Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
53/20.5GALGS.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: PROVA INDIRETA
IMPRESSÕES DIGITAIS
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O local onde foram recolhidas as impressões digitais é um aspecto relevantíssimo para se aquilatar do valor probatório a dar, ou não, às mesmas.

Tratando-se da parte exterior de uma janela por onde a vítima concluiu que alguém entrou para se apoderar da carteira enquanto ela se encontrava à porta da residência a falar com um indivíduo que não era o arguido e tendo as impressões digitais sido recolhidas dois dias depois da prática dos factos, tal não é suficiente para se concluir, sem qualquer outra prova, que o arguido é o autor do furto.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

RELATÓRIO

No âmbito do processo 53/20.5GALGS o arguido AA foi condenado na pena de 3 (três) de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 26.º, 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, al. e), por referência ao artigo 202.º, al. e), todos do Código Penal

Tal pena de prisão foi substituída por suspensão da execução da mesma, por igual período de três anos de prisão, subordinando-se a suspensão à entrega da quantia de €750,00, durante o primeiro ano do período da suspensão, a uma Instituição Particular de Solidariedade Social.

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Inconformado com tal condenação, o arguido recorreu da sentença, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“I. O recorrente foi condenado na pena de três anos de prisão pela prática em autoria material, na forma consumada, de 1 crime de furto (híper) qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas com os artigos 26.º, 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, al. e), por referência ao artigo 202.º, al. e), todos do Código Penal, suspensa a sua execução por igual período de três anos de prisão, subordinando-se a suspensão à entrega da quantia de 750,00€ durante o primeiro ano do período de suspensão, a uma IPS, na cidade de Lagos.

II. Entende o arguido, ora recorrente, que a decisão da matéria dada como provada padece de prova e/ou fundamento; Erro na apreciação da prova.

III.Dos factos dados como provados, destaca-se que:

IV. No dia 21.02.2020, pelas 13:00horas, o arguido dirigiu-se à residência de BB, localizada na Urbanização …, lote …, …, concelho de …, com o propósito de se apoderar de bens de valor e de fácil transporte que ali viesse a encontrar.

V. De que na execução desse desígnio introduziu-se dentro do logradouro da dita residência através de um portão que se encontrava aberto.

VI. Seguidamente, aproximou-se de uma janela das traseiras da habitação que dista cerca de 1,50m do solo e através dessa janela entrou no interior da habitação.

VII. Do interior da supra referida habitação, o arguido, ora recorrente retirou e levou consigo, fazendo suas, uma carteira que continha no seu interior a quantia de 400,00€ (quatrocentos euros) em numerário, pertencentes a BB.

VIII. Na posse dos objectos (carteira e dinheiro) abandonou o local para parte incerta e que estes objectos não foram recuperados..

IX. Pelo que, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de integrar no seu património os objectos que encontrasse no interior daquela residência.

X. Mais sabia o arguido que a residência se encontrava fechada, não sendo ele possuidor de chave, e que, ao entrar ali, o fazia sem autorização do proprietário, de forma ilegítima e mediante a transposição de janela para o interior do local.

XI. Mais sabia que todos os bens de que se apoderou não lhe pertenciam e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

XII. Do seu certificado de registo criminal constam duas condenações, ambas já extintas.

XIII. O Tribunal a quo deu ainda como provados outros factos, referentes ao arguido, que não se transcrevem por questão de economia processual e por não relevarem para a presente motivação.

XIV. O Tribunal a quo fundamentou-se, na apreciação dos factos no conjunto da prova produzida, apreciada criticamente e de acordo com as regras da experiência.

XV. Nomeadamente, o Tribunal a quo, formou a sua convicção acerca da matéria dada como provada pelo teor do auto de notícia, teor do relatório de exame pericial e teor do registo criminal do arguido, inexistindo prova directa e apenas indiciária (colheita de vestígios lofoscópicos no local onde ocorreu o crime) do cometimento de tais factos terem sido praticados pelo arguido.

XVI. Vale dizer que, no circunstancialismo de tempo apurado, a verdade material alcançada em audiência de julgamento veio desencadear na conclusão de que de facto, um indivíduo no dia 21.02.2020 abordou a ofendida do lado de fora da sua habitação mas ainda dentro da sua propriedade, indagando-a se vendia material de construção que tinha no seu jardim, tendo-lhe dito que não, pelo que o acompanhou até ao portão; nisto quando regressou a casa apercebeu-se de que não tinha a sua carteira no mesmo sítio, carteira esta que tinha cerca de 400,00€

XVII. Que teriam entrado por uma janela que estava aberta para a casa arejar.

XVIII. Que a pessoa que a abordou acerca do material de construção não é o arguido.

XIX. Que passados três dias apercebeu-se de umas impressões digitais na janela onde depois encontrou a sua carteira já sem o referido dinheiro.

