Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | CARLOS CAMPOS LOBO | ||
Descritores: | CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTE CULPA DIMINUTA DISPENSA DE PENA | ||
Data do Acordão: | 11/08/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | I – Integra a previsão inserta no artigo 40º, nº 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro., a factualidade objetiva dada como assente pelo tribunal recorrido que consiste em o arguido deter na sua posse 5,354 gramas de canábis (resina), com o grau de pureza de 16,7% (THC) e suficientes para 17 (dezassete) doses individuais diárias destinada apenas ao consumo pelo arguido, mormente tendo como base critério orientador fornecido pela Portaria 94/96, de 26 de março. II – Os valores constantes do mapa anexo à dita Portaria não implicam conclusões rigidamente determinadas quanto às quantidades de consumo médio individual, nomeadamente, em situações onde se desconhece o grau de pureza do produto apreendido, ou seja, não são inderrogáveis, automáticos ou imperativos, podendo ser considerados valores de consumo médio individual diferentes em função das caraterísticas individuais do consumidor em questão. III – Todavia, para abalar os aludidos indicadores, não basta que o arguido recorrente, sem qualquer outro suporte / ancoradouro, se estribe na mera afirmação de que estando numa situação recente de separação, não estava bem, pretendendo deixar antever que por isso, consumia mais produto estupefaciente em termos diários. IV - Necessário seria que se tivesse demonstrado que o arguido recorrente usava por dia uma dose superior a 0,5 gramas dia para afastar o critério orientador e, por outro lado, que inexistissem os adequados exames laboratoriais a determinar qual a percentagem do princípio ativo contido na substância apreendida. V - Existindo prova pericial que foi valorada pelo julgador, quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão, e nada aduzindo o arguido recorrente que, por alguma forma, a faça claudicar / enfraquecer / titubear há que lhe dar acolhimento e a mesma seguir. VI – A utilização do instituto da dispensa de pena, a coberto do plasmado no nº 3 do artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, ao que parece, impõe que se demonstre que a situação em presença decorre do facto de o agente ser consumidor ocasional, o que se não compagina com a circunstância de, anteriormente o arguido já se ter envolvido em prática da mesma natureza. VII - Por outro lado, a dispensa de pena, mecanismo acalentado em termos gerais no artigo 74º do CPenal, reclama a verificação, em concreto, de determinados pressupostos – ilicitude do facto e culpa do agente diminutas; reparação do dano; não oposição de razões de prevenção geral. VIII – In casu, não se podendo ponderar o aspeto reparação do dano, restam a questão da culpa diminuta que apela à verificação de uma ou mais circunstâncias atenuantes - o que não parece emergir dos autos, nem sequer o arguido recorrente o alegou e demonstrou – e a não oposição de razões de prevenção remete para a ausência de necessidades de prevenção geral quadro este, que tendo em atenção o flagelo social que este tipo de prática vem desencadeando, também não se patenteia. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam em Conferência na Secção Criminal (2ª subsecção) I – Relatório 1.No processo n.º 220/21.4PBSTB, da Comarca de Setúbal – Juízo Local Criminal de Setúbal – J2, foi proferida sentença em que se decidiu condenar o arguido AA, filho de BB e de CC, nascido em .../.../1988, natural da freguesia ..., concelho ..., portador do Cartão do Cidadão nº ...43 e do NIF ..., solteiro (união de facto), operador fabril desde 2018 até 2021 e atualmente ajudante de serralheiro mecânico, residente em Rua ..., ... ..., em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de consumo (de estupefacientes), previsto e punível pelo artigo 40º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 15/1993, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa a este diploma legal, e ao artigo 9º da Portaria nº 94/1996, de 26 de Março, mas devidamente conjugado com o disposto nos artigos 28º e 2º/2,a contrario sensu, ambos da Lei nº 30/2000, de 29.11, com a interpretação dada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 8/2008, do Supremo Tribunal de Justiça, na pena de 90 (NOVENTA) Dias de Multa, com o quantitativo diário de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante total de € 540,00 (QUINHENTOS e QUARENTA Euros); I - A sentença recorrida ignorou o grau de pureza da substância submetida a exame pericial no LPC. VI - Ora, tendo o exame quantificado a percentagem do princípio activo, o tribunal recorrido devia tê-lo em conta para se socorrer dos valores constantes do mapa anexo à Portaria n. º 94/96 e adequá-los ao caso concreto. V. Exs., decidindo a favor da pretensão do arguido, farão Justiça. 