Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4111/22.3T8FAR.E1
Relator: JAIME PESTANA
Descritores: CONCORRÊNCIA DESLEAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
PROPRIEDADE INDUSTRIAL
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Estando em causa comportamentos que, integrando actos de concorrência desleal, extravasam os estritos direitos da propriedade industrial (que conduziriam, esses sim, à competência do Tribunal da Propriedade Intelectual), não cabe a competência material ao Tribunal da Propriedade Intelectual, antes a mesma cabe necessariamente ao Tribunal Cível competente.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 4111/22.3T8FAR.E1
Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

No Juízo Cível Central de Faro a requerente (…) intentou a presente ação contra os réus “(…) – INTERNATIONAL, (…) CONTROL, S.A.”, “(…) – (…) MANAGEMENT SOLUTIONS, LDA.”, “(…), S.A.”, “(…) – CONSULTADORIA DE GESTÃO E INVESTIMENTOS, UNIPESSOAL, LDA.”, (…), (…), (…), (…), (…), (…) e MASSA INSOLVENTE DE “(…), AMBIENTE E OBRAS PÚBLICAS S.A.”, pedindo a sua condenação solidária, nos seguintes moldes: A) Pagarem à massa insolvente da (…) uma indemnização em montante não inferior a € 5.000.000,00 (cinco milhões de euros) pelos atos de concorrência desleal praticados pelos réus, devendo o seu valor final ser apurado em sede de liquidação de sentença; B) Pagarem à massa insolvente da (…) uma indemnização em montante não inferior a € 1.636.805,13 (um milhão, seiscentos e trinta e seis mil, oitocentos e cinco euros e treze cêntimos) por apropriação ilegítima dos ativos tangíveis e intangíveis da (…); C) Absterem-se de utilizar, publicitar e comercializar o software (…) até ao efetivo e integral pagamento das indemnizações supra peticionadas; D) Absterem-se de utilizar e promover por qualquer meio as obras executadas pela (…); E) Pagarem juros de mora vincendos, à taxa legal em vigor, contabilizados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.

A Requerente fundou os pedidos acima mencionados na prática de actos de concorrência desleal pelos RR e apropriação ilícita de activos da (…) alegando em síntese que os RR., agindo concertadamente

a) Constituíram sociedades clones da (…) para desenvolverem as mesmas atividades que esta;

b) Clonaram o alvará obrigatório para o desenvolvimento das mesmas atividades que (…);

c) Transferiram 95% dos trabalhadores da (…) para a R. (…) para que esta desenvolvesse as mesmas atividades que a (…);

d) Transferiram os trabalhadores dos setores e departamentos nevrálgicos da (…) para as sociedades RR. de modo a concretizar com sucesso o esvaziamento da (…), passando as atividades praticadas pela (…) para a esfera das sociedades RR.;

e) Transferiram para a R. (…) softwares específicos e únicos para o desenvolvimento das mesmas atividades que a (…);

f) Transferiram imagens, desenhos, marcas distintivas do comércio e respetiva propriedade intelectual e industrial da (…) para as sociedades RR. que permitiram a entrada destas no mercado onde a (…) operava há mais de 20 anos;

g) Utilizaram indevidamente de fichas de especificações técnicas elaboradas ao longo de 20 anos pela (…);

h) Apropriaram-se de informações confidenciais e não divulgadas publicamente, designadamente de todo o seu conhecimento sobre tecnologia, mercado, fornecedores, formas de fazer e bibliotecas de fichas técnicas de produtos;

i) Utilizaram informação confidencial possuída pelos trabalhadores de mais elevado e específico saber, como é o caso do R. (…), (…), (…) e (…), e ainda os técnicos especialistas (…) e (…) e que fazia parte do ativo intangível da (…) que foi passada pelos fornecedores daquela ao longo dos anos de ação no mercado e também fruto do investimento feito pela (…) no desenvolvimento da sua atividade, tais como, tabelas próprias, medições, tempos de trabalho, componentes /Kits de fabrico, programas específicos de comando e controlo de equipamentos, códigos fonte de programas, desenhos e esquemas elétricos e outros, transitasse para as sociedades RR.;

j) Desviaram para as sociedades RR. todos os clientes da (…) que operavam nos vários mercados por esta abrangidos;

k) Substituíram a (…) pelas sociedades RR. em todos os concursos públicos do mercado em que esta atuava;

l) Apropriaram-se e utilizaram ilegitimamente os ativos da (…) a favor das sociedades RR.;

m) Aproveitaram-se da relação com os fornecedores da (…) para entrarem no mercado e obterem vantagens para as sociedades RR.

