Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
388/14.6TTSTR.E1
Relator: BAPTISTA COELHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
QUALIFICAÇÃO
DOENÇA PROFISSIONAL
Data do Acordão: 12/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Não assistindo ao tribunal de recurso os princípios da oralidade e da imediação, a impugnação da decisão de facto, motivada em erro de julgamento, só deverá ser julgada procedente se a avaliação conjunta da prova produzida, designadamente testemunhal, evidenciar de forma clara que o juiz acolheu uma versão dos factos que não encontra qualquer apoio naqueles meios probatórios.
2. Nos termos do art.º 95º, al. b), da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, só poderá existir doença profissional indemnizável quando a lesão resultar duma continuada exposição ao risco, derivada da própria natureza da atividade laboral desenvolvida pelo doente.
3. Sendo a lesão resultante dum evento súbito e inesperado, ocorrido no local de trabalho, e exterior à vítima, estará então configurado um acidente de trabalho, e não uma doença profissional.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 388/14.6TTSTR.E1

Acordam os juízes que compõem a Secção Social deste Tribunal da Relação de Évora:

No Tribunal do Trabalho de Santarém correu termos processo especial emergente de acidente de trabalho, em que foi vítima mortal BB, falecido a 6/4/2014 em Luanda – Angola, e são responsáveis a CC, S.A., e a entidade empregadora DD, Lda., processo esse que entretanto veio a transitar para a 1ª Secção do Trabalho do Tribunal Judicial da Comarca de santarém. No termo da respetiva fase conciliatória procedeu-se a tentativa de conciliação, à qual compareceu a viúva EE, única presumível beneficiária legal, não tendo porém sido possível obter acordo das partes, dado que tanto seguradora como empregadora não reconheceram a existência do acidente, nem o nexo de causalidade do mesmo com o óbito do sinistrado: a mordidela e os arranhões de um gato, que alegadamente determinaram a morte, devida a raiva.
Patrocinada por advogado constituído, a viúva veio então instaurar a competente ação contra as duas referidas responsáveis, pedindo a condenação das mesmas no pagamento da pensão anual e vitalícia de € 2.100,00, a aumentar para € 2.800,00 a partir da idade de reforma por velhice da beneficiária, e acrescida de subsídios de férias e de Natal, cada um correspondente a 1/14 do valor da pensão anual, de subsídio por morte no montante de € 5.533,68, de subsídio por despesas de funeral, com transladação, no montante de € 3.689,12, e da quantia de € 20,00 de despesas com transportes; pediu ainda a demandante a condenação da R. patronal no pagamento da quantia de € 6.943,23, acrescida de juros, e relativa a trabalho suplementar alegadamente prestado pelo falecido, e que lhe não foi pago.
Contestaram as RR. para impugnar os factos e os pedidos formulados na p.i., concluindo pela improcedência da ação e consequente absolvição.
Foi proferido despacho saneador, em cujo âmbito foram consignados os factos assentes e elaborada a base instrutória, depois objeto de retificação após reclamação da R. ‘DD’.
Procedeu-se a audiência de julgamento, com gravação da prova nela produzida, e foi finalmente proferida sentença, em cujo segmento dispositivo se consignou o seguinte:
‘… condena-se a Ré Companhia de Seguros CC, S.A., a pagar à Autora:
a) A pensão anual e vitalícia, no montante de € 2 100,00 até à idade da reforma por velhice, passando a partir dessa data a uma pensão anual e vitalícia no montante de € 2 800,00, desde 07.04.2014 (dia seguinte ao da morte do sinistrado);
b) Os subsídios de férias e de natal, cada um no valor de 1/14 da pensão anual e pagos nos meses de Junho e Novembro.
c) O subsídio por morte no valor de € 5 533,70 (cinco mil, quinhentos e trinta e três euros e setenta cêntimos).
d) Os juros vencidos e vincendos que incidem sobre cada prestação equivalente a 1/14 da pensão anual, relativamente à pensão por morte e os juros vencidos e vincendos contados sobre a citação relativamente ao subsídio por morte.
e) Absolver a Ré Companhia de Seguros CC, S.A. do demais peticionado.
f) Absolver a Ré DD, Lda. de todos os pedidos formulados pela Autora.