3.O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da confirmação da sentença proferida, apresentando as seguintes conclusões: Termos em que, Vossas Excelências farão a habitual JUSTIÇA. 4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que se passa a designar de CPPenal), emitiu parecer pronunciando-se também no sentido da improcedência do recurso, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância[1]. 5. Efetuado exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir. II – Fundamentação 1.Questões a decidir Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art.º 410°, n.°2 do CPPenal, o âmbito do recurso é dado, nos termos do art.º 412º, nº1 do citado complexo legal, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido - jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95. 2. Apreciação 2.1. O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos: (transcrição) Acusação Pública sob a Refª ... - No dia ../.../2021, cerca das 00H50m, na ... em ..., o arguido detinha na sua posse 5,354 gramas de canábis (resina), com o grau de pureza de 16,7% (THC) e suficientes para 17 (dezassete) doses individuais diárias. - O produto estupefaciente apreendido destinava-se apenas ao consumo pelo arguido. - O arguido estava ciente da natureza do produto que detinha e da circunstância de a respetiva quantidade ser superior à necessária para consumo durante 10 (dez) dias. - O arguido sabia que a detenção daquela substância em quantidade superior à necessária para o consumo durante 10 (dez) dias é proibida e punível por lei criminal. - O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, com o propósito concretizado e conseguido de deter canábis (resina) em quantidade superior a 10 (dez) doses individuais diárias, bem sabendo que não se encontrava autorizado por autoridade competente para tal detenção. - O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punível por lei criminal. * Apurados em Audiência de Julgamento A)- O arguido faltou injustificadamente à primeira sessão da audiência de julgamento e só compareceu à segunda sessão da mesma mediante prévia emissão e cumprimento de mandados de detenção e condução para o efeito. * B)- Da Situação Pessoal e da Condição Socioeconómica do Arguido - O arguido é solteiro, viveu em união de facto durante cerca de nove anos, e tem um filho com 8 (oito) anos de idade. - O arguido exerceu a atividade profissional de operador fabril desde 2018 até 2021 e atualmente exerce a atividade profissional de ajudante de serralheiro mecânico, auferindo o vencimento mensal ilíquido de € 705,00 (setecentos e cinco euros) desde 01 de Janeiro de 2022, correspondente a vencimento mensal líquido situado entre € 640,00 e € 690,00. - O arguido reside com seus pais em casa tomada de arrendamento, sendo que seus pais e o próprio arguido, em conjunto, pagam, a título de renda mensal, cerca de € 500,00. - É titular, inscrito no registo, dum veículo automóvel (“carrinha”) de marca e modelo ...” com ano de matrícula de 2014. - O arguido tem como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade. * Dos Antecedentes Criminais do Arguido - O Arguido tem antecedentes criminais registados no respetivo Certificado de Registo Criminal constante da Refª ...91, dele constando uma anterior condenação em pena de multa pela prática em 04.10.2008 de um crime de consumo (de estupefacientes) – de idêntica natureza, portanto, ao do que originou os presentes autos -, e uma anterior condenação pela prática em 31.07.2012 de um crime de furto qualificado numa pena de multa substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade. Posteriormente à data da prática dos factos que originaram os presentes autos, o arguido praticou factos e sofreu uma condenação em 04.05.2021 (transitada em julgado em 03.06.2021), numa pena de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal. * 2.2 - Factos não provados - Inexistem com relevância para a decisão da causa.
