Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
346/15.3GBGDL-A.E1
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PROCESSO URGENTE
Data do Acordão: 08/24/2017
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA
Sumário:
I - A natureza urgente do processo por crime de violência doméstica só cessa com o trânsito em julgado da respectiva sentença, pelo que o prazo para interposição de recurso da sentença condenatória não se suspende no período de férias.
Decisão Texto Integral:
Reclamação – Art.º 405 do CPP.

Reclamante:
PC

PC, arguido nos autos acima indicados, nos termos do disposto no artigo 405.° n.º 1 do Código de Processo Penal, vem reclamar do despacho da Exma. Juíza do Juízo de Competência Genérica de Grândola, da Comarca de Setúbal, de 24/05/2017, proferido no processo acima indicado, que não admitiu o recurso que interpôs, em 26/04/2017, nos termos e com os fundamentos seguintes:

No dia 25/05/2017 foi proferido o despacho com a ref.ª 83978091, nos termos do qual a Meritíssima Juíza rejeita o recurso interposto, fundamentando tal rejeição na sua manifesta extemporaneidade, porquanto “os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, sendo que a natureza urgente implica a aplicação do regime do n.º2 do art.º 103º do CPP.”

Reconhece e aceita o ora Reclamante que ao processo em causa foi atribuída natureza urgente.

Todavia, entende igualmente que tal natureza só ocorre até à aplicação de quaisquer eventuais medidas de coação, ou até ser proferida sentença no processo, não se justificando, após tais momentos processuais, a manutenção do carácter de urgência.

Com efeito, reconhecendo-se que há quem defenda que o “encurtamento” do prazo não põe em risco as garantias de defesa (artigo 32.º, nº1 do Constituição), porquanto o prazo não sofre directamente um encurtamento relativamente ao prazo normal, certo é que mesmo os que defendem tal posição reconhecem que “o facto de a contagem do prazo de recurso não se suspender no período de férias judiciais tem um efeito prático ou indirecto de encurtamento do tempo disponível para o exercício do direito, no sentido de que o termo do prazo vem a ocorrer em momento anterior aquele em que se verificaria se a contagem beneficiasse da suspensão em férias judiciais”.

Reconhecendo, ainda, que o carácter de urgência “poderá ter reflexos negativos na organização do trabalho do advogado ou defensor do arguido, mas não atinge e muito menos restringe, o direito ao recurso, cujos pressupostos, âmbito, formalidades e prazo para o exercício dos poderes processuais competentes se mantem”.

Ora ainda que se aceitasse que este efeito não é violador das garantias da defesa, porquanto o interessado continua a dispor do período de tempo em geral considerado adequado para optar esclarecidamente por acatar ou impugnar a sentença e interpor e motivar, certo é que o mesmo é violador do direito às férias que o Mandatário ou Defensor Oficioso tem direito.

Com efeito, as férias judiciais não têm como finalidade permitir o merecido descanso a este ou aquele operador judiciário, mas sim a todos os operadores judiciários.

E se é certo que quer quanto aos funcionários judiciais, quer quanto aos Magistrados Judiciais ou do Ministério Público estes têm a possibilidade – aliás correcta e justa – de assegurar o funcionamento dos Tribunais em regime de turno, aos Advogados em prática isolada tal não lhe é possível.

Ou seja, correndo um determinado processo em férias, o advogado em prática isolada ou deixa de gozar as suas – também elas – merecidas férias, ou tem que substabelecer num outro Colega os poderes forenses que por procuração ou por nomeação lhe foram conferidos.

O que não se apresenta nem fácil nem correto num período de férias, e muito menos quando não decorre para nenhum sujeito processual qualquer prejuízo pela “paralisação” do processo no período de férias.

Nestes termos e nos mais de direito aplicável, e sempre com o mui douto cumprimento de V. Excelência, Venerando Juiz Desembargador e Presidente desse mesmo tribunal, entende o reclamante que deve ser revogado o douto despacho sob reclamação, e substituído por outro que admita a interposição do recurso, por não ser atribuível o carater de urgência ao processo de violência doméstica após ter sido proferida sentença.

O Ministério Público, na 1.ª instância pronunciou-se sobre o mérito da reclamação, aduzindo, entre o mais, o seguinte:

A natureza urgente resulta ope legis, atento o previsto no artigo 28.º da lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, ao prever:

“1 - Os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos.

2 - A natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal.”

Dito isto, o facto de não existirem medidas de coacção em vigor não tem efeitos para contagem de prazos para prática de actos processuais.