Foi proferido despacho liminar de indeferimento da petição inicial com fundamento na incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria.

Inconformada recorreu a A. tendo concluído nos seguintes termos:

1. O presente recurso assenta em saber se a competência material para decidir da ação intentada pela Rte. pertence ao Juízo Cível Central de Faro ou ao Tribunal da Propriedade Intelectual.

2. O douto Tribunal a quo sentenciou liminarmente a ação intentada com fundamento na “verificação da exceção dilatória de incompetência absoluta deste tribunal, por violação das regras de competência em razão da matéria, a qual é de conhecimento oficioso (n.º 2 do artigo 97.º do Código de Processo Civil)”.

3. Para fundamentar a sua decisão, o Tribunal a quo limitou-se a referir que na ação intentada a Rte. “invocou a violação de regras do Código da Propriedade Industrial e a prática de atos de concorrência desleal, alegando o facto dos réus se terem apropriado e utilizado ativo tangível e intangível da (…), onde se incluem o software (…), máquinas, ferramentas, stocks, direitos de imagem, desenhos, textos, sinais distintivos do comércio, fichas de especificações técnicas de produtos, biblioteca de artigos, etc. (vide artigo 377º da petição inicial), e por isso concluiu que “o tribunal competente para dirimir o presente litígio é o Tribunal de competência especializada – o Tribunal da Propriedade Industrial”, ao abrigo do disposto no artigo 111.º / 1 / n), da LOSJ.

4. Em 19/12/2022 a Rte. deu entrada da presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum junto do Juízo Central Cível de Faro, a qual foi distribuída ao Juízo Central Cível – Juiz 1, sob o número de processo 4111/22.3T8FAR.

5. No âmbito da referida ação, a Rte. pediu que os RR. fossem solidariamente condenados:

a) A pagar à massa insolvente da (…) uma indemnização em montante não inferior a € 5.000.000,00 (cinco milhões de euros) pelos atos de concorrência desleal praticados pelos RR., devendo o seu valor final ser apurado em sede de liquidação de sentença;

b) A pagar à massa insolvente da (…) uma indemnização em montante não inferior a € 1.636.805,13 (um milhão seiscentos e trinta e seis mil oitocentos e cinco euros e treze cêntimos) por apropriação ilegítima dos ativos tangíveis e intangíveis da (…);

c) A absterem-se de utilizar, publicitar e comercializar o software (…) até ao efetivo e integral pagamento das indemnizações supra peticionadas;

d) A absterem-se de utilizar e promover por qualquer meio as obras executadas pela (…);

e) A pagar juros de mora vincendos, à taxa legal em vigor, contabilizados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.

6. Conforme já supra referido, da leitura e análise da douta Sentença proferida resulta que, no entender do douto Tribunal a quo, o tribunal competente para dirimir o presente litígio é o Tribunal de competência especializada – o Tribunal da Propriedade Intelectual, porquanto a Rte. invocou a violação de regras do Código da Propriedade Industrial e a prática de atos de concorrência desleal, alegando o facto dos réus se terem apropriado e utilizado ativo tangível e intangível da (…), onde se incluem o software (…), máquinas, ferramentas, stocks, direitos de imagem, desenhos, textos, sinais distintivos do comércio, fichas de especificações técnicas de produtos, biblioteca de artigos, etc. (vide o artigo 377º da petição inicial).

7. Para determinar a competência material do tribunal competente para dirimir um litígio. Neste sentido, e tal como bem referiu o Supremo Tribunal de Justiça, “a determinação da competência do tribunal deve assentar na estrutura do objeto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial da ação na altura em que é intentada”.

8. Significa isto que, para aferir da competência material do tribunal é necessário analisar a ação como um todo e aferir pelo núcleo fáctico essencial da causa de pedir, especialmente quando são invocados factos complexos e que podem (em teoria) caber a tribunais de competência especializada e, simultaneamente, tribunais comuns.