- Com interesse para a decisão da causa, não foram dados como provados quaisquer outros factos que estejam em oposição com os que foram supradados como provados, nem quaisquer outros factos que não tenham ficado desde logo prejudicados pelos que foram acima dados como provados. 2.2. Fundamentação da matéria de facto: A convicção deste Tribunal, no que concerne aos factos provados constantes da acusação pública, filiou-se desde logo nas declarações da testemunha arrolada pela acusação pública, DD, ... que fiscalizou o arguido nas data e hora da prática dos factos e que depôs, portanto, com conhecimento direto dos mesmos factos, bem como com credibilidade, espontaneidade, segurança, certeza e verosimilhança. Confirmou genericamente o teor da acusação pública e com especial relevância declarou que o arguido quando foi abordado confessou de imediato que era detentor de dois pedaços de haxixe, os quais se encontravam no interior dum maço de tabaco. Concretizou afirmando que o arguido, no momento da fiscalização, disse logo à ora testemunha que o produto estupefaciente se encontrava no interior dum maço de tabaco e assumiu de imediato que tal produto lhe pertencia e estava na sua posse. Acrescentou que o arguido referiu também e de imediato à ora testemunha que adquirira o produto estupefaciente junto do ... sito em ..., pelo preço de dez euros e - com especial relevância - que o destinava a seu próprio consumo! Esta testemunha concluiu dizendo que, aquando da fiscalização em apreço, pediu ao arguido o seu documento de identificação nomeadamente o respetivo Cartão de Cidadão, com o qual o identificou sem quaisquer dúvidas, sendo que foi a própria testemunha a tomar Termo de Identidade e Residência ao ora arguido (cfr. TIR sob a Refª ...09) ! Por sua vez, o ora arguido AA, na segunda sessão de julgamento (à qual foi conduzido mediante cumprimento de mandados de detenção e condução para o efeito), após ser advertido de que poderia remeter-se ao silêncio, exerceu a sua faculdade legal de prestar declarações. No decurso das mesmas confessou, com particular relevo, que detinha na sua posse o produto estupefaciente apreendido, mas fez a ressalva de que a respetiva quantidade se destinava ao seu próprio consumo pelo período de dez dias. Esta ressalva não teve qualquer base de sustentação, a não ser através da mesma evitar a atribuição de natureza criminal à sua conduta! Aliás, tal ressalva é desde logo contrariada pelo teor do Relatório de Exame Pericial constante destes autos sob a Refª ...53 cujo teor se dá por integralmente reproduzido. Confirmou a sua assinatura do Auto de Apreensão vertido sob a Refª ...10. Acabou por declarar que entregou os dois pedaços de haxixe (contidos num maço de tabaco) ao Sr. ... e ora testemunha! * Este Tribunal baseou-se, ainda, repete-se, no teor do Relatório de Exame Pericial constante dos presentes autos (cfr. cit. Refª ...53), bem como no teor dos seguintes meios de prova documentais: 1) Auto de Notícia (Refª ...37); 2) Auto de Apreensão (Refª ...10) Relativamente à concreta quantidade, natureza e grau de toxicidade do sobredito produto estupefaciente, este Tribunal fundou a sua convicção sobretudo no aludido Relatório de Exame Pericial sob a cit. Refª ...53, não se olvidando o seu particular valor probatório. É também de notar que o número de doses detidas pelo arguido (in casu, 17 doses) foi considerada como demonstrada, uma vez mais, tendo em atenção o referido exame pericial, em particular considerando o grau de pureza do produto estupefaciente que as constituía (16,7% THC) em conjugação com o respetivo peso líquido (5,354 gramas de canábis (resina)) e os valores indicativos a respeito do consumo médio individual a que se refere a Portaria nº 94/1996, de 26 de Março. A factualidade atinente ao elemento subjetivo e à consciência da ilicitude resultou demonstrada em face da apreciação da restante factualidade dada por assente (a relativa ao elemento objetivo) em consonância com as regras da experiência comum. * Quanto à falta injustificada à 1ª sessão de julgamento, este Tribunal apoiou-se no teor da respetiva Ata sob a Refª ...65. No que concerne à comparência do arguido à segunda sessão de julgamento mediante prévia emissão e cumprimento de mandados de detenção e condução para o efeito, este Tribunal baseou-se no teor da respetiva Ata sob a Refª ...60, devidamente conjugado com a “Comunicação de Detenção” sob a Refª ...00. * No que tange à situação pessoal e à condição socioeconómica do arguido, a nossa convicção ancorou-se no teor das declarações prestadas pelo próprio arguido, as quais se nos afiguraram credíveis e verosímeis, e de acordo com a realidade socioeconómica e familiar de quem exerce, no nosso país, a atividade profissional do ora arguido. * Por último, quanto aos antecedentes criminais, conhecidos e/ou registados, respeitantes ao ora arguido, este Tribunal atendeu ao teor do Certificado atualizado de Registo Criminal relativo ao mesmo arguido e junto sob a Refª ...63. * Nos termos supra-expostos, ponderando todos os elementos de prova referidos, analisados de modo crítico e ponderado, segundo as regras da experiência comum, da lógica e do normal acontecer e de acordo com o princípio da livre convicção do julgador, dúvidas não teve o Tribunal em dar por assentes os factos nos termos acima consignados.
