Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1146/16.9T8FAR.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Por gozarem de fé pública, os documentos autênticos fazem prova plena sobre a materialidade das ações e perceções atribuídas à entidade documentadora; fora da fé pública ficam os juízos pessoais do documentador, sujeitos à livre apreciação do julgador.
II – A apreensão de factos pelo documentador que envolva uma qualquer operação lógico-racional, que a simples perceção dispensa, constitui um juízo pessoal do documentador que, por suscetível de erro, está sujeita à livre apreciação do julgador.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1146/16.9T8FAR.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório.
1. (…), divorciado, residente na Praça da (…), (…) – 7º-B, dto, em Faro, instaurou contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, Câmara Municipal de Faro, com serviços centrais domiciliados no Largo da Sé, em Faro, Polis Litoral Ria Formosa – Sociedade Requalificação, Valorização da Ria Formosa, S.A., com sede no Chalet João Lúcio, Pinheiro Marim, Guarda Nacional Republicana (Unidade de Ação Fiscal - Guarda Fiscal), com Comando Geral domiciliado no Largo do Carmo, em Lisboa e Polícia Marítima, com Comando Geral domiciliado no Largo do Carmo, em Lisboa, ação declarativa com processo comum.

Alegou, em resumo, que construiu uma casa, no ano de 1979, no designado núcleo populacional da Ilha da Culatra, fora da faixa de 50 metros que constitui a margem das águas do mar, composta por dois quartos, cozinha e casa de jantar/sala comum, casa de banho, duas arrecadações e logradouro, com a área coberta de 53m2, num total de 168m2, a confrontar a Norte com (…), Sul com (…), Nascente com a Rua do Sol e Poente com (…) e que desde a referida data, vem cuidando da casa e logradouro, habitando-a como sendo sua e nela recebendo familiares e amigos, à vista de todos, sem disputas nem demandas de quem quer que seja.

A Ilha da Culatra é uma ilha que ocupa 340 ha, pertence ao domínio privado do Estado e, como tal, é suscetível de usucapião.

Em Abril de 2015, foi-lhe comunicada uma deliberação do Conselho de Administração da ré Polis que determina a demolição da sua casa e a tomada de posse administrativa por parte da referida Ré, na sequência da qual o A. e outros moradores do local, intentaram providência cautelar, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, visando a declaração de nulidade ou anulação do ato administrativo, providência cautelar que se mostra suspensa para conhecimento da questão prejudicial que constitui o alegado direito de propriedade do A.

Concluiu pedindo que se declare e reconheça que é dono e legítimo possuidor do prédio urbano, sito na Rua do (…), nº (…), no Núcleo do Farol, na Ilha da Culatra, Faro, com a composição e confrontações que identifica, por o haver adquirido por usucapião.

A ré Polis contestou, em apertado resumo, excecionando a ilegitimidade do A, por preterição de litisconsórcio necessário, a falta de personalidade judiciária e de legitimidade das rés Guarda Nacional Republicana, Polícia Marítima e Município de Faro, impugnando a generalidade os factos alegados pelo A. e defendendo a falta de condições de procedência da ação, por se situar a casa do A., construída sem licenciamento, em terreno pertencente ao domínio público do Estado e, assim, insuscetível de aquisição por usucapião.

Concluiu pela improcedência da ação.

O réu Estado Português contestou, em apertado resumo, excecionando a falta de personalidade judiciária das rés Guarda Nacional Republicana e Polícia Marítima, impugnando a generalidade os factos alegados pelo A e defendendo a falta de condições de procedência da ação, por se situar a casa do A., construída sem licenciamento, em terreno pertencente ao domínio público do Estado e, assim, insuscetível de aquisição por usucapião.

Concluiu pela improcedência da ação.

Respondeu o A. por forma a admitir a falta de personalidade da Guarda Nacional e Polícia Marítima e a defender a improcedência da exceção de ilegitimidade do réu Município de Faro e tomando posição sobre documentos emitidos pela Agência Portuguesa do Ambiente, juntos aos autos pelos RR, defende que os mesmos “não fazem prova plena de nada, pois são emitidos por quem é, neste processo, parte interessada, o Estado Português”.

Foi admitida a intervenção principal de (…), como associada do A. a qual, não obstante citada, não ofereceu articulado, nem fez qualquer declaração.

2. Foi proferido despacho que julgou procedente a exceção dilatória de falta de personalidade judiciária da ré Guarda Nacional Republicana e da ré Polícia Marítima e absolveu estas da instância.

Seguiu-se a designação de audiência prévia com a indicação que os autos reuniam os elementos necessários para o conhecimento do mérito da causa.

O A. apresentou requerimento defendendo o prosseguimento dos autos por se mostrarem carecidos de prova os factos referentes domínio do Estado – público ou privado – sobre o terreno em que se mostra implantada a sua casa.

Realizada a audiência prévia, seguiu-se a prolação de saneador/sentença em cujo dispositivo designadamente se consignou:

Por todo o exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, decido:

- homologar a desistência da instância apresentada pelo autor (…) em relação ao réu Município de Faro e, consequentemente, declaro extinta a instância em relação a este réu;

- julgar a presente ação intentada por (…) contra Estado Português e Polis Litoral Ria Formosa – Sociedade Requalificação, Valorização da Ria Formosa, S.A. improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvo estes réus do pedido.”


