Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
617/08.5PALGS.E1
Relator: MARIA FILOMENA SOARES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
PORNOGRAFIA DE MENORES
ACTOS SEXUAIS COM ADOLESCENTES
QUEIXA
LEGITIMIDADE
MINISTÉRIO PÚBLICO
IDADE DAS VÍTIMAS
VÍCIOS DA DECISÃO
Data do Acordão: 05/17/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO
Sumário: I – Quando, independentemente do exercício do direito de queixa por parte de quem, à partida, é titular desse direito, por razões de interesse público – relacionadas com o que é a tutela do bem jurídico protegido –, mas inerentes e subjacentes ao interesse da vítima, o Ministério Público tem legitimidade para desencadear e exercer a acção penal, necessário é, contudo, que justifique as razões de facto (objectivas) que o levam à sua intervenção no interesse da vítima, o que bem se compreende ante as consequências para o processo e para quem nele é vítima ou agente de tal exercício da acção penal.
II – Constituindo a idade da vítima elemento típico dos crimes imputados ao arguido (crime de abuso sexual de criança, crime de pornografia de menores agravado e crime de actos sexuais com adolescentes), não se descortina que outra prova pode o Tribunal produzir, para além da indicada prova documental (certidão de assento de nascimento), para afirmar a idade das vítimas, alegadamente menores de idade.

III – Não se mostrando junto aos autos tal prova documental (certidão do assento de nascimento das vítimas), a decisão revidenda padece, desde logo, do vício a que alude o artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal e padece, também, do vício a que alude a alínea c), do citado preceito – erro notório na apreciação da prova – porque ao consignar a idade das vítimas nos termos apontados desrespeitou regras sobre o valor da prova dado que não tendo prova documental que lhe permitisse afirmar a data de nascimento das mesmas, também não poderia ter concluído, como o fez, pela afirmação de que tinham 6 anos de idade, 9/10 anos de idade ou 15/16 anos de idade.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

No âmbito do processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo nº 617/08.5 PALGS, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, foi submetido a julgamento, não tendo apresentado contestação, o arguido A, (…), e por acórdão proferido em 21.04.2010, foi pelo Tribunal Colectivo decidido:---

“(…)

I – Absolvem A da acusação pela prática de um crime de pornografia de menores p. e p. pela alínea b) do nº 1 do artº 176º do Código Penal;

II – Absolvem A da acusação pela prática de um crime de actos sexuais com adolescentes p. e p. pelos nºs 1 e 2 do artº 173º do Código Penal;

III – Condenam A , pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão;

IV – Condenam A, pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão;

V – Condenam A, pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão;

VI – Condenam A, pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão;

VII – Condenam A, pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão;

VIII – Condenam A, pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão;

IX – Condenam A, pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão;

X – Condenam A, pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão;

XI – Condenam A, pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão;

XII – Condenam A, pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão;

XIII – Condenam A, pela prática de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 1 do artº 171º do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão;

XIV – Condenam A na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão.

(…)”.---

Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:---

“1. Quanto à ofendida Débora,

2. Do regime legal vigente à data da prática dos factos resulta que o crime de abuso sexual de criança era de natureza semi-pública - artigo 178º do Código Penal então vigente, sendo certo que nunca foi o respectivo direito de queixa exercido em, devido tempo, pelo ofendida ou seus legais representantes.

3. Não foi accionada a prorrogativa prevista no nº 4 do artigo 178º do Código Penal, pelo que não tinha o Ministério Público legitimidade para impulsionar o respectivo procedimento,

4. Impondo-se assim seja determinado a extinção do procedimento criminal quanto aos factos imputados ao arguido e conexionados com a ofendido ora em apreço.

5. Sendo que ao assim não haver decidido o Tribunal a quo violou o sobredito normativo e bem assim o disposto no artigo 2º do Código Penal.

6. Subsidiariamente e caso assim não se entenda, não foi feita prova suficiente da matéria de facto constante em 6. da decisão de facto, cuja convicção do Julgador se alicerçou exclusivamente no depoimento da ofendida.

