Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1262/17.0T8PTG-A.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: TRIBUNAL FISCAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I.- A competência dos tribunais comuns, quanto às matérias que lhe podem ser submetidas para apreciação, abrange apenas as situações e relações jurídicas que não se incluam em outras ordens jurisdicionais – artigos 64.º do CPC e 40.º/1, da LOSJ – pelo que os tribunais comuns têm uma competência residual.
II.- Esta competência abarca os atos de gestão privada do Estado e de outras pessoas coletivas de direito público, que, embora praticados pelos respetivos órgãos, agentes ou representantes, se encontram submetidos ao mesmo regime que teriam se tivessem sido praticados por sujeitos privados, porque neles o Estado ou a pessoa coletiva intervém despida do seu jus imperii, ou poder de soberania.
III.- Ao invés, a competência material dos tribunais administrativos e fiscais é-lhes atribuídas pela lei, como é próprio do direito público, onde, ex vi do princípio da legalidade, só é permitido o que estiver legalmente previsto.
IV.- Aqui se inscrevem os atos de gestão pública, porque praticados no exercício de uma função pública, para os fins de direito público da pessoa coletiva, regidos pelo direito público, por um conjunto de normas que revestem a pessoa coletiva de poderes de autoridade.
V.- O que os caracteriza é serem praticados pelos órgãos ou agentes da administração, no exercício de um poder público, de uma função pública, sob o domínio do direito público, ainda que não envolvendo o exercício de meios de coerção.
VI.- O Estado deve se absolvido da instância se está em causa apurar relações jurídicas onde se alega o registo de veículos automóveis, cuja finalidade é a publicidade acerca da propriedade e de todas as vicissitudes que podem verificar-se na vida de um veículo, penhoras, arrestos, etc. e as consequências que daí advêm, como as obrigações fiscais; tais atos só podem ser praticados pelo Estado e seus agentes públicos, com as vestes de jus imperii, pelo que a competência material para conhecer do litígio é dos tribunais administrativos e fiscais, ao abrigo do disposto no artigo 4º/1, a), do ETAF e artigos 96.º, 98.º, 99.º e 278.º/1, a), 576.º, 577.º e 578.º do CPC.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Procº 1262/17.0T8PTG-A.E1


Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrente: (…)

