão discursiva, os pontos de facto que se pretendia impugnar, também é verdade que sempre seria incontornável a falta de indicação cabal dos concretos factos (e em que exactos termos) que os apelantes, em alternativa, pretendiam ver declarados provados, apenas sendo possível inferir, com certeza, que visavam sustentar factualmente a sua tese de que o muro tinha uma diferente localização ou que o seu desmoronamento ocorrera em momento temporal diverso. Mas não cabe ao tribunal de recurso, perante a omissão dos próprios apelantes, conjecturar a versão factual que estes entendem que teria o substrato probatório necessário para ser declarada como provada. Ora, a omissão de indicação precisa da factualidade resultante da procedência da impugnação de facto constitui claramente um incumprimento da exigência legal emergente do artº 640º, nº 1, al. c), do NCPC, supra enunciada.

Note-se que os recorrentes ainda indicaram determinados depoimentos, os quais, no seu entender, permitiriam uma decisão diferente quanto à matéria de facto – e fizeram-no por referência a certas passagens da gravação, o que, por si, cumpriria a exigência legal, emergente do artº 640º, nº 2, al. a), do NCPC, de indicação exacta dos trechos relevantes, e supriria a inadequação da transcrição integral de depoimentos que os apelantes também empreenderam. Porém, o cumprimento desse artº 640º, nº 2, al. a), do NCPC não sana a insuficiência do cumprimento da al. c) do nº 1 da mesma disposição legal.

Ou seja: no caso dos autos, tendo presente as considerações precedentes e o teor das conclusões das alegações de recurso, afigura-se notório que os RR. apelantes não indicaram os concretos factos (e em que exactos termos) que pretendiam ver declarados provados. Com efeito, não se procedeu adequadamente à necessária indicação precisa dos pontos de facto que devem passar a ser dados como provados: não se enuncia o exacto teor que deveriam ter os novos pontos de facto provados, não se concretiza o texto dos novos pontos de facto (e um por um) a aditar ao elenco de factos provados já estabelecido – i.e., não se especifica «a decisão que (…) deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas», como impõe a al. c) do nº 1 do artº 640º do NCPC. E isto afecta irremediavelmente a pretensão de impugnação da matéria de facto, por incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC.

Por força das circunstâncias enunciadas, somos, pois, levados a concluir que a impugnação da matéria de facto formulada pelos RR. apelantes não deverá ser atendida, por carência de um pleno e integral cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC. Sendo assim, cumpre rejeitar o presente recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, na medida em que não estão reunidas as condições formais para a sua reapreciação, ao abrigo do proémio do nº 1 desse artº 640º – o que também nos dispensa da audição da prova gravada em audiência. E, como tal, considera-se improcedente a pretensão de impugnação da matéria de facto formulada em sede do presente recurso.

Em conformidade, mantém-se integralmente a decisão de facto, tal como foi proferida no julgamento efectuado em 1ª instância (e para a qual se remete, nos termos do artº 663º, nº 6, do NCPC).

b)Neste ponto – e mitigando o aparente formalismo da solução ora expressa – sempre diremos que, independentemente daquela inalterabilidade da decisão de facto, por rejeição da pretensão da sua impugnação, ainda que fosse operante a impugnação da matéria de facto (cabendo sindicar o conteúdo da prova produzida), seria muito improvável a possibilidade de tal pretensão impugnatória obter procedência. E isso por se ter em conta, quer as condicionantes da reapreciação de matéria de facto pela 2ª instância supra enunciadas, quer a circunstância de os poderes de reapreciação de matéria de facto pela 2ª instância se encontrarem ainda mitigados pelo princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador da 1ª instância (artº 655º do CPC), já que, no limite, não pode deixar de se conceder primazia, quanto à apreciação da credibilidade de depoimentos produzidos, à percepção do julgador a quo, que pôde ouvir perante si os relatos das pessoas inquiridas.

Além disso, e se bem atentarmos, pretendiam os RR. apelantes pôr em crise a prova da localização do muro em apreço dentro da sua propriedade apenas com base numa ou noutra frase de menor precisão, mas descontextualizadas e muito provavelmente resultantes da dialéctica própria das instâncias forenses, do depoimento de um dos peritos intervenientes nos autos (Engº …), quando a valia técnica das peças periciais e seus esclarecimentos não foi posta em causa – sendo que deles consta que «a linha divisória que delimita as propriedades são os marcos» e «o muro está implantado imediatamente a montante da estrema, já na propriedade do Réu» (cfr. esclarecimentos da perícia efectuada pelo referido perito, a fls. 131-132), e que «sobrepondo o levantamento topográfico sobre as coordenadas dos marcos e pontos enviados pelo Instituto Geográfico e Cadastral verifico que o muro se encontra dentro do prédio nº 29», ou seja, dentro do prédio dos RR., conforme ponto de facto sob a al. B) supra (cfr. esclarecimentos do levantamento topográfico, a fls. 173). E acrescente-se que, contrariamente ao afirmado pelos apelantes, não se detecta qualquer incongruência no ponto E) da factualidade provada (cfr. conclusão IV das alegações de recurso), já que a afirmação de que o muro acompanha a estrema não é contraditória com a outra afirmação de que o muro se situa dentro da propriedade dos RR.: apenas tem o significado, harmonizando as duas afirmações, de que o muro segue a linha da estrema pela lado interior do terreno dos RR., e não necessariamente em cima dessa mesma linha – como, aliás, bem se ilustra no levantamento topográfico, a fls. 162, que identifica a proximidade entre a linha da estrema e o muro, a distâncias curtas e variáveis, mas sempre dentro da propriedade dos RR. (e o que também se compatibiliza com a expressão “mais metro ou menos metro”, usada pelo perito no seu depoimento, a que os apelantes procuraram atribuir uma relevância que assim surge desvalorizada).