9. Em face do exposto importa agora apurar qual o escopo e o alcance material do artigo 111.º / 1 / n), da LOSJ. Determina o referido preceito legal que:

Artigo 111.º

Competência

1 - Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a:

(...)

o) Ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal ou de infração de segredos comerciais em matéria de propriedade industrial;

(...)

10. Conforme tem vindo a ser entendimento unânime e pacífico por parte da jurisprudência, na referida norma, “o legislador quis apenas incluir as situações em que a prática de atos de concorrência desleal respeitem a direitos privativos da propriedade industrial (área de especialização do novo Tribunal de Propriedade Industrial, que é mais circunscrita do que a da tutela da actividade empresarial em geral), sendo pois, este, o sentido a dar à expressão “em matéria de propriedade industrial.”

11. São considerados direitos privativos da propriedade industrial “os que tutelam invenções e patentes, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas, nomes e insígnias de estabelecimentos e logotipos”.

12. Conclui-se, assim, que para aferir se o tribunal materialmente para julgar uma ação fundada em concorrência desleal é necessário em primeiro lugar analisar a ação como um todo e aferir se o núcleo fáctico essencial da causa de pedir versa exclusivamente sobre direitos privativos da propriedade industrial (invenções e patentes, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas, nomes e insígnias de estabelecimentos e logotipos) ou se, pelo contrário, o objeto da ação é mais amplo e não incide exclusivamente sobre aqueles direitos.

13. No caso em apreço é manifesto que o objeto da ação é substancialmente mais abrangente do que apenas direitos privativos da propriedade industrial.

14. Para fundamentar o seu pedido, a Rte. alegou que os RR. praticaram vários atos, os quais consubstanciam atos de concorrência desleal e atos de apropriação ilícita de ativos da (…), designadamente:

a) Constituíram sociedades clones da (…) para desenvolverem as mesmas atividades que esta;

b) Clonaram o alvará obrigatório para o desenvolvimento das mesmas atividades que (…);

c) Transferiram 95% dos trabalhadores da (…) para a R. (…) para que esta desenvolvesse as mesmas atividades que a (…);

d) Transferiram os trabalhadores dos setores e departamentos nevrálgicos da (…) para as sociedades RR. de modo a concretizar com sucesso o esvaziamento da (…), passando as atividades praticadas pela HIA para a esfera das sociedades RR.;

e) Transferiram para a R. IWT softwares específicos e únicos para o desenvolvimento das mesmas atividades que a HIA;

f) Transferiram imagens, desenhos, marcas distintivas do comércio e respetiva propriedade intelectual e industrial da HIA para as sociedades RR. que permitiram a entrada destas no mercado onde a HIA operava há mais de 20 anos;

g) Utilizaram indevidamente de fichas de especificações técnicas elaboradas ao longo de 20 anos pela HIA;

h) Apropriaram-se de informações confidenciais e não divulgadas publicamente, designadamente de todo o seu conhecimento sobre tecnologia, mercado, fornecedores, formas de fazer e bibliotecas de fichas técnicas de produtos;

i) Utilizaram informação confidencial possuída pelos trabalhadores de mais elevado e específico saber, como é o caso do R. João Viegas, Dinis Miguel, Rómulo Cabido e Cláudio Adriano, e ainda os técnicos especialistas Nuno Colaço e António Godinho e que fazia parte do ativo intangível da HIA que foi passada pelos fornecedores daquela ao longo dos anos de ação no mercado e também fruto do investimento feito pela HIA no desenvolvimento da sua atividade, tais como, tabelas próprias, medições, tempos de trabalho, componentes /Kits de fabrico, programas específicos de comando e controlo de equipamentos, códigos fonte de programas, desenhos e esquemas elétricos e outros, transitasse para as sociedades RR.;

j) Desviaram para as sociedades RR. todos os clientes da (…) que operavam nos vários mercados por esta abrangidos;

k) Substituíram a (…) pelas sociedades RR. em todos os concursos públicos do mercado em que esta atuava;

l) Apropriaram-se e utilizaram ilegitimamente os ativos da (…) a favor das sociedades RR.;

m) Aproveitaram-se da relação com os fornecedores da (…) para entrarem no mercado e obterem vantagens para as sociedades RR.