XX. As autoridades que no dia em questão não vislumbraram quaisquer impressões digitais, volvidos três dias deslocaram-se ao local e feita a recolha das impressões digitais, a análise de dois vestígios lofoscópicos conduziram à identificação do arguido.

XXI. Perante tal factualidade, cumpre apurar-se se a vinculação do vestígio conectado à pessoa do arguido emerge, no caudal probatório, suficiente para permitir alcançar a conclusão de que o mesmo é o autor dos factos imputados.

XXII. Em conclusão de todos os testemunhos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento é pacífico que a sequência dos factos que sucederam, vislumbram, com forte probabilidade que alguém entrou na habitação da ofendida e que usou-se como distração um outro individuo, para subtracção da referida quantia monetária, pelo que este crime não foi realizado apenas por um indivíduo.

XXIII. Contudo da prova recolhida e apresentada em audiência, mormente os vestígios lofoscópicos aferidos apenas permitem concluir que a região palmar da mão esquerda e a região palmar da mão direita do arguido estiveram em contacto com a janela da casa da ofendida.

XXIV. Tal, porém, não esclarece em que circunstâncias até porque os vestígios apenas foram recolhidos dias depois da ofendida ter sido furtada – onde, quando, como e porquê – tal contacto ocorreu não se sabe, nem foi provado.

XXV. Se, por um lado, “como se escreve no Ac. do STJ de 27-05-2010 (Relatado pelo Conselheiro Soares Ramos, Proc. nº 86/08.0GBPRD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt) “Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser direta e imediatamente percecionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não forem proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC). As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indireta, mediante o qual o julgador adquire a perceção de um facto diverso daquele que é objeto direto imediato de prova, sendo exatamente através deste que, uma vez determinado, usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objeto de prova)».

XXVI Sucede que, face à inexistência de qualquer outro elemento de conexão à pessoa do arguido, centra-se no valor a atribuir às suas impressões digitais, o que convoca o problema da valoração da prova dactiloscópica.

XXVII. Como se escreve no Ac. TR de Évora de 10.04.2018, relatado pelo Dr. Gilberto Cunha, processo n.º 29/12.6GDSTC.E2, disponível em www.dgsi.pt, “Em função daquelas características das impressões digitais, o valor probatório da perícia dactiloscópica deve ser encarado numa tripla perspectiva:

a) A aparição de uma impressão digital de uma pessoa faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada aquela impressão. Devido à grande fiabilidade da prova dactiloscópica impõe-se, porém, especiais cuidados na sua recolha [quem efectuou a recolha e quando, por ordem de quem, em que objecto e lugar se encontrava depositada, e especificamente em que zona (vidro exterior ou interior) e na sua transmissão (não estando, naturalmente afastada a existência de erro do perito na comparação)].

b) Mas se a impressão digital faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada aquela impressão ou esteve no local onde foi colhida, já não faz prova directa da participação do sujeito no facto criminoso (até porque aquele contacto com a coisa pode ser posterior à pratica do crime ou meramente ocasional).

c) Embora não faça prova directa da participação do sujeito no facto criminoso, a impressão digital pode ser encarado como um indício que, conjugado com outros indícios, pode fundamentar uma decisão condenatória (tripartição analítica exposta, por todos, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de Janeiro de 2010, proferido no âmbito do processo n.º300/04.0GBBCL.G2, Juiz Desembargador Relator Cruz Bucho, disponível em www.dgsi.pt).”

XXVIII. Ora no caso em de que se recorre, para além dos vestígios referenciados, inexiste pura e simplesmente quaisquer outro facto probatório índice que permita apontar directa ou sequer indirectamente à pessoa do arguido.

XXIX. Ora, não existe quaisquer outro indício nos autos além dos vestígios palmares do arguido encontrados na janela, vestígios estes apenas recolhidos volvidos três dias do alegado furto, razão pela qual não só existe dúvida incontornável de conexão do arguido com o suposto furto, tal como esta prova directa é insuficiente para se ter dado como provado que a autoria do furto pertence ao arguido.

XXX. Razão pela qual errou o tribunal a quo no que diz respeito à apreciação da prova, impondo-se consequentemente a respectiva absolvição do arguido.

XXXI. Por tudo quanto se expôs, e com toda a consideração e respeito pelo Tribunal de onde se recorre, deve o Tribunal da Relação reapreciar a matéria de facto e alterá-la, porquanto houve um manifesto erro na apreciação da prova, uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto.

XXXII. O Tribunal de onde se recorre deu como provados factos que carecem de prova ou a prova mostra-se manifestamente insuficiente, pelo que existe uma clara violação do princípio in dubio pro reo.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas.