Foi o arguido condenado, como autor material, de um crime de consumo p. e p. pelo artigo 40º, nº 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro. Como exubera do último inciso salientado, está-se face a vícios decisórios cuja indagação, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[2]. Aqui não se cuida de realizar um segundo julgamento sobre aquela matéria, assumindo-se antes como um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Na verdade, o que está em causa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa[3]. O arguido recorrente invoca “erro notório na apreciação da prova”. Tem-se entendido – delimitação positiva do erro notório na apreciação da prova – que constitui tal, a saber: o erro sobre facto notório incluindo os factos históricos de conhecimento geral; a ofensa às leis da natureza (vg. considerar provado um facto física ou mecanicamente impossível); a ofensa às leis da lógica (vg. incompatibilidade entre o meio de prova invocado na fundamentação e os factos dados como provados com base nesse meio de prova); ofensa dos conhecimentos científicos criminológicos e vitimológicos[4]. Mostram-se aqui incluídas todas as situações que se assumam como casos de erro “(…) evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta (…) também todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, comprovar que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada”[5]. Tem-se igualmente entendido na jurisprudência configurar tal noção, tudo o “(…) que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa” (…) aquele erro de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta”[6]. Olhando toda a decisão recorrida, ainda que distraidamente, não emerge a mácula sugerida, entendida como aquilo que se mostre evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e resulte do texto da sentença, conjugado com as regras da experiência comum. Assenta o arguido recorrente esta sua linha de defesa na mera circunstância de o tribunal recorrido não ter considerado que declarou “(…) tinha-me separado, tinha-me separado e não andava bem. Era o meu consumo para 10 dias.”. Todavia, diversamente ao aqui propugnado, é cristalinamente evidente que tal foi atendido e ponderado - No decurso das mesmas confessou, com particular relevo, que detinha na sua posse o produto estupefaciente apreendido, mas fez a ressalva de que a respetiva quantidade se destinava ao seu próprio consumo pelo período de dez dias. Esta ressalva não teve qualquer base de sustentação, a não ser através da mesma evitar a atribuição de natureza criminal à sua conduta! Aliás, tal ressalva é desde logo contrariada pelo teor do Relatório de Exame Pericial constante destes autos sob a Refª ...53 cujo teor se dá por integralmente reproduzido. A questão é que tais declarações foram lidas e entendidas pelo tribunal ad quo de forma diversa daquela que em fase recursória se pretende que sejam lidas. Ora, o que aqui ocorre é uma mera leitura divergente da prova produzida, mais precisamente o aceitar ou não a versão / posicionamento sobre os factos que o arguido apresentou. Importa aqui chamar à colação o princípio enformador do processo penal, princípio da livre apreciação da prova. O tribunal ouviu, avaliou, ponderou e decidiu. E todo esse processo foi seguido de um modo sustentado, lógico, racional e justificado, não resultando de uma mera opção arbitrária, caprichosa e / ou leviana. Sopesando todo o expendido na decisão revidenda, espelha-se que está detalhadamente explicada a razão para o tribunal não ter ficado convencido de versão do arguido, e sedimentado o caminho traçado para desmontar o posicionamento por este envergado. Calcorreando toda a motivação no que a este conspecto concerne, não exorbita qualquer contradição, falta de lógica ou irracionalidade. Assim sendo, inexistindo vício de facto de conhecimento oficioso e inexistente o vício apontado, improcede nesta parte o pretendido pelo arguido recorrente. * Importa então agora cotejar toda factualidade dada como assente e, apurar