O Acórdão n.º 158/2012, do Tribunal Constitucional, in D.R. n.º 92, Série II de 2012-05-11, não julgou “inconstitucionais as normas do artigo 28.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas), interpretadas no sentido de que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, não se suspendendo no período de férias judiciais o prazo para interposição de recurso de decisões neles proferidas.”

No seguimento da jurisprudência do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-09-2014, processo n.º 627/09.5PBCTB.C1, relator Desembargador Fernando Chaves, “A Lei n.º 112/2009, de 16/9, ao consagrar no artigo 28.º, a natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica e a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal, quis que os prazos de atos processuais, nomeadamente a interposição de recurso, corressem em férias, como estipula o artigo 104.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.”

Dito isto, no caso em apreço o prazo de interposição de recurso corria em férias, nos termos do artigo 104.º, n.º 2, do CPP, que estabelece que “correm em férias os prazos relativos a processos nos quais devam praticar-se os actos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 2 do artigo anterior.”, pelo que o Douto Despacho reclamado não merece censura.

Por último, referir que os argumentos aduzidos e relacionados com as férias de Ilustre Defensor não são susceptíveis de revestir justo impedimento ou qualquer outra causa que admita a prática de acto fora do prazo legal.

Embora o merecimento de férias não mereça discussão, a verdade é que o próprio recorrente adiantou a forma de ultrapassar a dificuldade, nomeadamente o uso de substabelecimento.»

O despacho reclamado é do seguinte teor:

«Como resulta do disposto no artigo 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16/9, os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, sendo que a natureza urgente implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do CPP.

A natureza urgente atribuída aos processos por crime de violência doméstica implica que os prazos processuais corram durante os fins-de-semana, férias e feriados para todos os sujeitos e intervenientes processuais e para a secretaria, mesmo que não haja arguidos presos.

O prazo de interposição do recurso conta-se a partir do depósito da sentença na secretaria como resulta expressamente do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 411.º do CPP, bem como do preceituado no artigo 372.º, n.º 4 do mesmo diploma legal.

O depósito da sentença proferida nos presentes autos ocorreu em 17-03-2017.

O prazo para interposição de recurso é de 30 dias, contados ininterruptamente, durante fins-de-semana, feriados e férias judiciais.

Tal prazo terminou no dia 17 de Abril de 2017, sem a contagem da possibilidade de o recurso ser interposto até ao 3º dia posterior ao términus do prazo acrescido de multa.

O presente recurso do arguido foi apresentado em 27 de Abril de 2017, manifestamente fora de prazo.

Face ao exposto, por manifestamente extemporâneo, rejeito o recurso ora apresentado

*
Cumpre apreciar e decidir.

Em matéria de recursos dispõe o artigo 411.º, n.º 1, b) do CPP que o prazo para a respectiva interposição é de 30 dias e conta-se, tratando-se de sentença ou acórdão, do respectivo depósito na secretaria.

Como resulta do disposto no artigo 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16/9, os processos por crime de violência doméstica têm,
ope legis, natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, sendo que a natureza urgente implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal.

A natureza urgente atribuída aos processos por crime de violência doméstica implica que os prazos processuais, nomeadamente a interposição de recurso de decisões nele proferidas, corram durante os fins-de-semana, férias e feriados para todos os sujeitos e intervenientes processuais e para a secretaria, mesmo que não haja arguidos presos (como é o caso), como estipula o artigo 104.º, n.º2 do CPP, não se suspendendo, pois, no decurso dos períodos de férias judiciais, como é entendimento jurisprudencial uniforme.

Aliás, à mesma solução chegamos se tivermos presente que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 104.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 138.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (artigo 144.º do anterior CPC), se aplicam à contagem dos prazos para a prática de actos processuais as disposições da lei do processo civil, o que significa que o prazo processual não se suspende durante as férias judiciais, tratando-se de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes, como é o caso, pois o artigo 28.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, estatui expressamente que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos.

Neste sentido se tem pronunciado uniformemente a jurisprudência
( cfr., entre outros, os Acórdãos desta Relação de Évora de 28-06-2011 e 20-01-2015, da Relação do Porto de 19/1/2011 e de 16/3/2011 e decisões de Reclamações de 7/6/2010 e 10-03-2014, acórdãos da Relação de Coimbra de 24-09-2014 e 11-02-2015, da Relação de Guimarães de 04-04-2016 e do Supremo Tribunal de Justiça de 29/1/2007, disponíveis em www.dgsi.pt.).

O legislador, in casu, quis repercutir o fundamento de celeridade do prazo para a prática de ato no seio do processo, e não em função dos intervenientes processuais, da sua pluralidade ou da diversidade das questões que nele se possam colocar.