3. O A. recorre da sentença, exarando as seguintes conclusões que se reproduzem:
“A) A decisão proferida quanto à matéria de facto foi incorretamente julgada, pelo que se impugna nos termos do disposto no artigo 640º, n.º 1, a) e b), do C.P.C.

B) A matéria vertida nos pontos 8. e 9. e tido como assente, sendo matéria do Autor, nunca foi alegada com esta formulação, pois nunca da petição inicial consta, nem “detenção” e nem “edificação”, mas posse, casa e prédio urbano.

C) Assim, se tais factos tiverem de ser tidos como assentes por acordo, então os factos hão-de constar tal como foram alegados pelo Autor, mas se, porque controvertidos, devem então constituir tema de prova.

D) Sendo que esses factos alegados pelo recorrente não foram objeto de prova, e nenhuma consideração foi feita, na fundamentação, aos documentos por este juntos, nomeadamente a um Edital do Município de Faro.

E) Quanto à demais matéria vertida nos pontos 1. a 7., e tida como assente, considera-se ter sido incorretamente julgada atento o único meio probatório que a sustentou e que foi a certidão da APA.

F) Certidão cujo teor foi posto em causa pelo recorrente, tal com o dos demais documentos, e, ao contrário do que pretendem os Réus Estado e Polis, e a cuja tese parece ter aderido inteiramente o tribunal recorrido, não faz prova plena das características dos solos em causa, e menos ainda da sua integração no domínio público.

G) Pois a referida certidão apenas atesta, com base nas perceções da entidade documentadora, os meros juízos pessoais do documentador, que valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 371º do Código Civil, e não mais do que isso, e a ser avaliada no conjunto da demais prova,

H) Neste sentido cita-se o exarado pelo Digníssimo Magistrado do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé no processo 316/15.1BELLE de 22.09.2015 ao afirmar com clareza que: “Note-se, concretamente, que ao contrário do que pretende a entidade requerida (in casu a Polis SA), a “certidão” emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente, I.P. (com a informação, os documentos e o parecer que a acompanha) não faz prova plena das características dos solos em causa, e designadamente que os mesmos sejam efetivamente formados por deposição aluvial, e tão pouco da sua integração no domínio público marítimo: com efeito, este documento atesta apenas que é este o juízo e o entendimento desta entidade pública que emitiu a “certidão”, a qual porém vale apenas como elemento sujeito à livre apreciação do julgador (cfr. Artigo 371.º, n.º 1, in fine, Código Civil).

I) Ainda que assim não fosse, decorre do próprio teor da dita certidão, emitida em 17 de Março de 2016, mesmo a tempo e à medida de contradizer o que vinha sendo alegado pelos moradores que se reclamavam donos das casas do Farol Nascente por usucapião, que, indo muito para além do que resulta da Lei 54/2005, aquela considera leito das águas do mar, toda a Ilha da Culatra, arrogando-se a APA no direito de se substituir ao julgador, fixando um sentido interpretativo para a norma, ato que de todo tem de ser rejeitado.

J) A Ilha da Culatra e os seus núcleos, ora reconhecidos pela Resolução da Assembleia da República n.º 241/2016, de 27 de Outubro de 2016, são designados por ilhas barreira, que, nomeadamente, na Convenção das Nações Unidas do Direito do Mar, a que Portugal aderiu, ratificada pelo Decreto do PR n.º 67-A/97, de 14-10, publicado no D.R. I série – A, n.º 238, de 14-10-1997, preceitua que “Uma ilha é uma formação natural de terra, rodeada de água, que fica a descoberto na preia-mar”,

K) É, pois, de facto e de Direito incompatível incluir uma ilha na noção de leito, que é, afinal o que consta da aludida certidão da APA, não cabendo aquela na noção de leito definido no artigo 10º, n.º 1, da lei 54/2005, de 15 de Novembro, e que, por isso, é tida como coisa pública,

L) Diga-se, a propósito, que é a Constituição da República Portuguesa que, no seu artigo 84º individualiza os bens que pertencem ao domínio público, deixando, no entanto ao legislador a faculdade de, por lei ou decreto-lei, classificar outros bens como bens do domínio público, como decorre do artigo 165º, n.º 1, alínea v), não por certidão da Agência Portuguesa do Ambiente, não por resolução do Conselho de Ministros, não por deliberação da Ré Polis, S.A.,

M) E, quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, essas coisas serão públicas se estiverem afetadas de forma direta e imediata ao fim de utilidade pública, o que não ocorre, nem ocorreu, com os terrenos do Farol Nascente, Ilha da Culatra, concretamente aquele onde foi implantada casa do recorrente,

N) A Ilha da Culatra, com os seus 340ha, e séculos de existência onde se distinguem três núcleos populacionais, a Culatra, o Farol e os Hangares, situados em parte sedimentada e consolidada, não se compadece com pareceres que a têm por parte integrante do leito do mar por efeito de aluviões, na medida em que tal interpretação não encontra no texto da lei a menor correspondência.

