Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
20/22.4GDPTM.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
CONDUÇÃO DE VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO LEGAL E EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A cassação do título de condução é decretada pela entidade administrativa (Presidente da ANSR), sendo aplicada de forma automática face ao saldo de pontos existente, pois este é revelador da impreparação do sujeito para o exercício da atividade de condução que fica, proibido de conduzir e, ainda, concomitantemente, inibido de obter novo título de condução de veículos com motor de qualquer categoria nos dois anos seguintes à efetivação da cassação (artigo 148.º. n.º 11 do CE).
II. A condução de um veículo automóvel na via pública com uma carta de condução cassada constitui a prática de crime de condução sem habilitação legal (punida pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro).
III. Distinta da caducidade por cassação é a caducidade do título de condução decorrente da falta de revalidação. O sujeito que conduzir veículo com título caducado por falta de revalidação é criminalmente punido pela prática do crime de condução sem habilitação legal, mas tão só nas situações de caducidade definitiva, pois nos casos de caducidade não definitiva (n.º 2, alíneas a), b) e c) do artigo 130.º do CE) apenas é punido contraordenacionalmente (n.º 7 do artigo 130.º do CE).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
No Processo Sumário n.º 20/22.4GDPTM, da Comarca de Faro Juízo Local Criminal de Portimão – Juiz 1, submetido a julgamento por acusação do MP, foi o arguido MA condenado como autor material de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 3 (três) meses de prisão, a qual foi substituída por 90 (noventa) horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, junto de entidade beneficiária a indicar pela D.G.R.S.P.
Na sentença foi, ainda, determinado que após trânsito fosse oficiado à DGRSP a elaboração de plano de execução, conforme aludido no artigo 496.º do CPP.

2. Do recurso
2.1. Das conclusões do Ministério Público
Inconformado com a decisão o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O presente recurso vem interposto da sentença proferida nos autos que condenou o arguido pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do DL nº 2/98, de 3.1, na pena de três meses de prisão, a qual foi substituída por 90 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, junto de entidade beneficiária a indicar pela D.G.R.S.P..
2. Resultou provado na douta sentença que no dia 07-01-2022, pelas 11 horas, na Estrada Municipal 125, em …., no município de …, o arguido MA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula VC. O arguido sabia não ser titular da necessária carta de condução, não estado habilitado para a condução do referido veículo, uma vez que a sua carta foi cassada por decisão da ANSR, que se tornou definitiva a 23.11.2020. Sabia que conduzia o referido veículo na via pública e que não era titular de carta de condução que o habilitasse a essa condução, mas não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e fez. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
3. O Ministério Público entende que o arguido deveria ter sido absolvido do mencionado ilícito, porquanto, após a entrada em vigor do Decreto–Lei n.º 102-B/2020, de 9.12, que alterou o art. 130 º do Código da Estrada, quando alguém conduzir um veículo com o título de condução cassado, pratica um ilícito meramente contraordenacional.
4. O DL nº 102-B/2020 introduziu alterações ao regime de caducidade dos títulos de condução (nº 1), não só quanto às regras que permitem que condutores que deixaram caducar os seus títulos possam reavê-los, ainda que condicionados à realização de provas de exame ou à frequência de acção de formação (nºs 2 e 4), como também à previsão da caducidade definitiva dos títulos de condução nas situações tipificadas na lei (nº 3)
5. Do cotejo dos nºs 1, 3, 5 e 7 na actual redacção, afigura-se-nos que o legislador pretendeu qualificar como crime de condução sem habilitação legal, previsto no art 3º do DL º 2/98, de 3.1, as situações de título caducado (caducidade definitiva) em que o titular reprovou, por duas vezes, em qualquer das provas do exame especial, ou nas situações em que tiverem decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado o título.
6 De outra banda, afigura-se-nos que o legislador quis punir como mero ilícito contraordenacional a condução com título não caducado definitivamente (nº 1), posto que tais condutores já anteriormente se submeteram a exames escritos e práticos, alcançando a respectiva aprovação, que lhes permitiu obter um título de condução, e podem revalidar/ renovar o título, sujeitando-se a um exame especial (conforme decorre dos nºs 2 e 4).
7. Ao conduzir o veículo com o título de condução cassado (mas não caducado definitivamente), MA incorreu na prática um ilícito contraordenacional, p. e p. pelo art. 130º, nº 1 al. d) e 7 do Código da Estrada, e não no crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art 3º, nº 1 e 2 do DL 2/98, de 3.1.
Termos em que, pelos fundamentos expostos, a douta sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que, acolhendo o entendimento expresso no recurso, absolva o arguido.”.

