Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
135/20.3GCABF.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: CARTA DE CONDUÇÃO
VALIDADE
CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
Data do Acordão: 05/25/2021
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Além da carta de condução nacional, para além de outros, são títulos habilitantes para a condução de veículos a motor em território português os seguintes:
- Títulos de condução emitidas por outros Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu;
- Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;
- Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro, desde que em condições de reciprocidade.

2 - A distinção entre “Estados membros da União Europeia” e Estados estrangeiros justifica-se pois que um Estado comunitário não é um “Estado estrangeiro” já que a União Europeia é uma entidade política com território próprio e personalidade jurídica estabelecida.
E um cidadão comunitário não é um “cidadão estrangeiro” pois que o artigo 20º, nsº 1 e 2 al. a) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia é claro no reconhecimento da cidadania da U.E, ao afirmar que «é instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui.» E que os cidadãos da União gozam «O direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros».
O termo “estrangeiro” reserva-se para os Estados terceiros.

3 - O nº 7 do artigo 130.º do Código da Estrada, na versão em vigor à data dos factos, e sob a epígrafe «Caducidade e cancelamento dos títulos de condução», estatui que “quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600” ao contrário do que ocorre com os títulos cancelados, revogados ou cassados que não beneficiam deste regime.
Tal regime é extensível aos títulos emitidos pelos países membros da União Europeia, por Estado estrangeiro subscritor de qualquer das Convenções sobre circulação rodoviária (Genebra e Viena) e por Estado estrangeiro que tenha com Portugal Acordo de reciprocidade ou ao qual seja reconhecido um regime de reciprocidade.

4 - A circunstância de se desconhecer – não consta dos factos provados - desde quando o arguido reside em Portugal e não se saber se cá tem residência permanente não o pode prejudicar. Seriam factos que deveriam ter constado da acusação!
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca Faro - Juízo Local Criminal de Albufeira, Juiz 1 - correu termos o processo sumário supra numerado, no qual o arguido

(…)

a quem foi imputada a prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 1 e 2 do DL n.º 2/98, de 03/01.

Por sentença de 16 de Dezembro de 2020 foi decidido julgar a acusação pública não provada e improcedente e, em consequência foi absolvido o arguido da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. p. pelo art.º 3.º, n.º 1 e 2 do DL 2/98, de 03/01.


*

Da sentença proferida recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

1.ª (...) foi acusado pela prática, no dia 5 de dezembro de 2020, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido no artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.
2.ª Conduziu no dia 5 de dezembro de 2020 fazendo uso de uma carta de condução emitida pela República Federativa do Brasil caducada desde o dia 4 de fevereiro de 2020.
3.º Foi absolvido da prática do crime por se ter considerado como não provado que “o arguido não era titular de carta de condução válida para conduzir” e que o arguido apenas praticou a contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada.
4.ª O título de condução caducado habilitou-o a conduzir em Portugal por estar inserido no universo de títulos definido pelo artigo 125.º, n.º 1 al. d) e e) do Código da Estrada.
5.ª Contudo, a validade de título de condução estrangeiro ao abrigo do artigo 125.º do Código da Estrada, é um pressuposto para que os seus titulares possam conduzir em Portugal sem restrições durante determinado período (185 dias após a entrada em território nacional) ou até adquirirem residência.
6.ª Segundo o despacho n.º 10942/200 do Diretor-geral da DGV, publicado no DR, 2.ª série de 27-5-2000 a validade do título constitui pressuposto para o reconhecimento feito em termos de paridade de tratamento entre os dois Estados. O mesmo resulta do artigo 41.º, n.º 2 da Convenção de Viena sobre a Circulação Rodoviária, celebrada em Viena em 8 de Novembro de 1968, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 107/2010, a que o Brasil aderiu.
7.ª Para além do artigo 125.º, n.º 3 e n.º 8, também o pressuposto da validade surge expresso no artigo 128.º do Código da Estrada (como condição para a troca) e no artigo 37.º do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (como condição para a substituição).
8.ª Por ter um título caducado desde 4 de fevereiro de 2020, quando conduziu no dia 5 de dezembro de 2020, já não estava em condições de obter a sua troca ao abrigo do disposto no artigo 128.º do Código da Estrada, já não estava habilitado a conduzir em Portugal com a sua carta Brasileira.
9.ª A situação destes autos não se insere, como o considerou o tribunal, na previsão do artigo 130.º, n.º 3 al. d) do Código da Estrada, que supõe a possibilidade/faculdade legal de o titular do título caducado diligenciar pela revalidação. O arguido não a tinha.
10.ª O artigo 130.º do Código da Estrada não se aplica aos títulos de condução, estrangeiros, abrangidos pela previsão do artigo 125.º, n.º 1 do Código da Estrada e, portanto, ao do arguido.
11.ª Por não se aplicar o artigo 130.º do Código da Estrada aos títulos não emitidos por Portugal, a conduta do arguido ao ter conduzido com uso de título brasileiro caducado não se reconduz à prática da contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada,
12.ª Com a carta caducada o arguido conduziu sem habilitação legal e preencheu a tipicidade do artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.
13.ª Ao absolver afastando a aplicação do artigo 3.º indicado na conclusão 13.ª, o tribunal errou na concretização do elemento típico objectivo – falta de habilitação legal. Deve inserir-se nos factos provados que conduziu sem habilitação legal.
14.ª O arguido praticou um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido no artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro e deve ser condenado ao abrigo deste tipo incriminador.
15.ª O facto que se inseriu nos factos não provados deve ser levado aos factos provados.
Nestes termos, deverá o persente recurso ser julgado procedente e o arguido (...) condenado pela prática do crime previsto e punido no artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de Janeiro.