O) Assim, deve aquela matéria, em vez ser dada como provada, constituir temas de prova, e seguirem os autos para audiência final, cumprindo assim o principal objetivo do processo civil declaratório que é o julgamento da matéria de facto.

P) Pois aos autos não permitem, com total segurança, uma decisão de mérito, sobretudo por estarem em causa várias soluções plausíveis da questão de Direito que impõem o julgamento de todos os factos alegados, por controvertidos e compatíveis com as mesmas,

Q) Devendo a decisão recorrida ser anulada, nos termos do disposto no n.º 1 e n.º 2 do artigo 662º do C.P.C.

R) A decisão de direito, tal como resulta da sua fundamentação, apenas pode resultar da subsunção da norma aos factos que resultam da matéria de facto tida por provada, devendo ser a conclusão natural e lógica da norma com os factos, incorrendo, em caso contrário na nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea c), do artigo 615º do C.P.C.

Nestes termos e no mui douto suprimento deste venerando Tribunal, deve julgar-se procedente a apelação, e, consequentemente, revogar-se o saneador/sentença, com as legais consequências, nomeadamente determinando-se o prosseguimento dos autos, com a determinação dos temas da prova e audiência de julgamento.”

Responderam o Ministério Público e a ré Sociedade Polis por forma a defenderem a confirmação da decisão recorrida.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - Objeto do recurso.
O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo do não conhecimento de questões que hajam ficado prejudicadas pela solução dada a outras – cfr. artºs. 635º, nº 4, 639º, nº 1, 608º, nº 2 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.
Vistas as conclusões da motivação do recurso, importa decidir: (i) se a sentença recorrida é nula por violar o disposto na al. c) do artº 615º, do Código de Processo Civil, (ii) se os factos julgados assentes se mostram carecidos de prova e seus efeitos na marcha do procedimento.

III. Fundamentação.
1. Se a sentença recorrida é nula por violar o disposto na al. c) do artº 615º, do Código de Processo Civil.
O A. considera nula a sentença porque “a decisão de direito, tal como resulta da sua fundamentação, apenas pode resultar da subsunção da norma aos factos que resultam da matéria de facto tida por provada, devendo ser a conclusão natural e lógica da norma com os factos (…), incorrendo, em caso contrário na nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea c), do C.P.C”
Decorre da previsão normativa apontada pelo A. que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

A sentença comporta, em regra, um silogismo em que a premissa maior é a lei, a premissa menor são os factos que se provam no caso concreto e a conclusão é a decisão. Num silogismo, as premissas são os juízos que precedem a conclusão e dos quais ela decorre como consequente necessário. No silogismo judiciário as premissas, ou juízos, são os fundamentos e a conclusão é a decisão propriamente dita, devendo esta inferir-se daqueles como seu consequente necessário; a lei considera nula a sentença que não observe este método dedutivo.

Por regra, as coisas não são tão lineares; a sentença não comporta um, mas vários silogismos judiciários, cujas conclusões funcionam como premissas de outras conclusões que se interligam até à decisão final. Seja como for, deverá ser sempre lógica a relação entre os fundamentos e a decisão, no sentido de que esta só é formalmente válida quando racionalmente decorra daqueles.

A oposição surge, como ensina Alberto dos Reis, quando “… os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.”[1]

O vício da contradição que gera a nulidade da sentença resulta, pois, do processo lógico da sua construção, é um erro de atividade e não um erro de julgamento.

Voltando à lição de Alberto dos Reis, “importa, na verdade, distinguir cuidadosamente (…) erros de atividade e erros de juízo. O magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete erro de atividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afetam o fundo ou o mérito da decisão; os da segunda categoria são de caráter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua atividade de julgador.[2]

In casu, o A. considera que a sentença é nula, abreviando razões, porque assenta em factos que não se provam.

O vício apontado à decisão recorrida constitui, pois, um caso típico de erro de juízo ou de julgamento – a solução jurídica encontrada não têm apoio nos factos provados; o erro que se aponta está pois no juízo formulado e não no processo lógico da sua formulação, por isto que mesmo refazendo-se o processo lógico de construção, a atividade do conhecimento, a decisão, na formulação do A., permanecerá errada independentemente deste.

As razões apontadas pelo A. para configurar a nulidade da decisão recorrida reportam, assim, um erro de carácter substancial e não um erro de caráter formal, como é próprio do vício da contradição que lhe aponta.

Não se reconhece, pois, enfermar a decisão recorrida da nulidade que o A. lhe aponta, improcedendo o recurso quanto a esta questão.

2. Factos.
Com fundamento no acordo das partes e documentos juntos aos autos, a decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. O sistema da Ria Formosa constitui uma unidade morfológica, que engloba duas penínsulas e cinco ilhas barreira, Ilhas da Barreta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas, individualizadas por seis barras de maré.

2. O sistema de barreiras arenosas protege e assegura a manutenção do sistema lagunar, nomeadamente exercendo o efeito barreira contra os processos de galgamento oceânico e de erosão provocada pelas ondas e pelo vento.

3. Nos últimos anos a localização e o número de barras de maré e, simultaneamente, o número e forma das ilhas, tem variado, traduzindo a dinâmica do sistema de ilhas-barreiras que caracteriza a Ria Formosa.

