Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1703/19.1T8PTM.E1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
CULPA DO SINISTRADO
CULPA EXCLUSIVA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: i) para que se verifique a negligência grosseira do sinistrado conducente à descaraterização do acidente é necessário que a sua conduta tenha sido temerária, manifestamente ofensiva da prudência que um trabalhador medianamente cuidadoso observaria se estivesse colocado na sua situação e conhecedor das mesmas circunstâncias.
ii) não basta a violação geral de regras de segurança. É preciso que se prove que em concreto o trabalhador sabia que tinha que observar determinadas regras de segurança e que apesar disso não as cumpriu.
iii) não se mostra descaraterizado o acidente de trabalho se o trabalhador violou apenas regras de segurança gerais, sem prova de ausência de causa justificativa, e a sua conduta se subsume à violação desse dever de cuidado, mas sem poder ser qualificado de temerário de elevado e relevante grau.
iv) o ónus da prova dos factos conducentes à descaraterização do acidente de trabalho recai sobre quem está obrigado à reparação. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO

Apelante: F… e I… (autores).
Apeladas: Zurich Insurance, Plc – Sucursal de Portugal (ré seguradora) e Sotimber – Serviços Florestais, SA (empregadora).

Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo do Trabalho de Portimão, J2.

1. A…, F… e I… (patrocinados pelo Ministério Público), instauraram a presente ação emergente de acidente de trabalho, sob a forma de processo especial, contra as rés, na qualidade de beneficiários legais do sinistrado falecido F…, pedindo que as rés sejam condenadas a reconhecer o evento descrito nos autos como acidente de trabalho, a transferência parcial de responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do mesmo em função da retribuição auferida pelo sinistrado, no valor anual de € 12 216,40 e a qualidade de beneficiários legais dos autores e, em função disso, a condenação das rés no pagamento à autora A… de uma pensão anual e vitalícia no montante de € 3 664,92, devida desde 06.07.2019, e um subsídio por morte no valor de € 5 752,03, e a cada um dos autores F… e I… do capital de remição calculado em função de uma pensão anual e vitalícia de € 1 221,64, e ao autor F… ainda um subsídio por despesas de funeral no montante de € 1 990.
Alegaram, para tanto e em síntese, que no dia 04 de julho de 2019, quando se encontrava no exercício das suas funções, ao serviço da 2.ª ré, F… foi embatido por uma árvore, vindo a falecer em consequência dos ferimentos sofridos.
Mais alegaram que a 1.ª autora vivia em união de facto com o falecido F… e os 2.º e 3.ª autores são pais do falecido, encontrando-se a cargo do mesmo, devendo, por isso, ser considerados beneficiários legais.
Considerando que a responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho ocorridos com F… se encontrava apenas parcialmente transferida para a 1.ª ré, pretendem os autores haver das rés as prestações legalmente estabelecidas.
Citadas ambas as rés, veio a ré Sotimber, SA contestar, aceitando a ocorrência do acidente e a respetiva caraterização como acidente de trabalho e, bem assim, a transferência parcial da responsabilidade, impugnando, porém, a qualidade de beneficiários legais invocada pelos autores e sustentando não poder ser responsabilizada pelo pagamento das despesas de funeral e subsídio por morte, que deverão ficar a cargo da entidade seguradora em exclusivo.
Também a ré Zurich Insurance, Plc – Sucursal em Portugal veio contestar a ação, alegando que a ocorrência do acidente em causa ficou a dever-se ao facto de o falecido F… ter violado regras de segurança que conhecia, não se encontrando a desempenhar quaisquer tarefas que lhe tivessem sido determinadas pela sua entidade patronal no momento em que foi embatido pela árvore (em cujo abate não estava envolvido), pelo que o acidente deve considerar-se descaraterizado.
Impugna, igualmente, a qualidade de beneficiários legais invocada pelos autores.
Foi proferido despacho saneador, no qual se fixou a matéria de facto assente e foram selecionados os temas da prova.
Foi realizada a audiência de discussão e julgamento como consta da respetiva ata.
De seguida foi proferida sentença com a decisão seguinte:
Nos termos expostos e em conformidade com as disposições legais citadas, julga-se a ação improcedente porque não provada, devendo considerar-se o acidente de trabalho que vitimou F… descaraterizado, não havendo lugar a reparação, e, em consequência, absolvem-se as rés Zurich Insurance, Plc – Sucursal em Portugal e Sotimber – Serviços Florestais, SA dos pedidos contra as mesmas deduzidos pelos autores A…, F… e I….
Custas pelos autores, que ficaram vencidos, sem prejuízo da isenção de que beneficiam os autores F… e I… (cf. artigo 527.º do Código de Processo Civil) e, também, sem prejuízo do disposto no artigo 17.º n.º 8 do Regulamento das Custas Processuais.
Fixa-se à ação o valor de € 77 184,94 (cf. artigo 120.º n.ºs 1e 2, do Código de Processo do Trabalho).