7. Tal depoimento - que se acha registado em suporte magnético de 16:57:43 a 17:09:22 – revela imprecisões, incertezas e dúvidas que põem em causa a sua virtualidade para sustentar uma prova segura como processualmente se impõe.

8. Pelo que, e da reapreciação de tal depoimento deve a decisão de facto, mais concretamente o seu ponto 6. ser alterado, no sentido de ali se eliminar a prova quanto ao número de vezes em que os factos ali inscritos terão ocorrido.

9. Cumulativamente, deve considerar-se que praticou o arguido um crime de trato sucessivo e não cinco crimes de abuso sexual de crianças, como veio a ser condenado.

10. E sempre ser a pena determinada reduzida e suspensa na sua execução.

11. Quanto à ofendida J,

12. Deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças, e não de seis crimes de tal como veio a ser condenado.

13. E sempre deve o arguido ser condenado em pena única nunca superior a cinco anos de prisão suspendendo-se a mesma na sua execução.

Por todo o exposto, e pelo mais que V. Exªs, doutamente suprirão, deverá ser revogado o acórdão recorrido e em sua substituição proferir-se outra que decida nos moldes reclamados nas conclusões do presente recurso.

Porém, V. Exªs decidirão como for de JUSTIÇA.”.---

Notificado, o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso interposto, concluindo que:---

“I - Ofendida D

1ª-

O Ministério Público ao iniciar o processo deu cumprimento ao dever que em tais circunstâncias lhe era imposto pela lei nos termos do nº 4 do artigo 1780 do Código Penal; trata-se de um poder/dever com obrigação de ser cumprido logo que verificados os pressupostos de que depende, como sucedeu, que não tem de ser fundamentado por qualquer frase ou despacho tabelar, limitando-se, pois, a acautelar o interesse do vítima, substituindo-se à menor e com esta actuação preencheu a condição de punibilidade.

3ª -

Nos termos da disposição citada do artigo 178º nº 4 do Código Penal o crime cometido pelo arguido perdeu a natureza semi-pública, pelo que perdeu relevância a não existência de queixa.

4ª -

O referir o recorrente que não foi feita prova para dar como provado o ponto 6 da respectiva matéria de facto não reveste a natureza do vício insuficiência para a decisão da matéria de facto provada para a decisão de direito p. no artigo 410º nº 2 alínea a) do CPP, é uma questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 127° do mesmo Diploma e como tal não se confunde com o apontado vício.

5ª -

também o recorrente ao não dar cumprimento ao artigo 412º nº 4 do CPP, ao não cumprir tal ónus de especificação impede a apreciação da matéria de facto pelo Tribunal de Recurso,

6ª -

Mas nem por isso corresponde à verdade que o depoimento da ofendida D revela imprecisões, incertezas e dúvidas, antes tal depoimento que tem um especial valor foi perfeitamente esclarecedor e retratou o que se passou, matéria do foro intimo, para mais vivida por quem era na altura uma criança.

7ª -

Pretender-se que o crime praticado pelo arguido é um crime de trato sucessivo é o mesmo que pretender-se que o mesmo é um crime continuado já que em ambos se está no plano da unidade criminosa diferindo somente no respeitante à culpa, culpa diminuída no crime continuado e culpa agravada no crime de trato sucessivo, não sendo este mais que um sucedâneo daquele

E

8ª -

Acolher-se a unidade criminosa é aceitar que o arguido não teve que renovar a sua resolução “das cinco ou seis vezes entre 2001 e 2002 que atraiu o vítima ao quarto, onde a despia, acariciando-lhe os seios” – conforme o facto provado sob o nº 6 -, o que é contrário às regras psicológicas e do senso comum: de cada vez que o arguido atraía a vítima para os factos descritos no referido ponto 6 renovava a sua intenção inicial, independentemente de praticar factos iguais ou idênticos, pelo que a cada acto correspondia a prática de um crime.

9ª -

O entendimento contrário significa a violação do principio da dignidade da pessoa humana que tem consagração no artigo 1º da CRP. Aliás a questão não terá grande sentido num futuro próximo, já que e segundo cremos, serão nesse sentido as alterações que se aguardam ao artigo 30º nº 3 do CP.