4. As barras referidas têm carácter migratório, deslocando-se ao longo do tempo, acabando por assorear e abrindo-se então nova barra, sendo as ilhas progressivamente destruídas e construídas durante esse processo.

5. As alterações e dinâmica das barras e das ilhas resultam do movimento das areias transportadas pelas águas, sendo a Ilha da Culatra formada pela progressiva deposição de areia e assim constituída em toda a sua extensão por areais formados por deposição aluvial.

6. A Agência Portuguesa do Ambiente, IP considera e declara toda a Ilha da Culatra como área de domínio público marítimo do Estado, por as características do solo terem a natureza de areais, formados por deposição aluvial.

7. Ao longo dos anos, através dos seus diversos departamentos, o Estado sempre considerou a Ilha da Culatra como pertencente ao domínio público marítimo, seja autorizando a transferência, sem mutação dominial, de um terreno com a área de 1.024.324 m2 para a Marinha, seja emitindo licenças para manutenção provisória de barracas, qualificando sempre os terrenos como situados no domínio público marítimo.

8. O autor é detentor de uma edificação na Ilha da Culatra, Núcleo do Farol Nascente.

9. Não possui título de aquisição dessa edificação, nem a mesma se encontra registada.

1.1. Se os factos julgados assentes se mostram carecidos de prova.
O A. diverge do juízo de facto vertido nos pontos 1 a 8 dos factos provados; da matéria que consta de 1 a 7, porque fundada numa certidão emitida da Agência Portuguesa do Ambiente que “apenas atesta, com base nas perceções da entidade documentadora, os meros juízos pessoais do documentador, que valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 371º do Código Civil, e não mais do que isso, e a ser avaliada no conjunto da demais prova” [cclºs E) a H)]; da matéria que consta em 8, porque não se pode considerar assente por acordo [embora o A. na conclusão B) se reporte também à matéria vertida no ponto 9 reconhece na motivação do recurso que a mesma se mostra assente por acordo das partes].

Nas contra-alegações, a ré Sociedade Polis pugna pela rejeição da impugnação da matéria de facto, porque o A. não “especifica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, e tão-pouco a decisão que, em seu entender, deve ser proferida”, ou seja, não cumpre os ónus exigidos pelo artº 640º, nº 1, do CPC.

Os ónus em referência estão pensados para os casos em que a produção de prova ocorre em fase de julgamento e não para situações em que o juiz, na fase do saneador, conhece imediatamente do mérito da causa, por considerar que assim lhe permite o estado do processo, sem necessidade de mais provas (artº 595º, nº 1, al. b), do CPC).

Nesta última situação, o esforço argumentativo do impugnante centra-se na demonstração da existência de factos essenciais à decisão da causa carecidos de prova e, como tal, satisfaz-se com uma demonstração quanto às razões da carência (negativas) de prova dos factos, não sendo naturalmente exigível que formule um juízo (positivo) quanto à decisão que, em seu entender, deve ser proferida, com fundamento em meios de prova que não foram produzidos e cuja produção constituem, a essência da sua pretensão.

Por considerar que o estado dos autos não permitia conhecer do mérito da causa no despacho saneador, o A. visa no recurso “o prosseguimento dos autos, com a determinação dos temas da prova e audiência de discussão e julgamento”, indica os factos que considerada incorretamente assentes e as razões da sua discordância e, assim, não se vê como rejeitar liminarmente a apreciação desta sua pretensão.

1.1.1. A decisão recorrida motivou assim a decisão encontrada para a matéria de facto discriminada nos pontos 1 a 6:

O decidido teve em consideração a prova documental junta aos autos, cuja autenticidade ou veracidade não foi colocada em causa, bem como a admissão dos factos, por acordo das partes.

(…)

A caracterização do sistema da Ria Formosa e respetiva Ilha da Culatra resultou provada do teor do documento junto com a contestação do réu Estado Português, (também junto com a contestação da ré Polis), nomeadamente o documento 1B (nota técnica anexa à certidão emitida pela APA (Agência Portuguesa do Ambiente), cujo teor não foi impugnado pelo autor, sendo de realçar que este documento 1A (a referida certidão), foi emitido pela entidade competente para o efeito, não sendo arguida a sua falsidade, nem apontado qualquer falta ou vício da vontade que tivessem inquinado as declarações nele constantes.

Pelo que, com fundamento em tais documentos, foi considerada como provada a factualidade referida em 1. a 6..”

O A. diverge deste juízo na consideração que a referida nota técnica anexa à certidão emitida pela APA (Agência Portuguesa do Ambiente), não faz prova plena das características dos solos em causa, e menos ainda da sua integração no domínio público [cclª F)], “pois a referida certidão apenas atesta, com base nas perceções da entidade documentadora, os meros juízos pessoais do documentador, que valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 371º do Código Civil, e não mais do que isso, e a ser avaliada no conjunto da demais prova [cclª G)].

A solução da divergência passa por determinar se a nota técnica anexa à certidão emitida pela APA (Agência Portuguesa do Ambiente) faz prova plena quanto à matéria julgada provada nos pontos 1 a 6 dos factos provados, como ajuizou a decisão recorrida, ou se, quanto a estes factos, comporta meros juízos pessoais do documentador, sujeitos à livre apreciação do julgador, como defende o A..