2.2. Das contra-alegações do arguido
Notificado da admissão do recurso o arguido silenciou.

2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer com o seguinte teor:
“(…) O recurso deve ser julgado POR DECISÃO SUMÁRIA, face à sua manifesta improcedência, ou se assim não se entender, em conferência por respeitar a decisão que conhece a final do objeto do processo – artigo 419.º, do CPP.
O recurso visa matéria de direito.
− Indicação das normas jurídicas violadas: artigos 130.º, n.º 1 al. d) e 7 do Código da Estrada e artigo 3.º, n.º 1 e 2 do DL n.º 2/98, de 3 de janeiro.
− Sentido com que foram interpretadas e aplicadas e sentido com que o deveriam ter sido ou erro na determinação da norma aplicável: ao conduzir o veículo com o título de condução cassado (mas não caducado definitivamente), o arguido incorreu na prática um ilícito contraordenacional, p. e p. pelo artigo 130.º, n.º 1 al. d) e n.º 7 do Código da Estrada, e não no crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do DL 2/98, de 3 de janeiro.
2. OBJETO DA DECISÃO. QUESTÕES DE FUNDO:
2.1. Relatório e âmbito do recurso (402.º e 403.º Código de Processo Penal):
Considerando que os recursos são concebidos como remédios jurídicos e não como instrumentos de refinamento jurisprudencial;
Considerando que o recurso, através do ónus da motivação e conclusões, consubstancia um pedido dirigido ao tribunal ad quem com as razões através das quais se justifica onde e porquê se discorda do decidido e se pede como deve ser reponderada a decisão impugnada;
Considerando que é pacífica a jurisprudência de que as conclusões da motivação do recurso, deduzidas por artigos, não só resumem as razões do pedido, mas delimitam, em princípio, o objeto do recurso, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, e se fixam os limites cognitivos do tribunal ad quem;
Considerando que na fase de recurso persistem princípios do processo penal, designadamente o da verdade material, com os limites impostos pelo reformatio in pejus
2.1.1. O recurso vem interposto pelo Ministério Público da sentença que MA, além do mais: “como autor material de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do DL nº 2/98 de 3.1, na pena de três meses de prisão, a qual se decide substituir por 90 (noventa) horas de prestação de trabalho a favor da comunidade...”.
2.1.2. O recurso impugna a decisão, que considera contrária ao direito aplicável, defendendo que o arguido não cometeu um crime, mas antes uma contraordenação, devendo ser absolvido.
2.2. Parecer sobre as questões a decidir. Quadro factual. Enquadramento jurídico. Análise.
Posição assumida:
Pela objetividade, o recurso afigura-se manifestamente improcedente.
Na verdade, o arguido foi notificado da decisão da ANSR que cassava a sua carta de condução e notificado de que a não impugnação judicial da decisão de cassação implicava o cancelamento da carta de condução (ref.ª citius 9734641), decisão que, como na sentença consta, se tornou definitiva em 23-11-2021. – Cf. Acórdão do TRP, de 2020-11-25, processo nº 20/19.1GALSD.P1, e os aí demais arestos citados.
Ainda que a alteração legislativa operada pelo DL n.º 102-B/2020, de 9.12 ao artigo 130.º do Código da Estrada (CE) - (em vigor desde 9.1.2021 e, portanto aplicável ao caso dos autos) -, tenha deixado de fazer referência ao cancelamento da carta de condução e apenas o faça à caducidade por via, no que agora interessa, da sua cassação, o n.º 5 do mesmo artigo (correspondente ao mesmo n.º na anterior versão) dispõe que: “5 - Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.”
Não é pelo facto de o n.º 7 do artigo 130.º do CE citado cominar a condução de veículo com título caducado com coima que a conduta deixa de ser crime.
Dispõe o artigo 20.º do RGIMOS (DL n.º 433/82, de 27 de outubro) que “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contraordenação.”.
De igual modo dispõe o artigo 134.º do CE que: “1 - Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação. 2 - A aplicação da sanção acessória, nos termos do número anterior, cabe ao tribunal competente para o julgamento do crime. (…)”.
Também é indiferente, atualmente, para o cometimento do crime as condições que o mesmo artigo exige para que o título seja renovado.
Ao contrário do defendido no recurso, a caducidade operada por via da cassação prevista no n.º 1 do artigo 130.º do CE refere - como antes referia na versão alterada - que o título de condução caduca, o que, naturalmente, inculca que tal situação se realiza ope legis sem necessidade de qualquer declaração para o efeito.
Ao ter-se eliminado a previsão do cancelamento, nada mais se exige para que o condutor se considere não habilitado a conduzir.
Todas as condições que o artigo 130.º do CE prevê para a obtenção de novo titulo de condução não prejudicam a conclusão que antecede, antes a reafirmam, pois se para obter novo título se fica sujeito a regime probatório e a outros requisitos de variada índole, como se não encartado se fosse, é porque se deixou de ser efetiva e definitivamente titular legal de título de condução e, portanto, ao conduzir com título caducado comete o crime p.p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do DL n.º 2/98, de 3 de janeiro.
Não nos parece, pois, que a sentença recorrida mereça censura.
2.3. Conclusão:
Em conformidade, somos de parecer que o recurso deve ser julgado manifestamente improcedente e, POR DECISÃO SUMÁRIA, ser decidido, mantendo-se a decisão recorrida (…)”.

2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questão a examinar
Analisadas as conclusões de recurso a questão a conhecer consiste em saber se o arguido deveria ter sido absolvido da prática do ilícito criminal, em resultado da nova redação do artigo 130.º do Código da Estrada, introduzida pelo DL 102-B/2020, de 9.12, constituindo a sua conduta apenas um ilícito contraordenacional.

3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definida a questão a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida.

3.1.1. Factos provados na 1.ª Instância
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“1. No dia 07-01-2022, pelas 11 horas, Estrada Municipal 125, em …, no município de …, o arguido MA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula VC.
2. O arguido sabia não ser titular da necessária carta de condução, não estando habilitado para a condução do referido veículo, uma vez que a sua carta foi cassada por decisão da ANSR que se tornou definitiva a 23.11.2020.
3. Sabia que conduzia o referido veículo na via pública e que não era titular de carta de condução que o habilitasse a essa condução, mas não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e fez.
4. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
5. O arguido não foi interveniente em acidente de viação na situação referida em 1.
6. O arguido confessou os factos, revelou reconhecer o erro de sua conduta e arrependimento.
II.
7. O arguido, na sequência do termo do seu contrato de trabalho, encontra-se presentemente desempregado, aguardando a atribuição de subsídio de desemprego no montante de cerca de € 400,00 e esperando retomar o trabalho em Março.
8. Vive na companhia de sua mãe, em casa desta.
9. Suporta mensalmente o encargo com o pagamento de uma prestação de cerca de € 240,00 para amortização de crédito contraído com vista à aquisição de veículo automóvel.
10. Tem como habilitações literárias o 9.ºano de escolaridade.
11. Do Certificado do Registo Criminal do arguido resulta ter o mesmo sofrido as seguintes condenações:
i) Por sentença transitada em julgado a 24.05.2012, proferida no Processo Sumaríssimo n.º 5/12.9PAPTM, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e Comarca de Portimão[1], pela prática a 01.01.2012 de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 90 dias de multa, pena essa já declarada extinta pelo pagamento;
ii) Por sentença transitada em julgado a 03.12.2013, proferida no Processo Sumaríssimo n.º 1504/12.8PAPTM, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e Comarca de Portimão[2], pela prática a 26.09.2012 de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 340 dias de multa, pena essa já declarada extinta pelo pagamento;
iii) Por sentença transitada em julgado a 25.03.2015, proferida no Processo Comum Singular n.º 398/13.0GDPTM, do Juízo Local Criminal de Portimão, Juiz 1, pela prática a 25.05.2013 de um crime de ameaça agravada e a 25.05.2013 de um crime de ameaça, de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada e de um crime de injúria, na pena única de 12 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, pena essa entretanto já declarada extinta ao abrigo do artigo 57.º do Código Penal.
iv) Por sentença transitada em julgado a 29.03.2016, proferida no processo Comum Singular n.º 266/14.9GFPTM, do Juízo Local Criminal de Portimão, Juiz 2, pela prática a 28.04.2014 de um crime de injúria, na pena de 120 dias de multa, pena essa já declarada extinta pelo pagamento.
v) Por sentença transitada em julgado a 09.11.2018, proferida no processo Comum Singular n.º 935/17.1PAPTM, do Juízo Local Criminal de Portimão, Juiz 2, pela prática a 25.06.2017 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 35 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses, tendo a pena de multa sido já declarada extinta pelo pagamento.
vi) Por sentença transitada em julgado a 09.03.2020, proferida no Processo n.º 1640/19.0T9PTM, do Juízo Local Criminal de Portimão, Juiz 2, pela prática a 19.11.2018 de um crime de desobediência, na pena de 2 meses de prisão, substituída pela prestação de 60 horas de trabalho a favor da comunidade.”.

3.1.2. Factos não provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou que não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a causa.