Recorrido: Estado Português
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No Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre - Juiz 3, na ação declarativa comum proposta por (…) contra o Estado Português e outros, foi proferida a seguinte decisão:
- Da incompetência material dos tribunais comuns:
Em sede de defesa por exceção o Ministério Público, em representação do Estado Português invocou a incompetência material dos tribunais comuns para julgar a presente ação por entender que se trata de matéria atribuída à jurisdição administrativa e fiscal.
O Autor pronunciou-se relativamente à invocada exceção de incompetência material, como decorre do articulado junto aos atos.
Cumpre apreciar.
De acordo com o disposto no artigo 64.º do Código de Processo Civil, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais. A competência dos tribunais comuns é, pois, supletiva, cabendo a estes conhecer de todas as ações que não sejam atribuídas por lei ou disposição especial a qualquer outro tribunal. Ou seja, a competência em razão da matéria dos tribunais comuns ou judiciais é para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Já aos tribunais administrativos e fiscais é atribuída a competência para dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos dos artigos 1.º e 4.º do ETAF.
Estabelece o citado artigo 4.º do ETAF, de forma global quanto aos litígios jurídico-administrativos, que:
“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; (…)”.
De acordo com o n.º 2 do mesmo preceito legal “Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.”
Por sua vez, no artigo 2.º, n.º 2, do CPTA estipula-se que “A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para o efeito de obter:
a) A anulação ou a declaração de nulidade ou de inexistência de atos administrativos;
h) A condenação à adoção ou abstenção de comportamentos, pela Administração Pública ou por particulares;
i) A condenação da Administração à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo em situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime;
k) A condenação à reparação de danos causados por pessoas coletivas e pelos titulares dos seus órgãos ou respetivos trabalhadores em funções públicas;”
Deve ainda sublinhar-se que à luz do atual ETAF deixou se fazer-se “(…) a distinção entre questões de direito público e questões de direito privado que vinha do anterior ETAF, aprovado pelo Decreto-lei n.º 129/84, de 27 de Abril, o qual excluía do seu âmbito de aplicação precisamente “questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público” (seu artigo 4.º, n.º 1, alínea f). Mas isso não passou para o novo ETAF, virado, como se sabe, para um forte alargamento das competências dos Tribunais Administrativos e Fiscais.” – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19/05/2011, processo n.º 198/10.0TBCBT, in www.dgsi.pt.
Ainda assim importa recordar essa distinção.
Atos de gestão pública são os praticados no exercício de uma função pública, para os fins de direito público da pessoa coletiva, regidos pelo direito público, por um conjunto de normas que revestem a pessoa coletiva de poderes de autoridade. O que os caracteriza é serem praticados pelos órgãos ou agentes da Administração, no exercício de um poder público, de uma função pública, sob o domínio do direito público, ainda que não envolvendo o exercício de meios de coerção (Cfr. Vaz Serra, RLJ, ano 110º-315).
No caso em apreço verifica-se que o A. peticiona que o Estado reconheça a nulidade dos contratos de compra e venda dos veículos com as matrículas 85-13-JJ e 17-10-RU, alegadamente celebrados abusivamente em nome do A e que os RR. e, cumulativamente, seja condenada na devolução, ao A., de todas as quantias recebidas, ou que venha a receber, a Autoridade Tributária e Aduaneira, desde 05 de Abril de 2013 e até ao cancelamento definitivo do registo da propriedade, atualmente existente em nome do A., das matrículas dos dois veículos, em causa, e com acréscimo de juros legais, vincendos, sobre todas as importâncias a devolver ao A., desde a data da citação para a presente lide, e até efetivo e integral pagamento em execução de sentença e no cancelamento definitivo do registo da propriedade, atualmente existente em nome do A.. Ou seja, o Autor pretende extrair as consequências legais próprias de uma eventual declaração de nulidade, o que constitui a nosso ver uma tautologia jurídica, na medida em que esse efeito decorre automaticamente da lei e dos efeitos oficiosos dessa eventual nulidade.
Por outro lado e cumulativamente, o Autor pretende que o Estado seja condenado a devolver as quantias referentes a tributos que pagou, sendo que essa discussão assenta necessariamente na apreciação de ato tributário de liquidação e cobrança de imposto praticados pelo Estado abrigo de normas de direito público, destinadas a regular a relação jurídica tributária entre o Estado e os cidadãos.
Por conseguinte, atendendo a todo o exposto e face ao enquadramento jurídico acima feito, entende-se que quanto ao pedido e causa de pedir deduzido contra o Estado a conclusão a extrair é que nesse âmbito a competência para o conhecimento do mérito da causa pertence, não a este tribunal, mas sim ao Tribunal Administrativo e Fiscal, por força do artigo 4.º, n.º 1, alínea a) do ETAF. Termos em que, julgo verificada a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, e em consequência, nos termos dos artigos 96.º, 98.º, 99.º e 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, 577.º, 578.º do Código de Processo Civil, decido declarar este tribunal absolutamente incompetente, em razão da matéria, para o conhecimento do mérito dessa parte da ação e absolver o Réu Estado Português da instância.

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Não se conformando com o decidido, (…) recorreu do despacho, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639.º e 663.º/2, do CPC:

1ª O ora recorrente, intentou a ação nos autos em epígrafe contra “os RR. (…), (…), Autoridade Tributária e Aduaneira, IMT, Instituto de Mobilidade e dos Transportes IP, Instituto dos Registos e Notariado, Estado Português, Banco (…), SA., Caixa Económica Montepio Geral, (…) – Serviços de Comunicações e Multimédia, S.A., e (…) Portugal – Comunicações Pessoais, conforme os pedidos alegados, na alegação 1ª, deste recurso.