Como resulta implícito na motivação de facto - não sendo arguida a sua falsidade, nem apontado qualquer falta ou vício da vontade que tivessem inquinado as declarações nele constantes - e expresso na fundamentação de direito, a decisão recorrida, considerou que “a certidão emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente, na qual são reafirmadas as características do solo da Ilha da Culatra, mormente a sua natureza de areais formados por deposição aluvial” é um documento autêntico (na fundamentação de direito a decisão recorrida consignou designadamente o seguinte: “Trata(m)-se, (…) no segundo caso, de documento autêntico, emitido por organismo do Estado com competência de gestão dos recursos hídricos e das zonas costeiras, bem como de identificação, registo e cadastro dos bens do domínio público hídrico, nos termos do artº 363º, nº 2, do Código Civil, em conjugação com os artºs 9º e 20º da Lei nº 54/2005, de 15.11, na redação introduzida pela Lei nº 31/2016, de 23.08, do artº 3º, nº 3, do DL nº 56/2012, de 12.03 e dos artºs 7º e 8º da Lei nº 58/2005, de 29.12, na redação introduzida pela Lei nº 42/2016, de 28.12”).

Convém iniciar por apontar o óbvio; não está em causa a força probatória da certidão enquanto tal, mais concretamente a sua conformidade com o original de que foi extraída (artº 385º, do CC), mas a força probatória deste último; a conformidade da certidão com original não foi questionada e, como tal, para os autos, podemos com a necessária segurança assentar que foi expedida por depositário público autorizado (artº 383º, nº 1, do CC) e que retrata fielmente o original que reproduz, mostrando-se a sua força probatória dependente, no dizer da lei, da força probatória que vier a ser conferida ao original (artº 383º, nº 1, do CC).

Este apontamento justifica-se porque a decisão recorrida, na fundamentação de direito – e não na motivação de facto, como cremos tecnicamente apropriado – faz menção a uma nota técnica do Departamento do Litoral e Proteção Costeira que, enquanto documento particular não impugnado, também justificaria a prova plena da matéria julgada assente de 1 a 6.

Se bem vemos, há nesta argumentação dois equívocos; o primeiro, resultante de se haver desconsiderado que os documentos particulares só fazerem prova plena das declarações atribuídas ao seu autor depois deste reconhecer que é sua a letra ou a assinatura (artºs 374º e 376º do CC) e que não é manifestamente o caso, porque a nota técnica se mostra subscrita por dois técnicos superiores do referido Departamento e não pelo A., assim, soçobrando a sua força probatória, enquanto documento particular, contra este; o segundo, porque a nota técnica constitui precisamente parte do documento original donde foi extraída a certidão – esta certifica uma nota técnica, uma informação de serviço e um despacho – e, nesta medida, constitui parte integrante da certidão da APA que a sentença considera, e nos autos não se questiona, um documento autêntico.

A força probatória que nos interessa é, assim, a do documento que a certidão reproduz para a qual releva o disposto no artº 371º, do Código Civil, que dispõe:

“1. Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.

2. Se o documento contiver palavras emendadas, truncadas ou escritas sobre rasuras ou entrelinhas, sem a devida ressalva, determinará o julgador livremente a medida em que os vícios externos do documento excluem ou reduzem a sua força probatória.”

Pondo de parte a previsão do nº 2, por irrelevante para os autos, os documentos autênticos apenas fazem prova plena sobre duas espécies de factos:

- aqueles que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo;

- aqueles que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora.

A força probatória material dos documentos autênticos circunscreve-se, assim, na lição de Manuel de Andrade, “(…) à veracidade das atestações do funcionário documentador (nos limites da sua competência), até onde versem atos praticados por ele próprio, ou praticados na sua presença (declarações emitidas, entregas em dinheiro, etc.), isto é, sobre ações e perceções suas (quorum notitiam et scientiam habet propriis, visus et auditus). (…) O documento faz assim prova plena quanto à materialidade (prática, efetivação) de tais atos e declarações; mas não quanto à sua sinceridade, à veracidade ou à falta de qualquer outro vício ou anomalia”.[3]

As razões desta força probatória, seguindo na mesma lição, entroncam na “(…) fé pública atribuída ao funcionário documentador, com as respetivas garantias preventivas (recrutamento cauteloso, inspeções, caução) e repressivas (sanções disciplinares, civis e criminais” e na “(…) própria natureza das atestações a que se reconhece tal força, pois, versando elas sobre factos de que o funcionário se certificou propriis sensibus, visu et auditu, está praticamente excluída a possibilidade de erro.”[4]

Opinião perfilhada por Alberto dos Reis: “Tenha-se sempre presente que a prova plena atribuída ao documento autêntico é consequência da fé pública de que o funcionário está revestido, segundo a lei. Ora essa fé só pode abranger os factos de que o funcionário foi agente ou testemunha, isto é, os factos que ele próprio executou e os que se passaram na sua presença, que ele viu ou ouviu (…). A fé pública do notário ou do funcionário cobre as suas ações e as suas perceções; mas não pode ir além destes limites”.[5]

Fora da fé pública ficam os “juízos pessoais do documentador” sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova.