3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma:
“Na formação da sua convicção o Tribunal atendeu aos meios de prova disponíveis, atentando nos dados objectivos fornecidos pelos documentos juntos aos autos e efectuando a análise das declarações do arguido prestadas em audiência de discussão e julgamento.
Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica das provas produzidas, dispensando-se a descrição pormenorizada das declarações e do depoimento prestados uma vez que a prova se encontra digitalmente gravada e devidamente registada em suporte magnético.
Concretizando.
O arguido MA, confessou de forma livre, integral e sem reservas os factos pelos quais vem acusado, esclarecendo que na ocasião sabia que a sua carta de condução forra cassada, que ainda faltavam uns meses para poder voltar a tirar a carta e que, por tal, não podia conduzir, mas que como estavam a cortar a relva junto do sítio onde tinha o seu veículo estacionado, apenas conduziu o mesmo para o dali retirar e estacionar noutro lugar a cerca de 100 metros, tendo nessa sequência sido abordado pela GNR. Mais esclareceu não ter sido então interveniente em qualquer acidente de viação (conforme também resulta do autos de notícia de fls. 22 e ss.), denotando reconhecer o erro de sua conduta.
O Tribunal ponderou ainda a demais documentação junta aos autos, aqui se destacando o auto de notícia de fls. 22 e ss., o print extraído da consulta à base de dados do IMT de fls. 37 e a informação prestada pela ANSR de fls. 69 a 78 (dos quais resulta ter sido determinada por decisão da ANSR a cassação da carta de que o arguido for a anteriormente titular, por decisão que se tornou definitiva a 23.11.2020 e, que, portal, o arguido efectivamente se não encontrava à data dos factos habilitado para conduzir veículos automóveis na via pública).
Ponderando a prova assim produzida e analisando a conduta do arguido exteriorizada nos factos praticados à luz das regras da experiência comum e normalidade dos factos da vida, o Tribunal dúvidas não teve em dar como provada a factualidade referida sob os pontos 1. a 6.
No que à situação socioeconómica do arguido concerne, o Tribunal fez fé nas declarações do arguido, que não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova produzido.
No que aos antecedentes criminais do arguido respeita, atentou-se no teor do seu Certificado de Registo Criminal e na certidão extraída da sentença proferida no Processo n.º 1640/19.0T9PTM (desta resultando a data correcta da prática dos factos que aí fundamentaram a sua condenação nesse processo).”

3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma:
“A) Enquadramento Jurídico-penal
O arguido vem acusado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro,.
Dispõe o n.º 1, do artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro que “quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias” e o seu n.º 2 que “se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.”
São elementos objectivos deste tipo de ilícito: a) a acção de condução; b) de veículo a motor (motociclo ou automóvel, no caso do n.º 2); c) em via pública ou equiparada; e d) sem habilitação legal.
No que ao elemento subjectivo deste tipo de ilícito respeita, o mesmo apenas poderá ser preenchido a título de dolo.
Da factualidade provada resulta que o arguido conduziu um veículo automóvel ligeiro de passageiros na via pública (cfr. definição dada pelo artigo 1.º, do Código da Estrada), sem que fosse possuidor de carta de condução que o habilitasse a conduzir - posto que a carta de condução de que anteriormente fora titular se mostrava definitivamente caducada em virtude de ter sido cassada pro decisão da ANSR que se tornou definitiva a 23.11.2020, sendo por tal o arguido considerado como não habilitado a conduzir e ficando impedido de obter novo título de condução pelo período de dois anos a partir da efectivação da cassação (cfr. artigos 121.º, n.ºs 1 e 2, 148.º e 130.º, n.ºs 1, alínea d) e 5, do Código da Estrada) -, o que o arguido quis fazer e fez ciente do carácter proibido e criminalmente punível de sua conduta.
Saliente-se que não resultou provada qualquer causa excludente da culpa ou da ilicitude.
Como assim, importa concluir que a conduta do arguido integra os elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro (e não apenas pelo n.º 1 do citado artigo 3.º, conforme alteração da qualificação jurídica dos factos que oportunamente foi comunicada ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 58.º, n.º 1, do Código de processo Penal).
B) Determinação da pena a aplicar
Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa, agora, nos termos dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal, determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar-lhe.
B1) Determinação da medida legal ou abstracta da pena
Nos termos do disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, conjugado com os artigos 41.º, n.º 1 e 47.º, n.º 1 do Código Penal, a moldura abstracta da pena aplicável ao crime em causa é de prisão de 1 mês até 2 anos ou pena de multa de 10 até 240 dias.
B2) Escolha da pena
Perante crimes punidos com penas alternativas de prisão e multa cumpre proceder à escolha da pena, dando prevalência à pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 70.º do Código Penal).
As finalidades da punição encontram-se expostas no artigo 40.º do Código Penal, que dispõe: “ A aplicação de penas (…) visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
São, pois, finalidades de prevenção geral positiva de integração (protecção de bens jurídicos) e de prevenção especial (reintegração do agente) as que se têm em conta na escolha da pena, não se considerando aqui a culpa, que apenas será valorada na determinação da medida da pena.
No que à relação entre os dois tipos de prevenção respeita, é a prevenção especial que deve estar na base da escolha da pena, surgindo aqui a prevenção geral unicamente sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico.
No que toca ao crime de condução sem habilitação legal, não se pode deixar de concluir que as exigências de prevenção geral são elevadas, atenta a elevada frequência da sua prática a nível nacional – a que esta comarca não constitui excepção –, e bem assim o facto de este tipo de criminalidade potenciar de forma exponencial a ocorrência de sinistros rodoviários e, consequentemente, potenciar a ocorrência de um número elevado de mortos e feridos graves.
No que às exigências de prevenção especial respeita, as mesmas mostram-se já significativas, posto que pese embora o arguido não registe antecedentes pela prática deste tipo de ilícito, o facto é que regista já seis anteriores condenações, pela prática de diversos tipos de ilícito, quer em penas de multa, quer em pena de prisão suspensa na sua execução, quer em pena de prisão substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, o que o não demoveu de voltar a delinquir, pelo que se nos afigura que uma condenação em pena de multa se não mostra já adequada às exigências de prevenção que in casu se fazem sentir, nomeadamente a acautelar a prática pelo arguido de futuros crimes de novos ilícitos, impondo-se a aplicação ao mesmo de pena de prisão.
B3) Determinação da medida concreta da pena
Nos termos do disposto no artigo 71.º do Código Penal, a determinação da medida da pena deve ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor ou contra o agente.
A aplicação das penas visa, reafirme-se, a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva), é a finalidade primeira, que se prossegue no quadro da moldura abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 227/231).
Sendo que, até ao limite máximo consentido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos que vai determinar em definitivo a medida da pena.
Assim, a pena concreta, há-de ser encontrada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, havendo para tanto que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Posto isto, in casu, assumem relevância para a determinação da medida da pena os seguintes factores (não se considerando aqui os factores já tidos em consideração para a escolha da pena, sob pena de violação do principio de proibição da dupla valoração):
- O grau da ilicitude dos factos situa-se num patamar médio-baixo;
- A ausência de consequências graves decorrentes de tal conduta para terceiros, dado que o arguido não deu azo com a sua conduta à ocorrência de sinistro rodoviário;
- O dolo e a culpa: o arguido agiu sob a forma mais gravosa do dolo, isto é, com dolo directo, mostrando-se o seu grau de culpa significativo posto que agiu ciente das diversas anteriores condenações que tem vindo a sofrer.
- A confissão dos factos e o reconhecimento pelo arguido do erro de sua conduta.
Tudo visto e ponderado, entende-se como justa, adequada e proporcional à culpa do arguido e às exigências de prevenção geral que se fazem sentir, a pena de 3 (três) meses de prisão.
B3.1) Da não substituição da pena de prisão por pena de multa
Nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 1 do Código Penal, “a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano, é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. (…)”.
Tendo em consideração o passado criminal do arguido, que já sofreu anteriores e sucessivas condenações em penas de multa, persistindo não obstante na prática de uma multiplicidade de tipos de crime, a substituição da pena de prisão por pena de multa afigura-se-nos contra-indicada e desadequada face às exigências de prevenção impostas pela necessidade de prevenção da prática de futuros crimes e de defesa do ordenamento jurídico.
B3.2) Da substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade
De harmonia com o disposto no artigo 58.º, n.º 1 do Código Penal, “se ao agente dever ser aplicada uma pena não superior a 2 anos, o tribunal substituí-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
No caso em apreço, ponderando o reconhecimento pelo arguido do erro de sua conduta, os seus hábitos de trabalho e inserção familiar e social, que constituem importantes factores de protecção no sentido da manutenção de uma conduta conforme ao Direito e às regras de vivência em sociedade, afigura-se-nos adequada às exigências de prevenção especial que em concreto se fazem sentir a ameaça da pena de prisão decorrente da substituição da pena de prisão aplicada ao arguido por prestação de trabalho a favor da comunidade (para o que o arguido prestou o seu consentimento), pena essa de substituição que, por outro lado, satisfará igualmente as exigências de prevenção geral posto que não subsistirão na comunidade sentimentos de impunidade.
Assim sendo e por todo o exposto decide-se substituir a pena de 3 (três) meses de prisão aplicada ao arguido por 90 (noventa) horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.”.