10ª -

As penas parcelares aplicados são justas e adequadas atenta a gravidade dos crimes cometidos, o modo de actuação do arguido, a sua personalidade, a falta de arrependimento espelhado na negação dos factos que cometeu, a intensidade do dolo, o elevadíssimo grau de ilicitude e as prementes exigências de prevenção geral e especial

II – Ofendida J

11ª -

Relativamente ao crime de trato sucessivo damos aqui por reproduzido o que deixámos referido relativamente à vitima D, ressalvando o período de tempo em que ocorreu e os factos ocorridos como constam dos factos provados sob os nºs 1 a 5 mas que quanto à substância em nada altera o referido.

12ª -

As penas parcelares aplicados são justas e adequadas, atenta a gravidade dos crimes cometidos, o modo de actuação do arguido, a sua personalidade, a ausência total de arrependimento, pois se admitiu os factos – que tinha de admitir tendo em conta a perícia de ADN – não confessou o crime como fica bem patente na circunstância de referir que tudo aconteceu por vontade da menor e vítima Joana, a intensidade do dolo, o elevadíssimo grau de ilicitude e as prementes exigências de prevenção geral e especial

13ª -

A pena única aplicado em cúmulo jurídico igualmente não merece qualquer reparo, foi alcançada considerando em conjunto os factos e a personalidade do arguido nos termos do disposto no artigo 77º nº do Código Penal.

14ª -

A pena única atento o seu montante nunca poderia ser suspensa na sua execução, em todo o caso mesmo admitindo que a pena fosse de cinco anos de prisão nunca poderia ser suspensa pois das circunstâncias dos factos e da personalidade do agente não se poderia formar um juízo de prognose favorável em relação ao seu comportamento futuro.

15ª -

O douto Acórdão sob censuro não violou qualquer disposição legal, nomeadamente os artigos 2º e 178º nº 4 do Código Penal.

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso

Confirmando-se o douto Acórdão recorrido

Como é de

JUSTIÇA”.---

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos termos seguintes:---

“Do acórdão que o condenou, em cúmulo jurídico, na pena de 9 anos e 6 meses de prisão pela prática de onze crimes de abuso sexual de criança, pp., pelo art° 171.° 1, do CP recorre o arguido de cujas conclusões com que termina a Motivação se extrai o entendimento de que deve declarar-se extinto o procedimento criminal quanto aos factos em que é ofendida D; que o facto dado como provado sob o n.º 6 deve ser eliminado - por falta de prova que o suporte -; que deve ser condenado pela prática de um crime de trato sucessivo numa pena única não superior a cinco anos de prisão e suspensa na sua execução.

Sobre as questões suscitadas tomou posição o Ministério Público na instância recorrida no sentido da sua improcedência - Resposta de fls.446 e sgs.

Mas antes, afigura-se-nos, que importará aquilatar se a decisão recorrida enferma de algum vício e/ou nulidade, que obstaculize ao conhecimento do objecto do recurso.

Vejamos:

Na acusação deduzida contra o arguido consta a data de nascimento das vítimas, ou seja, que a menor J nasceu a 25. 11. 2001 e a D a 07.01.1992. cfr. fls. 323 e sgs.

Porém, a decisão recorrida é omissa quanto a estes factos, porquanto, da materialidade fáctica apurada não consta o ano nem o dia em que as vítimas nasceram.

Ora, porque a data de nascimento constitui elemento determinante do tipo de ilícito imputado ao arguido, quer-nos parecer, que a sua omissão se traduzirá numa insuficiência para a decisão da matéria de facto provada o que consubstancia o vício previsto na al.a) do n.º 2 do art° 410 ° do CPP.

Tal vício, que é de conhecimento oficioso, poderia no âmbito dos poderes sobre o conhecimento da matéria de facto ser suprido por este Tribunal da Relação se do processo constassem, como documentos autênticos que são, as certidões de nascimento das vítimas.

Todavia, compulsados os dois volumes que compõem os autos de recurso constata- se que não se mostram juntas ao processo.