Respondeu o arguido, concluindo:

1- No âmbito dos presentes autos, o arguido foi absolvido da prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nº 1 e 2 do D.L. 2/98, de 03/01.
2- Isto porque o Tribunal “a quo” entendeu, nomeadamente, que o art. 130º do C.E. aplica-se aos títulos de condução emitidos pelo Estado Português, bem como aos títulos de condução estrangeiros reconhecidos em Portugal, no âmbito de convenção ou tratado internacional celebrado, e é desta decisão, com a qual não se conformou, que o Ministério Público interpôs o presente recurso.
3- Entende o arguido que na Douta Sentença recorrida, não se verificam os vícios apontados pelo Ministério Público na sua motivação de recurso, tendo o Douto Tribunal “a quo” feito uma correta interpretação e aplicação do direito.
4- Em face do Direito aplicável e da prova produzida em juízo, não poderia a Mmª. Juiz “a quo” decidir de outra forma, e a Douta Sentença recorrida respeita a prova produzida, bem como todas as normas legais aplicáveis ao caso sub judice.
5- A Douta Sentença recorrida mostra-se bem fundamentada de facto e de direito e expõe de forma elaborada, completa e compreensível porque foram dados como provados e não provados os factos descritos na acusação, e, de que forma foi fundamentada a convicção do tribunal, designadamente, quando decidiu dar como não provado que o arguido conduziu sem habilitação legal em Portugal.
6- Decidiu bem o Tribunal “a quo” quando decidiu que não se mostraram preenchidos todos os elementos objetivos do tipo de crime pelo qual se encontrava acusado o arguido, nomeadamente no art. 3º, nº 1 do D.L. 2/98, de 03/01, por referência aos arts. 121º, nº 1, 122º, nº 1, 125º, nº 1 e 130º, nº 7, todos do C.E.7- Devendo a Douta Sentença manter-se tal como foi proferida, nomeadamente que os factos dados como não provados sejam mantidos como não provados e absolvendo-se o arguido da prática do crime que lhe era imputado.
8- Da prova produzida no âmbito dos presentes autos resultou que o arguido tem carta de condução emitida pelas entidades competentes do Brasil, tendo a mesma caducado em Fevereiro de 2020, que o arguido encontra-se a tratar da renovação do seu título de condução no Brasil e que não tem antecedentes criminais.
9- Dispõe o art. 125º, nº 1, na sua al. d), que habilitam à condução no território nacional, as licenças de condução emitidas por Estado estrangeiro que o Estado Português se tenha obrigado a reconhecer, por convenção ou tratado internacional.
10- Quer Portugal, quer o Brasil, subscreveram a Convenção de Viena de 1968-Convenção sobre Trânsito Rodoviário e o Estado Português reconheceu os documentos brasileiros (Carteira nacional de habilitação brasileira) equivalentes às cartas de condução portuguesas (Despacho nº 10942/2000, publicado em Diário da República, 2ª série, em 27/05/2000).
11- A carta de condução brasileira do arguido integra os títulos de condução previstos nas als. c) e d) do nº 1 do art. 125º do C.E., e reconhecidos, como tal, pelo nosso Estado.
12- Ao ter um título de condução reconhecido pelo Estado Português, deverá ao arguido ser aplicado precisamente o mesmo regime que se fosse titular de carta de condução portuguesa, designadamente o artigo 130º, nº 7 do C.E., e neste sentido, decidiu, e bem, o Douto Tribunal “a quo”.
13- Quem conduzir com a sua carta de condução caducada há menos de 5 anos, pratica uma contraordenação (art. 130º, nº 7 C.E.).
14- Sendo a carta de condução do arguido reconhecida em Portugal, por efeito da Convenção de Viena e do Acordo Bilateral de reconhecimento mútuo, e conduzindo o arguido com tal título caducado há menos de 5 anos (desde Fevereiro de 2020), só podemos concluir que o arguido praticou uma contraordenação e não um crime.
15- Se o título de condução emitido pelo Brasil é reconhecido em Portugal por efeito de convenção internacional vinculativa de ambos os Estados, daí têm de ser retiradas todas as consequências inerentes a tal reconhecimento.
16- Decidiu bem o Douto Tribunal “a quo” quando decidiu que a conduta do arguido não preenche os elementos típicos do crime de que vinha acusado - condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nº 1 e 2 do D.L. 2/98, de 3/01 - e absolveu o mesmo.
17- Esteve bem o Douto Tribunal “a quo” ao decidir que deverá constar nos factos não provados que há data dos factos descritos o arguido não era titular de habilitação legal para o exercício da condução.
18- Entende o arguido, que só poderia ter sido decidido, tal como foi na Douta Sentença recorrida, que não estão preenchidos os elementos típicos do crime sub judice - condução sem habilitação legal – p. e p. pelo art. 3º, nº 1 e 2 do D.L. 2/98, de 3/01, concluindo-se pela absolvição do arguido.
19- Devendo manter-se a Douta Sentença tal como foi proferida, absolvendo-se o mesmo da prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nº 1 e 2 do D.L.2/98, de 03/01.
20- Não tendo, desta forma, o Tribunal “a quo” violado quaisquer normas jurídicas, nomeadamente, os arts. 3º, nº 1 e 2, 121º, nº1, 122º, nº 1, 125º, nº 1, al. d) e 130º, nº 7 do C.E., e a Douta Sentença recorrida respeita a prova produzida, bem como todas as normas legais aplicáveis ao caso sub judice.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis que V. Exas. Mui doutamente suprirão, deverá o recurso apresentado pelo Ministério Público ser julgado improcedente, confirmando-se na íntegra a sentença recorrida.