3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público
Cumpre, agora, conhecer a questão suscitada pelo Ministério Público em 1.ª instância em sede de recurso e já assinalada em II. ponto 2. deste Acórdão, ou seja, saber se o arguido, que conduzia um veículo automóvel na via pública com uma carta de condução cassada, cometeu o crime de condução sem habilitação legal (punida pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro) ou uma contraordenação (punida pelo artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada).
O arguido em 1.ª instância foi condenado pela prática do crime de condução sem habilitação legal, por virtude de ter conduzido viatura com motor, na via pública, durante o período de cassação da sua carta de condução.
O MP em 1.ª instância interpôs recurso propugnado pela absolvição do arguido, com fundamento na circunstância de este ser titular de carta, embora caducada e cassada, pelo que teria cometido uma contraordenação e não o crime de condução sem habilitação legal, devendo em consequência ser absolvido.
Já nesta 2.ª instância o Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu Parecer concluindo pela improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida, defendendo não ser pelo facto de o n.º 7 do artigo 130.º do CE cominar com coima a condução de veículo com título caducado que a conduta deixa de ser crime. Na sua ótica a caducidade operada por via da cassação prevista no n.º 1 do artigo 130.º do CE produz efeitos ope legis, isto é, sem necessidade de qualquer declaração para o efeito, pois o legislador eliminou a necessidade de decretamento prévio de cancelamento, constante da redação anterior do referido artigo 130.º (cf. redação dada pelo DL n.º 40/2016 de 29.7).
Para compreender devidamente o alcance dos argumentos invocados pelo MP em 1.ª e 2.ª instância e conhecer da questão colocada cumpre, em primeiro lugar, assinalar o quadro legal e a evolução do regime da caducidade do título de condução, bem como da sua cassação por perca de pontos.