Doutamente suprirão, deverá a douta Sentença ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido.

Assim se fazendo a costumada Justiça.”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta pugnando pela improcedência do mesmo.

Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.

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APRECIAÇÃO

A única questão que importa resolver nos presentes autos prende-se com a impugnação da matéria de facto, sem prejuízo, como sempre, da possibilidade do conhecimento oficioso da ocorrência de qualquer dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do C.P.P.. (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995).

E o que está em causa é saber se a prova resultante das impressões digitais do arguido detectadas na janela da residência da qual foi retirada uma carteira com dinheiro é adequada a fundamentar a sua condenação, tal como se entendeu na sentença recorrida.

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A decisão de facto contida na sentença recorrida é do seguinte teor:

“II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

2.1. Factos provados:

1. Pelas 13h00m, do dia 21.02.2020, AA dirigiu-se à residência de BB, localizada na Urbanização …, lote …, em …, concelho de …, com o propósito de se apoderar de bens de valor e de fácil transporte que ali viesse a encontrar;

2. Na execução do desígnio que formulou, aí chegado AA introduziu-se no interior do logradouro da dita residência através de um portão que se encontrava aberto;

3. Após, AA aproximou-se de uma janela das traseiras da habitação aí existente que dista cerca de 1,50 m do solo e, através dessa mesma janela entrou no interior da habitação;

4. Do interior desta residência, o arguido retirou e levou consigo, fazendo-as suas, uma carteira que continha no seu interior a quantia de 400,00€ (quatrocentos euros) em numerário, pertencentes a BB;

5. Na posse desses objectos, o arguido abandonou o local para parte incerta;

6. Não foram recuperados tais objectos;

7. Ao proceder da forma descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de integrar no seu património os objectos que encontrasse no interior daquela residência;

8. Sabia o arguido que essa residência se encontrava fechada, não sendo ele possuidor de chave, e que, ao entrar ali, o fazia sem a autorização do respectivo proprietário, por forma ilegítima e mediante a transposição de janela para o interior do local;

9. O arguido sabia que todos os bens de que se apoderou não lhe pertenciam e mesmo assim quis fazê-los coisa sua, como aliás veio a conseguir, apesar de saberem que agia contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo proprietário;

10. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei;

Mais se provou:

11. O arguido é casado;

12. Reside com a mulher e os três filhos, menores de idade;

13. Do seu negócio de compra e venda de cavalos, aufere quantia mensal que cifra entre €500,00 a €700,00;

14. O agregado familiar do arguido recebe prestações sociais pagas pela Segurança Social no valor mensal de €450,00;

15. Como habilitações literárias, o arguido tem o 5.º ano de escolaridade;

16. Do certificado de registo criminal do arguido, constam averbadas as seguintes condenações:

i. No Processo Comum n.º 710/15.8PALGS, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Lagos, J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, pela prática a 17.12.2015, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º do Código Penal, tendo sido condenado por sentença proferida a 29.11.2016, transitada em julgado a 11.01.2017, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de €5,00, o que perfaz a quantia de €400,00, pena que veio a ser declarada extinta a 15.05.2017;

ii. No Processo Comum n.º 230/16.3PALGS, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Lagos, J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, pela prática a 18.05.2016, de 2 crimes(s) de injúria agravada, p. e p. pelos art.os 181.º, n.º 1 e 184.º, 132.º, n.º 2, al) i) do Código Penal e de 2 crimes(s) de ameaça agravada, p. e p. pelo art.º 153º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al.) c) e 132.º, n.º 2 al.) i) do Código Penal tendo sido condenado por sentença proferida a 10.11.2017, transitada em julgado a 11.12.2017, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €5,00, o que perfaz o total de €600,00 pena que veio a ser declarada extinta a 13.04.2018.

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2.2. Factos não provados:

Com relevância para a boa decisão da causa inexistem.

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Os restantes factos, não especificamente dados como provados ou não provados, constituem factos repetitivos, conclusivos ou contêm factualidade irrelevante para a decisão da presente acção penal.

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Motivação:

Nos termos preceituados no artigo 127.º do Código de Processo Penal, “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, não estando o julgador subordinado a regras rígidas de prova tarifada. A convicção judicial mostra-se norteada por imperativos de busca da verdade material, num juízo que não poderá configurar arbitrariedade, devendo apresentar-se racional, ponderado, crítico, e, nessa decorrência, sindicável.

Levou-se ainda em consideração os seguintes elementos de prova constantes dos autos:

- teor do auto de notícia, de fls. 14 a 17;

- teor do relatório táctico de inspecção judiciária e registo fotográfico, de fls. 25 a 27 e 35 a 37;

- teor do relatório de exame pericial, de fls. 44 a 47;

- teor do certificado de registo criminal actualidade referente à pessoa do arguido, de fls. 177 a 179.

