Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1598/13.9TBVNO.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário:
I- Face ao teor do clausulado das condições particulares e especiais do contrato de seguro – que exigia ser a viatura de transporte das mercadorias seguradas de propriedade da A.–, deve-se concluir pela exclusão da cobertura do contrato perante a circunstância de essa viatura ser propriedade de entidade terceira (estando até a viatura segurada noutra seguradora e em benefício de uma outra entidade, que não a A. ou a proprietária.
II- Esta interpretação é conforme com os artos 236º e 238º do C.Civil
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Na presente acção de processo comum, a correr termos em Secção Cível da Instância Central instaurada por «AA, Unipessoal, Lda.» contra «BB Seguros, SA», foi pela A. invocada a celebração com a R. de contrato de seguro de transporte de coisas para cobertura de danos, até ao montante de 59.855,75 €, a ocorrerem em mercadoria composta por peças de vestuário e calçado durante o seu transporte em determinada viatura e no âmbito da sua actividade comercial, e alegada a ocorrência de um acidente com essa viatura, em 1/7/2005, que consistiu na colisão dessa viatura com outra, por motivos não apurados e que determinou, na sequência de incêndio decorrente dessa colisão, a perda total de peças de tecido e corte ali transportadas, no valor global de 112.445,00 €, cujo valor a A. não pagou até ao presente, apesar daquela cobertura e de interpelada para tal pagamento – e, nessa base, pediu a A. a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de 59.855,75 €, correspondente ao limite máximo segurado, a título de ressarcimento da perda da mercadoria segurada, de valor superior ao garantido, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal comercial, desde a citação até integral pagamento.

Na contestação, a R. suscitou, por excepção, a ocorrência de prejudicialidade do pedido, por ter já havido acção em que se discutiu o mesmo alegado sinistro rodoviário aqui invocado, e impugnou o pedido, em termos de sustentar que os danos alegadamente verificados não se encontravam abrangidos pela cobertura do seguro, quer porque este se referia ao transporte de mercadorias em veículo do segurado, o que não sucedeu no caso presente, já que a mercadoria transportada seguia em viatura pertencente a entidade terceira, quer porque tal contrato excluía perdas causadas por casos fortuitos ou de força maior, sendo que no referido processo sobre o evento não se fez qualquer prova de que a destruição da mercadoria teve origem em qualquer risco específico do funcionamento das viaturas ou na circulação de qualquer delas, antes ficando em dúvida se existiu mesmo uma colisão entre as mesmas.

Após o saneamento do processo – em que foi julgada improcedente a excepção de caso julgado, por não haver identidade entre os sujeitos passivos da presente acção e da invocada pela R. – e a prolação de despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, teve lugar o julgamento, na sequência do qual foi lavrada sentença (a fls. 163-176), em que se decidiu julgar totalmente improcedente a acção, absolvendo a R. do pedido.

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, no essencial, o seguinte: do contrato de seguro celebrado entre as partes constava, no âmbito das condições particulares e especiais da respectiva apólice, cláusula pela qual a cobertura do seguro se reportava a mercadoria transportada em veículo do segurado; da matéria de facto provada resulta que o veículo 00-00-OM, que transportava a mercadoria referenciada pela A., era propriedade da «CC, SA», sendo tomador do seguro «DD, Lda.», pelo que o mesmo não era propriedade da A.; não obstante o veículo de matrícula 00-00-OM ter sido indicado, nessas mesmas condições especiais, como veículo transportador, também é certo que, face àquela outra cláusula, e para um contraente médio colocado na posição do declaratório real, é razoável admitir que a seguradora apenas se dispôs a assumir o risco do transporte da mercadoria segurada na condição de a viatura ser propriedade do segurado, como se fez expressamente constar – o que, afinal, não se verificava; sendo assim, os alegados danos tidos pela A. não se encontram cobertos pelo contrato de seguro em causa.

Inconformada com tal decisão, dela apelou a A., formulando as seguintes conclusões:

«1. Conforme a sentença que correu termos pelo segundo juízo do Tribunal Judicial da Comarca sob o nº 1514/05.1TBVNO, confirmada pelo Acórdão de Apelação nº 1514/05.TBVNO.C1, da Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra, tudo junto aos presentes autos, resultou provado que:

“Para além do incêndio das duas viaturas identificadas na resposta ao nº 1, também ardeu grande parte da mercadoria que se encontrava no interior do OM.

Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas, dentro do OM encontravam-se diversas peças de tecido e corte, designadamente: 5.000 calções de criança; 5.000 calções de adulto; 10.000 camisas de manga curta; 10.000 pólos de manga curta e 10.000 golas.

Produtos esses que A. havia adquirido à ‘EE Unipessoal’, em 30-06-2005, pelo preço de 112.445,00 euros.”

2. Sendo a Sentença e o Acórdão documentos autênticos, no sentido do art. 363º, nº 1, do Código Civil, a sua extensão probatória coincide com extensão do caso julgado material. Não prova plenamente, como o caso julgado, mas constituiu princípio de prova que pode ser valorada em conjugação com a prova directamente produzida, noutra acção, tendo como consequência legal, a inversão do ónus da prova.

3. A Recorrida não logrou provar que não era esta a mercadoria transportada, composta por: 5.000 calções de criança; 5.000 calções de adulto; 10.000 camisas de manga curta; 10.000 pólos de manga curta e 10.000 golas,

4. que tal mercadoria não tenha sido adquirida à “EE, Lda., em 30/06/2005, pelo preço de 112.445,00 euros.

5. Ao dar como não provados estes factos, o Tribunal não teve em conta o preceituado nº 5 do art. 607º, do CPC, factos para cuja prova exige a inversão do respectivo ónus.

6. Para efeito o Tribunal “a quo”, ao ter valorado o testemunho de FF quando referiu que mercadoria retirada do veículo 00-00-OM não podia ser aproveitada, admitiu provado que toda a mercadoria transportada tinha ficado inaproveitável.

7. A argumentação da Meritíssima Juiz “a quo” de que o depoimento do representante da Recorrente não se afigura credível pelo simples facto de o mesmo ter interesse pessoal na resolução do contencioso, não pode ser motivo suficiente para fundamentar a sua livre apreciação e convicção, uma vez que este foi feito sob juramento.

8. Na data da ocorrência dos factos, a mediação de seguros encontrava-se regulada pelo Dec. Lei nº 388/91, de 10/10, pois que o novo regime estabelecido pelo Dec. Lei nº 144/2006 de 31/07, entrou em vigor em 27.01.2007.

9. O Decreto-Lei nº 388/91, de 10/10, estabelece o regime de acesso, exercício e fiscalização da actividade dos mediadores de seguros, classificando-os, prescrevendo os requisitos de acesso à actividade de corretagem, agência e angariação e estatuindo as sanções de que poderão ser alvo pela violação das suas obrigações legais.

10. Consagra ainda aquele Dec. Lei que, desde que a seguradora tenha atribuído poderes de cobrança ao mediador, o pagamento efectuado a este com capacidade de cobrança, isto é, com poderes para receber o prémio em nome e por conta da seguradora, o pagamento é considerado feito directamente à seguradora.

11. Ora, a mediadora tinha em seu poder os correspondentes recibos de quitação, emitidos pela Recorrida, demonstrativos do seu poder de cobrança, considerando-se que tal pagamento foi efectuado directamente à seguradora Recorrida, conforme o preceituado no Dec. Lei nº 388/91, de 10/10.

12. A empresa mediadora passou o recibo emitido pela Recorrida e deu quitação referente ao prémio de seguro da apólice nº 073, Transporte Terrestre Nacional nº 731, em que figura como seguradora esta e tomadora do seguro a ora Recorrente, tendo por objecto mercadoria transportada – vestuário e calçado – destinado a cobrir, até ao limite constante da apólice, conforme se prova no seu carimbo inserto no mesmo, identificado como Doc. nº 1 da P.I., portanto com capacidade e poderes de representação, conforme o preceituado no Dec. Lei nº 388/91, de 10/10.

13. O prémio de seguro foi tempestivamente pago pela Recorrente, como se prova por documento nº factura/recibo EUW002197059, no valor de €472,88, datado de 13/06/2005 (documento não impugnado pela Recorrida), que não logrou provar ter devolvido à Recorrente aquele valor.