…’.
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Inconformada com o assim decidido, dessa sentença veio apelar a ‘CC’. Na respetiva alegação de recurso formulou as seguintes conclusões:
1. A ora Apelante não se pode conformar com a douta sentença, no que respeita à sua condenação a proceder à reparação do acidente descrito nos autos. Discorda da matéria de facto dada como provada, bem assim como, da fundamentação de facto e de direito da douta sentença, considerando que a mesma viola, mormente, o disposto nos 8º e 10º da LAT (lei 98/2009).
2. Da prova produzida em sede de audiência de julgamento não se conseguiu demonstrar que o sinistrado tenha vindo a falecer de doença contraída em sequência de acidente de trabalho.
3. O tribunal a quo fez errada interpretação dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, sendo que, no seu modesto entender, da prova produzida, não resultaram demonstrados e provados os factos indicados na douta sentença sob os pontos 14 e 16 devendo os mesmos ser eliminados dos factos provados.
4. No que se refere quer ao ponto 14 quer ao ponto 16 da douta matéria de facto dada como provada, inexistiu qualquer prova, quer testemunhal, quer documental que permita dar como provados esses factos.
5. A ausência de prova quanto a esta questão é total! Nenhuma testemunha pode afirmar, inferir ou explicar que o gato que terá arranhado o sinistrado tinha raiva.
6. Nenhuma testemunha presenciou a arranhadela do gato ao sinistrado, a única testemunha, presente em julgamento, que esteve espacial e temporalmente mais próximo do evento “arranhadela” foi o Sr. …, e esse Senhor não soube, nem podia saber dizer, se o gato que arranhou o sinistrado estava infectado com o vírus da raiva ou não.
7. Este senhor não presenciou o acidente, não sabia qual a cor do gato que arranhou o sinistrado, nem qual o gato em causa. Assim como, obviamente, não esclareceu o tribunal da característica que o gato tinha que permitissem inferir se o gato em causa tinha ou não raiva.
8. Não se percebe de que parte do depoimento do Sr. … se pode retirar que o gato que arranhou o falecido tinha raiva e de que o arranhão no braço e perna tenha sido a causa necessária e suficiente para causar a morte!
9. A fundamentação dada pela douta sentença ora recorrida quanto á resposta dada a estes pontos, bem como á grande parte dos outros (diga-se), é nula ou no mínimo insuficiente.
10. A posição da ora recorrente, e a consequente rejeição da douta Sentença ora posta em crise, sai reforçada se atentarmos ao depoimento da testemunha …, Médico com competência médico-legal há quase 30 anos.
11. Da conjugação dos depoimentos das testemunhas Sr … e Dr. … entende a ora recorrente que é impossível estabelecer o nexo causal entre a arranhadela/mordedura do gato e o falecimento do marido e pai dos AA com o vírus raiva.
12. Da prova produzida em sede de audiência de julgamento, através da audição das testemunhas e da prova documental junta aos autos apenas e só resultou provado o seguinte:
- no dia 4 de Março de 2014 o SR. BB foi mordido ou arranhado por um gato, quando se deslocava do seu quarto para o refeitório.
- as feridas resultantes da mordedura/arranhadela eram feridas ligeiras e cicatrizaram e desapareceram em 3 ou 4 dias.
- desde o dia 4 de Março de 2014 até poucos dias antes da sua morte (que ocorreu a 6 de Abril de 2014) o Sr. BB continuou a trabalhar, sentindo-se bem de saúde.
- no dia 6 de Abril de 2014 o Sr. BB faleceu em Luanda vitima do vírus Raiva.