2ª Tais pedidos prendem-se, entre outras situações, com os fatos vertidos nos artigos 1º a 57º da PI, em que o A., sargento da GNR, ora recorrente, invoca o furto e falsificação de documentos, de que foi objeto, usurpando-lhe a identidade os RR. (…), (…), os quais posteriormente, abriram, abusivamente conta bancária, em nome do ora recorrente, e realizaram vários contratos em nome deste, mas apropriando-se de dinheiro e bens, a crédito, cujas prestações nunca foram pagas, e lesando várias entidades terceiras … tendo sido, como consequência, o ora recorrente, demandado por várias de tais entidades, e pela Autoridade Tributária e Aduaneira, por falta de pagamento de imposto de circulação de dois veículos automóveis, que os indicados RR. adquiriram, como se o recorrente se tratasse – tal factologia decorre do Acórdão Final, já transitado em julgado, do Processo n.º 1304/07.7PBOER, que correu seus termos na Comarca de Lisboa, no Tribunal de Instância Central 1ª Secção Criminal - J1, junto aos autos.

3ª Continuando, desde 2010, ano após ano, a ser penhorado pela Autoridade Tributária e aduaneira e a ser demandado pelas outras entidades privadas, pedindo-lhe obrigações contratuais que não são as suas … como resulta do art. 59º e ss. da PI e base documental junta aos autos!

4ª Daí, Venerandos Juízes da Relação de Évora, o ter demandado, quer os RR. (…), (…), isto é, os meliantes que praticaram os atos ilícitos contra si, quer todas as entidades que lhe têm pedido os pagamentos de atos jurídicos que, efetivamente, não realizou, porque falsos, assim como as entidades depositárias desses registos públicos, ou em alternativa, ou subsidiariamente, o R. Estado Português para que toda a situação ficasse decidida, neste processo.

5ª Eis, Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, quando na Audiência Prévia realizada em 09.01.2020, foi surpreendido, o ora recorrente, com a absolvição quer dos RR. Autoridade Tributária e Aduaneira, IMT, Instituto de Mobilidade e dos Transportes IP, Instituto dos Registos e Notariado … quer do R. Estado Português, este por incompetência em razão da matéria do pedido e respetiva causa de pedir!

6ª Tendo o R. Estado Português sido absolvido pelo Tribunal a quo, com a fundamentação seguinte:

“No caso em apreço verifica-se que o A. peticiona que o Estado reconheça a nulidade dos contratos de compra e venda dos veículos com as matrículas (…) e (…), alegadamente celebrados abusivamente em nome do A e que os RR. e, cumulativamente, seja condenada na devolução, ao A., de todas as quantias recebidas, ou que venha a receber, a Autoridade Tributária e Aduaneira, desde 05 de Abril de 2013 e até ao cancelamento definitivo do registo da propriedade, atualmente existente em nome do A., das matrículas dos dois veículos, em causa, e com acréscimo de juros legais, vincendos, sobre todas as importâncias a devolver ao A., desde a data da citação para a presente lide, e até efetivo e integral pagamento em execução de sentença e no cancelamento definitivo do registo da propriedade, atualmente existente em nome do A.. Ou seja, o Autor pretende extrair as consequências legais próprias de uma eventual declaração de nulidade, o que constitui a nosso ver uma tautologia jurídica, na medida em que esse efeito decorre automaticamente da lei e dos efeitos oficiosos dessa eventual nulidade. “

E que culmina, com o seguinte raciocínio:

“Por outro lado e cumulativamente, o Autor pretende que o Estado seja condenado a devolver as quantias referentes a tributos que pagou, sendo que essa discussão assenta necessariamente na apreciação de ato tributário de liquidação e cobrança de imposto praticados pelo Estado abrigo de normas de direito público, destinadas a regular a relação jurídica tributária entre o Estado e os cidadãos.

Por conseguinte, atendendo a todo o exposto e face ao enquadramento jurídico acima feito, entende-se que quanto ao pedido e causa de pedir deduzido contra o Estado a conclusão a extrair é que nesse âmbito a competência para o conhecimento do mérito da causa pertence, não a este tribunal, mas sim ao Tribunal Administrativo e Fiscal, por força do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do ETAF. Termos em que, julgo verificada a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, e em consequência, nos termos dos artigos 96.º, 98.º, 99.º e 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, 577.º, 578.º do Código de Processo Civil, decido declarar este tribunal absolutamente incompetente, em razão da matéria, para o conhecimento do mérito dessa parte da ação e absolver o Réu Estado Português da instância.”