*

O Exmº Procurador-geral Adjunto neste tribunal afirmou concordar com o entendimento do seu colega na primeira instância.

«O objecto do recurso é claro – a senhora Procuradora sintetiza-o bem – e traduz-se na resposta a esta questão. O disposto no artº 130º nº 7 do CE aplica-se também aos títulos de condução estrangeiros caducados ou apenas aos títulos de condução portugueses?
Os Ac,s deste Tribunal proferidos nos processos nºs 126/18.4GBPTM.E1, de 22/10/19 e 651/13.3PAPTM.E1, de 07/01/16, bem como do TRL proferido no processo 872/18.2SILSB.L1-5 de 20/10/20 defendem que não.
Outras decisões, não muitas, defendem precisamente o contrário. Seremos breves, não existindo matéria de facto controvertida e tudo se resume a um problema de interpretação de lei. Mais precisamente dos artºs 130º nº 7, 125º e 128º do CE e 37º do RHLC.
(…)
Pelo que a única conclusão possível e legítima e a mais consentânea com as disposições legais supra-citadas é a de que o regime previsto no artº 130º nº 7 do CE é insusceptível de aplicação ao caso concreto, sendo reservado apenas para os títulos de condução emitidos pelo Estado Português.
O arguido conduzia em Portugal um veículo sem ser titular de título de condução válido.
Aliás, é o que diz “expressis verbis o Ac. deste Tribunal proferido no processo 651/13.3PAPTM.E1, tese à qual aderimos sem grande hesitação e sem necessidade de mais considerações.
Assim, a conduta do arguido integra não a contra-ordenação prevista no artº 130 nº 7 do CE, mas sim o crime p. e p. no artº artº 3º nºs 1 e 2 do DL nº 2/98 de 3 de Janeiro.
Pelo que a sentença deverá ser revogada, merecendo o recurso integral provimento.»

Notificado nos termos do disposto no artigo 417º do C.P.P. respondeu o arguido renovando a sua argumentação anterior.


***

B - Fundamentação

B.1.a) - Resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 05.12.2020, pelas 17h30, na Estrada Nacional 125, na freguesia de Ferreiras, concelho de Albufeira, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca Opel, com a matrícula (…).
2. O arguido é titular de carta de condução, emitida pelas autoridades brasileiras a 12.02.2015, com data de validade até 04.02.2020.
3. O arguido não era titular de carta de condução válida, nem de qualquer outro documento que lhe permitisse conduzir o referido veículo, nas circunstâncias referidas em 1.
4. Conhecia o arguido as características do veículo que conduzia, e bem assim da via em que circulava, bem sabendo que a referida condução não lhe era permitida por lei por não ser, à data dos factos, possuidor de qualquer título válido que o habilitasse à condução de veículos automóveis ou quaisquer outros veículos motorizados em território nacional.
5. Não obstante o arguido quis conduzir o veículo identificado, como o fez.

*
Não se provou que: «6. Ao praticar os factos que se deixam descritos, agiu o arguido sempre de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.»
*

Cumpre conhecer.

B.2 – Tendo em mente as conclusões apresentadas, o objecto do recurso interposto está limitado às seguintes questões:

- o arguido dispõe de título de condução válido?

- em caso negativo, qual o ilícito praticado?

Para evitar a proliferação de simples interpretações literais de versões anteriores do CE, com oblívio do sistema global legislativo em que nos enquadramos e que se não limita à lei portuguesa, mas inclui necessariamente a lei comunitária e os instrumentos normativos internacionais, procuraremos responder às questões postas pelo caso concreto, começando pela mais simples, pela indicação das normas aplicáveis, os artigos 125º e 130º do Código da Estrada.