Ora, sendo assim, afigura-se-nos, que haverá de proceder-se ao reenvio do processo para novo julgamento quanto à questão suscitada.

Mas, a nosso ver, há ainda uma outra questão a reclamar solução.

Referimo-nos aos requisitos da sentença/acórdão.

O n.º 2 do art° 374º do CPP, sob a epigrafe “Requisitos da Sentença”, estipula que ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Com a fundamentação pretende-se obter uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão, a transparência do processo e da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, não se compadecendo com uma simples enumeração dos meios de prova sendo necessário conter uma reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado.

No caso dos autos e, no que respeita à fundamentação da matéria de facto, a decisão para além de não fazer qualquer referência ao depoimento prestado pela testemunha (…) que, segundo a acusação é mãe da menor J (art.º 1º do libelo acusatório, a fls. 324), desconhecendo-se, por isso, se as suas declarações contribuíram ou não para o apuramento dos factos dados como provados, quer-nos parecer, com o devido respeito, que não procede também a um exame crítico das provas não indicando, mesmo de modo sucinto, o que as testemunhas e o próprio arguido disseram sobre os factos, cujos depoimentos devem ser apreciados criticamente.

Daí que, em nosso entender, se mostre vaga e genérica não cumprindo desse modo com as exigências impostas pela citada disposição legal.

E, a ser assim, ter-se-à de considerar nula a decisão nos termos das disposições conjugadas dos art°s 374.º 2 e 379.º, 1, al a) do CPP.

E porque tal nulidade pode ser conhecida em recurso - n.º 2 do citado art° 379.º - impõe-se, a nosso ver, que esta Relação anule a decisão recorrida e determine que os autos baixem à 1.ª instância para que seja proferida nova decisão que supra a nulidade e o vício que se lhe assacam.

Este, pois, o nosso parecer. (art.° 416.° do CP'P)”.---

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido usado o direito de resposta.---

Foram colhidos os vistos legais.---

Foi realizada a conferência.---

Cumpre apreciar e decidir.---

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do S.T.J. de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82). ---

Vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que as questões suscitadas são as seguintes (agora ordenadas segundo um critério de lógica e cronologia preclusiva):---

Questão prévia: Da excepção de ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal no tocante aos factos/crime em que é ofendida D (porque o crime de abuso sexual de criança, à data da sua prática, revestia natureza semi-pública, aquela não apresentou queixa em devido tempo e o Ministério Público não usou a prorrogativa prevista no nº 4, do artigo 178º, do Código Penal);---

No tocante à matéria de facto:---

1. Se a decisão revidenda padece dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, designadamente de insuficiência para a decisão da matéria dada como provada a que alude a alínea a), do citado preceito legal;---

2. Se a decisão revidenda é nula nos termos do preceituado nos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, a), do Código de Processo Penal;---

3. Se o Tribunal incorreu em erro de julgamento;---

No tocante à matéria de direito:---

4. Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na matéria de direito ao imputar ao arguido tantos crimes de abuso sexual de criança quantas as ocasiões em que foi ofendida a liberdade sexual das vítimas;---

5. Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na matéria de direito no tocante à medida da pena de prisão imposta ao arguido (entendendo o mesmo que deve aquela ser fixada em quantum que permita a suspensão da sua execução).---

III

Com vista à oportuna e sucessiva apreciação das suscitadas questões, o acórdão recorrido encontra-se fundamentado nos termos seguintes (que se farão constar por cópia porque o Tribunal a quo não cumpriu a sua obrigação de enviar a respectiva cópia em suporte informático com “extensão ponto doc.”, nem a logramos obter apesar de solicitada directamente, através do “email” da Exmª Srª Escrivã da Secção Criminal deste Tribunal da Relação (devidamente identificado), ao Mmº Juiz de Círculo que, na 1ª instância, presidiu ao Tribunal Colectivo no âmbito destes autos, alegando o mesmo a natureza “invulgar” do pedido e a impossibilidade de “nestas circunstâncias, não posso sequer considerar satisfazê-lo.”):---