7ª Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, o recorrente, vítima incauta de todos os infelizes fatos alegados, segundo o tribunal a quo não pode ver a sua situação e toda a relação jurídica decidida nesta lide, e contra tal se insurge, neste recurso, perante V. Exas, por discordar de tal decisão!

8ª Refere o D. do Tribunal a quo, à luz do disposto do artigo 64.º do CPC, “A competência dos tribunais comuns é, pois, supletiva, cabendo a estes conhecer de todas as ações que não sejam atribuídas por lei ou disposição especial a qualquer outro”, o que é inquestionável, mas considera no caso em apreço, que, pelo fato de ser peticionado, pelo ora recorrente, que o E. Português reconheça a nulidade dos contratos de compra e venda dos veículos com as matrículas (…) e (…), alegadamente celebrados abusivamente em nome do A e que os RR. e, cumulativamente, seja condenada na devolução, ao A., de todas as quantias recebidas, ou que venha a receber, a Autoridade Tributária e Aduaneira (ou ele Estado diga-se, conforme o petitório), desde 05 de Abril de 2013 e até ao cancelamento definitivo do registo da propriedade, atualmente existente em nome do A., das matrículas dos dois veículos, em causa, e com acréscimo de juros legais, vincendos, sobre todas as importâncias a devolver ao A., desde a data da citação para a ação, e até efetivo e integral pagamento em execução de sentença e no cancelamento definitivo do registo da propriedade, atualmente existente em nome do A.., extrai, o Tribunal a quo, a conclusão é que nesse âmbito a competência para o conhecimento do mérito da causa pertence, não ao Tribunal a quo mas sim ao Tribunal Administrativo e Fiscal, por força do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do ETAF.

9ª Ou seja, interpretou a Mª Juíza a quo, à luz do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, que bastando ser o Réu o Estado Português, automaticamente, será (exclusivamente) competente a jurisdição administrativo-fiscal.

10ª Simplesmente, tal interpretação, in casu, salvo o devido respeito por melhor opinião, ofende o disposto no nº 3 do artigo 30.º e no n.º 1 e 2 do artigo 36.º do CPC, e faz uma interpretação extensiva do n.º 1, alínea a), do artigo 4.º do ETAF, ao considerar que esta situação se enquadra “na Tutela de direitos fundamentais, e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais” (na redação do D. L. n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro).

11ª Pois o n.º 3 dessa disposição legal explicita, com caráter, não exaustivo:

“2 – Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:

B) decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;

C) Atos relativos ao inquérito e instruções criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões “.

E o n.º 3 da citada disposição legal do ETAF, indica que:

“3 – Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”.

12ª Ora, a matéria objeto da decisão recorrida diz respeito à responsabilidade civil extra-contratual, por fatos ilícitos de terceiros, derivando daí consequências jurídicas, para o ora recorrente, onde de modo reflexo o R. Estado Português, também é envolvido, sem ter concorrido para a produção de qualquer dano ao A., ora recorrente., e não visa este a discussão da legalidade ou validade de qualquer tributo.

13ª Ora, com a configuração da causa de pedir, feita na PI pelo A. (a qual é inequívoca) observa o A. o previsto nos artigos 39.º, n.º 3, do artigo 30.º e n.º 3, do artigo 33.º, todos do C. Civil, e visa que o recorrente vítima de todos os nefastos acontecimentos relatados, “possa regular definitivamente (a sua situação concreta) e das partes relativamente ao pedido formulado”, conforme dimana do n.º 3 do artigo 33.º do CPC.