15. Conforme resulta das alíneas a) a m) supra, a ação intentada pela Rte. não se limita aos chamados direitos privativos do Código da Propriedade Industrial, muito pelo contrário, a ação visa vários factos fora daqueles direitos e que, no entender da Rte., consubstanciam a prática de atos ilícitos de concorrência desleal e o direito à (…) a ser indemnizados por eles.

16. Também não se afigura como correta a interpretação feita pelo Tribunal a quo quando refere que a incompetência material resulta ainda do facto da Rte. Invocar “a violação de regras do Código da Propriedade Industrial e na prática de atos de concorrência desleal, alegando o facto dos réus se terem apropriado e utilizado ativo tangível e intangível da (…), onde se incluem o software Flowvision, máquinas, ferramentas, stocks, direitos de imagem, desenhos, textos, sinais distintivos do comércio, fichas de especificações técnicas de produtos, biblioteca de artigos, etc. (vide o artigo 377.º da petição inicial).”

17. Neste sentido – e muito bem –, o douto aresto proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra refere expressamente que, para aferir da competência material do tribunal para dirimir litígios referentes a atos de concorrência desleal não releva que tenham sido invocadas exclusivamente normas do Código da Propriedade Industrial para fundamentar a sua pretensão.

Deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se o Tribunal recorrido como o competente para, em razão a matéria, prosseguir os autos….

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, salvo questões de conhecimento oficioso (artigo 639.º do CPC).

A questão a decidir consiste em determinar se o juízo Cível Central de Faro detém competência ou não em razão da matéria, para o presente litígio.

Factualidade relevante para a apreciação do objecto do recurso: a que consta do relatório supra.

A competência judiciária em razão da matéria é de ordem pública e só pode decorrer da lei. E é indelegável, a não ser que a lei permita a delegação.
Fixa-se em função da natureza da matéria a judicar, sendo relevante, como critério, a sua atribuição ao tribunal que mais vocacionado estiver para conhecer do objecto da causa respectiva.

A competência do tribunal em razão da matéria afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como definida pelo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido.

O Tribunal recorrido considerando que a causa de pedir versa sobre a prática, pelos réus, de atos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial, julgou competente para apreciar e dirimir o presente litígio o Tribunal de competência especializada – o Tribunal da Propriedade Intelectual, motivo pelo qual declarou verificada a exceção de incompetência material do juízo Cível Central de Faro ao abrigo do disposto no artigo 111.º, alínea J, da L.O.S.L..

É a Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto – Lei de Organização do Sistema Judiciário (doravante “LOSJ”) – que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário.
Sendo que, quanto à extensão e limites de competência, o artigo 37.º desta lei estabelece que, na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território, regra esta também afirmada no nº 2 do artigo 60.º do n.C.P.Civil, em cujo n.º 1 se preceitua que a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código.
Ora, como regra, relativamente à competência em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, cabendo à LOSJ determinar a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada – é o que consta no artigo 40.º da dita LOSJ, e é reiterado pelos artigos 64.º e 65º do também já citado n.C.P.Civil.
Temos então, segundo estas normas – e em consonância com o que dispõe o artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – que a competência dos tribunais judiciais é residual.
No caso vertente e para o efeito em causa, releva o Tribunal da Propriedade Intelectual, tribunal de competência territorial alargada, cuja área de competência é o território nacional, estando a sua competência material estabelecida no artigo 111.º da aludida LOSJ.

Dispõe o artigo 111.º da L.O.S.J., que compete ao Tribunal da Propriedade Intelectual conhecer das questões relativas a:

a) Ações em que a causa de pedir verse sobre direito de autor e direitos conexos;

b) Ações em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas na lei;

c) Ações de nulidade e de anulação previstas no Código da Propriedade Industrial;

d) Recursos de decisões do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, I. P. (INPI, I. P.) que concedam ou recusem qualquer direito de propriedade industrial ou sejam relativas a transmissões, licenças, declarações de caducidade ou a quaisquer outros atos que afetem, modifiquem ou extingam direitos de propriedade industrial;

e) Recurso e revisão das decisões ou de quaisquer outras medidas legalmente suscetíveis de impugnação tomadas pelo INPI, I. P., em processo de contraordenação;

f) Ações de declaração em que a causa de pedir verse sobre nomes de domínio na Internet;

g) Recursos das decisões da Fundação para a Computação Científica Nacional, enquanto entidade competente para o registo de nomes de domínio de.PT, que registem, recusem o registo ou removam um nome de domínio de.PT;

h) Ações em que a causa de pedir verse sobre firmas ou denominações sociais;

i) Recursos das decisões do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P. (IRN, I. P.) relativas à admissibilidade de firmas e denominações no âmbito do regime jurídico do Registo Nacional de Pessoas Coletivas;

j) Ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial;

k) Medidas de obtenção e preservação de prova e de prestação de informações quando requeridas no âmbito da proteção de direitos de propriedade intelectual e direitos de autor.