14. A Empresa mediadora “GG, Lda.”, através do seu sócio gerente HH, quando da outorga do contrato de seguro na apólice nº 073, tinha perfeito conhecimento de que a viatura que transportaria a mercadoria objecto do contrato de seguro em causa, não era da propriedade da Recorrente/tomadora.

15. O contrato de seguro em causa considera-se como celebrado directamente com a Recorrida, em virtude de poderes legalmente concedidos por esta aquela mediadora. Sic. Dec. Lei nº 388/91, de 10/10.

16. Esta situação de viatura não ser da propriedade da Recorrente/tomadora do seguro, configura uma condição particular do respectivo contrato de seguro e como tal deveria ter sido interpretada pela Meritíssima Juiz “a quo”, o que não fez.

17. Efectivamente, estabelece o regime jurídico do contrato de seguro actualmente, e antes o Código Comercial, que as condições gerais são constituídas por um conjunto de cláusulas contratuais previamente elaboradas e apresentadas pelo segurador e que incluem os aspectos básicos do contrato, situação já anteriormente existente.

18. Já as condições especiais são definidas por um conjunto de cláusulas que complementam ou especificam as condições gerais, pois que a existência de condições especiais que sejam realmente contratadas, encontram-se identificadas nas condições particulares.

19. Finalmente, as condições particulares são definidas por um conjunto de cláusulas que adaptam o contrato à situação concreta de um tomador de seguro, caracterizando aspectos relevantes da pessoa colectiva ou singular, como é o caso vertente.

20. Pois, enquanto que as condições especiais não são mais que um complemento ou especificação das condições gerais do contrato de seguro, já as condições particulares adaptando-se à situação concreta do tomador de seguro e prevalecem sobre aquelas.

21. Na verdade, ao celebrar o contrato de seguro objecto do presente recurso com perfeito conhecimento de que a viatura que transportou as mercadorias não era da propriedade da tomadora e segurada ora aqui Recorrente, incluiu essa condição como cláusula particular do mesmo contrato.

22. Acresce que, sendo as cláusulas contratuais especiais um prolongamento e complemento das cláusulas contratuais gerais, devem ser igualmente reguladas pelo regime jurídico que institui tais cláusulas, através do Dec. Lei nº 446/85, de 25/10, com as respectivas alterações.

23. Conforme o estipulado no art. 7º, do citado diploma: “as cláusulas especificamente acordadas prevalecem sobre quaisquer cláusulas contratuais gerais, mesmo quando constantes de formulários assinados pelas partes”.

24. Por sua vez, na definição de integração e interpretação das cláusulas contratuais gerais cujo princípio é definido no art. 10º do supra citado Dec. Lei, refere-se que: “as cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas a interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluem”.

25. Como amplamente ficou provado, a Recorrida, com perfeito conhecimento de que as mercadorias objecto do contrato de seguro ora em causa, eram transportadas em veículo não da propriedade da Recorrente/tomadora, aceitou o pagamento do prémio respectivo, que nunca devolveu ou se propôs a fazê-lo, e

26. ao tentar fazer prevalecer o art. 3º da cláusula 15ª das condições especiais, no respeitante a propriedade do veículo transportador, agiu de má-fé.

27. Sendo que nos termos e para os efeitos do artigo 15º do Dec. Lei nº 446/85, 25/10, com as respectivas alterações, tal art. 3º da cláusula 15º, na parte relativa a propriedade do veículo transportador deve ser considerada proibida por contrária à boa-fé.

28. Assim, não assiste qualquer razão a Meritíssima Juiz “a quo” quando não classifica como fazendo parte de condições particulares do contrato de seguro acima identificado, o facto de as mercadorias seguradas na apólice nº 073 não serem transportadas em veículo da propriedade do tomador do seguro.

29. Ao tentar manter integralmente o teor do art. 3º da cláusula 15ª das condições especiais, no respeitante à obrigatoriedade de que o veículo transportador tenha que ser propriedade do segurado neste contrato, a sentença não só ignorou que tal item deve ser considerado proibido por contrário à boa-fé, como também ignorou que esta situação especial deve ser considerada uma condição particular do respectivo contrato de seguro, conforme o regime jurídico do contrato de seguro, anteriormente regulado pelo Código Comercial e actualmente pelo Dec.Lei nº 72/2008, de 16 de Abril.