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Numa primeira nota, refira-se que o arguido, exercendo validamente o seu direito ao silêncio, não pretendeu prestar declarações sobre os factos que lhe vinham imputados, razão por que desconhece o Tribunal a sua versão - se é que a tem - sobre os mesmos.

Outrossim, importa destacar que os factos que aqui se imputam ao arguido não foram presenciados por qualquer das testemunhas inquiridas, inexistindo prova direta do cometimento de tais factos pelo arguido.

Dir-se-á, no entanto, que a mera ausência de prova direta da prática de determinados factos não determina que sejamos, de imediato e sem mais, reconduzidos à dúvida objetiva e insanável sobre o que efetivamente aconteceu, sendo dever do Tribunal o de colher e munir-se da prova indiciária de que eventualmente possa dispor, para que, sendo possível, proceda à reconstituição da factualidade que foi trazida à sua apreciação.

Sobre prova indiciária, ensina o Juiz Conselheiro SANTOS CABRAL: “A prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova directa, ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica” - cfr. “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade” in Revista Julgar, n.º 17, 2012, p. 13 e 14.

No caso dos autos, já o adiantamos, assume particular relevo a colheita de vestígios lofoscópicos no local onde ocorreu o crime pelo qual vem o arguido incurso, e que, por essa via, conduziram à identificação da pessoa do arguido. A este propósito, em traços gerais, citamos o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, a 25.01.2010, relatado pelo Juiz Desembargador CRUZ BUCHO, “É sabido que a importância e transcendência deste método de identificação criminal radica na circunstância de as impressões digitais serem: - Universais, porque comuns a todas as pessoas; - Permanentes, porque são imutáveis desde que surgem no 4.º mês de vida intra-uterina, só desaparecendo com a putrefacção cadavérica (…); - Singulares ou inconfundíveis, porque únicas: jamais são idênticas em dois indivíduos, não havendo, de resto, duas impressões digitais iguais feitas por dedos diferentes (…); - Indestrutíveis, porque não são modificáveis, nem pela acção do sujeito nem patologicamente; nessa medida, não podem ser falsificadas; - Mensuráveis, porque susceptíveis de comparação” (Processo n.º 300/04.0GBBCL.G2).

Aqui chegados, cumpre concretizar a motivação da matéria de facto apurada nos autos. Atentemos.

A testemunha BB, ofendida, referiu que à data dos factos encontrava-se no interior da sua residência sita em …; apercebeu-se que um indivíduo, do sexo masculino, tocou na porta que dá acesso à sala de jantar de sua casa, atraindo a sua atenção, e que se dirigiu até essa pessoa para perceber o que pretendia; explicou que o referido indivíduo lhe perguntou se não pretendia vender materiais da calçada que esta tinha na sua propriedade, o que recusou; aduziu que acompanhou essa pessoa ao portão de sua casa e após alguns minutos de conversa regressou a casa e apercebeu-se que a sua carteira - que continha no seu interior a quantia de €400,00 - tinha desaparecido; verificou, nesse momento, que a janela da sua casa, na parte de trás da residência, estava aberta e asseverou que a pessoa que entrou em sua casa teria saído precisamente por essa janela; perguntada disse que a pessoa com quem falou, na entrada da sua residência, não era o arguido. A testemunha explicou ainda que decorridos dois ou três dias depois da data dos factos, com o sol a bater, e no período da manhã, apercebeu-se que existiam impressões digitais na aludida janela e chamou as autoridades policiais para as recolherem; questionada a testemunha se entre a data em que foram retirados os €400,00 e a data em que foram recolhidas as impressões digitais verificou a presença de algum indivíduo estranho ou alguma situação anómala disse que tal não sucedeu.

A testemunha CC, militar da GNR, referiu ter-se deslocado à residência de BB, em fevereiro de 2020, por volta das 13:00 horas. A testemunha descreveu que nesse dia realizava patrulha e que foi chamada, via rádio, a uma ocorrência de furto numa residência sita em …. Chegado ao local, conversou com a proprietária da casa que lhe relatou o sucedido e o desaparecimento da sua carteira e da quantia de €400,00 do interior de sua casa, que lhe disse que a pessoa teria saído por uma janela da parte de trás que estaria aberta.

Resta-nos, a testemunha DD, vizinha de BB que apenas referiu que, no dia dos factos, os seus cães ladrarem e viu uma pessoa a correr; explicou ainda, sem mais, que viu uma pessoa a falar com a sua vizinha e decorridos alguns minutos BB lhe disse que a sua casa tinha sido assalta e mais de relevante não disse.