3.2.1. Do regime legal
No atual ordenamento penal português a cassação do título de condução de veículo com motor tem uma dupla natureza. No âmbito do artigo 101.º do Código Penal constitui uma medida de segurança não privativa de liberdade, aplicada pelo Tribunal, tendo como pressuposto a perigosidade do agente (imputável ou inimputável) revelada pela prática de determinados tipos de ilícito. No Código da Estrada a cassação, prevista no artigo 148.º, constitui uma consequência legal da aplicação de penas e (sanções) de inibição de conduzir[3] [4], cabendo a sua determinação à exclusiva competência do Presidente da Autoridade nacional de Segurança Rodoviária (ANSR)[5], tendo por isso natureza administrativa[6].
A modalidade administrativa de cassação de licença ou carta de condução de veículos com motor resulta da substração de pontos, cujo regime se baseou no existente em vários Estados europeus, e foi introduzido no Código da Estrada pela Lei n.º 116/2015 de 28 de agosto.
Antes desta Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, a cassação administrativa ocorria quando o condutor praticava três contraordenações muito graves ou cinco contraordenações entre graves e muito graves, conquanto cometidas num período de cinco anos (artigo 148.º, n.º 1, na redação da Lei n.º 72/2013, de 3 de setembro). Quando as decisões condenatórias transitavam em julgado (em sede administrativa ou, em caso de impugnação, por sentença judicial) a autorização concedida para o exercício da condução caducava.
Em 2015, quando foi introduzido em Portugal um sistema de pontos, o legislador pretendeu incutir nos condutores uma acrescida consciência das consequências dos seus atos e, por essa via prevenir a prática de infrações estradais graves, causadoras da elevada sinistralidade nas estradas portuguesas. Essa intenção resulta, designadamente da Proposta de Lei n.º 336/XII, que deu origem à Lei n.º 116/2015 [7].
O sistema preconizado pela Lei de 2015 estabelece uma atribuição automática de doze pontos a todos os detentores de título de condução, correspondente ao “capital inicial de aptidão” para o exercício da atividade de condução (cf. n.º 1 do artigo 121.º-A do CE).
Esse capital crescerá no final de cada período de três anos, conquanto não exista registo de contraordenações graves ou muito graves, sendo adicionados três pontos, até ao limite de quinze (artigos 121.º-A, n.º 2 e 148.º, n.ºs 5 e 6 do CE) e, bem assim, aditado um ponto, até ao limite de dezasseis, a cada período correspondente à revalidação da carta de condução, aí com a condição de frequência de ação de formação (artigos 121.º-A, n.º 3 e 148.º, n.º 7 do CE).
Por outro lado, o “capital de aptidão” decrescerá quando o condutor praticar infrações penais ou contraordenacionais, sendo descontados pontos automaticamente (cf. artigo 148.º).
Assim, com a aplicação de pena acessória de proibição de conduzir ocorrerá uma subtração de seis pontos (artigo 148.º, n.º 2), situação que também poderá ocorrer quando o condutor for condenado por concurso de contraordenações (artigo 148.º, n.º 3) ou concurso de infrações por condução sob a influência de álcool ou sob a influência de substâncias psicotrópicas (artigo 148.º, n.º 3, parte final). Quando o condutor praticar contraordenações muito graves e graves a subtração vai respetivamente de quatro a cinco pontos (artigo 148.º, n.º 1, alínea b)) e de dois e três pontos (artigo 148.º, n.º 1, alínea a)).
A cassação do título de condução é decretada pela entidade administrativa, designadamente, quando são subtraídos pontos e o saldo da contabilização fica reduzido a zero ou se não for justificada a falta à ação de formação de segurança rodoviária.
Na decisão administrativa decretada pelo Presidente da ANSR este não tece quaisquer considerações sobre a culpa do agente[8], sendo a cassação aplicada de forma automática face ao saldo de pontos existente, pois este é revelador da impreparação do sujeito para o exercício da atividade de condução.
O sujeito concomitantemente fica, ainda, inibido de obter novo título de condução de veículos com motor de qualquer categoria nos dois anos seguintes à efetivação da cassação (artigo 148.º. n.º 11 do CE)[9].
Em consequência da cassação o título passa a ser considerado caduco, atenta a redação dada ao atual artigo 130.º, n.º 1, alínea d) do CE (cf. artigo 148.º do CE e também artigo 101.º do CP).
As questões colocadas são a de saber se os titulares de título de condução caducado são considerados “não habilitados” para conduzir os veículos para os quais o título fora emitido e a de averiguar se todos os condutores com título caducado incorrem na prática de um crime de condução sem habilitação legal previsto no artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de janeiro, pois este estabelece que quem conduzir veículo automóvel na via pública ou equiparada, sem para tanto estar legalmente habilitado, será punido com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias. É que nem só a cassação por perca de pontos conduz à caducidade do título de condução, mas também outras circunstâncias incluindo a falta de revalidação do título (ex: quando o condutor atinge uma determinada idade ou deixa ultrapassar o prazo de validade constante do título – cf. n.º 1 do artigo 130.º do CE).
Da leitura da atual redação do artigo 130.º, n.º 5 do CE parece ser essa a solução legal ao estabelecer-se que “Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.”.
O recorrente, todavia, defende não ser essa a solução legal invocando, inclusive para o efeito, a anterior redação do preceito em análise. Analisemos se lhe assiste razão.
O Código da Estrada (DL 114/94 de 3.5) no seu período de vigência de vinte oito anos sofreu vinte cinco alterações, tendo concretamente o artigo relativo à caducidade dos títulos de condução (nas redações iniciais artigo 131.º e atualmente artigo 130.º) sido sujeito a oito modificações [10].
Até à redação do DL 44/2005 de 23.2 a caducidade da carta, por regra, implicava a falta de habilitação para conduzir e consequentemente a condução na via pública nessas condições implicaria a condenação do condutor pela prática de um crime de condução sem habilitação legal. O legislador, todavia, nos casos de “não revalidação do título de condução” (ex. quando os condutores não renovavam a carta no fim da validade dela constante)[11], embora classificando o título como caduco apenas punia a condução nessas condições por via contraordenacional. Nestas redações iniciais não se encontrava expressamente prevista a caducidade da carta por cassação[12], sendo aliás de referenciar não ser sequer admitida a cassação determinada por via administrativa, mas tão só pelo Tribunal[13].
Já na redação do DL 44/2005 o legislador previu expressamente no n.º 1, da alínea b), do artigo 130.º a caducidade por cassação da carta (por força do artigo 148.º do CE) considerando que a condução naquelas circunstâncias por pessoas titulares de carta de condução era considerada para todos os efeitos legais não habilitada (e assim criminalmente punida). Continuando a serem sancionados apenas com coima os condutores que não tivessem revalidado o título no período de dois anos para além do prazo da sua validade (cf. artigo 130.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a) e n.ºs 5, 6 e 7 do CE).
Já na 8.ª redação (Lei 72/2013 de 3 de setembro) do artigo 130.º do CE (DL 114/94 de 3.5), sob a epigrafe “Caducidade e Cancelamento dos títulos de condução”, introduziu-se um novo conceito o de “cancelamento”. Considerou-se, então, que os titulares de títulos de condução caducos e cancelados eram considerados para todos os efeitos legais não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo por isso punidos criminalmente se detetados a circular nessas condições. Exigia-se, agora, a prática de um ato administrativo que decretasse o cancelamento do título para além da ocorrência da caducidade.
Na 9.ª redação dada pelo DL 40/2016 de 29.7, ao artigo 130.º do CE, posterior, por isso à introdução no nosso ordenamento jurídico do sistema de cassação da carta por perca de pontos (Lei n.º 116/2015 de 28 de agosto), passou a estabelecer-se o seguinte:
“1- O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior.
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução é cancelado quando:
a) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial ou decisão administrativa transitadas em julgado, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
b) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
c) O titular reprove, pela segunda vez, no exame especial de condução a que for submetido nos termos do n.º 2;
d) Tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2 os titulares de títulos de condução cancelados ao abrigo das alíneas a) e b) do número anterior que queiram obter novo título de condução.
5 - Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.
6 - Ao novo título de condução obtido após cancelamento de um anterior é aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º
7 - Quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.” (sublinhado e negrito nosso)