13. Nenhuma prova se fez sobre o facto de o gato que atacou o falecido ser portador do vírus Raiva e muito menos que o arranhão no braço e perna tenha sido a causa necessária e suficiente para a morte do Sr. BB.
14. Quanto ao facto indicado no ponto 16 dos factos provados da douta Sentença o mesmo resultou claramente contrariado pelo depoimento da testemunha …, o qual referiu expressamente que os arranhões ao fim de 3 ou 4 dias tinha desaparecido e que o Sr. BB andou sempre bem durante esse mês que mediou entre o incidente com o Gato e a sua morte, andou sempre a trabalhar.
15. Os arranhões não foram causa directa nem necessária do falecimento do Sr. BB.
16. Situação diferente e necessária no presente processo é a de que teria que se provar que o infeliz falecido contraiu o vírus da Raiva quando foi arranhado/mordido pelo Gato, sendo que esse Gato teria que ser portador do vírus! Prova essa que não se conseguiu, de todo, produzir neste processo.
17. Não se provou que o Gato que arranhou o Sr. BB tinha Raiva.
18. Não se provou que no momento em que foi arranhado o Gato transmitiu o vírus da Raiva ao falecido, tendo sido isso que lhe causou a morte.
19. O conceito de acidente de trabalho está traçado no art. 8 da Lei 98/2009 de 4 de Setembro, em cujo n.º 1 se dispõe: “É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.”
20. É acidente de trabalho uma “cadeia de factos em que cada um dos respectivos elos estejam entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento naturalístico tem de resultar da relação de trabalho, com a lesão perturbação ou doença, terão que resultar daquele evento, e, finalmente, a morte ou incapacidade para o trabalho deverão filiar-se causalmente na lesão, perturbação ou doença. De tal forma que, se esse elo causal se interromper em algum dos momentos so encadeado fáctico acima descrito, não poderemos falar – pelo menos em relação àquela morte ou àquela incapacidade – em acidente de trabalho. Razão porque esse nexo causal entre a relação de trabalho e a morte ou incapacidade… deve, ele também, considerar-se como elemento integrador essencial do conceito de acidente de trabalho.” Conforme escreveu Victor Ribeiro In Acidentes de Trabalho, Rei dos Livros, 1984, pág.191 e ss..
21. Por outro lado, em caso de acidente de trabalho estabelece a lei vária presunções: a do n.º 1 do art. 10 da LAT estabelece que se a lesão for constactada no local e no tempo de trabalho se presume consequência de acidente de trabalho. No entanto, se a lesão não tiver manifestação imediatamente a seguir ao acidente, compete ao sinistrado ou aos benificiários legais provar que foi consequência deste . art. 10º n.º 2 LAT.
22. No presente caso, em relação aos arranhões/mordeduras aplicar-se-á a presunção do n.º 1 do art. 10 da LAT, no entanto o mesmo já não ocorre em relação à morte do Sr. BB, uma vez que houve uma interrupção do nexo causal entre o momento em que terá ocorrido o facto lesivo (a arranhadela do Gato) e a consequência –morte- do Sr. BB.
23. Entre o momento da arranhadela e a morte decorreu mais de um mês, mês durante o qual as únicas lesões manifestadas se trataram de dois arranhões, um no braço e outro na perna, os quais sararam completamente passado 3 ou 4 dias do evento danoso. Arranhadelas essas que não causaram qualquer doença, ou incapacidade para o sinistrado uma vez que se provou e foi alegado pelos AA que o mesmo continuou a trabalhar e estava bem.
24. A infecção pelo vírus Raiva não é uma consequência normal, previsível e habitual em casos de arranhões de Gatos. Pelo que não pode ser presumida pela via do conhecimento publico ou notório ou outro.
25. A infecção do vírus Raiva só ocorre quando o Gato que arranha ou morde está infectado pelo próprio vírus e como já ficou, sobejamente, demonstrado essa prova não foi feita pelos AA.