Assim, tendo por referência a prova testemunhal e os elementos documentais supra explicitados convenceu-se o Tribunal de que no que concerne ao modo como o autor do furto ter-se-á introduzido na referida residência, terá sido através da janela situada na parte de trás da residência da ofendida e que o fez quando o outro indivíduo - não identificado - estabeleceu contacto com aquela com o pretenso interesse de lhe adquirir pedras da calçada, distraindo, assim, a ofendida ao mesmo tempo que o arguido se introduziu na residência da ofendida e de lá subtraiu a carteira e os €400,00 que nela estavam guardados.

É, pois, o momento de descortinar os indícios probatórios que conduziram o Tribunal a atribuir ao arguido a autoria dos factos em apreço.

No dia 23.02.2020 procedeu à recolha de vestígios lofoscópicos, como explicitado no teor do Relatório Técnico de Inspeção Judiciária, de fls. 33 a 37. Esta recolha, em sentido rigoroso, constitui um “exame”, que segue o regime previsto nos artigos 171.º e seguintes do CPP, com o fito específico de exarar documentalmente os vestígios da prática de um crime, para posterior análise. Nessa decorrência, constitui um meio de obtenção de prova, instrumental face ao subsequente meio de prova a produzir, que aqui é constituído pelo Relatório de Exame Pericial, esse, sim, um meio de prova de natureza pericial. Uma vez que a prova pericial implica especiais conhecimentos técnico-científicos, de que, naturalmente, o Tribunal não se mostra dotado, o Código de Processo Penal tomou a opção de que tal juízo se presume subtraído à livre apreciação do julgador (cfr. artigos 151.º e 163.º, ambos do Código de Processo Penal).

Feita esta precisão, vejamos as conclusões obtidas no Relatório de Exame Pericial, de fls. 44 a 47.

Os peritos procederam à análise de dois vestígios lofoscópicos (dois palmares) correspondentes às regiões hipotenar da palma da mão direita e da palma da mão esquerda. Ambos conduziram à identificação do arguido AA (vd. fls. 45).

Assim, o relatório pericial conclui de forma cristalina que as impressões colhidas e analisadas pertencer ao indivíduo identificado.

Assim, resulta provado, sem margem para dúvidas, que o arguido esteve em contacto com o vidro da janela colocada na parte de trás da residência da ofendida BB.

Cabe agora questionar se este indício probatório bastará para atribuir ao arguido a autoria do furto aí ocorrido.

A resposta afigura-se ser afirmativa.

Em primeiro lugar, não obstante a recolha dos vestígios lofoscópicos apenas ter ocorrido dois dias após a verificação do evento certo é que o arguido não frequentava a residência da ofendida, não era seu amigo ou sequer conhecido. O arguido também não é vizinho da ofendida, circunstâncias que - porventura - poderiam explicar a existência daqueles vestígios no vidro da janela, na parte de trás, da residência da ofendida BB.

O que vale por dizer que o arguido não tinha acesso legítimo a esse local, que explicasse que ali fossem encontrados os seus vestígios, sem lhe imputar o crime de que vem incurso.

Assim, e considerando o exposto não se mostra razoável negar a conclusão que ressalta à evidência, isto é, de que o autor do furto ocorrido no dia 21.02.2020 na residência de BB foi o aqui arguido AA.

Finalmente, no que respeita aos bens retirados da referida residência ficou demonstrado que o arguido retirou uma carteira que no interior continha a quantia de €400,00, o que foi referido com solidez e objetividade pela ofendida.

Em face do exposto, e numa ponderação conjunta, à luz das regras de experiência comum e de normalidade do acontecer, e atentos todos os aludidos elementos é de concluir que os factos ocorreram talqualmente descritos na acusação pública e, nesta decorrência, o Tribunal não teve qualquer dúvida em considerar provados os factos supra consignados nos pontos 1 primeira parte a 6.

Quanto aos elementos subjectivos das incriminações cujo cometimento ora se vislumbra, consignados supra nos pontos 1 segunda parte e 7 a 10 dos factos provados há que notar que o juízo probatório realizado sobre os mesmos não resultou, naturalmente, de prova directa, uma vez que o arguido remeteu-se ao silêncio [sendo certo que a intenção do agente, os fins que visa com as suas condutas, as suas percepções em torno do ordenamento jurídico e do necessário cumprimento de normas, decorrem de processos internos do agente, que apenas se exteriorizam se expressados pelo próprio]. Não obstante, os elementos subjetivos dos crimes de furto em apreço resultam inferidos da materialidade dos factos, porquanto surge como facto insofismável que, quem atua como atuou o aqui arguido, introduzindo-se em residência alheia, através de janela, não poderia, em termos de razoabilidade, ter outra intenção que não a de fazer seus os bens lá encontrados. Do mesmo modo, não poderia o agente deixar de saber que os mesmos lhe não pertenciam, como efetivamente sabia. Mais ainda, não se nos afigura aceitável afirmar que o arguido ignorava a ilicitude da sua conduta, uma vez que é do conhecimento de todos os cidadãos a noção de propriedade, e as obrigações, de fonte normativa, de respeito que a mesma implica para todos e entre si.