Quanto a este tópico, importa sublinhar que a motivação da decisão de facto, constante a fls. 233-234 da sentença de fls. 227-241, se apresenta muito clara e especiosa, não consentindo leitura divergente do sentido geral do depoimento do perito em referência, como evidencia o seguinte trecho daquela motivação:

«(…) quanto à localização precisa do muro, dentro do prédio dos Réus, o teor do levantamento topográfico de fls. 163 e 164, que revela que o muro se encontra totalmente no prédio dos Réus, em conjugação com o teor dos relatórios periciais e seus esclarecimentos, de fls. 123 a 125 e 131 e 132, bem comos os esclarecimentos prestados, em sede de audiência final, pelo Sr. Perito, (…), o qual descreveu a área que o muro ocupa, derrubado, no interior do prédio dos Autores; a altura e dimensões do muro, junto à estrema, bem como é efectuada a estrema entre ambos os prédios, mais se referindo à existência de obstáculos junto ao muro, que o poderiam derrubar, como sejam árvores ou outros, concluindo pela negativa e referindo, em suma, que, por se tratar de um muro de pedra solta, que não tem tido obras de conservação, o mesmo tem vindo a cair, aos poucos, com o decurso do tempo; (…)»

Olhando a essa motivação, constata-se ser a mesma reveladora do cuidado colocado pelo tribunal a quo na análise dos elementos de prova, o que reforça a sustentabilidade das conclusões a que esse tribunal chegou em termos de decisão de facto.

Ou seja: com elevado índice de probabilidade, seria, ainda assim, de concluir não se dispor de elementos que contrariassem a particular percepção do conjunto da prova produzida que foi colhida directamente pelo tribunal a quo e que permitissem alterar a decisão de facto, ao abrigo do artº 662º, nº 1, do NCPC.

3. Consequentemente, e perante a inalterabilidade dos factos apurados em sede de julgamento de 1ª instância (na sequência da rejeição da impugnação da matéria de facto, por incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC), forçoso é concluir que, no plano jurídico, se deve ter por infundada a pretensão dos RR. apelantes de revogação da decisão recorrida, tal como entendido pelo tribunal recorrido.

Com efeito, o tribunal a quo pronunciou-se fundada e proficientemente sobre a matéria em apreço, em termos que merecem a nossa plena adesão. Concordando globalmente com a decisão recorrida (o que nos dispensa de a acompanhar passo a passo), diremos que a mesma apresenta um grande equilíbrio na ponderação dos elementos factuais e na aplicação do direito aos factos provados. Na verdade, tendo podido estabelecer-se no plano factual, e com segurança, que o muro em causa se situava dentro do prédio pertencente aos RR., forçoso era concluir pelo acerto da sentença recorrida quanto à solução de imputar aos RR. a responsabilidade pelos danos causados pelo desabamento do muro para o interior da propriedade dos AA. – de que decorrem, pela adequada aplicação combinada dos artos 1350º e 492º do C.Civil, as consequências determinadas pelo tribunal a quo, quanto aos pedidos de limpeza de entulho decorrente do desabamento do muro e de reparação do mesmo, bem assim como quanto à aplicabilidade e fixação da sanção pecuniária compulsória prevista no artº 829º-A do C.Civil (e tudo nos exactos termos em que o afirmou o tribunal a quo).

Quanto à suscitada imputação de abuso de direito à iniciativa processual dos AA. apelados, afigura-se-nos que estamos perante um normal exercício de um direito – e que, como ficou demonstrado, claramente assiste aos AA. –, sendo certo que o decurso do tempo entre o início do desmoronamento do muro e a propositura da presente acção é compaginável com as diligências extra-judiciais dos AA., que terão perdurado durante algum tempo (e a que se refere o facto sob a al. H) da factualidade provada) e com o próprio prolongamento no tempo do processo de desmoronamento, que perdurou atá ao início desta demanda e ainda não terá terminado (como resulta, respectivamente, dos pontos sob as als. F) e N) da factualidade provada). Sob esta perspectiva, revela-se como evidente que configurar aqui um abuso de direito seria solução desajustada, sem qualquer aderência à normalidade das coisas.

Acolhem-se, assim, os fundamentos da decisão recorrida e não se vislumbra, pois, qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

4. Em suma: não merece censura o juízo de procedência (parcial e nos termos em que o foi) da pretensão dos AA. apelados, formulado pelo tribunal a quo na decisão recorrida, não se mostrando violada qualquer disposição legal, pelo que deve improceder integralmente a presente apelação.


III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelos RR. apelantes (artº 527º do NCPC).

Évora, 28 / 06 / 2017

Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)