26. Ninguém soube dizer ou explicar que o Gato que arranhou o falecido tinha Raiva ou descrever características do Gato que por si só nos permitissem inferir que o mesmo poderia estar infectado… ser um Gato muito agressivo, insalivar, ter hidrofobia… as várias características que a testemunha Dr…. descreveu que um animal infectado possui.
27. Nestes termos, entende a ora recorrente que os pontos 14 e 16 dos factos dados como provados devem ser eliminados da mesma e em consequência ser a acção julgada improcedente por não se ter provado que o infeliz falecido tenha vindo a a morrer em consequência da arranhadela de Gato ocorrida no dia 4 de Março de 2014.
28. No presente caso estaremos, certamente, a falar de um falecimento em sequência de uma doença profissional, uma vez que o que levou à morte do pai e marido dos AA foi, precisamente, o vírus Raiva, independentemente da forma como ele foi contraído. Sendo que, o vírus Raiva encontra-se, expressamente, previsto na Lista das Doenças Profissionais (Dec. Regulamentar 76/2007 de 17 de Julho) sob o código 52.01.
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Notificada da interposição do recurso, a A. veio contra-alegar, aí concluindo o seguinte:
1. Nos termos da alínea a) do nº 2 do art. 640º o recorrente deveria ter indicado com exactidão as concretas passagens da gravação em que fundamenta o seu recurso sob pena de rejeição do recurso.
2. Ora a recorrente não cumpriu minimamente o art. 640º, nas diversas alíneas do nº 1.
3. Não indicou quaisquer meios, nem indicou os pontos que pudessem, por em causa a fundamentação factual da juiz, indicando outras provas.
4. O recorrente truncou e distorceu o depoimento do … que presenciou os factos, acompanhou o malogrado BB na evolução da doença.
5. O vírus da raiva, como diz a Dra. … actua e desenvolve-se sob a ferida mesmo cicatrizada da mesma.
6. Um gato infectado pela raiva torna-se feroz ataca humanos inopinadamente com agressividade e com rapidez, como disseram as testemunhas.
7. Um simples arranhão e mordidela de gato infectado com raiva nas circunstâncias em que foi o malogrado BB são causa necessária e suficiente da morte.
8. Improcedem todas e cada uma das conclusões da recorrente.
9. A sentença não merece qualquer reparo.
10. É acidente de trabalho enquadrando-se no conceito legal e admitido pela jurisprudência.
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Admitido o recurso, e subidos os autos a esta Relação, a Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso ser julgado improcedente.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Sendo o objeto de um recurso delimitado pelas conclusões da respetiva alegação (cfr. arts.º 635º, nsº 3 e 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil – C.P.C.), são as seguintes as questões que no caso dos autos vêm suscitadas pela recorrente:
- a impugnação da matéria de facto julgada provada pelo tribunal recorrido;
- a existência do acidente de trabalho;
- o nexo de causalidade entre o acidente e a morte do sinistrado.
Cumprindo a esta Relação pronunciar-se sobre cada um de tais pontos, recordemos antes de mais a decisão de facto da 1ª instância relativamente à matéria relevante para a decisão de mérito, que foi a seguinte:
1. No dia 6 de Abril de 2014, faleceu em Luanda, Republica de Angola, BB, no estado de casado com EE. (A dos FA).
1-A (aditado infra).
2. Por morte do autor sucedeu-lhe o cônjuge e um filho, maior (B dos FA).
3. À data da morte, o BB trabalhava para a sociedade DD, Lda. (C dos FA).
4. O sinistrado fora admitido ao serviço da DD em 2 de Fevereiro de 2014, conforme contrato de trabalho (D dos FA).
5. A vítima fora admitida ao serviço da Ré, para desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de assentador/canteiro, podendo, por acordo, exercer outras funções – CLª 2ª e 3ª (E dos FA).
6. A vítima fora contratada para exercer a sua actividade profissional em Angola, como técnico de assentamento de pedra, na empreitada adjudicada à 1ª Ré em Angola CLª 5ª (F dos FA).