30. Também deveria ter-se pronunciado, salvo melhor opinião, quanto às consequências legais do facto de o prémio do seguro ter sido pago pela Recorrente e nunca lhe ter sido devolvido.»


A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC). Saliente-se, ainda, que este Tribunal apenas está obrigado a resolver as questões que sejam submetidas à sua apreciação, e não a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações (e suas conclusões) de recurso, além de que não tem de se pronunciar sobre as questões cuja decisão fique prejudicada, tudo conforme resulta do disposto nos artos 608º, nº 2, e 663º, nº 2, do NCPC.

Do teor das alegações de recurso da A. resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar da eventual modificabilidade da matéria de facto (questão que a apelante suscita, na medida em que alega não ter o tribunal a quo valorado devidamente a sentença anteriormente proferida sobre o mesmo evento aqui em causa, quanto à factualidade declarada provada, e os depoimentos da testemunha HH e do legal representante da A., ouvido em declarações, II – e que deve ser apreciada à luz de um juízo sobre o cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC), e a aferir do acerto da decisão recorrida quanto à matéria de direito (seja em consequência de uma eventual procedência daquela impugnação da matéria de facto, seja em si mesma, atenta a alegação de que a R. tinha conhecimento de que a viatura transportadora não era propriedade da A. e de que a inserção de cláusula contratual a exigir essa propriedade para ser efectiva a cobertura do seguro contrariava a boa fé), sendo que é pretensão da A. apelante obter a total procedência do pedido por si formulado na petição inicial.

Cumpre apreciar e decidir.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«1. A A., sociedade unipessoal por quotas, tem por objecto social comércio, importação e exportação de calçado, tecidos, produtos alimentares, bebidas alcoólicas e não alcoólicas, máquinas industriais e de escritório, electrodomésticos e material eléctrico de alta e baixa tensão, materiais de construção, materiais de canalização, veículos automóveis, ligeiros e pesados, peças e acessórios, madeiras, pedras semipreciosas e preciosas.

2. No dia 01-07-2005, ca. das 00.05 horas, em circunstâncias não apuradas, ocorreu uma colisão entre os veículos de matrícula 00-00-AP – ligeiro de passageiros, conduzido por JJ e de matrícula 00-00-OM – ligeiro de mercadorias, conduzido por II, gerente da A..

3. O veículo com a matrícula 00-00-OM transportava carga composta de diversas peças de tecido.

4. Após a colisão, por causas não apuradas, deflagrou-se um incêndio no qual arderam ambas as mencionadas viaturas.

5. Em consequência desse incêndio, a carga transportada no veículo 00-00-OM ficou destruída, parte incendiada e a restante inutilizada devido ao combate ao incêndio.

6. Entre a A. e a Ré foi celebrado um contrato de seguro do ramo mercadorias transportadas e titulado pela Apólice nº 73/602288 – Transporte Terrestre Nacional 731, com início em 19-04-2005 e validade de 377 dias.

7. Nas Condições Particulares e Especiais da referida Apólice nº 73/602288, lê-se, além do mais, o seguinte:

“Tipo Mercadoria – Vestuário e Calçado

Garantias da apólice: Acidente Meio Transporte

Matrícula: 00-00-OM

Capital seguro – 60.000,00

Das Cláusulas Especiais constam, nomeadamente:

Cláusula 15 – Condição Especial “Acidentes com meio de transporte”.

Artigo 1 – Objecto do Seguro

A seguradora garante, pelo presente contrato, a(s) mercadoria (s) acima descrita (s), desde que transportadas em veículos do segurado.

Artigo 2 – Riscos Cobertos

O presente contrato garante as perdas e/ou danos sofridos pelas mercadorias durante o transporte, resultantes directamente dos riscos de:

A) Choque e/ou colisão e/ou capotamento e/ou abalroamento do veículo transportador;

B) Incêndio, raio e explosão provocados no e pelo veículo transportador;

C) Abatimento de estradas, pontes e túneis pelos quais o veículo transportador circule.