O primeiro, que não é possível que se olvide, claramente dispõe que, além da carta de condução nacional (como se sabe nos termos do nº 4 do artigo 121º do C.E. “O documento que titula a habilitação legal para conduzir ….. designa-se “carta de condução), são títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:

a) Títulos de condução emitidos pelos serviços competentes pela administração portuguesa do território de Macau;
b) Títulos de condução emitidas por outros Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu;
c) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;
d) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro, desde que em condições de reciprocidade;
e) Licenças internacionais de condução, desde que apresentadas com o título nacional que as suporta;
f) [Revogada.]
g) Licenças especiais de condução;
h) Autorizações especiais de condução;
i) Licença de aprendizagem.

Por seu turno o nº 7 do artigo 130.º do diploma e sob a epígrafe «Caducidade dos títulos de condução», estatui que “quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.

As redacções indicadas são as vigentes à data da prática dos factos, 05-12-2020.

Já em 09-12-2020 foi publicado o Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 9 de dezembro, que voltou a alterar o Código da Estrada e legislação complementar, transpondo a Diretiva (UE) 2020/612. E, por via do artigo 14.º deste último diploma foram republicados como anexos IV, V e VI ao dito decreto-lei:

a) O Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, com a redação introduzida pelo presente decreto-lei;

b) O Decreto-Lei n.º 317/94, de 24 de dezembro, que organiza o registo individual do condutor, com a redação introduzida pelo presente decreto-lei;

c) O Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 138/2012, de 5 de julho, com a redação introduzida pelo presente decreto-lei.

É claro que este último diploma só foi publicado após a prática dos factos nos presentes autos, mas fica a nota da sua actual vigência.

Desta posterior alteração, do texto do nº 3, al. d) do mesmo artigo 130º resulta que hoje o prazo de cancelamento do título caducado não é de 5 anos, sim de 10 anos. A letra da alínea dada pela última alteração ao Código da Estrada operada pelo Dec-Lei nº 102-B/2020, de 09 de Dezembro reza precisamente “Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado”.

Dada nota da revisão da legislação aplicável ao caso concreto, convém rever outros aspectos relevantes.

No essencial quer impor-se nestes autos a leitura de que o artigo 130º, nº 7 do Código da Estrada está reservado aos cidadãos nacionais de Portugal! Pelo menos assim parece na sua elementar literalidade! E é isso que se deduz claramente das conclusões de recurso, designadamente as conclusões 10º e 11º, como seguem:

10.ª O artigo 130.º do Código da Estrada não se aplica aos títulos de condução, estrangeiros, abrangidos pela previsão do artigo 125.º, n.º 1 do Código da Estrada e, portanto, ao do arguido.
11.ª Por não se aplicar o artigo 130.º do Código da Estrada aos títulos não emitidos por Portugal, a conduta do arguido ao ter conduzido com uso de título brasileiro caducado não se reconduz à prática da contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada.

Afirmações que são, no mínimo, ousadas e necessitariam de um forte respaldo de normas jurídicas e razões lógicas para se sustentar! Mas, analisada a respectiva fundamentação, aquilo que a suporta é, apenas, a incompreensão do valor das Convenções Internacionais e da diferença entre caducidade e cancelamento/revogação/cassação de títulos de condução, para além do olvidar claro de que o nº 1 do artigo 125º do C.E. não distingue entre títulos de condução de vária origem na sua plena validade em território nacional e cumpridas certas condições, que para o caso são irrelevantes.

Daí que a conclusão 10ª do recurso que se concretiza na afirmação de que “O artigo 130.º do Código da Estrada não se aplica aos títulos de condução, estrangeiros, abrangidos pela previsão do artigo 125.º, n.º 1 do Código da Estrada e, portanto, ao do arguido”, não resiste à mais superficial análise da ordem jurídica vigente. Aliás, à própria literalidade do artigo 125º do Código da Estrada.

De notar que a norma distingue claramente entre Estados-Membros da União Europeia e Estados estrangeiros, não surgindo essa distinção de forma inexplicada e inusitada. Percebe-se a razão da distinção!

De facto, as Directivas comunitárias desde os anos 80 do século passado regulam a simples questão de atribuição e regulação das cartas de condução em todo o espaço comunitário. É assim que desde a vigência da Directiva 80/1263/CEE do Conselho, de 4 de Dezembro de 1980, relativa à criação de uma carta de condução comunitária, foi instituído um «modelo comunitário de carta de condução nacional e o reconhecimento recíproco pelos Estados-membros das cartas de condução nacionais.».

A Directiva 91/439/CEE do Conselho, de 29 de Julho de 1991, igualmente relativa à carta de condução, considerava que, «em termos de política comum de transportes e tendo em vista contribuir para a melhoria da segurança da circulação rodoviária, bem como para facilitar a circulação das pessoas que se estabelecem num Estado-membro diferente daquele em que foram aprovadas num exame de condução, é desejável que exista uma carta de condução nacional de modelo comunitário mutuamente reconhecido pelos Estados-membros sem obrigação de troca».