7. O local de trabalho na obra acima referida era na Republica Popular de Angola – CLª 6, com o vencimento de €500,00 x 14 meses = 7.000,00 anuais (G dos FA).
8. O sinistrado dormia, comia no local do acidente e onde trabalhava (H dos FA).
9. A Ré CC, SA celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho por conta de outrem titulado pela apólice n.º…, através do qual se encontrava transferida a retribuição de € 482,00x14, o que perfazia anualmente o montante de € 6 749,9 (I dos FA).
10. Além do valor indicado na alínea I dos factos assentes a entidade patronal transferiu o remanescente do salário até € 500,00 mensais.
11. No local onde trabalhava o sinistrado por vezes surgiam gatos vadios que ali acorriam na busca de dejectos e restos de comida (1.º da BI).
12. O Sinistrado foi arranhado por um gato no local de trabalho, no dia 4 de Março de 2014, quando se deslocava para o refeitório para tomar o pequeno-almoço (4.º, 5.º e 6.º da BI)
13. As feridas foram desinfectadas na enfermaria que existia no local de trabalho onde o sinistrado se encontrava (7.º da BI).
14. O gato que o arranhou tinha raiva (8.º da BI).
15. A raiva em gatos é uma doença extremamente perigosa e fatal, tornando os felinos agressivos (9.º da BI).
16. O arranhão no braço e na perna foram as causas necessárias e suficientes para causar a morte (10.º da BI).
17. As instalações da entidade patronal eram seguras. (3.º da BI).
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Consignou-se ainda na sentença recorrida não ter ficado provado que:
a) As instalações não tinham controlo sanitário, estavam vedadas a animais perigosos e vadios e vedadas do exterior, com passividade e consentimento da entidade patronal.
b) O sinistrado teve assistência médica no dia 04 de Março de 2014.
c) O sinistrado fazia diariamente várias horas pós laborais extraordinárias que nunca lhe foram pagas conforme discrimina no artigo 46.º da petição inicial.
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A discordância manifestada pela recorrente quanto à decisão de facto proferida pelo tribunal a quo prende-se concretamente com dois pontos dessa factualidade (nsº 14 e 16), que a apelante pretende agora eliminar da matéria julgada provada.
Antes porém de nos debruçarmos sobre a procedência, ou não, da lógica argumentativa da recorrente, quanto a esta parte do recurso interposto, importa fazer duas referências prévias, que se afiguram assumirem aqui especial pertinência.
Em primeiro lugar, deve sublinhar-se que a recorrente não questionou um outro ponto de facto, que tem particular relevância para a decisão de mérito, e que naquela factualidade foi inserido sob o nº 12: que o sinistrado foi arranhado por um gato no local de trabalho, no dia 4 de Março de 2014, quando se deslocava para o refeitório para tomar o pequeno-almoço.
Por outro lado, há também que notar que há ainda um facto, que não está expressamente referido na decisão recorrida, mas que agora deve ser oficiosamente incluído na matéria julgada provada, de modo a dela poder resultar uma descrição lógica e coerente da realidade das coisas.
Com efeito, não pode deixar de enfatizar-se, com clareza, que ‘BB morreu vitimado pelo vírus raiva’. É matéria que não é controvertida, e que a apelante inequivocamente reconheceu estar provada (cfr. conclusão 12ª das alegações de recurso, a fls. 389).
Destes considerandos resulta portanto que, com a impugnação que deduziu, o que a recorrente pretende é que não se estabeleça a relação causa/efeito entre o arranhão do gato e a morte do infeliz BB.
Vejamos então se lhe assiste, ou não, razão.
Como se sabe, a lei de processo permite a impugnação, por via de recurso, da decisão sobre matéria de facto, mas exige que para tal efeito sejam observados os ónus de alegação que se acham consignados no art.º 640º, nsº 1 e 2, do C.P.C.. Nesse sentido, à parte recorrente cumpre referir, designadamente, e sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, quais os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida sobre cada um desses pontos de facto, e bem assim qual a decisão que deveria então ser proferida sobre cada uma das questões impugnadas.