Artigo 3 – Veículo(s) transportador(es)

Os veículos acima identificados que sejam propriedade do segurado e se encontrem devidamente licenciado(s), em bom estado de funcionamento e provido(s) do equipamento necessário à perfeita protecção da carga e dirigido(s) por motorista(s) habilitado(s).

(…)”

8. Com referência a 01-07-2005, a viatura 00-00-OM era propriedade da “CC, S.A.” e titular da apólice 4510038448, da Companhia de Seguros – LL, sendo tomador do seguro “DD, Lda.”

9. Com data de 07-10-2013, a A., na qualidade de tomadora do seguro titulado pela apólice 073/00602288/000, dirigiu à Ré Seguradora, que a recebeu no dia 08-10-2013, a carta junta a fls. 18/20, solicitando, além do mais, o pagamento da quantia de €59.855,75, correspondente ao capital máximo seguro para ressarcimento de perdas e danos sofridos pelas mercadorias seguradas durante o transporte.»


B) DE DIREITO:

1. Quanto à pretensão da A. apelante no domínio da impugnação da matéria de facto, importa começar por referir que uma verdadeira e própria impugnação, para poder ser operante, exige, desde logo, a ocorrência de dois pressupostos essenciais: por um lado, e tendo em conta o que já se afirmou supra acerca de que conclusões das alegações de recurso serem determinantes para a delimitação do objecto do recurso e para o âmbito de intervenção do tribunal de recurso, deve necessariamente ser levada a essas conclusões a formulação daquela pretensão de pôr em crise a matéria de facto, na forma adequada; por outro lado, deve essa formulação integrar um pleno cumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC ao recorrente, o que implica a indicação concreta dos pontos de facto a alterar e dos meios probatórios relevantes para tal alteração, com o estabelecimento de uma correlação entre cada um desses factos e específicos meios probatórios relevantes.

No caso presente, se atentássemos apenas no teor dessas conclusões das alegações de recurso, diríamos que, em bom rigor, não se verifica nelas uma clara expressão dessa intenção de impugnação. Porém, se levarmos em conta a menção, no corpo das alegações, a uma tal impugnação e a uma discordância quanto à valoração que o tribunal a quo fez da declaração de factualidade provada constante de sentença anteriormente proferida sobre o mesmo evento aqui em causa e dos depoimentos de HH, enquanto testemunha, e de II, enquanto legal representante da A. (depoimentos que ali transcreve em parte) – a que só de forma muito indirecta se faz referência nas conclusões 2ª, 7ª e 14ª –, podemos conceder que aquela intenção aflora, mesmo que imperfeitamente, nessas conclusões.

Porém, ainda assim, afigura-se evidente ocorrer uma situação de incumprimento, por parte da A. apelante, dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC – o que nos leva a concluir no sentido do reconhecimento da não-dedução de uma efectiva impugnação da matéria de facto e de consequente rejeição do recurso quanto ao segmento da presumida pretensão de alteração da matéria de facto.

Com efeito, e quanto a este último ponto, é entendimento dominantemente aceite que não basta a mera transcrição de depoimentos e a alegação genérica de que estes devem ser atendidos no elenco dos factos provados para fundar uma pretensão de impugnação da matéria de facto (cfr. LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 61-64, em anotação ao artº 685º-B do anterior CPC, com correspondência, sem diferenças significativas nessa parte, no actual artº 640º do NCPC). É necessário que haja uma indicação especificada dos pontos de facto a alterar – i.e., tem de haver uma indicação ponto por ponto (facto a facto) do que deve ser alterado, em que sentido e com que particular fundamento, com referência a concretos trechos de depoimentos (ou outros meios probatórios). Em particular, quanto à concreta indicação dos factos que devem ser dados ou deixar de ser dados como provados, a respectiva exigência saiu, aliás, reforçada com a versão conferida ao artº 640º do NCPC, na medida em que nele foi introduzida uma nova al. c) que expressamente impõe ao recorrente a indicação da «decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Por sua vez, o incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC tem como inelutável consequência a rejeição do recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, ao abrigo do proémio do nº 1 desse artº 640º (reiterado, quanto à indicação exacta dos trechos relevantes da prova gravada, na al. a) do nº 2 da mesma disposição legal), e sem possibilidade de despacho de aperfeiçoamento (neste sentido, em anotações ao artº 685º-B do anterior CPC, LEBRE DE FREITAS et alii, ob. cit., pp. 61-62, embora criticamente de iure condendo, e ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, p. 138; e, já à luz do actual artº 640º, igualmente ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 127-128) – mas sem prejuízo do prosseguimento do recurso quanto a outros fundamentos alegados pelo apelante, já no âmbito da impugnação de direito.