14ª Outra interpretação que não esta que implique a demanda, pelo mesmo A., ora recorrente, de vários Réus (pelos mesmos factos base) em diferentes Tribunais afronta o disposto no n.º 2 do artigo 37.º, e no n.º 2, in fine, do artigo 6.º, ambos do C.P.C., sacrificando um interesse relevante do autor em ver a sua situação definitivamente regulada, processualmente, como vítima incauta de crimes, ele que até é Sargento da GNR, em detrimento de uma interpretação extensiva (artigo 9.º do C. Civil) que considere que, no caso vertente, o Estado Português, por o ser, e um dos pedidos respeitar, indiretamente, a impostos, só pode ser demandado na jurisdição administrativa e fiscal.

15ª Tal interpretação do D. D. cuja bondade do raciocínio, e qualidade jurídica do mesmo, pela Mª Juiz, o A., não pretende minimamente beliscar com o presente recurso, e respeita, não pode, no entanto com o mesmo se conformar, no que tange à absolvição do Estado Português, remetendo, o ora recorrente, pelos mesmos fatos, e causa de pedir, para a Jurisdição Administrativa e Fiscal.

16ª Tal interpretação, Venerandos Juízes do Tribunal da Relação de Évora, salvo o devido respeito por melhor opinião, não tem (sublinhe-se) “sobretudo em conta”, “a unidade do sistema jurídico”, como decorre da 2ª parte do n.º 1 do artigo 9.º do nosso Código Civil.

17ª Pelo que, atentas as conclusões supra, deve o D. D. do Tribunal a quo, em que absolveu da Instância o R. Estado Português, por violação da Regra da Incompetência em Relação da Matéria, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre (Instância Central Cível e Crime), e por consequência, condenando em custas o ora recorrente pelo decaimento no pedido contra todos os RR. demandados em termos alternativos e subsidiários, ser revogado, por Vós, Venerandos Juízes do Tribunal da Relação de Évora, e mandado substituir por D. D. que conheça a competência do referido Tribunal para a demanda do R. Estado Português, na causa em apreço, seguindo com tal Réu a demanda seus termos, até final.


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O Ministério Público contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

1. A decisão da Exma. Juiz faz uma correta interpretação das normas legais aplicáveis, designadamente dos artigos 64.º do CPC e 4.º, n.º 1, alínea a), do ETAF.

2. A decisão da Exma. Juiz não violou qualquer norma legal, designadamente a dos artigos 30.º, n.º 3, 33.º, 36.º, n.ºs 1 e 2, 37.º, n.º 2 e 64.º do CPC e 4.º, n.º 1, alínea a), do ETAF.

3. A decisão ora posta em crise não enferma de qualquer irregularidade, pois é bem explícita quanto aos fundamentos que estiveram na sua base.

4. Louvando-nos, pois, no bem fundado da douta decisão recorrida somos de parecer que o recurso dela interposto não merece provimento.

V. Ex.as, porém, com superior apreciação e critério, farão, certamente, Justiça.


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Foram dispensados os vistos.