se a mesma é ou não passível de integrar a previsão inserta no artigo 40º, nº 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro. Para tanto socorreu-se o tribunal a quo, em síntese, dos seguintes factos que entendeu integrar o tipo objetivo - o arguido detinha na sua posse 5,354 gramas de canábis (resina), com o grau de pureza de 16,7% (THC) e suficientes para 17 (dezassete) doses individuais diárias (…) destinava-se apenas ao consumo pelo arguido (…) arguido estava ciente da natureza do produto que detinha e da circunstância de a respetiva quantidade ser superior à necessária para consumo durante 10 (dez) dias. Verifica-se de toda a decisão proferida que se ancorou a mesma, no que respeita aos factos supraditos, no critério orientador fornecido pela Portaria 94/96, de 26 de março, para assim concluir que o produto estupefaciente tido pelo arguido, excedia o necessário para consumo durante dez dias. Sendo entendimento pacífico, crê-se, que os valores constantes do mapa anexo àquela não implicam conclusões rigidamente determinadas quanto às quantidades de consumo médio individual, nomeadamente, em situações onde se desconhece o grau de pureza do produto apreendido[7], ou seja, que os valores de “dose média individual” previstos na Tabela anexa à Portaria nº 94/96, de 26/3 não são inderrogáveis, automáticos ou imperativos, podendo ser considerados valores de consumo médio individual diferentes em função das caraterísticas individuais do consumidor em questão[8], o certo é que este segmento da matéria de facto, pese embora questionado em sede recursiva, não o foi com base em elementos sólidos e consistentes. Na verdade, ao que se pensa, não basta o arguido recorrente, sem qualquer outro suporte / ancoradouro, estribar-se na mera afirmação de que estando numa situação recente de separação, não estava bem, pretendendo deixar antever que por isso, consumia mais produto estupefaciente em termos diários que, in cau, por coincidência e de acordo com o que afirmou, dava para dez dias. Necessário seria salvo melhor e mais avisada opinião, que se tivesse demonstrado que o arguido recorrente usava por dia uma dose superior a 0,5 gramas dia para afastar o critério orientador acima dito e fornecido pela Portaria em referência. Diga-se, ainda, que só na ausência dos adequados exames laboratoriais que determinem qual a percentagem do princípio ativo contido na substância apreendida é que a jurisprudência tem afastado o recurso à tabela constante da citada Portaria nº 94/96, de 26 de março, estabelecendo e definindo, em alternativa, quantidades médias para o consumo médio individual durante um dia. Parece não ser aqui o caso, já que o exame laboratorial junto aos autos identifica a substância em causa, o seu peso (líquido), e bem assim a concentração do respetivo princípio ativo[9]. Faça-se notar, igualmente, que o exame pericial constante de fls. 30, sendo absolutamente claro, não foi objeto de qualquer questionamento. Sendo a prova pericial valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão[10], nada parece emergir dos autos, nem o arguido recorrente o aduz por alguma forma, que faça claudicar / enfraquecer / titubear, as ilações dali constantes e, bem assim, estas dimensões notadas. Deste modo, detendo o arguido 5,354 gramas de cannabis (resina), com um grau de pureza de 16,7%, sendo a dose média individual de 0,5 g, para um grau de concentração média de 10%, exubera como evidente, crê-se, que tinha o arguido recorrente na sua posse o correspondente a 17 doses diárias: 5,354 x (16,7% / 10%) / 0,5, tal como se deu como demonstrado. Pesando todos estes considerandos entende-se que está efetivamente desenhada a previsão do nº 2 do artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, tal como o afirmado em 1ª instância. * Sufraga ainda o arguido recorrente a posição de que se deveria recorrer ao instituto da dispensa de pena, a coberto do plasmado no nº 3 do artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro. Seguir esta linha de defesa, impunha-se, desde logo, que se tivesse demonstrado que o arguido recorrente é consumidor habitual. Com efeito reza a dita normação - se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena. Parece que nada neste conspecto extravasa de todo o demonstrado, sendo até de notar que o arguido recorrente já anteriormente a estes factos se viu envolvido na mesma prática. Tal parece inculcar a ideia de que o consumo deste tipo de substâncias não será pontual. Ao que soma, que a dispensa de pena[11], mecanismo acalentado em termos gerais