Não basta portanto que a parte recorrente afirme uma discordância genérica quanto à decisão sobre matéria de facto, ou mesmo que ilustre essa discordância com a alusão a segmentos da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento. É necessário que a alegação de recurso identifique os concretos pontos de facto que se impugnam, que indique qual a decisão que quanto a cada um deles deveria ser acolhida pela Relação, e que justifique essa sua pretensão com os meios de prova que, nessa lógica, evidenciarão que foi errada a decisão da 1ª instância, impondo uma decisão diversa.
Por outro lado, importa também sublinhar que, havendo uma impugnação devidamente deduzida, a hipotética alteração da decisão de facto, pela Relação, se encontra no mesmo sentido delimitada pela regra do art.º 662º, nº 1, do C.P.C..
Ou seja: não estando obviamente em causa a repetição da audiência de julgamento realizada, mas apenas a reapreciação dum segmento da decisão da 1ª instância, só deverá ocorrer semelhante alteração, quanto aos concretos pontos de facto que foram objeto de impugnação, se os factos assentes, a prova produzida, ou um documento superveniente, caso seja admissível, impuserem decisão diversa.
Significa isto, para além do mais, que não assistindo ao tribunal de recurso os princípios da imediação e da oralidade, apenas em situações em que se evidencie a existência de um erro de julgamento deverá a decisão de facto ser modificada. É esse o necessário sentido do termo ‘impuserem’, acolhido naquele art.º 662º, nº 1, que por sua vez afasta também os casos em que se suscitem meras dúvidas quanto ao sentido das provas produzidas. As dúvidas, caso sejam ‘sérias’ ou ‘fundadas’, poderão porventura determinar o uso dos poderes oficiosos que à Relação são conferidos pelo nº 2 do mesmo art.º 662º, mas em caso algum poderão redundar numa imediata e direta alteração da decisão impugnada.
Mas concentremo-nos no concreto caso dos autos.
E fazendo-o, cumpre antes de mais referir que a impugnação deduzida pela recorrente se afigura satisfazer genericamente as exigências formais consignadas no aludido art.º 640º, nsº 1 e 2, nada ocorrendo pois que, à partida, obste ao conhecimento deste segmento do recurso interposto.
Ora, para fundamentar esta sua pretensão, no sentido de ver excluídos da matéria julgada provada os referidos factos 14 e 16, veio a recorrente invocar os depoimentos das testemunhas …, colega de trabalho do falecido, que com ele se encontrava quando o mesmo foi arranhado por um gato no dia 4/3/2016, e …, médico especialista em medicina do trabalho, e perito da R. seguradora, que tomou conhecimento do caso dos autos pela documentação junta ao processo, que alegadamente infirmariam aquela decisão do tribunal a quo.
Consideramos, no entanto, não haver razões para sufragar a lógica argumentativa da recorrente.
Com efeito, há que reconhecer que o referido médico, cujo depoimento, pelos conhecimentos científicos que envolve, é naturalmente aquele que aqui mais releva, não tendo sido perentório no sentido de afirmar que a morte de BB foi provocada pelo vírus da raiva de que seria portador o gato que o arranhou cerca de um mês antes, também não excluiu liminarmente essa eventualidade, admitindo-a em abstrato como possível num quadro de evolução da doença.
Por outro lado, importa notar que uma outra das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento, …, também ela média especialista em medicina legal e do trabalho, foi particularmente esclarecedora na abordagem de aspetos importantes relacionados com a propagação do vírus da raiva: o mesmo só por via animal pode ser transmitido ao ser humano, sendo-o designadamente por cães e gatos; é indispensável um tratamento imediato, por vacinação anti-rábica, que ainda assim pode não ser eficaz; uma aparente cicatrização da ferida causada pode não significar a cura da infeção, que frequentemente se manifesta apenas semanas ou meses depois, provocando a morte da vítima.