E o Considerando [2] da Directiva 2006/126/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Dezembro de 2006, também relativa à carta de condução (Reformulação), afirmava que «A regulamentação relativa à carta de condução é um elemento indispensável para realizar a política comum dos transportes, contribuindo para melhorar a segurança rodoviária e facilitar a circulação das pessoas que se estabelecem num Estado-Membro distinto daquele que emitiu a carta de condução. Atendendo à importância dos meios de transporte individuais, a posse de uma carta de condução devidamente reconhecida pelo Estado de acolhimento pode assim favorecer a livre circulação e a liberdade de estabelecimento das pessoas.»

E a recente alteração ao artigo 130º, nº 3, al. d) do C. da Estrada que alargou o prazo de 5 para 10 anos para a revalidação do título caducado foi efectivada por via da imposição de uma outra Directiva comunitária, a Diretiva (UE) 2020/612.

Podemos esquecer estes contributos e evoluções normativas quando excluímos os “títulos estrangeiros” sem uma mais cabal fundamentação da previsão do nº 7 do artigo 130º do C.E.? Parece-nos evidente que não.

Como se constata, a maior parte das – se não todas - alterações ao Código da Estrada e diplomas conexos são imposições da legislação comunitária - Directivas – e que são alteradas precisamente porque supõem e implicam a aplicação das normas a todo o espaço comunitário e, de forma unitária e igualitária, a todos os cidadãos dos Estados-Membros da União Europeia.


*

B.2 – A primeira questão que se nos coloca é, desde logo, saber o que é um “estrangeiro”. Será um cidadão não nacional, no sentido de “não português”? Ou, o que é um “título de condução emitido por Estado estrangeiro”? Será um título de condução emitido por Estado diverso do português?

A ser assim e numa análise claramente perfunctória, qualquer cidadão da Europa comunitária é estrangeiro? E os títulos emitidos por um Estado comunitário é um título emitido por um Estado estrangeiro?

E, assim, a circulação de pessoas e bens é livre mas desse princípio está excluído o uso de títulos de condução? Daí que um cidadão comunitário não possa viajar para Portugal guiando a sua viatura porquanto saberá que o espera um regime diverso e mais agravado do que o de um cidadão português? Será detido logo na fronteira por condução ilegal caso o título tenha caducado de véspera? Mas isso não contraria o regime legal comunitário já vigente desde o século passado?

A resposta é necessariamente negativa. Um cidadão comunitário não é um “estrangeiro” e um Estado comunitário não é um “Estado estrangeiro” já que a União Europeia é uma entidade política com território próprio e personalidade jurídica estabelecida. E, naturalmente, qualquer cidadão comunitário tem que ter em território português o mesmíssimo tratamento concedido a qualquer cidadão português. Elementar!

O nº 2 do artigo 3º do Tratado da União Europeia é claro na afirmação de que «A União proporciona aos seus cidadãos um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, de asilo e imigração, bem como de prevenção da criminalidade e combate a este fenómeno».

E o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia é claro na atribuição de competências próprias e exclusivas à União e no reconhecimento da cidadania da U.E, nos seguintes termos introdutórios:


Artigo 20º (ex-artigo 17º TCE)

1. É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui.
2. Os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos nos Tratados. Assistem-lhes, nomeadamente:
a) O direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros;
(…)

E, por isso, a dita afirmação de exclusão de “títulos estrangeiros” é inaceitável pela simples circunstância de nem sequer se ter delimitado de forma adequada o termo “estrangeiro” sendo, por isso, imprestável! Claramente a tese é imprestável para a União Europeia e revela um desprezo assinalável pelo direito comunitário!

Caso assim não fosse nem se justificaria a existência de uma alínea b) no nº 1 do artigo 125º pois que os Estados membros da EU sempre caberiam nas previsões das alíneas c) e d) do mesmo preceito e número.

Será então que o termo “estrangeiro” se reserva para os cidadãos de Estados terceiros pois que já hoje existe uma “cidadania europeia”? E será a dita tese aproveitável para o espaço extra-comunitário (os ditos países terceiros)?

Até se pode afirmar que sim quanto à adjectivação – os Estados terceiros são efectivamente Estados estrangeiros – mas a tese continua imprestável desde que exista instrumento de direito internacional que imponha uma resposta negativa. Instrumento que tanto pode ser multilateral (Convenção), bilateral (Acordo internacional) ou unilateral (Reconhecimento, por acto legislativo ou administrativo, de regimes de reciprocidade).

Assim, se existir qualquer desses instrumentos a reconhecer direitos a títulos estrangeiros e o seu uso a cidadãos de países terceiros, qual a razão da diferenciação de regimes que conduz à consagração de um crime quando a letra da lei é clara na exclusão de tal crime?

Não será para reconhecer direitos de diversas ordens jurídicas nacionais que se continuam a subscrever Convenções e Acordos internacionais, de forma a permitir que os cidadãos de outros Estados circulem com um mínimo de exigências e garantias de direitos, parificando as situações de todos os nacionais?

No caso concreto por que razão se afirma que o Brasil assinou a Convenção e se acrescenta que existe um Despacho da DGV sobre o tema? Isso não implica obrigações internacionais para o Estado Português? E de que vale isso se logo de seguida se conclui contraditoriamente com a negação quer da Convenção quer do regime de reciprocidade?