No que concerne às condições pessoais, sociais e familiares do arguido, constantes dos pontos 11 a 15 do elenco de factos provados, sobrevieram das declarações do mesmo, as quais se reputam sinceras e plausíveis, e, nessa medida, atendíveis, à míngua de outros elementos de prova que neste circunstancialismo factual pudessem mostrar-se relevantes.

Os antecedentes criminais do arguido - ponto 16 do elenco de factos provados -decorre do teor do certificado de registo criminal, de fls. 177 a 179.”

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Resulta do acima referida que a única prova em que o tribunal recorrido se fundamentou com vista à consideração como provado que foi o arguido que retirou e fez sua a carteira da vítima, foram as impressões digitais recolhidas na janela da residência.

Trata-se, portanto, da chamada prova indirecta ou indiciária, como claramente se referiu na fundamentação de facto na sentença recorrida.

Não está em causa a possibilidade de se utilizar tal tipo de prova, face ao que dispõe o artº 125º do C.P.P.. Do que se trata é saber se a mesma preenche os requisitos necessários para que possa ser considerada, como se entendeu na sentença recorrida, ou não, como entende a recorrente.

A doutrina e a jurisprudência admitem a chamada prova indirecta ou indiciária, sendo este tipo de prova aquele “cujo objecto é um facto diferente daquele que deve ser provado por ser o juridicamente relevante para a decisão. Ou seja, quando o seu objecto imediato não é um facto principal” (Patrícia Silva Pereira, Prova Indiciária no âmbito do Processo Penal. Admissibilidade e Valoração, 2016, págs. 41 e 42).

Por outras palavras: “A prova directa incide, pois, directamente sobre o facto probando, enquanto que a prova indirecta ou indiciária incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.” (Francisco Marcolino dos Santos, Os Meios de Obtenção da Prova em Processo Penal, 2ª edição, pág. 89).

O referido tipo de prova deve, porém, ser encarado dentro de determinados limites.

Por sintetizar esses limites de forma que nos parece exemplar, tenha-se em atenção o que refere o Sr. Cons. Santos Cabral, na revista Julgar, nº 17, págs. 27 e segs.:

“ 1) Os indícios devem estar comprovados e é relevante que esta comprovação resulte de prova directa, o que não obsta a que a prova possa ser composta, utilizando-se, para o efeito, provas directas imperfeitas, ou seja, insuficientes para produzir cada uma em separado prova plena.

(…) os factos indiciantes não têm que coincidir necessariamente com os que conformam o facto sujeito a julgamento, ou algum dos seus elementos ou bem a autoria material dos factos ilícitos, mas podem tratar-se de factos que estão em conexão ou relação directa com aqueles, situa-se na sua periferia sendo indicativos da realidade do facto que s pretende provar. Isto significa que devem ser concomitantes (…)

2) Os factos indiciadores devem ser objecto de análise crítica direito à sua verificação, precisão e avaliação o que permitirá a sua interpretação como graves, médios ou ligeiros. (…)

3) Os indícios devem também ser independentes e, consequentemente, não devem considerar-se como diferentes os que constituam momentos, ou partes sucessivas, de um mesmo factos. (…)

4) Quando não se fundamentam em leis naturais que não admitem exceção, os indícios devem ser vários.

(…)

Porém, quando o indício, mesmo isolado, é veemente, embora único, e eventualmente assente apenas na máxima da experiência o mesmo será suficiente para formar a convicção sobre o facto.

5) Os indícios devem ser concordantes, ou seja, conjugar-se entre si, de maneira a produzir um todo coerente e natural (…)

6) As inferências devem ser convergentes ou seja não podem conduzir a conclusões diversas e a ligação entre o facto base e a consequência que dele se extrai deve ajustar-se às regras da lógica e às máximas da experiência.

7) (…) deve ser afastada a existência de contra-indícios (…).

(…)

Verificados os respectivos requisitos, pode-se afirmar que o desenrolar da prova indiciária pressupõe três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento, faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência, ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento”.

Julga-se também ter especial interesse o ac. do S.T.J. de 12/9/2007, relatado pelo Sr. Cons. Armindo Monteiro e assim sumariado:

“I - A prova do facto criminoso nem sempre é directa, de percepção imediata; muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios.