A distinção entre os factos praticados pelo documentador e os juízos pessoais do documentador, decorrendo já da génese da própria formulação tem, a nosso ver, relevância para os autos; a primeira reporta-se a factos, a segunda a juízos, ou seja, a lei não confere força probatória plena aos juízos dos funcionários, mas tão só aos factos que os documentos referem por eles praticados ou percecionados.

O que se compreende, os juízos são suscetíveis de erro e os factos não (existem ou não existem).

Por esta razão – suscetibilidade de erro dos juízos – as sentenças emanados dos tribunais, juízos pessoais por excelência, produzem efeitos na ordem jurídica não por razões de validade ou coerência intrínsecas, mas por razões extrínsecas; o que confere força obrigatória à sentença é o trânsito em julgado (artº 619º, nº 1, do CPC) e não a valia dos seus argumentos ou justeza da decisão, justa ou injusta, a sentença transitada torna-se obrigatória dentro e fora do processo nos termos em que a lei o prevê (artº 619º, nº 1, do CPC); ora, traduzindo a sentença, por natureza, um juízo para cuja formação concorrem ativamente as partes em conflito, já se vê que o juízo formulado por uma autoridade ou oficial público, sem qualquer intervenção ou influência dos interessados, não poderia, sem mais, considerar-se verdadeiro, no sentido de insuscetível de erro, ou na terminologia da lei real (artº 341º, do CC).

Os juízos do documentador podem incidir sobre factos e, sendo outra a sua natureza, podem envolver factos por si praticados ou percecionados, sendo da maior importância distinguir uns e outros, uma vez que só os segundos gozam de fé pública.

Citando outros, Alberto dos Reis, anota: “Uma coisa são os factos praticados pelo funcionário e os ocorridos na sua presença, outra as apreciações do mesmo funcionário. Estas são fruto do seu trabalho intelectual, a que não pode atribuir-se presunção de infabilidade, pelo que tais apreciações são suscetíveis de impugnação mediante simples prova em contrário, sem que seja necessário argui-las de falsas.”[6]

A distinção entre os factos praticados pelo documentador e ocorridos na sua presença e os juízos por este formulados está pois, em implicarem estes últimos, uma operação intelectual, ou seja, algum tipo de conhecimento que entra em relação com o facto e permite a sua apreensão, não por via da simples perceção mas por via de um qualquer adquirido (ou emprestado) saber; neste sentido, os factos praticados pelo documentador e os ocorridos na sua presença são os apreensíveis pelos sentidos (visão, audição, etc.), enquanto os juízos pessoais do documentador, ainda que sobre factos – ou supondo-os – são apreensíveis pelo intelecto, o juízo envolve uma operação logico-racional que a simples perceção do facto dispensa; no primeiro caso, o documentador executa ou constata imediatamente os factos, no segundo caso, a constatação é mediata, no sentido que a apreensão do facto resulta da intermediação de um qualquer saber ou conhecimento.

Se, como cremos, estivermos certos nesta nossa aceção e adiantando, a certidão da APA, na parte em que serve de fundamento à matéria considerada assente nos pontos 1 a 6 supra constitui um caso típico de juízo pessoal do documentador, por comportar um ato opinativo elaborado por peritos especializados num determinado ramo do saber, ou com mais propriedade, um parecer tal como resulta da lição de Batista Machado: “(…) uma opinião crítica autorizada, em que são aprofundados os mais difíceis problemas técnicos, jurídicos e políticos e proposta uma solução final firmada em fundamentos cuidadosamente apurados, depois de examinados todos os ângulos e possíveis incidências de tal solução.”[7]

Demonstrando.

A nota técnica que a certidão documenta termina com as seguintes conclusões:

“O sistema de ilhas-barreira da Ria Formosa carateriza-se por uma intensa morfodinâmica de constantes variações naturais (migração dos areais e galgamentos oceânicos). Todas as suas unidades arenosas (península do Ancão, Ilha da Barreta, Ilha da Culatra, Ilha da Armona, Ilha de Tavira, Ilha de Cabanas e península da Cacela) têm efetivamente génese aluvionar, sendo constituídas por areais mobilizados pela ação conjunta das ondas e corrente de maré.

Consequentemente, nos termos do disposto no artº 10º, nº 1, da Lei 54/2005, as ilhas barreira devem ser consideradas, à face da lei, como parte integrante do leito das águas do mar e, por conseguinte, compreendidas no domínio público marítimo pertencente ao Estado: primeiro, porque são formadas por efeito de aluviões; e segundo, porque se modificam constantemente em virtude da dinâmica dos areais, acontecendo com frequência que tais ilhas sofrem importantes modificações morfológicas nos seus extremos, alternando fases de erosão com acumulação”.

Pondo de parte as considerações de direito, por evidenciarem juízos pessoais do documentador de que ninguém duvidará, resta-nos (i) a intensa morfodinâmica de constantes variações naturais (migração dos areais e galgamentos oceânicos) que caracteriza o sistema de ilhas-barreira da Ria Formosa e (ii) a génese aluvionar (constituição por areais mobilizados pela ação conjunta das ondas e corrente de maré) de todas as unidades arenosas que compõem o sistema de ilhas-barreira da Ria Formosa (península do Ancão, Ilha da Barreta, Ilha da Culatra, Ilha da Armona, Ilha de Tavira, Ilha de Cabanas e península da Cacela).