IV

Para apreciação da indicada questão prévia, a invocada excepção de ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal no tocante aos factos/crime de abuso sexual de criança em que é ofendida Débora Alves Duarte, convocam-se os seguintes elementos:---

Conforme consta da acusação pública deduzida em 19.11.2009, ao arguido foi imputada, além do mais, a prática na pessoa da mencionada ofendida de um crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança, p. e p., à data da prática dos factos, pelos artigos 172º, nºs 1 e 3, alínea b), do Código Penal e, actualmente, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1, do Código Penal – cfr. fls. 328. De acordo com a mesma peça processual remonta a prática de tal crime a “(…) data não concretamente apurada, mas entre o ano 2001 e 2002, quando a ofendida D tinha 9 ou 10 anos de idade (…)” até “(…) aos 14/15 anos de idade (…)”, com uma periodicidade mensal – cfr. fls. 326 e 327, artigos 22º a 24º e 28º da acusação. Nos termos constantes da mesma acusação a ofendida D terá nascido em 07.01.1992 – cfr. fls. 326, artigo 19º.---

No despacho de fls. 347 e 348, o Tribunal proferiu uma decisão genérica de legitimidade do Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº 1, do Código de Processo Penal, e da mesma não houve recurso.---

Por força do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 2/95, de 16.05.1995, publicado no D.R. nº 135/95, Série I-A, de 12.06.1995, “A decisão genérica transitada em julgado e proferida ao abrigo do artigo 311º, nº 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento.”.---

No acórdão recorrido, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre pressupostos processuais, nulidades e irregularidades, questões prévias ou incidentais que pudessem obstar ao conhecimento de mérito.---

Os presentes autos e a investigação subsequente tiveram origem numa informação de serviço efectuada pela Polícia Judiciária em 11.08.2008 – cfr. fls. 3 e 4. Dava-se, então, conhecimento de factos indiciadores de abuso sexual de criança, na pessoa da ofendida J, suspeitando-se da sua prática pelo arguido. Tais factos, nos termos constantes da acusação deduzida, datam de Maio a Junho de 2008 – cfr. fls. 324 a 326.---

É no decurso da investigação e em razão desta que, em Outubro de 2008, se toma igualmente conhecimento no âmbito do processo de factos indiciadores de abuso sexual de que a ofendida D terá sido também vítima – cfr. fls. 104 a 107, 108 e 111 a 113.---

Ouvida em declarações, em 30.10.2008, D, então, alegadamente, com dezasseis anos de idade, declarou desejar procedimento criminal.---

O Ministério Público, em lado algum das suas intervenções, se pronunciou sobre o exercício da acção penal em razão do interesse da vítima D (designadamente em 11.11.2008, quando tem conhecimento da data da prática dos factos – 2001 a 2006 –, denunciados pela mencionada ofendida, eventualmente integradores de um crime de abuso sexual de criança, p. e p., à data da sua prática pelo artigo 172º, nºs 1 e 3, alínea b), do Código Penal e, actualmente, p. e p. pelo artigo 171º, nº 1, do Código Penal revisto em 2007 – cfr. fls. 124 e 125).---

Percorridas as 465 (quatrocentas e sessenta e cinco) folhas que compõem os autos na 1ª instância, deles não consta certidão do assento de nascimento de J e de D.---

Posto isto, vejamos então qual a legislação aplicável aos factos/crime de abuso sexual de criança em que é ofendida D.---

Com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, ao Código Penal, entradas em vigor em 01.10.95, dentro do “Título I”, da Parte Especial, foi criado um novo “Capitulo V”, englobando os “Crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”.---

Este capítulo passou a ser constituído pelos artigos 163º a 179º, do Código Penal, dispondo o artigo 178º, nos seus nºs 1 e 2, quanto à “Queixa”, que:---

“1. O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163º a 165º, 167º, 168º e 171º a 175º, depende de queixa, salvo quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da vítima.