II - “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” (J. M. Asencio Melado, Presunción de Inocência y Prueba Indiciária, 1992, citado por Euclides Dâmaso Simões, in Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 205).

III - Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra.

IV - A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.

V - O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.”

E ainda com especial interesse, aludindo ao facto único e à relação com a presunção de inocência, o ac. do S.T.J. de 9/11/2017, relatado pelo Sr. Cons. Gomes da Silva, assim sumariado (na parte que interessa):

“II - A prova indiciária opera a partir de um facto-base - que no caso de ser único terá de possuir uma especial força de acreditação - ou de uma pluralidade de factos-base mediante um raciocínio indutivo com um determinado grau de razoabilidade, suportado por regras de lógica e de experiência comum para chegar a uma conclusão que com consistência e coerência leve ao afastamento da presunção de inocência.”

A questão da prova dos factos com fundamento nas impressões digitais não pode ser vista de forma linear, designadamente generalizando de tal modo que se conclua que as mesmas em todos os casos apenas podem provar o contacto com o objecto onde foram recolhidas e não mais do que isso, ou que em todos os casos provam necessariamente a apropriação dos bens por parte do agente.

Como bem consta no sumário do ac. da rel. de Guimarães de 8/4/2013 (relatado pelo Exmº Desembargador Fernando Monterroso), “A existência de impressões digitais é um poderoso meio de prova quanto à autoria, mas não dispensa a ponderação do caso concreto.” (realce e sublinhado nosso).

Ora, tendo em conta as ocorrências do nosso caso concreto, entende-se que ocorreu erro notório na apreciação da prova, pois que lendo a própria sentença recorrida conclui-se que a mera existência das impressões digitais do arguido nunca poderiam ter levado à prova dos factos consubstanciadores da prática por ele de um crime de furto qualificado.

Sublinha-se “tendo em conta as ocorrências do caso concreto”.

Já se sabe que a vítima não viu o arguido e que o arguido não foi encontrado com a carteira ou com o dinheiro retirados do interior da residência.

Já se sabe também que o arguido não prestou declarações.

Dois dias depois do desaparecimento da carteira foram recolhidas as impressões digitais em causa nos autos.

Acontece que, conforme resulta do teor do relatório táctico de inspecção judiciária, a fls. 26, e das fotografias de fls. 36 e 37, as impressões digitais foram recolhidas da parte exterior da janela por onde a vítima concluiu que alguém entrou para se apoderar da carteira enquanto ela se encontrava à porta da residência a falar com um indivíduo que não era o arguido.

Ora, o local onde foram recolhidas as impressões digitais é um aspecto relevantíssimo para se aquilatar do valor probatório a dar, ou não, às mesmas.

E aqui tratou-se de um local que não tem como consequência necessária a conclusão de que o arguido se introduziu na residência e, por consequência, se apoderou da carteira.

E ainda para mais quando as impressões digitais foram recolhidas dois dias depois da prática dos factos.

Dir-se-á: mas então qual a razão para as impressões digitais do arguido se encontrarem na parte exterior da janela?

Não sabemos, mas isso não basta para lhe atribuir o valor probatório que não podem ter, tendo em conta, repete-se, as circunstâncias (tempo e, principalmente, local) que rodearam a sua recolha. Nem sequer sabemos se as impressões digitais resultaram de contacto com a janela no dia dos factos, uma vez que só dois dias depois é que foram detectadas e recolhidas.

Tendo em conta o local onde as impressões digitais foram recolhidas, não era ao arguido que competia alegar e provar qualquer circunstância que justificasse a sua existência.

Bem diferente seria se as impressões digitais do arguido fossem recolhidas em qualquer objecto que tivesse sido retirado do interior da residência, tal como muito recentemente este mesmo colectivo decidiu no procº 36/21.8GCFAR.E1, onde se escreveu:

“Temos, portanto, que não se trata de vestígios recolhidos em qualquer objecto do estabelecimento, ou em qualquer parte da casa (porta, janela, por exemplo, e mesmo assim teríamos que ver em que parte da janela ou da porta), mas sim no próprio objecto retirado do estabelecimento.”

A propósito de impressões digitais recolhidas em acrílico de máquina furtada, veja-se também o ac. da rel. de Guimarães de 11/11/2019, relatado pela Exmª Desembargadora Teresa Coimbra.

Aqui não se trata nada disso e, consequentemente, a prova indiciária consistente nos vestígios lofoscópicos do arguido não tem as características necessárias acima referidas de modo a, só por si, levar à conclusão de que foi o mesmo que entrou na residência e se apoderou da carteira.