Na vigência desta redação do artigo 130.º do CE inúmeros foram os arestos que se debruçaram sobre se a cassação da carta equivaleria ou não à falta de habilitação legal para conduzir.
A maioria da jurisprudência defendeu, então[14], que a caducidade do título de condução era automático, mas o condutor apenas incorria na contraordenação prevista no artigo 130.º, n.º 7 do CE. Situação diferente ocorria quando já depois de caducado fosse decretado o cancelamento do título pela entidade administrativa, pois nessa situação o condutor seria considerado inabilitado e incorreria na prática do crime de condução sem habilitação legal. Essa solução decorria da interpretação do citado n.º 5 do artigo 130.º do CE ao estabelecer: “Os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.” em conjugação com o seu n.º 7.
O Decreto Lei n.º 102-B/2020, de 9.12 (em vigor desde 8.1.2021), alterou a redação do artigo 130.º do CE que passou novamente a ter a epígrafe “Caducidade dos títulos de condução”, e que tem atualmente, desde aquela data, a seguinte redação:
1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
b) O seu titular não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas, determinados ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior;
c) Se encontrar em regime probatório e o seu titular for condenado, por sentença judicial transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, pela prática de crime ligado ao exercício da condução, de uma contraordenação muito grave ou de segunda contraordenação grave;
d) For cassado nos termos do artigo 148.º do presente Código ou do artigo 101.º do Código Penal;
e) O condutor falecer.
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos e há menos de cinco anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
b) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação no exame de condução ou em qualquer das suas provas determinadas ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior;
c) A causa de caducidade seja a falta ou reprovação na avaliação médica ou psicológica, determinada ao abrigo dos n.os 1 e 5 do artigo anterior e o título se encontre caducado há mais de um ano.
3 - O título de condução caducado não pode ser renovado quando:
a) [Revogada.]
b) [Revogada.]
c) O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido;
d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado.
4 - São ainda sujeitos ao exame especial previsto no n.º 2:
a) Os titulares de títulos de condução caducados ao abrigo das alíneas c) e d) do n.º 1;
b) Os titulares do título caducado há mais de cinco anos.
5 - Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.
6 - [Revogado.]
7 - Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600 (euros). (sublinhado e negrito nosso)

Assinala o MP em 1.ª instância que da leitura do novo artigo 130.º do CE pelo DL n.º 102-B/2020, de 9.12 em confronto com a redação anterior, acima assinalada, resulta:
a) o desaparecimento da distinção entre cancelamento e caducidade do título de condução;
b) A introdução de alterações ao regime de caducidade dos títulos de condução (n.º 1) prevendo: i) A possibilidade de os condutores que deixaram caducar os seus títulos os possam reaver, embora condicionados à realização de provas de exame ou à frequência de ação de formação (nºs 2 e 4); ii) A caducidade definitiva dos títulos de condução nas situações tipificadas na lei (n.º 3) - cf. Preâmbulo do DL nº 102-B/2020 de 9.12.
c- A inexistência de total correspondência entre as situações outrora tipificadas como implicando o cancelamento do título de condução, e as que atualmente determinam a sua caducidade definitiva, designadamente no concernente à cassação do título, que, na nova redação, transitou para o n.º 1, não constituindo, assim, causa de caducidade definitiva;
d- O n.º 5, que anteriormente estabelecia que os titulares do título de condução cancelados consideravam-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, passou a prever que os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução;
e- No n.º 7 é cominada a condução com título caducado com coima de €120 a €600 e é acrescentado o segmento “nos termos previstos no n.º 1”.
Depois é salientado pelo MP em sede de recurso que:
a) Da articulação dos n.ºs 1, 3, 5 e 7 na atual redação do artigo 130.º do CE, resulta ter o legislador pretendido qualificar como crime de condução sem habilitação legal, previsto no artigo 3.º do DL º 2/98, de 3.1, as situações de título caducado (caducidade definitiva) em que o titular reprovou, por duas vezes, em qualquer das provas do exame especial, ou nas situações em que tiverem decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado o título.
b) Da articulação destes n.ºs 1, 3, 5 e 7, na atual redação do artigo 130.º, resulta ter o legislador querido punir a condução com título caducado (entenda-se: título não caducado definitivamente) como mero ilícito contraordenacional, porquanto tais condutores já anteriormente se submeteram a exames escritos e práticos, alcançando a respetiva aprovação, que lhes permitiu obter um título de condução, e podem revalidar/renovar o título, sujeitando-se a um exame especial (conforme decorre dos nºs 2 e 4).
Os argumentos avançados pelo recorrente, face à remissão em bloco realizada pelo n.º 7 do artigo 130.º para o n.º 1 do mesmo normativo poderiam conduzir à interpretação pretendida pelo recorrente. A leitura do preceito em análise não pode, todavia, ser realizada de forma literal como pretendido pelo MP em 1.ª instância, mas sim tendo em consideração o histórico do preceito.
É verdade que a alteração legislativa operada pelo DL n.º 102-B/2020, de 9.12 ao artigo 130.º do Código da Estrada (CE) - (em vigor desde 9.1.2021 e, portanto aplicável ao caso dos autos) deixou de fazer referência ao cancelamento da carta de condução, fazendo-o agora tão só à caducidade.
Essa circunstância, contudo, significa que: “5 - Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.”
O facto de o n.º 7 do artigo 130.º do CE cominar a condução de veículo com título caducado com coima não significa deixar a conduta de ser crime, pois um facto pode simultaneamente constituir crime e contraordenação[15], tal como assinalado no Parecer emitido pelo MP em 2.ª instância.
Ao contrário do defendido no recurso, a eliminação da expressão “cancelamento” apenas significa que a caducidade operada por via da cassação prevista no n.º 1 do artigo 130.º do CE se realiza ope legis, ou seja, sem necessidade de qualquer declaração para o efeito para o condutor ser considerado como não habilitado a conduzir.
As condições previstas no artigo 130.º do CE para a obtenção de novo título de condução não prejudicam a conclusão antecedente, antes a reafirmam, pois por via da cassação o arguido fica proibido de conduzir, para além de para obter novo título passa a estar sujeito a regime probatório e a outros requisitos de variada índole, é porque deixou de ser efetiva e definitivamente titular legal de título de condução e, portanto, ao conduzir com título caducado por força de cassação o infrator comete o crime previsto e punível pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do DL n.º 2/98, de 3 de janeiro.
No caso em apreciação o arguido foi notificado da decisão da ANSR que cassava a sua carta de condução, decisão essa tornada definitiva em 23-11-2021. Dessa notificação resulta, para além de o arguido estar proibido de conduzir, que durante dois anos não pode sujeitar-se a exame especial para obtenção de novo título. Sendo assim, como pode o recorrente defender não ter o arguido cometido um crime de condução sem habilitação legal, mas tão só uma contraordenação?
Esta tese do recorrente esvaziaria por completo o conteúdo da decisão administrativa de cassação. A adequada interpretação histórica do preceito conduz exatamente à solução contrária, como atrás se explanou.
Este arguido não tem a carta simplesmente caducada, mas, ainda, cassada significando ser a mesma inválida para conduzir. Sendo certo que enquanto não decorrerem os dois anos fixados na decisão administrativa, nem sequer poderá obter novo título, pois para o efeito terá de se sujeitar à realização de exame especial sem o qual a carta permanece caducada e inválida.
O resultado interpretativo dado pelo recorrente conduziria na prática a equiparar a cassação a uma inexistência jurídica, quando na realidade o título para além da caducidade não é válido para a condução, pois o arguido está expressamente proibido de conduzir.
É verdade que a solução encontrada pelo legislador ao prever no seu n.º 7 uma remissão em bloco para o n.º 1 do artigo 130.º do CE (onde estão incluídas situações tão diversas como a revalidação do título em sentido estrito, a da cassação e a do próprio falecimento do condutor), aplicando a situações tão dispares o mesmo regime da falta de habilitação legal e consequentemente da punição simultaneamente como crime e contraordenação, parece surgir como como incongruente (caso de falecimento) e até excessivo (situação de revalidação). Julgamos, todavia, que a situação de caducidade por cassação não é equiparável à simples caducidade por falta de revalidação do título onde não está em causa a penalização por desconto de quaisquer pontos por cometimento de contraordenações graves, muito graves e de crimes rodoviários, conforme se defende no Acórdão da Relação de Lisboa de 22.3.2022, proferido no Processo 533/21.5PCLRS.L1-5 relatado por Sandra Pinto[16].
Para as situações de revalidação do título o legislador distinguiu entre a caducidade definitiva e não definitiva como resulta do preâmbulo do DL n.º 102-B/2020 de 9.12 onde se afirma “São introduzidas alterações ao regime de caducidade dos títulos de condução, não só quanto às regras que permitem que condutores que deixaram caducar os seus títulos possam reavê-los, ainda que condicionados à realização de provas de exame ou à frequência de ação de formação, como também à previsão da caducidade definitiva dos títulos de condução nas situações tipificadas na lei.” (sublinhado e negrito nosso).
Na lei, efetivamente, estão previstas regras que permitem aos condutores que deixaram caducar (não definitivamente) os seus títulos os possam reaver, embora que condicionados à realização de provas de exame ou à frequência de ação de formação, como também à previsão da “caducidade definitiva” dos títulos de condução nas situações tipificadas na lei.
O regime de revalidação das cartas de condução no atual contexto legal configura-se pela seguinte forma:
- A carta de condução deve ser revalidada até 6 meses antes do fim da validade;
- Após o fim da validade, o condutor não pode conduzir, no entanto, a carta de condução pode ser revalidada até 2 anos sem estar condicionada a exame especial;
- Após dois anos e há menos de cinco anos do fim da validade da carta de condução, ainda é possível revalidá-la conquanto o condutor seja aprovado numa prova prática por cada categoria pretendida revalidar;
- Após cinco anos e há menos de dez anos do fim da validade da carta de condução, ainda é possível revalidá-la desde que o condutor frequente com aproveitamento curso específico de formação e aprove numa prova prática por cada categoria que pretende revalidar;
Na situação de a carta de condução se encontrar sem validade há mais de dez anos, o título caduca e não pode ser revalidado, sendo o condutor considerado não habilitado a conduzir (caducidade definitiva)[17].
Não é por isso suscetível de ser interpretada a remissão realizada pelo n.º 7 do artigo 130.º para o seu n.º 1, como pretendido pelo recorrente MP, pois só nas situações de revalidação quando ainda não ocorreu caducidade definitiva é que nos encontramos perante a prática de uma contraordenação.
Cumpre salientar não se ter encontrado jurisprudência publicada (tendo em consideração a redação vigente à data da prática dos factos) que se debruçasse sobre a caducidade do título decorrente da cassação, mas tão só da falta de revalidação. Nos dois Acórdão publicados relativos a factos praticados respetivamente em 8.4.2021[18] e 15.9.2021[19] concluiu-se que a não revalidação durante o período de “caducidade não definitiva” importa a prática de contraordenação e a ocorrência de “caducidade definitiva” conduz à prática de um crime de condução sem habilitação legal[20].
A situação em apreciação, neste recurso, é distinta da assinalada, pois não se subsume a uma caducidade definitiva por falta de revalidação, mas sim a uma caducidade (também ela de natureza definitiva) por força de cassação, como adiante explanaremos.