2. Nos casos previstos no número anterior, quando a vítima for menor de 12 anos, pode o Ministério Público dar início ao processo se especiais razões de interesse público o impuserem.”.-

A Lei nº 65/98, de 2 de Setembro, que entrou em vigor em 07.09.98, alterou a redacção do nº 2, deste artigo 178º, passando a dizer:---

“2. Nos casos previstos no número anterior, quando o crime for praticado contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser.”.---

A Lei nº 99/2001, de 25 de Agosto, que entrou em vigor em 30.08.01, alterou o artigo 178º, do Código Penal, passando o mesmo a ter a seguinte redacção:---

“1. O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163º a 165º, 167º, 168º e 171º a 175º depende de queixa, salvo nos seguintes casos:

a) Quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da vítima;

b) Quando o crime for praticado contra menor de 14 anos e o agente tenha legitimidade para requerer procedimento criminal, por exercer sobre a vítima poder paternal, tutela ou curatela ou tiver a seu cargo.

2. Nos casos previstos na alínea b) do número anterior, pode o Ministério Público decidir-se pela suspensão provisória do processo, tendo em conta o interesse da vítima, ponderado com o auxílio de relatório social.

3. A duração da suspensão (...).

4. Sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3, e quando os crimes previstos no nº 1 forem praticados contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser.”.---

Por sua vez, a Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, entrada em vigor em 15.09.07, alterou o (anterior) artigo 172º do Código Penal - intitulado abuso sexual de criança -, alterando a sua numeração de “Artigo 172º” para “Artigo 171º”, passando o crime, em consequência, a ser p. e p. pelo artigo 171º, do Código Penal.---

Alterou também o artigo 178º, do Código Penal, excluindo a necessidade de queixa para o procedimento criminal quanto ao crime de “abuso sexual de criança”, p. e p. (agora) no artigo 171º, do Código Penal (anteriormente no 172º, do Código Penal, como dissemos).---

Mas alteração esta que, por sua vez, tem que ser articulada com a alteração que a mesma Lei nº 59/07, de 4 de Setembro introduziu ao artigo 118º, do Código Penal, nomeadamente o aditamento do “nº 5”, que diz que “Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, o procedimento criminal não se extingue, por efeito de prescrição, antes de o ofendido perfazer 23 anos”.---

Do que antecede – e considerando os regimes sucessivamente em vigor tendo em atenção quer a data da prática do crime e a idade que a vítima alegadamente tinha à sua data, quer a data em que se iniciou o presente processo – , quer pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro, quer pela Lei nº 99/2001, de 25 de Agosto, em relação a situações que à partida estão dependentes de queixa, o Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal, se o crime tiver sido praticado “(...) contra menor de 16 anos (...)” e o interesse da vítima o impuser.---

Este Tribunal ad quem não convoca, no entanto, a Lei nº 59/07 – e isto sob a perspectiva da análise dos regimes sucessivamente aplicáveis, por força do preceituado no artigo 2º, nº 4, do Código Penal e no artigo 29º, da Constituição da República Portuguesa –, pois o princípio constitucional da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável e da obrigatoriedade da aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido, vale para todas as normas penais, materiais e processuais.---

Vale isto por dizer que este princípio se aplica não só às normas penais substantivas, mas também aquele núcleo de normas processuais penais (materiais) que afectam os interesses do arguido. E a alteração introduzida pela Lei nº 59/07, de 15 de Setembro, ao alterar a natureza do presente ilícito, passando-o de semi-público a público, é objectivamente um regime mais desfavorável para o arguido que suscitou o incidente da ilegitimidade.---

Assim e prosseguindo, resulta – dos dois regimes que estamos a considerar – que no que se refere à categoria de crime em apreço, quando tenha sido praticado contra menor de 16 (dezasseis) anos, independentemente do exercício do direito de queixa por parte de quem, à partida, é titular desse direito, por razões de interesse público – relacionadas com o que é a tutela do bem jurídico protegido –, mas inerentes e subjacentes ao interesse da vítima, o Ministério Público tem legitimidade para desencadear e exercer a acção penal.---