Como sublinha ABRANTES GERALDES, a apreciação do cumprimento desses ónus deve ser feita segundo «um critério de rigor» – e esclarece: «Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (Recursos no Novo Código…, cit., p. 129).

Neste ponto, é ainda de salientar, na linha do já supra expendido quanto à relevância das conclusões das alegações para a delimitação do objecto do recurso, que a omissão nessas conclusões de elementos tidos por relevantes para a apreciação do recurso, segundo a conformação da pretensão do recorrente, fará claudicar inexoravelmente tal recurso (sendo que para esse efeito irrelevará a inclusão daqueles elementos no corpo das alegações ou em documento anexo, mesmo que a essa inclusão se faça menção).

Também aqui é de destacar a posição de ABRANTES GERALDES, ao sustentar a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, e com o mesmo «critério de rigor» supra assinalado, sempre que ocorra «falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto», «falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados» ou «dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados», e «falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda» (Recursos no Novo Código…, cit., p. 128).

Ora, no caso dos autos, tendo presente as anteriores considerações e o teor das conclusões das alegações de recurso, afigura-se notório que o A. apelante não indicou os concretos factos (e em que exactos termos) que pretendia ver declarados provados, nem procedeu à devida correlação entre cada um desses factos e específicos meios probatórios relevantes, de modo a imporem decisão de facto diversa.

Sendo assim, cumpre rejeitar o presente recurso, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, na medida em que não estão reunidas as condições formais para a sua reapreciação, ao abrigo do proémio do nº 1 desse artº 640º – o que também nos dispensa da audição da prova gravada em audiência. E, como tal, considera-se improcedente a pretensão de impugnação da matéria de facto formulada em sede do presente recurso.

Em conformidade, mantém-se integralmente a decisão de facto, tal como foi proferida no julgamento efectuado em 1ª instância (e para a qual se remete, nos termos do artº 663º, nº 6, do NCPC).

Em todo o caso – e mitigando o aparente formalismo da solução ora expressa –, ainda diremos que, independentemente daquela inalterabilidade da decisão de facto, por rejeição da pretensão da sua impugnação, mesmo que fosse operante a impugnação da matéria de facto (cabendo sindicar o conteúdo da prova produzida), seria improvável a possibilidade de tal pretensão impugnatória obter procedência ou de a mesma ter relevância para uma alteração do sentido da decisão de direito.

Se bem atentarmos, a pretensão da apelante de alteração da matéria de facto – cuja fundamentação, aliás, só se alcança mais completamente se tivermos em conta o afirmado no corpo das alegações (que, no entanto, não deveria relevar para a delimitação do objecto do recurso, como vimos) – assentava, essencialmente, nos seguintes argumentos: o tribunal a quo não considerara o depoimento da testemunha HH, que actuara em representação da entidade mediadora na celebração do contrato de seguro em causa, de que resultava ter aquele tido conhecimento da situação de a viatura transportadora da mercadoria perdida não ser propriedade da A. (e cujo conhecimento alegadamente se comunicara à R.); o legal representante da A., II, não poderia ter as suas declarações desvalorizadas pelo tribunal a quo, uma vez que depusera sob juramento (e que prestara elementos sobre o valor da mercadoria em apreço); o tribunal a quo não considerara a factualidade declarada provada em sentença anteriormente proferida sobre o mesmo evento aqui em causa, na qual se especificara a mercadoria transportada na viatura alegadamente acidentada e seu respectivo valor (e que teria um valor probatório acrescido).