A apreensão destes factos resultou, no dizer da nota técnica, de “representações cartográficas”, de “descrições coevas”, do “padrão geral identificado pela bibliografia (Dias, 1988, Andrade, 1990)” e do estudo elaborado por investigadores da Universidade do Algarve (Bernardo e Dias, 2002)”, ou seja, nenhum deles foi percecionado (afastada que se mostra, por natureza, a possibilidade da sua execução) pelos técnicos que o subscreveram e a sua apreensão não dispensou a interpretação de documentos – representações cartográficas – e a aplicação de saberes técnicos - padrão geral identificado pela bibliografia e estudo elaborado por investigadores da Universidade do Algarve – numa apreciação intelectual que concorreu a final para a apreensão dos factos anotados nas conclusões e, assim, em juízos pessoais do documentador que, por falíveis, não fazem fé pública.

Aliás, a decisão recorrida, divergindo desta conclusão, converge nos pressupostos ao designadamente consignar: “É de realçar que esta declaração é emitida com fundamento em estudos científicos (…)”.

Não está em causa, nesta fase, dizê-lo é anotar o óbvio, o acerto ou valia intrínseca do juízo técnico, ou pericial, que a nota técnica documenta, mas tão só a constatação desta sua natureza, pois é ela que obsta aos efeitos – força probatória plena – que a decisão recorrida atribuiu ao documento.

Assim, e revendo o relator o entendimento expresso no acórdão desta Relação de 11/1/2018[8], subscrito enquanto 1º adjunto, conclui-se que a nota técnica donde foi extraída a certidão da APA, junta aos autos designadamente de fls. 131 a 165, em contrário do ajuizado na decisão recorrida, não faz prova plena quanto à matéria julgada provada nos pontos 1 a 6, comportando meros juízos pessoais do documentador, sujeitos à livre apreciação do julgador, o que significa para os autos, que tal matéria permanece controvertida (o A. alega que a sua casa se situa numa ilha e os RR defendem que a casa se situa em areais formados por deposição aluvial) e, assim, carecida de prova.

1.1.2. Com fundamento no acordo das partes, a decisão recorrida julgou assente que “o autor é detentor de uma edificação na Ilha da Culatra, Núcleo do Farol Nascente” (ponto 8 dos factos provados) e motivou assim este juízo: “Concretamente, as partes encontravam-se de acordo quando à detenção, por parte do autor, de uma edificação localizada na Ilha da Culatra- Núcleo do Farol Nascente”.

O A. diverge na essencial consideração que alegou “a posse da casa e prédio urbano” e não a sua detenção e que não se pode considerar assente por acordo um facto que não foi alegado.

Ao longo da p.i., o A. alegou ser possuidor duma edificação e logradouro na Ilha da Culatra e que esta posse era boa para usucapião (cfr. designadamente artºs 1º, 3º, 27º a 31º), a ré Polis aceitou expressamente que o A. e a sua ex-mulher “mantêm em terrenos do domínio público do marítimo (…) da ilha da Culatra, a construção identificada pelo nº 28” (artº 78º da contestação) e o réu Estado aceitou que “o A. é detentor de uma edificação na Ilha e Núcleo referidos” (artº 2º da contestação).

O juízo da decisão recorrida – o autor é detentor de uma edificação na Ilha da Culatra – parece assentar na ideia que a detenção corresponde à situação de facto que está na origem da posse, ou seja, distinguindo-se na posse um elemento material – “corpus” – que se traduz na prática de atos materiais sobre a coisa e um elemento psicológico – “animus” – que se traduz na intenção de alguém se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticados, a detenção corresponderia ao corpus da posse e distinguindo-se necessariamente nesta, foi aceite pelos RR; simplificando, o facto mostrar-se-ia assente por corresponder ao mínimo denominador comum entre o alegado pelo A. e o aceite pelos RR.

E este (suposto) raciocínio, a nosso ver, seria defensável, não fora o caso da detenção corresponder a um conceito normativo que se distingue da posse e que, pelo menos para efeitos de usucapião, à posse se opõe.

A lei define o que deve entender-se por simples detenção (artº 1253º, do CC) e estabelece que, salvo os casos de inversão do título, os detentores ou possuidores precários não podem adquirir por usucapião (artº 1290º, do CC).

O exposto já evidencia a dificuldade, ou melhor dizendo, a impossibilidade de se considerar assente por acordo uma matéria – a detenção da edificação – que não foi alegada pelo A e cuja carga normativa arruína a sua pretensão (se é detentor não pode usucapir).

Atenta a posição assumida pelas partes nos articulados, a matéria julgada assente no ponto 8 supra, mostra-se controvertida e, a considerar-se facto, carecida de prova.

2. Os efeitos de factos carecidos de prova na marcha do procedimento.

O juiz pode conhecer do mérito da causa no despacho saneador, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória [artº 595º, nº 1, al. b), do CPC] e quando a ação, depois de proferido o despacho saneador, houver que prosseguir, o juiz profere despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova (artº 596º, nº 1, do CPC).