A dita tese restritiva responde a alguma destas questões simples e evidentes? A resposta é cristalinamente negativa. Mas cria um problema, cria um crime onde ele é claramente negado por norma expressa, sendo certo que a exclusão pretendida não se mostra justificada!

Logo, a tese de que os “títulos estrangeiros” incluem os títulos de condução de Estados Membros da União Europeia é um claríssimo erro de direito. A tese de que os títulos de condução emitidos por Estados terceiros que tenham assinado qualquer Convenção Internacional não são reconhecidos pelo Código da Estrada português em termos de paridade de obrigações e direitos – que não sejam excluídos de forma expressa - é inaceitável por ser outro erro de direito ao negar efeitos a instrumentos internacionais subscritos por Portugal.


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B.4 – Passemos agora a uma análise um pouco mais concreta da questão posta. Esta passa, necessariamente, por aceitar que as ordens jurídicas nacionais necessitam de uma vivência comum e que a simples circunstância de que os cidadãos de todos – ou quase todos – os países viajam e se deslocam para outros territórios nacionais, torna necessário regular as suas situações enquanto se encontram nesses outros territórios em termos de paridade pessoal.

Aqui, em se tratando de cidadão brasileiro titular de CDH (“Carteira Nacional de Habilitação”, a correspondente à nossa Carta de Condução) – a questão jurídica inicial reside no saber se o Brasil assinou qualquer das Convenções estradais internacionais, seja a Convenção de Genebra sobre Trânsito Rodoviário de 1949 (Convention on Road Traffic, de 19-09-1949) ou a posterior Convenção de Viena sobre Circulação Rodoviária (Convention on Road Traffic, Vienna, 8 November 1968).

Sabendo-se que Portugal é subscritor de tais Convenções (e, por isso assumiu as obrigações internacionais delas decorrentes), sendo-o igualmente o Brasil, fácil seria fazer aplicação do seu artigo 41º, n. 2 (Títulos de condução) que estatui que «As Partes Contratantes reconhecerão:

a) Qualquer título nacional redigido na sua língua ou numa das suas línguas nacionais, ou, se não estiver redigido nessa língua, acompanhado de uma tradução devidamente certificada;

b) Qualquer carta de condução nacional conforme com o disposto no anexo n.º 6 da presente Convenção;

c) Ou qualquer licença internacional conforme com o disposto no anexo n.º 7 da presente Convenção como válida para conduzir, no respectivo território, um veículo incluído numa das categorias abrangidas pelo título, desde que este se encontre válido e tenha sido emitido por outra Parte Contratante ou uma das suas subdivisões ou por uma associação autorizada, para o efeito, por essa outra Parte Contratante ou uma das suas subdivisões. O disposto no presente número não é aplicável às licenças de aprendizagem.»

Ou seja, a simples circunstância de Portugal e Brasil serem subscritores de tais Convenções vincula – no caso concreto – o Estado português a aceitar o título de condução brasileiro em moldes idênticos aos títulos portugueses. E o mesmo ocorre com os títulos de qualquer outro país subscritor da Convenção. Desde que os mesmos estejam ou voltem a estar em prazo de validade.

De tal forma que o ser o Estado brasileiro subscritor da Convenção de Viena (1968) dispensaria o Despacho da DGV nº 10.942/2000, pois que a subscrição da Convenção pelos dois Estados opera ope legis via subscrição ou ratificação e não necessita de qualquer consagração, por Despacho, de um regime de reciprocidade, que só se justifica por não subscrição da Convenção ou por dificuldades na sua aplicação. [1]

No entanto as reservas parciais brasileiras [2] ao artigo 41º, nº 1, als. a), b) e c) da dita Convenção que estatuem:

a) O condutor de um automóvel deve possuir um título de condução.

b) As Partes Contratantes comprometem-se a assegurar que os títulos de condução só sejam emitidos após verificação, pelas autoridades competentes, que o condutor possui os conhecimentos e a capacidade necessários.

c) A legislação nacional deve fixar as condições para obtenção de um título de condução.

devem (apenas podemos presumir) ter suscitado problemas de aplicação prática que terão justificado a emissão de um Despacho a reconhecer um regime de reciprocidade para solucionar questões de aplicação concreta, única razão que explica a existência de tal despacho que, em princípio seria uma excrescência face à subscrição e ratificação da Convenção pelos dois países.

E que diz o Despacho de útil? O óbvio: “As carteiras nacionais de habilitação brasileiras (CNH) que se apresentem dentro do seu prazo de validade habilitam à condução de veículos em território nacional, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 125.º do Código da Estrada”.

Ou seja, as CNH habilitam à condução desde que estejam no seu prazo de validade, inicial ou subsequente. Isto é, se caducarem podem voltar a ter validade desde que essa validade seja reconhecida pelo Estado de emissão.

Se caducos, o artigo 130º, nº 7 do C.E é límpido na redacção vigente à data da prática dos factos: “Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600”. O acrescento da expressão “nos termos previstos no n.º 1”, introduzida pelo Dec-Lei nº 102-B/2020, de 09 de Dezembro, não altera os dados da questão. E mesmo que alterasse, só foi vigente após a prática dos factos, o que conduziria ao mesmo resultado.