Se é certo que não é possível afirmar, com uma absoluta certeza, que o gato aqui em causa tinha raiva, o que necessariamente implicaria que o animal tivesse sido capturado e depois pericialmente examinado, não é menos verdade que essa parece ser a única conclusão lógica e verosímil que poderá extrair-se do panorama probatório que o processo nos oferece.
Como bem se afirma na motivação da decisão de facto ‘…importa referir que para um Tribunal dar um facto como provado, não tem necessariamente de ter havido alguém que viu, ouviu e sentiu: o que tem de existir sim, são factos e circunstâncias que permitam fazer crer, com um pequeno grau de dúvida que eles ocorreram.’
Nessa motivação, aliás, é igualmente feita a análise crítica dos depoimentos das várias testemunhas inquiridas em audiência, em termos que não nos deixam dúvidas quanto ao modo como a Ex.ª Juíza a quo adquiriu a sua convicção para proferir a decisão de facto, tal como vem decidido nos autos
Não encontramos pois razões para alterar, no sentido pretendido pela apelante, a factualidade apurada, que no entanto, tal como já referimos, e ao abrigo do citado art.º 662º, nº 1, aditamos do seguinte ponto, que ali passa a constar sob o nº 1-A:
‘BB morreu vitimado pelo vírus da raiva’.
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Assente que está, nos termos que se relataram, a matéria de facto relevante para a decisão de mérito, fica em grande parte prejudicada a argumentação da recorrente no que toca às duas questões ainda em aberto: a existência do acidente de trabalho, e o nexo de casualidade entre esse acidente e as lesões sofridas pelo trabalhador sinistrado.
Está com efeito demostrada a ocorrência de um evento súbito e inesperado, exterior à vítima, que provocou lesões na sua integridade física: os arranhões provocados por um gato, portador de raiva, no local de trabalho de sinistrado (factos 12, 13 e 14); e está também provada a relação causa/efeito entre essas lesões e a morte da vítima: o sinistrado veio a falecer vitimado pelo vírus da raiva, que lhe foi transmitido pelo gato que o arranhou (factos 1-A e 16).
Tanto basta para se concluir estar configurado o acidente de trabalho, e o direito à reparação dos respetivos danos, no caso conferido à viúva, enquanto única beneficiária legal.
Convenhamos aliás que a apelante, ao propugnar pela verificação de uma doença profissional, como o fez na conclusão 28ª da sua alegação de recurso, não deixou de, na prática, estar a reconhecer todos os elementos fácticos pertinentes à procedência da ação, apenas não aceitando a tradução jurídica dos mesmos num acidente de trabalho indemnizável.
Mas parece-nos óbvio que, ainda que a raiva possa ser qualificada como doença profissional, também aqui não assiste qualquer razão à recorrente.
É que teria de sempre de verificar-se uma continuada exposição ao risco, em consequência da atividade laboral exercida – cfr. art. 95º, al. b), da Lei nº 98/2009, de 4/9 – o que manifestamente não sucedeu no caso dos autos. Tanto a lesão sofrida pelo trabalhador em causa foi provocada por um evento súbito, ocorrido a 4/3/2014, como o desempenho profissional da vítima, enquanto assentador/canteiro, pela sua própria natureza não pressupõe que haja uma exposição habitual ao contacto com animais suscetíveis de serem portadores do vírus da raiva.
Improcedem pois, e em suma, todas as conclusões da alegação de recurso da apelante.
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Nesta conformidade, e por todos os motivos expostos, acordam os juízes desta Secção Social em julgar a apelação improcedente, assim confirmando a sentença recorrida, na parte impugnada.
Custas pela recorrente.

Évora, 07-12-2016
Alexandre Ferreira Baptista Coelho (relator)
Moisés Pereira da Silva
João Luís Nunes