Esses tópicos argumentativos carecem de uma breve reflexão.

a) Quanto ao argumento do alegado conhecimento pela R. da situação de a viatura utilizada pela A. não ser propriedade desta, faz-se notar que tal argumento apenas surge agora em sede de alegações – e só depois de o tribunal a quo ter sustentado a sua decisão de improcedência da acção na circunstância de o contrato de seguro exigir que o veículo de transporte da mercadoria segurada fosse propriedade da A. e de se ter apurado que não lhe pertencia. E isto quando a A. já sabia que a cláusula 15ª das condições especiais do contrato de seguro enunciava que a respectiva cobertura das mercadorias seguradas apenas ocorreria «desde que transportadas em veículos do segurado» (artº 1º) e que o veículo transportador teria de ser «propriedade do segurado» (artº 3º), conforme ponto de facto nº 7 supra; e quando a A. já tinha referido que o referido veículo não era de sua propriedade (artº 9º da petição inicial), sem ter logo declarado, como podia ter feito, que esse facto era do conhecimento da R..

Ora, trazer este elemento novo (o do conhecimento da R. sobre a propriedade da viatura) ao processo já em sede de recurso traduz-se na utilização de argumento que podia, e devia, ter sido apresentado perante o tribunal a quo – e se essa questão não foi apreciada por esse tribunal, então também não se poderia pronunciar sobre ela o tribunal de recurso. Como é sabido, os recursos, no nosso sistema processual, têm uma finalidade de reapreciação pelo tribunal superior de matéria ponderada na decisão recorrida, e não de apreciação de todas e quaisquer questões que os recorrentes entendam submeter-lhe, mesmo que não colocadas perante o tribunal recorrido. Como sublinham LEBRE DE FREITAS et alii, «os recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame», pelo que aos tribunais de recurso cabe «controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último», ou seja, «não [lhes] cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la» (Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 7-8).

Mas ainda que pudesse ser extraído do depoimento da referida testemunha o seu próprio conhecimento sobre a situação de propriedade da viatura em apreço, enquanto acquis processual, não se vê como dali se extrapolaria para o alegado conhecimento da R., que aquela testemunha, mesmo na alegação da A., não declarara ter transmitido àquela. E, por isso, irrelevaria para a decisão de direito algo que não foi trazido ao processo e que não poderia ser obtido no processo.

b) Quanto ao argumento da relevância do juramento prestado pelo legal representante da A., para impedir a eventual desvalorização das declarações produzidas nessa condição, diga-se, desde já, que não se alcança a ratio do mesmo. As testemunhas prestam juramento e nem por isso o tribunal está impedido de proceder à sua valoração segundo a aplicação do princípio da livre apreciação da prova pelo julgador. O mesmo se aplica às declarações de parte sem conteúdo confessório (cfr. artº 466º, nº 3, do NCPC). É, além disso, manifestamente racional a perspectiva do tribunal a quo no sentido de que as declarações de parte merecem alguma reserva, por o declarante ter interesse pessoal no sentido da decisão, sendo natural e compreensível a parcialidade e subjectividade de tais depoimentos, sem que isso signifique necessariamente violação do dever de verdade.

Acresce que os poderes de reapreciação de matéria de facto pela 2ª instância se encontram ainda mitigados pelo princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador da 1ª instância (artº 607º, nº 5, do NCPC), pelo que, no limite, não poderia deixar de se conceder primazia, quanto à apreciação da credibilidade de depoimentos produzidos, à percepção do julgador a quo, que pôde ouvir perante si os relatos das pessoas inquiridas. E, sendo assim, não se disporia aqui de elementos bastantes para infirmar a concreta valoração que o tribunal a quo fez das declarações de parte do legal representante da A.. Nessa conformidade, também irrelevaria uma eventual reapreciação desse depoimento em sede de recurso.

c) Quanto ao argumento da relevância da declaração de prova noutro processo acerca da qualidade e valor da mercadoria segurada, refira-se que, independentemente da sua projecção fora do respectivo processo (ainda que não configure um caso julgado, como aliás reconhece a apelante), sempre se suscitaria a questão prévia da sua relevância para a decisão da presente causa.