Inexistindo, portanto, razões para diferenciar títulos de condução em função de um qualquer arrobo nacionalista, já que o nº 1 do artigo 125º do Código da Estrada o não permite por a todos prever e a redacção do nº 7 do artigo 130º necessariamente dever supor a existência dessa, resta constatar que o essencial está na distinção a fazer, desde logo entre títulos válidos e títulos não válidos.

Depois, apurar se a invalidade do título de condução se fica a dever a uma causa de caducidade ou se, ao invés, a uma causa de cancelamento ou a uma revogação, o que é matéria que no caso sub iudicio não se coloca. Só releva no país de emissão do título. Aqui basta saber que o título está fora do prazo de validade e se desconhece a existência de causa de cancelamento, revogação, cassação, seja o que for que se passe no país de emissão.

A nós basta saber que o título existiu com validade e agora se encontra fora do prazo de validade para se saber que o mesmo – por isso – está caduco. Diverso seria o tratamento se o título estivesse cancelado, revogado, cassado, pois que aí razões mais sérias se imporiam na não aceitação da sua validade. Desde logo a inexistência de norma expressa como o referido nº 7.

Assim, a afirmação de que «O regime de caducidade e cancelamento previsto nos nºs 1 a 6 do artigo 130.º do CE só se aplica aos títulos de condução emitidos pelo Estado Português, pelo que a coima cominada no n.º 7 do mesmo artigo é também privativa dessa categoria de títulos», peca desde logo por fazer tábua rasa da legislação comunitária aplicável, por não considerar a existência das Convenções e, depois, por não fazer distinção entre aqueles dois regimes, a caducidade e um possível – mas aqui inexistente e, portanto, irrelevante - cancelamento/revogação/cassação.

Porque quer os artigos 125º, 128 e 130º do Código da Estrada, quer os artigos 13º e 14º do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir – e a legislação de cada um dos Estados emissores - supõem e exigem diferentes regimes ali devidamente regulados. Que, para o caso, são completamente irrelevantes pois que se sabe que o arguido conduziu em território português com um título válido que, entretanto, caducou. Tudo o resto é interpretação literal sem norte porquanto sem factos!

Assim, tal afirmação só será aceitável se for lida assim:

«O(s) regime(s) de caducidade e cancelamento previsto(s) nos nºs 1 a 6 do artigo 130.º do CE só se aplica(m) aos títulos de condução emitidos pelo Estado Português; e por qualquer outro Estado comunitário (que são mais 26); e por cada um dos Estados subscritores da Convenção de Viena sobre Circulação Rodoviária, (que são 84).»

Naturalmente que estes 111 Estados ainda não fazem a totalidade dos Estados membros das Nações Unidas, 193 como se sabe! Mas convém recordá-los quando se faz a aplicação de legislação nacional que está dependente das obrigações assumidas internacionalmente pelo Estado português quando subscreve Convenções internacionais.

Daí que a dita afirmação só sirva se o arguido detectado em território português apenas seja titular de um título de condução emitido por: a) - Estado que não seja membro da União Europeia ou do espaço económico europeu; b) - por Estado estrangeiro que não seja subscritor da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária; c) - ou não tenha com o Estado português acordo de reciprocidade de tratamento.

Não é o caso dos autos. O caso dos autos é de caducidade do título emitido por Estado subscritor de uma das Convenções.


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B.5 – O nº 7 artigo 130º do C.E mantém-se no essencial e dispõe que «Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600», não distinguindo a norma que titulares referidos no artigo 125º, nº 1 do diploma devem e quais não devem ser punidos por contra-ordenação e quais devem ser punidos criminalmente!

E onde a lei não distingue o intérprete não pode fazer opções que sejam mais do seu agrado. Não pode na medida em que essa interpretação constitua uma clara interpretação contra legem.

É claro que o intérprete pode ficar confuso quando compara as letras do números 7 do artigo 130º e 8 do artigo 125º do diploma, que estabelecem duas contra-ordenações de montantes diversos e aparentemente incompreensíveis!

Mas se o legislador prevê sanção mais gravosa para quem tem um título válido e apenas não o troca no prazo legal (tempo de permanência no país e de fixação de residência) e menos gravosa para quem conduz com título caducado, a única asserção possível do intérprete é que essa foi uma clara opção do legislador, aliás semelhante a outras! E exemplo da prática é a falta de sinal de pré-sinalização de perigo, menos gravemente punida no artigo 88º do C.E., do que o seu não uso, o que apenas constitui uma aparente incongruência.

E se assim é não cabe ao intérprete revogar essa opção e criar norma no sistema que substitua a opção legislativa, pois que isso constitui interpretação abrogante, no caso completamente injustificada, com a agravante de se estar a violar grosseiramente o princípio da legalidade, criando um crime!