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A questão que importa decidir é a de saber em que ordem de tribunais se incluem as relações jurídicas praticadas pelo Estado.
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A matéria de facto a considerar é a que consta do Relatório, realçando-se a seguinte:
O A., ora recorrente, peticiona que o Estado reconheça a nulidade dos contratos de compra e venda dos veículos com as matrículas (…) e (…), alegadamente celebrados abusivamente em nome do A e que os RR. e, cumulativamente, a Autoridade Tributária e Aduaneira seja condenada na devolução, ao A., de todas as quantias recebidas, ou que venha a receber, desde 05 de Abril de 2013 e até ao cancelamento definitivo do registo da propriedade, atualmente existente em nome do A., das matrículas dos dois veículos, em causa, e com acréscimo de juros legais, vincendos, sobre todas as importâncias a devolver ao A., desde a data da citação para a presente lide, e até efetivo e integral pagamento em execução de sentença e no cancelamento definitivo do registo da propriedade, atualmente existente em nome do A..
Cumulativamente, o Autor pretende que o Estado seja condenado a devolver as quantias referentes a tributos que pagou, sendo que essa discussão assenta na apreciação de ato tributário de liquidação e cobrança de imposto praticado pelo Estado.
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Conhecendo.
No relacionamento com empresas e cidadãos, o Estado, através dos seus agentes, pratica atos de natureza privada e de natureza pública.
Em tese geral, para os primeiros, onde impera o princípio da autonomia da vontade e da liberdade contratual e são aplicados normas e princípios que qualquer cidadão ou empresa pratica com outros cidadãos e empresas – direito privado –, são competentes para dirimir os litígios os tribunais comuns.
Para os segundos, em que o Estado age munido de poderes de soberania ou jus imperii, que lhe são conferidos por lei expressa – e onde são aplicados normas e princípios de direito público – são competentes os tribunais administrativos e fiscais.
Mas pode haver situações jurídicas em que o Estado, mesmo atuando segundo normas de direito público, a competência dos tribunais administrativos e fiscais seja afastada, ou vice-versa (neste sentido, cfr. Ac. TRL de 17-05-2018, Jorge Leal, Procº 19031/16.2T8LSB.L1-2).
Veja-se o exemplo das expropriações por utilidade pública e os recursos de aplicação de coimas que, sendo ambos matéria claramente atribuída à competência dos tribunais administrativos e fiscais, apenas por razões de tradição continuam a ser remetidos para os tribunais comuns.
De onde se infere que o artigo 212º/3 da CRP, que atribui aos tribunais administrativos e fiscais a competência para o “julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, não consagra uma reserva absoluta de jurisdição dos tribunais administrativos – sobre a questão, cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, Vol. II, 4ª. Ed, pág. 565 e Ac. TC 302/2008, 29-05.
Como se disse, a questão que é colocada à apreciação é a de saber em que ordem de tribunais se incluem as relações jurídicas em que o Estado terá participado e que o recorrente alega terem afetado a sua esfera jurídica.
Para isso, importa equacionar que causa de pedir e pedidos foram formulados pelo autor, uma vez que só o seu recorte nos permitirá retirar as conclusões necessárias para dirimir o litígio, porque a competência em razão da matéria é aferida pela forma como o autor configura a relação jurídica que alega ter-se estabelecido.
O autor peticiona o seguinte quanto ao Estado:
c) Que a Autoridade Tributária seja condenada na devolução, ao A., de todas as quantias recebidas, ou que venha a receber, a mesma Autoridade Tributária e Aduaneira, desde 05 de Abril de 2013 e até ao cancelamento definitivo, no IMT, do registo da propriedade, atualmente existente em nome do A., das matrículas dos dois veículos, em causa, e com acréscimo de juros legais, vincendos, sobre todas as importâncias a devolver ao A., desde a data da citação do R. para a presente lide, e até efetivo e integral pagamento em execução de sentença.
d) Que os Réus IMTT e IRN sejam condenados no cancelamento definitivo do registo da propriedade, atualmente existente em nome do A, das matrículas dos dois veículos, em causa, no registo automóvel;
e) Que, em alternativa e subsidiariamente, seja o Estado Português condenado nos pedidos referidos nas alíneas C) e D);