A este propósito:

- ac. da rel. de Lisboa de 7/10/2020 (relatado pela Exmª Desembargadora Cristina de Almeida e Sousa), assim sumariado:

“Uma impressão digital ou palmar é um indício que, conjugado com outros indícios, pode fundamentar uma decisão condenatória, por via da prova indirecta.

Mas tal só será possível se existirem outros meios de prova ou indícios que, correlacionados com as conclusões do juízo científico de análise comparativa dos vestígios lofoscópicos, permitem, através de um raciocínio lógico, coerente e fundamentado em critérios de razoabilidade, probabilidade e regras de experiência comum, retirar o facto desconhecido – o de que foi a pessoa a quem pertencem as impressões digitais ou palmares a autora dos factos integradores do crime – a partir do facto conhecido – o de que essa pessoa esteve naquele local ou em contacto físico directo com determinados objectos – tal como é permitido pelos arts 349º e 351º do Código Civil e 125º do Código de Processo Penal, para além de qualquer dúvida razoável.

Não é o que acontece, quando o único meio de prova directa é uma impressão palmar no exterior de uma janela da residência onde ocorreu o furto, porque em tal circunstância é tão plausível que tenha sido o arguido o autor do crime, como que não tenha.

Assim, se esses indícios ou outros factos base não existem e se o local onde o vestígio lofoscópico tiver sido encontrado não for inequívoco quanto à revelação de que o arguido esteve no interior do local de onde foram retirados os objectos furtados, o juízo de inferência lógica próprio da prova indirecta por presunções judiciais não poderá ser feito, pela simples razão de que, sem esses factos complementares, não pode estabelecer-se uma correlação directa e segura, claramente perceptível, sem saltos lógicos, conjecturas ou permissas indemonstráveis, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que se adquire através da mesma presunção.

E, sendo assim, por efeito do princípio in dubio pro reo, os factos integradores do crime não podem ser considerados provados e o arguido terá de ser absolvido.”

- ac. da rel. de Lisboa de 24/10/2017 (relatado pelo Exmº Desembargador Agostinho Torres), assim sumariado:

“1.– Sendo a única prova em julgamento a detecção de um vestígio palmar na parte exterior da montra do estabelecimento assaltado, tal apenas demonstra que, antes do crime, a hora e por razões desconhecidas, o arguido esteve no local.

Nada mais se pode inferir ou presumir desse facto e sequer que o arguido teria de dar quaisquer explicações da razão desse vestígio ali se ter encontrado.

2.– O uso do direito ao silêncio proíbe o aproveitamento contra si da sua não explicação da existência daquele vestígio palmar.”

Como já se referiu acima, entende-se que a situação se enquadra na ocorrência do vício de erro notório na apreciação a prova previsto na al. c) do nº 2 do artº 410º do C.P.P., sendo possível a este tribunal decidir da causa, pelo que não é caso de reenvio nos termos do nº 1 do artº 426º do C.P.P..

E a decisão da causa por este tribunal passa por considerar não provado o seguinte:

“1. Pelas 13h00m, do dia 21.02.2020, AA dirigiu-se à residência de BB, localizada na Urbanização …, lote …, em …, concelho de …, com o propósito de se apoderar de bens de valor e de fácil transporte que ali viesse a encontrar;

2. Na execução do desígnio que formulou, aí chegado AA introduziu-se no interior do logradouro da dita residência através de um portão que se encontrava aberto;

3. Após, AA aproximou-se de uma janela das traseiras da habitação aí existente que dista cerca de 1,50 m do solo e, através dessa mesma janela entrou no interior da habitação;

4. Do interior desta residência, o arguido retirou e levou consigo, fazendo-as suas, uma carteira que continha no seu interior a quantia de 400,00€ (quatrocentos euros) em numerário, pertencentes a BB;

5. Na posse desses objectos, o arguido abandonou o local para parte incerta;

(…)

7. Ao proceder da forma descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de integrar no seu património os objectos que encontrasse no interior daquela residência;

8. Sabia o arguido que essa residência se encontrava fechada, não sendo ele possuidor de chave, e que, ao entrar ali, o fazia sem a autorização do respectivo proprietário, por forma ilegítima e mediante a transposição de janela para o interior do local;

9. O arguido sabia que todos os bens de que se apoderou não lhe pertenciam e mesmo assim quis fazê-los coisa sua, como aliás veio a conseguir, apesar de saberem que agia contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo proprietário;

10. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei;”

Esta alteração da decisão de facto conduz necessariamente à absolvição do arguido.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar procedente o recurso e, em consequência, decidem:

- alterar a decisão de facto contida na sentença recorrida nos termos acima expostos;

- absolver o arguido AA.

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Sem tributação.

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Évora, 21 de Junho de 2020

Nuno Garcia

Edgar Valente

Gilberto da Cunha