3.2.2. Apreciação do caso concreto
No caso concreto constata-se ter a condução de veículo na via pública ocorrido em 7.1.2022 sendo-lhe aplicável o artigo 130.º do CE, na versão introduzida pelo DL 102-B/20220 de 9.12, que entrou em vigor em 8.1.2021[21].
O arguido viu a sua carta cassada por decisão administrativa por ter cometido uma contraordenação grave (praticada em 15.12.2016) e um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (praticado em 25.6.2017). Tais condutas determinaram a subtração automática respetivamente em dois e seis pontos, num total de oito pontos. Tendo o arguido sido notificado para frequentar obrigatoriamente ação de formação de segurança rodoviária (apenas detinha 4 pontos) prevista no artigo 148.º, alínea a) do CE não a frequentou nem justificou a falta sido determinada a cassação da sua carta (por força do n.º 8 do artigo 148.º do CE) e ficado impossibilitado de obter novo título de condução de veículos com motor de qualquer categoria pelo período de dois anos, bem como de exercer a condução de qualquer veículo a motor.
O arguido era titular, desde 21.6.2006 de carta de condução de categoria B (ligeiros) e B1 (triciclos e quadriciclo) com validade até 11.11.2036.
Por isso a cassação da carta, por decisão administrativa da ANSR, tornada definitiva em 23.11.2020, conduziu à caducidade do título de condução desde essa data. Sendo o arguido titular de carta de condução (embora cassada e por isso inválida) terá se sujeitar-se e obter aprovação a exame especial de condução a partir de 23.11.2022 (decorridos dois anos da cassação), pois a sua carta permanece caducada e continua proibido de exercer a condução, sujeitando-se a ser sucessivamente fiscalizado e sancionado, por não deter título de condução regular e válido.
Tendo o arguido sido detetado em 7.1.2022 a conduzir veículo automóvel na via pública precisamente no período temporal em que o seu título de condução se encontrava cassado (23.22.20202 a 23.11.2022), por força do n.º 5 do artigo 130.º do CE na redação introduzida pelo DL 102-B/2020 de 9.12 praticou ato que constitui crime de condução sem habilitação legal.
Em síntese pode afirmar-se que a caducidade resultante da cassação da carta é equiparada à caducidade definitiva por falta de revalidação o título, sendo sancionada como crime e simultaneamente como contraordenação.
Assim, tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal nada há a alterar sendo de manter integralmente a decisão proferida.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Nega-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, mantem-se, na íntegra, a sentença recorrida.
2. Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 13 de setembro de 2022.
Beatriz Marques Borges – Relatora
João Carrola
Maria Leonor Esteves