Para fundamentar as suas pretensões, o autor alega, em suma, como causa de pedir, que os réus se apropriaram da sua identidade e celebraram, em seu nome, contratos de aquisição de veículos automóveis e efetuaram os respetivos registos em nome do autor, sendo que as contribuições fiscais devidas pelos veículos lhe foram pedidas a ele autor, tendo efetuado o seu pagamento, pelo que peticiona a devolução dessas importâncias e o cancelamento dos registos.
Quid juris?
Como já se assinalou, a competência dos tribunais comuns, quanto às matérias que lhe podem ser submetidas para apreciação, abrange apenas as situações e relações jurídicas que não se incluam em outras ordens jurisdicionais – artigo 64.º do CPC e 40.º/1, da LOSJ – pelo que os tribunais comuns têm uma competência residual.
Esta competência abarca os atos de gestão privada do Estado e de outras pessoas coletivas de direito público, que, embora praticados pelos respetivos órgãos, agentes ou representantes, se encontram submetidos ao mesmo regime que teriam se tivessem sido praticados por sujeitos privados, porque neles o Estado ou a pessoa coletiva intervém despida do seu jus imperii, ou poder de soberania.
É o que acontece v.g., nos casos em que o Estado pratica atos de gestão do seu domínio privado ou quando é o próprio ente público que se coloca voluntariamente em condições de direito privado, como se verifica quando arrenda um imóvel para instalar um serviço público.
Encontra-se manifestação desta circunstância no que dispõe o artigo 501.º do C. Civil, ao estipular que o Estado e demais pessoas coletivas públicas, quando haja danos causados a terceiros pelos seus órgãos, agentes ou representantes no exercício de atividades de gestão privada, respondem civilmente por esses danos nos termos em que os comitentes respondem pelos danos causados pelos seus comissários.
Ao invés, a competência material dos tribunais administrativos e fiscais é-lhes atribuídas pela lei, como é próprio do direito público, onde, ex vi do princípio da legalidade, só é permitido o que estiver legalmente previsto.
Aqui se inscrevem os atos de gestão pública porque praticados no exercício de uma função pública, para os fins de direito público da pessoa coletiva, regidos pelo direito público, por um conjunto de normas que revestem a pessoa coletiva de poderes de autoridade.
O que os caracteriza é serem praticados pelos órgãos ou agentes da administração, no exercício de um poder público, de uma função pública, sob o domínio do direito público, ainda que não envolvendo o exercício de meios de coerção (João Melo Franco e Herlander Martins, in Conceitos e Princípios Jurídicos, 1983, pág. 44, citando Vaz Serra, RLJ, ano 110º-315).
Devemos então determinar qual a competência material dos tribunais administrativos e fiscais, para saber se as relações jurídicas em causa nos autos lhes são atribuídas especialmente, de harmonia com o que dispõe o artigo 1/1 do ETAF – Lei 13/2002, 19-02: «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º” – o que configura uma transposição para a lei ordinária do comando constitucional acima referido (artigo 212º/3, da CRP).
E o artigo 4.º:
1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

No caso dos autos é indubitável que o Estado e os seus agentes administrativos praticaram atos de gestão pública, uma vez que o registo de veículos automóveis, cuja finalidade é a publicidade acerca da propriedade e de todas as vicissitudes que podem verificar-se na vida de um veículo, penhoras, arrestos, etc. e as consequências que daí advêm, como as obrigações fiscais, só podem ser praticados pelo Estado e seus agentes públicos.
Maxime, a recolha de impostos, não é claramente uma competência que possa ser atribuída a uma entidade privada, sendo, isso sim, um dos núcleos fundamentais das funções do Estado – a de recolher os meios necessários para prover ao cumprimento das funções essenciais do Estado.
Só as funções de segurança e defesa da soberania do Estado se comparam ao poder/dever de recolher tributos junto dos cidadãos e empresas, o que obriga anualmente à aprovação de uma Lei do Orçamento do Estado cuja competência cabe exclusivamente à Assembleia da República, onde se autorizam expressamente os órgãos executivos do Estado a cobrar os impostos ali previstos, e só estes, definidos nessa lei.
Assim sendo, deve concluir-se que, no caso dos autos, nenhuma dúvida se suscita quanto à competência material dos tribunais administrativos e fiscais para dirimir o litígio em causa nos autos.
O que equivale por dizer que bem andou o tribunal a quo ao declarar-se materialmente incompetente para conhecer do litígio nesta parte, absolvendo o Estado da instância, ao abrigo do artigo 4.º/1, alínea a), do ETAF e artigos 96.º, 98.º, 99.º e 278.º/1, a), 576.º, 577.º e 578.º do CPC.
Em consequência, a apelação é improcedente e a decisão deve ser mantida.
No mesmo sentido, Ac. TRE de 06-12-2018, Vítor Sequinho, Procº 9344/15.6T8STB.E2:
Estando provado que, com vista à celebração do contrato de seguro, a recorrente lançou um concurso público nos termos da legislação sobre contratação pública e que tal o impunha o Código dos Contratos Públicos, é quanto basta para concluir que a competência material para dirimir o conflito que opõe uma Administração dos Portos e uma seguradora pertence aos tribunais administrativos e fiscais.
Ac. TRE de 25-03-2021, Cristina Dá Mesquita, Procº 535/20.9T8STB.E1:
1 – Estando em causa nos autos um alegado incumprimento de um contrato outorgado entre o (extinto) Gabinete da Área de Sines, criado pelo D/L n.º 270/71, de 19.06, e um particular, e consistindo o pedido principal em julgar-se verificada a condição resolutiva constante do clausulado contratual com as inerentes consequências jurídicas, estamos perante uma ação relativa à execução de um contrato;
2 – Destarte, é à luz da norma constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF que deve ser aferido se os tribunais administrativos são os tribunais materialmente competentes para dirimir o presente litígio;
3 – Através do contrato em causa nos autos, o (extinto) Gabinete da Área de Sines viu transferida para a respetiva esfera jurídica prédios que seriam necessários a empreendimentos integrados no plano relativo à criação e desenvolvimento da área urbano-industrial da zona respetiva, pelo que se trata de um contrato que visou a prossecução de um interesse público;
4 – Tendo sido declarada a utilidade pública urgente das expropriações necessárias para a execução dos planos geral e parciais que fossem aprovados para a área de atuação direta da Área de Sines, pelo D/L n.º 270/71, de 19.06 e resultando dos autos que o Conselho de Ministros restrito de 26 de junho de 1973 declarou a expropriação sistemática, a realizar pelo Gabinete da Área de Sines, dos prédios sitos no concelho de Sines e Santiago do Cacém, a qual foi objeto de publicação na II Série do Diário do Governo de 12 de julho de 1973 e que, consequentemente, o GAS começou a notificar os proprietários dos terrenos expropriados, o que ocorreu até 1985, conclui-se que a transferência dos prédios em causa nos autos para a esfera jurídica do (extinto) Gabinete da Área de Sines realizada através do contrato objeto dos autos poderia ter sido alcançada através de um processo de expropriação;
5 – O contrato de compra e venda dos autos é, por conseguinte, um contrato administrativo por natureza, que se integra na categoria de contratos administrativos prevista no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), 1.ª parte, do CCP: «contrato com objeto passível de ato administrativo»; logo, sujeito ao regime do Direito Administrativo;
6 – Consequentemente, a apreciação e decisão sobre a validade da sua execução deve ser empreendida pelos tribunais administrativos.