Como decidiu o STJ no seu aresto de 03-03-2016 a natureza urgente do processo por crime de violência doméstica deve cessar com o trânsito em julgado da respectiva decisão, até porque esta se torna exequível desde esse momento.

Compulsados os autos verifica-se que:

a) A sentença foi proferida em 16-03-2017 e depositada em 17-03-2017;

b) Conforme resulta da ata de audiência em que se procedeu à leitura da sentença estiveram presentes, além do mais, o arguido e o seu ilustre defensor, que foram devidamente notificados;


c) O arguido apresentou o seu recurso em 26 de Abril de 2017, via e-mail, tendo o original dado entrada no dia seguinte.


Uma vez que o prazo para a interposição de recurso se iniciou no dia 18 de Março de 2017, o prazo de 30 dias a que se refere o n.º 4 do artigo 411.º do CPP esgotou-se no dia 17 de Abril de 2017, podendo, no entanto, mediante o pagamento de uma multa, o recurso ser apresentado nos três dias úteis subsequentes, isto é, até 20 de Abril de 2017 artigo 139.º, nºs 5 e 6 do CPC ex vi artigo 107.º, n.º 5 do CPP.

Por conseguinte, há-de concluir-se que o recurso apresentado pelo arguido no dia 26 de Abril de 2017 foi interposto fora do prazo legal, assim como dos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo, quando já havia transitado em julgado a decisão condenatória cuja impugnação se visava.

Como o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de dizer Acórdão n.º 158/2012,
in D.R. n.º 92, Série II de 2012-05-11, não são inconstitucionais as normas do artigo 28.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, quando interpretadas no sentido de que os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos, não se suspendendo no período de férias judiciais o prazo para interposição de recurso de decisões neles proferidas.

Foi referido em tal aresto, “tem de reconhecer-se, no entanto, que o facto de a contagem do prazo de recurso não se suspender no período de férias judiciais tem um efeito prático ou indireto de encurtamento do tempo disponível para o exercício do direito, no sentido de que o termo do prazo vem a ocorrer em momento anterior àquele em que se verificaria se a contagem beneficiasse da suspensão em férias judiciais. Porém, não pode considerar-se este efeito violador das garantias de defesa. O interessado continua a dispor do período de tempo em geral considerado adequado para optar esclarecidamente por acatar ou impugnar a sentença e interpor e motivar o respetivo recurso. Apenas é privado da possibilidade de não ter de praticar tais atos no período de férias judiciais, rectius, deixa de obter a neutralização do período de férias judiciais mediante a suspensão da contagem do prazo nesse período. Esse efeito – consequência geral inerente ao facto de o período de férias judiciais não significar a paralização total da atividade dos tribunais – poderá ter reflexos negativos na organização do trabalho do advogado ou defensor do arguido (do mesmo modo que o terá no dos demais sujeitos processuais), mas não atinge e muito menos restringe, o direito ao recurso, cujos pressupostos, âmbito, formalidades e prazo para o exercício dos poderes processuais competentes se mantém intocados.”

As dificuldades que tal aspecto possa criar no direito ao descanso, nos períodos de férias judiciais, dos Ilustres Defensores ou advogados constituídos pelos sujeitos processuais que tenham de intervir em processos de natureza urgente, não configuram justo impedimento, ou causa para suspensão da contagem de prazos, ope judicis, nos casos em que o legislador quis a celeridade do processo de modo a salvaguardar outros interesses protegidos, pois a própria lei consagra soluções para as faltas ou impedimentos dos mesmos, o que pode passar pelo recurso ao substabelecimento dos poderes conferidos em quem possa exercer o patrocínio judiciário.

Os advogados, enquanto profissionais livres, ao contratarem a prestação de serviços com os clientes, devem garantir-lhes a continuidade do serviço até à respectiva conclusão. O advogado, trabalhador livre e por conta própria, não tem assegurado na Lei Fundamental o direito a férias e, embora tenha a faculdade de fazer férias quando entender, deve assumir os custos e as renúncias que essa liberdade implica.

Nenhuma censura a fazer à decisão reclamada, que se mantém.

Decisão:


Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, indefere-se a reclamação e confirma-se o despacho reclamado.

Custas pelo reclamante fixando a taxa de justiça em 3 UC
(art. 1.º e 8.º, n.º3 do RCP, com referência à Tabela III anexa.)

Évora, 24 de Agosto de 2017


Fernando Ribeiro Cardoso (Juiz Presidente da Secção Criminal em serviço de turno)