A decisão recorrida considerou que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação do pedido deduzido pelo A., por haver considerado provados os factos supra discriminados de 1 a 6; com recurso a estes factos concluiu que o terreno em que o A. construiu uma casa é considerado leito das águas do mar, pertence ao domínio público marítimo do Estado e, assim, imprescritível, declinando a pretensão do A. por estruturada na prescrição aquisitiva dum bem que não a admite.

Mostrando-se controvertidos e, assim, carecidos de prova os factos que fundamentam este segmente da decisão, como agora se reconhece, deverão os autos prosseguir com a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova.

A tanto não obsta, a nosso ver, o segundo fundamento, subsidiário por assim dizer, que na metodologia da decisão recorrida justificou a improcedência da ação nesta fase processual.

Depois de anotar que “a consideração das ilhas-barreira como integrantes do domínio público do Estado ressalta de variados diplomas legais, anteriores até ao alegado início da posse do autor, mormente dos diplomas invocados pela ré Polis, entre os quais o DL nº 40.718, publicado em Diário de Governo de 02.08.1956, bem como o Preâmbulo do DL nº 92/83, de 16.02” e que concretamente em relação à Ilha da Culatra, como decorre do Plano de Ordenamento da Orla Costeira Vilamoura – Vila Real de Santo António, aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros nº 103/2005, de 05.06, o terreno em causa localiza-se em área de espaço natural a renaturalizar (vide a planta de síntese, identificado como UOPG 4), sendo que, o artº 84º, nº 2, al. a) deste diploma estabelece como objetivo a “manutenção do carácter de dominialidade do domínio hídrico”, transparecendo, assim, a consideração da dominialidade pública desta ilha-barreira, e que será «objeto de elaboração de ações de renaturalização» (artº 37º)”, a decisão recorrida consignou que “(…)

mesmo que se considerasse o solo em questão como domínio privado do Estado, como defende o autor, sempre relevaria a apontada oposição do Estado Português à aquisição do respetivo direito de propriedade por particulares, interruptiva do prazo legal previsto para a usucapião, manifestada nos citados diplomas, através do reconhecimento como domínio público.

Argumento, se bem vemos, que não tem o efeito – interrupção do prazo da prescrição – que a decisão recorrida lhe atribui.

As disposições relativas à interrupção da prescrição são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à usucapião (artº 1292º do CC).

A interrupção da prescrição tem por efeito inutilizar o tempo decorrido para a prescrição, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo (artº 326º, nº 1, do CC) e tem lugar, na terminologia legal, “pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente” (artº 323º, nº 1, do CC).

Como anotam Pires de Lima e Antunes Varela, “decorre claramente deste preceito que não basta o exercício extrajudicial do direito para interromper a prescrição: é necessária a prática de atos judiciais que, direta ou indiretamente, deem a conhecer ao devedor a intenção de o credor exercer a sua pretensão.” [9]

Visto o argumento da decisão recorrida à luz da citada norma e desta doutrina já vê a dificuldade que encerra e isto porque o ato, ou atos, que elege como interruptivos da prescrição são atos normativos (DL nº 40.718, publicado em Diário de Governo de 02.08.1956), exposições de motivos de atos normativos (Preâmbulo do DL nº 92/83, de 16.02) e instrumentos de gestão e organização do território (Plano de Ordenamento da Orla Costeira Vilamoura – Vila Real de Santo António aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros nº 103/2005, de 05.06), ou seja, atos que não comportam a prática de qualquer ato judicial que, direta ou indiretamente, dê a conhecer ao A. a intenção do Estado se comportar como dono do terreno e construção que o A. considera seus.

Admitindo, porém, e atento o exposto por mera necessidade de raciocínio, que este fundamento da decisão recorrida constitui uma solução plausível para a questão de direito, não passará disto mesmo, ou seja de uma solução possível entre outras e, como tal, não podemos, nesta fase, assentar que o processo contém todos os elementos para uma decisão conscienciosa, ou seja, que permite sem necessidade de mais provas a apreciação do pedido do A., razão pela qual deverá prosseguir com a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova.

O recurso procede, restando revogar a decisão recorrida.

3. Custas

As custas deverão ser suportadas por quem a final as houver que pagar, por não se evidenciar, nesta fase processual, nem o proveito, nem o vencimento de nenhuma das partes (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida, prosseguindo os autos nos termos supra enunciados.
Custas pelo vencido a final.
Évora, 8/3/2018
Francisco Matos
Mário Branco Coelho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário

Sumário (da responsabilidade do relator – artº 663º, nº 7, do CPC):

(…)

__________________________________________________

[1] Código de Processo Civil, anotado, 1952, vol. 5º, pág. 141.

[2] Ob. e volume cit., pág. 124.

[3] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 227.

[4] Ob. cit., pág. 228 vº.

[5] Código de Processo Civil anotado, vol. 3º, 1950, pág. 368.

[6] Ob. cit. pág. 371.

[7] Lições de Introdução ao Direito Publico, in obra dispersa, II Braga, 1993, pág. 261.

[8] Processo n.º 2620/16.2T8FAR.E1.

[9] Código Civil anotado, vol. 1º, pág. 269.