Ac. TRL de 17-05-2018, Jorge Leal, Procº 19031/16.2T8LSB.L1-2:
I.– No novo ETAF o legislador quis, conforme afirmado e reiterado nas respetivas Exposições de Motivos, consagrar, no âmbito da responsabilidade civil, o princípio da unidade do foro para as pessoas coletivas de direito público, independentemente da natureza pública ou privada das normas de direito substantivo definidoras dessa responsabilidade.
II.– O artigo 62.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal, que atribui aos tribunais judiciais a competência para o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as ações para efetivação da responsabilidade civil por atos dos seus órgãos, deve considerar-se revogado pelo novo ETAF, nos termos do n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil.
III.– O n.º 2 do art.º 4.º do ETAF, introduzido pelo Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10, que atribui à jurisdição administrativa e fiscal “a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”, não está circunscrito a casos de litisconsórcio necessário, mas abrange também, além do mais, situações de litisconsórcio voluntário, como as decorrentes de situações de responsabilidade solidária entre entidades públicas e privadas pela reparação de danos para cuja produção tenham conjuntamente contribuído.
IV.– A exclusividade da competência dos tribunais administrativos para julgar ações que tenham por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas de direito público como o Banco de Portugal e a CMVM arrasta, por força do n.º 2 do art.º 4.º do ETAF, para os tribunais administrativos a competência para julgar a concorrente responsabilidade civil de particulares, ou seja, no caso, a responsabilidade do BES, de uma sua funcionária e do Novo Banco (que surge como sucessor do BES), assim como o Fundo de Resolução, na qualidade de único acionista do Novo Banco e garante (pelo menos parcialmente) do que vier a ser devido ao A.
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Sumário:

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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação improcedente e confirma a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente – Artigo 527.º CPC
Notifique.

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Évora, 13-05-2021

José Manuel Barata (relator)

Conceição Ferreira

Emília Ramos Costa