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[1] 1.º Juízo criminal da comarca de Portimão
[2] 2.º juízo criminal da comarca de Portimão
[3] Cf. neste sentido Acórdão RL de 19.10.2021 proferido no processo 326/20.7Y5LSB.L1-5, relatado por Jorge Gonçalves e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[4] Cf. Acórdão da RL de 10.11.2021, proferido no processo 477/20.8T9Alm.L1-3 relatado por Ana Paramés.
[5] Anteriormente esta competência encontrava-se atribuída ao Diretor-Geral de Viação.
[6] Dela cabendo impugnação para os tribunais (artigo 148.º, n.º 13 do CE).
[7] Nessa Proposta de Lei consta o seguinte: «A presente proposta de lei destina-se a alterar o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, implementando o regime da carta por pontos. O atual regime contempla já um sistema aproximado da carta por pontos, embora bastante mitigado. Trata-se, assim, de promover uma atualização do regime vigente, acompanhando a maioria dos países europeus, onde o regime da carta por pontos se encontra plenamente consagrado e estabilizado.
A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão. A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública. O regime da carta por pontos é aplicável às infrações cometidas após a sua entrada em vigor, mantendo-se o atual regime inalterado para as infrações anteriormente praticadas».
[8] Cf. neste sentido designadamente o Acórdão da RP de 12.5.2021 proferido no processo 3577/19.3T8VFR.P1, relatado por Paula Guerreiro e o Acórdão da RE de 20.10.2020, proferido no processo 218/20.T8TMR.E1, relatado por Fátima Bernardes
[9] Acórdão da Relação de Lisboa de 22-02-2022 proferido no processo 947/21.0T9CLD.L1-5 e relatado por Fernando Ventura e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[10] Sofreu as alterações dos seguintes diplomas: DL n.º 214/96, de 20/11; DL n.º 2/98, de 03/01; DL n.º 162/2001, de 22/05; Rect. n.º 13-A/2001, de 24/05; DL n.º 265-A/2001, de 28/09; DL n.º 44/2005, de 23/02; DL n.º 138/2012, de 05/07; DL n.º 40/2016, de 29/07 e DL n.º 102-B/2020, de 09/12.
[11] Cf. redações do DL 2/98 de 3.1 (n.º 1, alínea b) e parte final do n.º 4 em conjugação como o n.º 5), DL 162/2001 de 22.5 (n.º 1, alínea b) e parte final do n.º 4 em conjugação com o n.º 5), do DL 265-A/2001 de 28.9 (n.º 1, alínea b) e n.º 6 em conjugação com o n.º 5).
[12] Cf. por exemplo redação inicial do artigo 131.º do CE, sob a epígrafe Caducidade das cartas ou licenças de condução.
[13] Cf. designadamente o artigo 150.º na versão original do CE que sob a epigrafe “Cassação da carta ou licença” estabelecia designadamente que “1 - Pode ser cassada pelo tribunal a carta ou licença de condução quando, em face da gravidade das contra-ordenações praticadas e da personalidade do condutor, este deva ser julgado inapto para a condução de veículo motorizado.”
[14] Cf. Acórdão da RL de 25.11.2015, proferido no processo 495/14.5GCALM.L1-3, relatado por Carlos Almeida; Acórdão da RC de 16.10.2019, proferido no processo 27/19.9GABBR.C1 relatado por Ana Carolina Cardoso; Acórdão da RP de 25.11.2020, proferido no processo 20/19.1GALSD.P1 e relatado por Vítor Morgado; Acórdão da RE de 25.5.2021, proferido no processo 135/20.3GCABE.E1 relatado por Gomes de Sousa; Acórdão da RL, proferido no Processo 340/19.5PTLRS.L1-5 relatado por Manuel Advínculo Sequeira; Acórdão da RG de 9.5.2022 proferido no processo 319/20.4PBVCT.G1, relatado por Teresa Baltazar.
[15] Dispõe o artigo 20.º do RGIMOS (DL n.º 433/82, de 27 de outubro) que “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contraordenação.”.
De igual modo dispõe o artigo 134.º do CE que: “1 - Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação. 2 - A aplicação da sanção acessória, nos termos do número anterior, cabe ao tribunal competente para o julgamento do crime. (…)”.
[16] Disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[17] A esta mesma conclusão se chegou no recente Acórdão da RL de 22.3.2022, proferido no processo 533/21.5PCLRS.L1-5., relatado por Sandra Pinto e disponível para consulta em www.dgsi.pt , no qual se concluiu pela condenação do arguido pela prática do crime de condução sem habilitação legal por virtude de o condutor ter na sua posse um título caducado definitivamente por falta de revalidação.
[18] Cujo sumário na parte que agora interessa é o seguinte: “IV. Posteriormente, com a publicação do DL n.º 102-B/2020, de 09/12, em vigor desde 09/01/2021, deixou de ser necessário o cancelamento da carta de condução, estando sujeita a revalidação e a renovação e a impossibilidade de tal renovação se tiverem decorrido mais de 10 anos sobre a data da renovação. V – A partir de então, afora as situações de não revalidação previstas no nº 1 do artigo 130º do CE, cuja verificação é sancionada apenas com coima, nas demais situações estamos perante a existência de “não habilitados a conduzir” do nº 5 citado preceito, o que faz cair a situação dos autos no âmbito da norma do artigo 121º do CE., e logo no âmbito da norma incriminadora do artigo 3º do DL nº 2/98 de 03/01.”.
[19] Acórdão da Relação de Lisboa de 22.3.2022, proferido no processo 533/21.5PCLRS.L1-5, já atrás referido, cujo sumário é o seguinte: “I–Face à atual redação do artigo 130º, nº 3 do Código da Estrada, é agora claro que, decorridos 10 anos sobre a data em que o título de condução deveria ter sido revalidado, já não é mais possível a sua renovação. II–Embora a lei tenha deixado de se referir ao «cancelamento» dos títulos de condução, designando todas as situações previstas quanto à perda de validade desses títulos como «caducidade», não deixou de prever dois momentos distintos: primeiro, quando é atingido o limite da validade previsto no título, este caduca, nos termos previstos no artigo 130º, nº 1, alínea a) do Código da Estrada, sendo ainda possível, nos 10 anos subsequentes, a respetiva revalidação; num segundo momento, decorridos 10 anos sobre aquela caducidade inicial, deixa de ser possível a revalidação, ficando o título de condução caducado definitivamente. III–O nº 7 do artigo 130º do Código da Estrada reporta-se expressamente aos títulos caducados nos termos previstos no nº 1 – ou seja, aqueles cujo limite de validade se mostra ultrapassado, mas que ainda são passíveis de revalidação. IV–Os titulares de carta de condução caducada definitivamente, consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido (nº 5 do artigo 130º) – incorrendo na prática do crime de condução sem habilitação legal (artigo 3º, nos 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de janeiro), se exercerem a condução de veículos motorizados nessas circunstâncias.”
[20] Regime de caducidade dos títulos de condução • Alterações ao regime de caducidade dos títulos de condução previsto no artigo 130.º do Código da Estrada, não só quanto às regras que permitem que condutores que deixaram caducar os seus títulos possam reavê-los (p. ex. quando a não revalidação tenha ocorrido há mais de dois anos e há menos de cinco anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos), ainda que condicionados à realização de provas de exame ou à frequência de ação de formação, como também à previsão da caducidade definitiva dos títulos de condução nas situações tipificadas na lei (p. ex. quando tenha decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado).
[21] Trinta dias após a data da sua publicação conforme imposto pelo artigo 15.º do DL 102-B/20220 de 9.12.