no artigo 74º do CPenal, não sendo uma medida de clemência e podendo até assumir-se como uma pena de substituição[12], reclama a verificação, em concreto, de determinados pressupostos – ilicitude do facto e culpa do agente diminutas; reparação do dano; não oposição de razões de prevenção geral. No caso em apreço, ao que se pensa, não se podendo ponderar o aspeto reparação do dano, restam as duas outras esferas. A culpa diminuta[13], ao que se supõe, apela à verificação de uma ou mais circunstâncias atenuantes, o que não parece emergir dos autos, nem sequer o arguido recorrente o alega e demonstra. Por seu turno, a não oposição de razões de prevenção remete para a ausência de necessidades de prevenção geral[14], quadro este, tendo em atenção o flagelo social que este tipo de prática vem desencadeando, também aqui não se patenteia. Antes pelo contrário, em termos de prevenção geral, demanda-se rigor e assertividade. Ante todo o expendido, é de concluir não ser aqui caso de uso do instituto da dispensa de pena. Neste vetor da pena, insurge-se também o arguido recorrente, quanto à dosimetria encontrada pelo tribunal recorrido. Impõe-se, desde já, sublinhar que nesta sede o recurso não é uma oportunidade para o tribunal ad quem fazer um novo juízo sobre a decisão de primeira instância ou a este se substituir. É antes um meio de corrigir o que de menos próprio foi decidido pelo tribunal a quo. Nessa medida, impõe-se ao recorrente o ónus de demonstrar perante o tribunal de recurso que algo de visivelmente errado / escandaloso ocorreu na decisão de primeira instância na matéria relativa à ou às penas impostas. Ora, no caso sub judice, nada transparece nem se alega, que aponte para a intervenção, em sede de recurso, na pena encontrada. Para suceder neste patamar, competiria ao arguido recorrente aduzir factos e razões que ilustrassem ostentar a decisão revidenda uma solução chocante na determinação da pena. Não o logrou fazer. A solução encontrada, dentro da moldura possível, parece equilibrada e sensata. Ponderando, mormente considerando todo o registo factual assente em 1ª instância e sem necessidade de outros considerandos, entende-se que, também quanto a este traço, falece o recurso interposto, sendo de manter o decidido. (Carlos de Campos Lobo - Relator) (Ana Bacelar – 1ª Adjunta) (Renato Barroso – 2º Adjunto) __________________________________________________ [1] Cfr. fls. 153 e 154. [2] Neste sentido GONÇALVES, Maia, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; SILVA, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; SANTOS, Simas, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121). [3] Neste sentido ver Acórdãos do S.T.J., de 14 de março de 2007, Processo 07P21, de 23 de maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de julho de 2008, Processo 08P1312, disponíveis em dgsi.pt. [4] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição actualizada, 2009, Universidade Católica Portuguesa, p. 1095. [5] GASPAR, António da Silva Henriques, CABRAL, José António Henriques dos Santos, COSTA, Eduardo Maia, MENDES, António Jorge de Oliveira, MADEIRA, António Pereira, GRAÇA, António Pires Henriques da, Código de Processo Penal, Comentado, 2ª edição revista, 2016, Almedina, p.1275. [6] Ver os Acórdãos do STJ de 12.11.98, BMJ 481, p. .325 e de 9.12.98, BMJ 482, p.68. [7] PEREIRA, Rui – A Descriminação do Consumo de Droga, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1177/1178, Acórdãos do STJ de 30/04/2008, proferido no processo 07P4723, do Tribunal da Relação do Porto de 17/02/2010, proferido no Processo 871/08.2 PRPRT.P1, entre outros, disponíveis em dgsi.pt. [8] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8/09/2020, proferido no Processo nº 106/19.2PBMAI.P1, disponível em www.dgsi.pt. [9] Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/09/2017, proferido no Processo 36/13.1GBALQ.L1-5, disponível em www.dgsi.pt. [10] Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/06/2020, proferido no Processo nº 375/16.0JAFUN.L1-5, disponível em www.dgsi.pt. [11] Este instituto inspira-se na dispense de peine da Lei Francesa de 11/07/1975. [12] Neste sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português, Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, p. 317 – (…) o instituto tem, em si mesmo, algo de uma pena de substituição (…). [13] Neste sentido, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, 2021, Universidade Católica Portuguesa, p. 400. [14] Neste sentido, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, ibidem. |