Tem, contudo, (e diferentemente do que é afirmado no articulado de resposta ao recurso interposto pelo arguido) é que justificar as razões de facto (objectivas) que levam à sua intervenção no interesse da vítima, o que bem se compreende ante as consequências para o processo e para quem nele é vítima ou agente de tal exercício da acção penal – cfr., neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.04.2003, relatado pelo Sr. Conselheiro Borges de Pinho, no processo 02P4628, in www.dgsi.pt/jstj, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.10.2003, relatado pelo Sr. Conselheiro Armindo Monteiro, processo 03P2852, disponível no mesmo indicado local, e Acórdão do Tribunal Constitucional nº 403/2007, processo nº 535/04, relatado pelo Sr. Conselheiro Mário Torres, in www.tribunalconstitucional.pt/tc, em que é referida a posição da Srª Professora Maria João Antunes quanto a esta questão, e vista também não só sob a perspectiva da legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, independentemente de queixa, nestas situações, mas também sob a perspectiva da não admissibilidade da desistência de queixa, em função do especial interesse da vítima, quando o crime tenha sido praticado contra menor de 16 anos.---

Ora, no caso em apreço, como já se afirmou, o Ministério Público não fundamentou, ainda que de forma sucinta e até algo tabelar, o exercício da acção penal relativamente a factos que remontam ao período compreendido entre o ano de 2001 e até ao ano de 2006, integradores de crime de abuso sexual de criança, à data revestindo natureza semi-pública, e em que é ofendida Débora Alves Duarte. Também não efectuou qualquer ponderação alicerçada em factos objectivos, não referindo designadamente porque relegou os titulares do direito de queixa a que alude o citado artigo 113º, nº 3, designadamente o progenitor, já que alegadamente a progenitora terá falecido quando a ofendida tinha nove anos de idade.---

À data, na ausência de queixa por parte do respectivo titular e/ou dos seus representantes legais – cfr. artigo 113º, nºs 1, 3 e 4, do Código Penal, na redacção anterior à revisão de 2007 –, ou de queixa validamente apresentada, tanto bastaria para lhe conferir legitimidade para o exercício da acção penal ao abrigo do preceituado nos artigos 113º, nº 6 e 178º, nº 4, do Código Penal.---

Porém, certo é que, em 30.10.2008, a ofendida D declarou desejar procedimento criminal.---

Atentando na identificação prestada pela mesma aquando da tomada de declarações na mencionada data, teria, então, 16 (dezasseis) anos de idade, perfeitos em 07.01.2006. Isto é, a partir 07.01.2006, a ofendida D poderia, por si, apresentar queixa.---

Contudo, dispõe o artigo 115º, do Código Penal que:---

“1. O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que eles se tiver tornado incapaz.

2. O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa.

3. Sendo vários os titulares do direito de queixa, o prazo conta-se autonomamente para cada um deles.”.---

Quer dizer, salvo o devido respeito por melhor opinião, in casu para se aferir com certeza e segurança da caducidade ou não do direito de queixa que foi exercido pela ofendida volvidos nove meses sobre a data em que perfez dezasseis anos e poderia, por si, apresentar queixa, essencial é saber qual a data exacta em que nasceu, se em 07.01.1992 ou outra, o que obviamente só se alcança com exactidão através de certidão do assento de nascimento respectivo e que não se mostra, como já se afirmou, junto aos autos.---

Vale tudo o que se deixa exposto por se afirmar que, não contêm os autos todos os elementos necessários ao conhecimento consciencioso da alegada questão prévia.---

Tal questão – da legitimidade ou não do Ministério Público para o exercício da acção penal –, trata-se de pressuposto processual cujo conhecimento oficioso se impõe ao Tribunal a quo logo que junto aos autos se mostre a referida certidão de assento de nascimento e que apreciando e atentando no que se deixou expendido, concluirá em conformidade.---

V

Constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, incumbe a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada. É que importa não confundir as duas formas de impugnação da matéria factual: por um lado, a invocação dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal e, por outro, os requisitos da impugnação mais ampla da matéria de facto a que se refere o mencionado artigo 412º, nº 3, alíneas a), b) e c).---

O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.---

Na impugnação mais restrita da matéria de facto, a possibilidade de recurso funda-se na estrita aplicação estabelecida no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, referente à correcção dos vícios aí mencionados por simples referência ao texto da decisão recorrida, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova.-

Em comum aos três vícios impõe-se afirmar que o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum. Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. supra mencionados.---

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.

Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.

Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a «formulação incorrecta de um juízo» em que «a conclusão extravasa as premissas» ou quando há «omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão»”.---

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. supra mencionados.---

O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados.---

Um tal vício de erro notório na apreciação da prova não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida. O simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal e expressa na decisão recorrida não conduz ao aludido vício - cfr. Acórdãos do S.T.J. de 19.09.1990, BMJ 399, pág. 260 e de 26.03.1998, Proc. nº 1483/97.---

Atentando no que se deixa exposto e volvendo à decisão revidenda, não podemos, antes de tudo o mais, deixar de consignar que foi com alguma perplexidade que constatámos que, sendo o objecto da acção penal (definido nos termos constantes da acusação pública deduzida), a imputação ao arguido da prática de crime de abuso sexual de criança, de crime de pornografia de menores agravado e de crime de actos sexuais com adolescentes, se tenha chegado ao julgamento sem que se tenha providenciado pela obtenção e junção aos autos das certidões de assento de nascimento das vítimas (alegadamente) menores de idade, se tenha efectuado tal julgamento sem que tais assentos de nascimento tivessem sido juntos e se tenha ponderado, formado e elaborado um juízo de censura jurídico-penal continuando em falta tais assentos de nascimento.---

É que, salvo o devido respeito, afigura-se-nos de liminar clarividência a necessidade, a imprescindibilidade, in casu, de tal prova documental. A idade da vítima constitui relativamente a qualquer um dos mencionados crimes seu elemento típico e não se descortina que outra prova pode o Tribunal produzir, para além da indicada prova documental, para afirmar, como o faz, a idade das vítimas. Diga-se, aliás, que não se descortina como é que o Tribunal a quo, sem tal prova documental, logrou concluir terem as vítimas “(…) J (então com 6 anos de idade)” e “D (então com 9/10 anos) (…) e 15 ou 16 anos)”.---

E, porque a mesma não se mostra junta, como bem refere o Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta instância, a decisão revidenda padece, desde logo, do vício a que alude o artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, posto que sendo a data de nascimento das vitimas um facto afirmado na acusação deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, sobre o mesmo não se pronunciou o Tribunal a quo, sendo tal pronúncia relevante para a decisão da causa.---

E, padece também do vício a que alude a alínea c), do citado preceito legal – erro notório na apreciação da prova – porque ao consignar a idade das vítimas nos termos apontados desrespeitou regras sobre o valor da prova dado que não tendo prova documental que lhe permitisse afirmar a data de nascimento das mesmas, também não poderia ter concluído, como o fez, pela afirmação de que tinham 6 anos de idade, 9/10 anos de idade ou 15 ou 16 anos de idade.---

Os indicados vícios de que padece a decisão recorrida não são ultrapassáveis por este Tribunal ad quem, com recurso ao disposto nos artigos 428º e 431º, alínea a), do Código de Processo Penal, posto que, conforme já repetidamente afirmamos, não se mostram juntos aos autos os devidos documentos autênticos em que se consubstanciam as certidões dos assentos de nascimento das vítimas e tal omissão pressupõe a realização de diligência tendente à sua junção, importando, por isso, o reenvio do processo para novo julgamento relativamente às questões (prévia e de facto) indicadas – cfr. artigo 426º, nº 1, do Código de Processo Penal.---

Em face de tudo o que se deixou expendido, mostra-se, pois, prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas e acima enunciadas sob os pontos 2, 3, 4 e 5, do presente acórdão.---

VI

Decisão

Nestes termos acordam em:---

- Por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e por erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, ao abrigo do estatuído nos artigos 426º, nº 1 e 426º-A, nº 1, ambos do aludido diploma, determinar o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente às questões (prévia e de facto) indicadas.---

- Não são devidas custas.---

(Texto processado e integralmente revisto pela relatora)

Évora, 17 de Maio de 2011

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares (relatora) - João Manuel Monteiro Amaro)