2 - A competência a que se refere o número anterior abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.

Será então que, no caso vertente, a causa de pedir versava sobre a prática de atos de concorrência desleal em “matéria de propriedade industrial”?

Seguimos de perto a fundamentação constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24-4-2018, proc. n.º 4228/17.6T8LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt

A resposta a esta primeira interrogação passa por definir se apenas constitui “matéria de propriedade industrial” os direitos privativos tutelados pelo CPI (nos seus artigos 51.º e seguintes) – isto segundo a linha de entendimento de que o Tribunal da Propriedade Intelectual não seria competente para apreciar todos os actos de concorrência desleal, sem distinção, mas só aqueles que tenham a ver com direitos privativos de propriedade industrial.
Acontece que, quanto a nós, considerando as modificações introduzidas durante o processo de produção daquela norma, o teor da redacção que passou para o texto vigente, a autonomia do instituto da concorrência desleal relativamente à propriedade industrial Atente-se que a doutrina se tem inclinado, maioritariamente, no sentido da autonomia do instituto jurídico da concorrência desleal perante o direito industrial: assim, no domínio do atual Código da Propriedade Industrial – como já referido, aprovado pelo DL nº 36/2003, de 5 de Março – já foi doutamente considerado que «O novo Código da Propriedade Industrial (CPI) (…) continua, na esteira dos CPI anteriores de 1940 e 1995, a tratar a matéria da concorrência desleal a propósito das infracções à propriedade industrial. Mantém-se, assim, por parte do legislador, uma visão redutora deste instituto, sabido como é que o mesmo é independente da existência de qualquer direito de propriedade industrial, podendo verificar-se concorrência desleal sem violação de algum direito privativo ou, ao invés, ocorrer a violação de direitos privativos sem existir concorrência desleal» (citámos Jorge Patrício Paul em “Breve Análise do Regime da Concorrência Desleal no Novo Código da Propriedade Industrial”, in ROA, Ano 2003 > Ano 63 - Vol. I / II - Abr. 2003 > Artigos Doutrinais)., e as razões que fundamentaram a criação do Tribunal de Propriedade Intelectual, com competência especializada, entre outras, o reforço do tratamento especializado das questões de direitos de autor, direitos conexos e de propriedade industrial…, importa concluir que na citada alínea j) o legislador quis apenas incluir as situações em que a prática de actos de concorrência desleal respeitem a direitos privativos da propriedade industrial (área de especialização do novo Tribunal de Propriedade Industrial, que é mais circunscrita do que a da tutela da actividade empresarial em geral), sendo pois, este, o sentido a dar à expressão “em matéria de propriedade industrial”, constante da parte final do preceito em análise. cf., neste sentido, e tecendo considerações sobre a opção do legislador, Pedro Sousa e Silva, “Direito Industrial”, Coimbra Editora, 2011, a págs. 317-318, nota 640.
Ora, sendo esse o sentido e alcance da referida norma atributiva de competência, então há que concluir que o objecto da presente acção é substancialmente mais abrangente do que os direitos privativos da propriedade industrial.
Na verdade, os factos invocados na petição inicial,

a) Constituíram sociedades clones da (…) para desenvolverem as mesmas atividades que esta;

b) Clonaram o alvará obrigatório para o desenvolvimento das mesmas atividades que (…);

c) Transferiram 95% dos trabalhadores da (…) para a R. (…) para que esta desenvolvesse as mesmas atividades que a (…);

d) Transferiram os trabalhadores dos setores e departamentos nevrálgicos da (…) para as sociedades RR. de modo a concretizar com sucesso o esvaziamento da (…), passando as atividades praticadas pela (…) para a esfera das sociedades RR.;