Se bem virmos, ainda que se pudesse considerar a possibilidade de alteração da matéria de facto quanto à especificação das mercadorias perdidas e do seu valor, de nada valeria a respectiva factualidade perante o entendimento de que o transporte dessas mercadorias em viatura não pertencente à A. excluía a cobertura do seguro. Ainda que aquela questão de prova fosse logicamente precedente, sempre se poderá dizer que a rejeição formal da pretensão de impugnação da matéria de facto se conforta ainda com a eventual irrelevância dessa factualidade para a questão jurídica nuclear dos autos, no pressuposto de uma adesão à tese adoptada pelo tribunal a quo na interpretação do concreto contrato de seguro em causa, e quanto à questão da relevância da propriedade do veículo por terceiro. Só no caso de ser desatendida aquela tese do tribunal a quo é que adquiriria importância discutir a relevância de declaração extrínseca de prova quanto à questão da qualidade e valor das mercadorias alegadamente perdidas.

Ora, podemos desde já adiantar que entende este Tribunal de recurso merecer adesão a solução de direito sustentada pelo tribunal a quo, como melhor se explicitará infra – pelo que também por aqui irrelevaria uma eventual reapreciação de facto.

Arredada, pois, a relevância dos três essenciais argumentos utilizados pela A. apelante para sustentar substantivamente a sua pretensão de impugnação da matéria de facto, resta reiterar que também por essa via material estaria votada ao insucesso a pretensão de impugnação da matéria de facto formulada no recurso ora em apreciação – e sem prejuízo de se entender, como se demonstrou, que essa pretensão deve ser, desde logo, formalmente rejeitada.

2. Posto isto, e perante a inalterabilidade dos factos apurados em sede de julgamento de 1ª instância (na sequência da rejeição da impugnação da matéria de facto, por incumprimento dos ónus impostos pelo artº 640º do NCPC), importa, pois, aferir do acerto da decisão recorrida quanto à matéria de direito.

Ora, para esta aferição do acerto jurídico da decisão recorrida, há que partir da matéria de facto provada e supra descrita – e, perante aquela, forçoso é concluir dever ter-se por infundada a pretensão da A. apelante nos termos em que a mesma foi decidida na sentença recorrida. Pode mesmo afirmar-se que se trata de “questão simples”, para os efeitos do disposto no artº 663º, nº 5, do NCPC, podendo bastar-se a decisão do recurso com uma fundamentação sumária do julgado, em conformidade com o citado normativo.

Com efeito, afigura-se correcto o percurso argumentativo, do ponto de vista jurídico, sustentado pelo tribunal recorrido. Face ao teor do clausulado das condições particulares e especiais do contrato de seguro – que exigia ser a viatura de transporte das mercadorias seguradas de propriedade da A. (cfr. transcritas cláusulas do contrato, inseridas no ponto de facto nº 7) –, não poderia o tribunal a quo deixar de concluir pela exclusão da cobertura do contrato perante a circunstância de essa viatura ser propriedade de entidade terceira (estando até a viatura segurada noutra seguradora e em benefício de uma outra entidade, que não a A. ou a proprietária – cfr. ponto de facto nº 8 supra). E, neste contexto, não se alcança, quer o argumento da A. de que a cláusula relativa à propriedade da viatura seria proibida por lei e contrária à boa fé (já que se trata de cláusula particular e, logo, concreta e livremente acordada pelas partes), quer o argumento da desconsideração das regras de interpretação dos contratos (quando essa interpretação se mostra plenamente conforme com os ditames dos artos 236º e 238º do C.Civil, a que o próprio tribunal a quo deu aplicação expressa), quer ainda o argumento relativo ao pagamento do prémio de seguro e sua não devolução pela R. (que chega a ser obscuro, por não estar em discussão qualquer dúvida sobre a validade do contrato).

Acolhem-se, assim, os fundamentos da sentença recorrida, pelo que não se vislumbra qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E, como tal, deverá improceder integralmente a presente apelação.

3. Em suma: concorda-se com o juízo decisório de improcedência da pretensão da A. formulado pelo tribunal a quo, pelo que não merece censura a sentença sob recurso.


*

III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela A. apelante (artº 527º do NCPC).


Évora, 6/10/2016


Mário António Mendes Serrano


Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes


Mário João Canelas Brás