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B.6 – Vária jurisprudência é citada nos autos, designadamente por quem propugna a revisão da decisão, no entanto não são ponderados e citados os mais simples e escorreitos arestos das Relações de Évora e Coimbra (respectivamente de 17-10-2017 e de 15-05-2013) que solucionam de forma judiciosa e adequada o caso concreto.

Por isso que quanto às causas de invalidade dos títulos de condução não vale a pena repetir o que já, bem, foi dito por esses dois arestos, nos seguintes termos:

I - O legislador distingue, no artigo 130.º do Código da Estrada, a caducidade e o cancelamento do título de condução. (…)
II – Por isso que o titular de título de condução caducado, mas não cancelado, não incorre no crime de condução sem habilitação legal, mas antes na contra-ordenação prevista no artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada. - Acórdão TRE de 17-10-2017, proc. 316/14.9 GTABF.E1, sendo relator António Condesso.

«Face à nova redação dada ao artigo 130º do Código da Estrada pelo Dec. Lei º 138/2012 de 05.07, conduzindo o arguido um veículo automóvel e sendo portador de uma carta de condução emitida pela República Bolivariana da Venezuela, caducada há menos de 5 anos, comete a contraordenação a que alude o nº 7 do referido preceito» - Acórdão TRC de 15-05-2013, proc. 50/11.1GTGRD.C1, sendo relator Belmiro Andrade.

Aqui fazendo apelo à fundamentação deste último aresto convém recordar o que ali se afirma em súmula esclarecedora: «A definição do conceito de falta de habilitação com relevância criminal emerge directamente do citado art. 130º do C.E.: título cancelado por decorridos mais de 5 anos do prazo de renovação – crime. Passando o título caducado há menos de 5 anos a constituir mera contra-ordenação (n.º7)». Como se afirmou já supra este prazo foi alargado para 10 anos.

Assim e porque o título de condução do arguido tinha data de validade até 04-02-2020 e só a partir do dia 05-02-2020 se pode considerar caducado, cometido um ilícito no prazo de menos de 5 anos após essa caducidade, tal apenas se pode qualificar como contra-ordenação.

Assim, bem foi o arguido absolvido da prática de um crime de condução ilegal.

Naturalmente que a circunstância de se desconhecer – não consta dos factos provados - desde quando o arguido reside em Portugal e não se saber se cá tem residência permanente não o pode prejudicar. Seriam factos que deveriam ter constado da acusação! Não constam, não existem!

Em função do que se acaba de expor é o recurso improcedente.


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C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal da Relação de Évora em declarar o recurso improcedente.

Sem tributação.

Évora, 25 de Maio de 2021 (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado)

João Gomes de Sousa

Nuno Garcia (com a seguinte declaração de voto)


Declaração de voto

Depois de reflectir sobre os argumentos dos dois entendimentos acerca da questão em análise no presente recurso, voto a decisão porque, pese embora o respeito que me merece a posição contrária, entendo que é a mais adequada.

Tenho, porém, dúvidas se face à redacção introduzida ao artº 130º do C.E. pelo D.L. 102-B/2020 de 9/12, o entendimento seguido no presente acórdão assim deverá continuar.

São dúvidas que irei procurar desfazer, na medida do que por vezes é possível tal ocorrer, e que para o presente caso não têm consequências e não me impedem de votar a decisão.

Com efeito, o que se teve em conta foi a versão do referido artº 130º do C.E. em vigor à data dos factos, sendo certo que diferente entendimento do adoptado no presente acórdão, de modo a concluir-se que face à nova redacção do artº 130º a conduta em causa constitui crime, seria mais desfavorável para o arguido e, portanto, por força do artº 2º, nº 4, do C.P., sempre seria aplicável, como foi, a versão em vigor à data dos factos.

Porém, e pelas razões referidas, não subscrevo a seguinte referência feita no acórdão: “O acrescento da expressão “nos termos previstos no n.º 1”, introduzida pelo Dec-Lei nº 102-B/2020, de 09 de Dezembro, não altera os dados da questão.”

Repito: tenho dúvidas que a referida nova redacção dada ao nº 7 do artº 130º do C.E. (e outras alterações, como o desaparecimento da distinção no referido artigo entre cancelamento e caducidade) não altere os dados da questão.

Daí, a presente declaração de voto.


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[1] - Nem a Digna magistrada recorrente nem os arestos que sustentam a sua posição indicam em concreto que o Brasil consta da lista de países subscritores, com data de ratificação de 29 Outubro de 1980. V. https://treaties.un.org/Pages/ViewDetailsIII.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XI-B-19&chapter=11&Temp=mtdsg3&clang=_en

[2] - «Reservations with respect to the following articles and annex:
- Article 41, paragraph 1 (a), (b) and (c) (partial reservations); (…)

Declarations as regards the above-mentioned partial reservations:
(a) Brazil's partial reservation to chapter IV (Drivers of Motor Vehicles), article 41 (Validity of Driving Permits), paragraphs 1 (a), (b), and (c), refers to the fact that drivers issued permits in left-hand drive countries cannot drive in Brazil before taking a road test for right-hand driving. (…)». In https://treaties.un.org/Pages/ViewDetailsIII.