e) Transferiram para a R. (…) softwares específicos e únicos para o desenvolvimento das mesmas atividades que a (…);

f) Transferiram imagens, desenhos, marcas distintivas do comércio e respetiva propriedade intelectual e industrial da (…) para as sociedades RR. que permitiram a entrada destas no mercado onde a (…) operava há mais de 20 anos;

g) Utilizaram indevidamente de fichas de especificações técnicas elaboradas ao longo de 20 anos pela (…);

h) Apropriaram-se de informações confidenciais e não divulgadas publicamente, designadamente de todo o seu conhecimento sobre tecnologia, mercado, fornecedores, formas de fazer e bibliotecas de fichas técnicas de produtos;

i) Utilizaram informação confidencial possuída pelos trabalhadores de mais elevado e específico saber, como é o caso do R. (…), (…), (…) e (…), e ainda os técnicos especialistas (…) e (…) e que fazia parte do ativo intangível da (…) que foi passada pelos fornecedores daquela ao longo dos anos de ação no mercado e também fruto do investimento feito pela (…) no desenvolvimento da sua atividade, tais como, tabelas próprias, medições, tempos de trabalho, componentes /Kits de fabrico, programas específicos de comando e controlo de equipamentos, códigos fonte de programas, desenhos e esquemas elétricos e outros, transitasse para as sociedades RR.;

j) Desviaram para as sociedades RR. todos os clientes da (…) que operavam nos vários mercados por esta abrangidos;

k) Substituíram a (…) pelas sociedades RR. em todos os concursos públicos do mercado em que esta atuava;

l) Apropriaram-se e utilizaram ilegitimamente os ativos da (…) a favor das sociedades RR.;

m) Aproveitaram-se da relação com os fornecedores da (…) para entrarem no mercado e obterem vantagens para as sociedades RR. os quais não são direitos privativos da propriedade industrial, apenas gozando da proteção da proibição geral da concorrência desleal.

O caso em apreço materializa uma daquelas situações de concorrência desleal que não envolve apenas, nem sequer essencialmente a ofensa de direitos privativos de propriedade industrial.
Neste mesmo e unívoco sentido se tem pronunciado a jurisprudência que se conhece dos Tribunais Superiores.
Senão vejamos.

Aderindo ao entendimento de que “a concorrência desleal não é, ela própria, propriedade industrial, é antes a sanção de formas anómalas de concorrência” Sustentado pelo já referido Oliveira Ascensão, ora em Concorrência Desleal, AAFDUL, 1994, a págs. 266., já se concluiu expressamente que «para o julgamento da acção fundada em actos de concorrência desleal que não impliquem a violação de direitos privativos — como o são os que tutelam invenções e patentes, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas, nomes e insígnias de estabelecimentos e logótipos — são materialmente incompetentes os tribunais de comércio» Assim no acórdão do T. Rel. de Lisboa de 16-12-2003, no proc. n.º 9426/2003-7, acessível em www.dgsi.pt/jtrl..
Assim como vem sendo maioritariamente defendido que os actos de concorrência desleal não se esgotam na violação de direitos privativos tutelados pelo CPI, isto é, que «nem sempre a concorrência desleal assenta na lesão de um direito privativo, assim como a violação de um direito privativo não consubstancia necessariamente um acto de concorrência desleal». Neste sentido, vide o acórdão do T. Rel. de Lisboa, de 05-02-2009, no proc. n.º 10111/08-2, igualmente disponível em www.dgsi.pt/jtrl.

Assim sendo, na medida em que, no caso vertente, estão em causa comportamentos da Requerida que, integrando actos de concorrência desleal, extravasam os estritos direitos da propriedade industrial (que conduziriam, esses sim, à competência do Tribunal da Propriedade Intelectual), não pode deixar de se concluir que não cabe a competência material ao Tribunal da Propriedade Intelectual, antes a mesma cabe necessariamente ao tribunal cível competente, in casu, ao Juízo Central Cível de Faro.
Termos em que, na procedência do recurso, se revoga a decisão recorrida, que, negando essa competência, a atribuiu ao Tribunal da Propriedade Intelectual.

Custas a final pela parte vencida.

Évora, 02 de Março de 2023

Jaime de Castro Pestana

Rosa Barroso

Francisco Matos