2. Inconformados, vieram ao autores F… e I… (pais do sinistrado), interpor recurso de apelação, que motivaram e as conclusões seguintes:
1. O Tribunal a quo considerou demonstrado que a ocorrência do acidente em causa nos autos resultou de um comportamento do sinistrado F…, que o Tribunal entendeu ser negligente em elevado grau por violar as regras de segurança, concluindo que essa inobservância se veio a revelar causal na ocorrência do acidente que o vitimou, pelo que decidiu no sentido da exclusão do direito à reparação, nos termos previstos no artigo 14.º, n.º 1, alínea b) da LAT.
2. A decisão do Tribunal teve em conta o circunstancialismo que envolveu a morte do sinistrado, com base nos factos que se apuraram na sequência da realização do julgamento. Porém, como resulta da matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida, desconhece-se o que motivou que o sinistrado (que conhecia as regras de segurança da sua atividade pois era um profissional já habituado àquelas tarefas), naquele dia e hora saiu da área de segurança junto da viatura da qual era motorista, para se deslocar para a área onde a árvore abatida lhe foi embater de forma letal.
3. Como não sabemos o que o sinistrado foi fazer àquele local, e infelizmente não temos hipótese de lhe perguntar, temos que manter todas as hipóteses em aberto.
4. Porém, a opção referida pelo Tribunal, no sentido de que o acidente se deve considerar descaraterizado porque não foi possível identificar nenhuma justificação atendível para o sinistrado se ter deslocado para o local de queda das árvores que estavam a ser cortadas, não nos parece a mais acertada face ao que resulta da lei quanto a estas situações.
5. Encontrar a justificação para o comportamento do sinistrado, exclusivamente na sua negligência parece-nos ser uma conclusão, possível, mas redutora face ao que se apurou em julgamento.
6. Apesar de tal ter sido questionado, nenhuma testemunha se referiu a que o sinistrado tivesse tendências suicidas ou que fosse pessoa que normalmente tinha comportamento negligentes e temerários.
7. Também não se provou que o sinistrado se aproximou do local do abate das árvores por mera curiosidade (a sua profissão na área do abate de árvores e no transporte das mesmas já não era recente, pelo que a operação de corte certamente já não lhe motivava qualquer curiosidade).
8. Portanto, não sabemos a razão pela qual o sinistrado se deslocou para aquele local que lhe foi fatal.
9. Sabemos apenas que o sinistrado estava a trabalhar e que, por qualquer razão se aproximou do local onde alguns companheiros de trabalho procediam ao abate das árvores.
10. Ainda assim, o Tribunal, aceitando que F… foi vítima de um acidente de trabalho no dia 04 de julho de 2019, considerou que o mesmo deve ser descaraterizado, não dando assim direito à pedida reparação aos beneficiários legais do trabalhador falecido.
11. De acordo com a alínea a), do n.º 1 do artigo 14.º da LAT, não dá direito à reparação o acidente: “que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei”. Acresce que nos termos da alínea b) do mesmo preceito legal, também não há lugar à reparação se o acidente “provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.
12. Tendo em consideração que as circunstâncias previstas no referido artigo 14.º da LAT são factos impeditivos do direito à reparação invocado, nos termos do referido n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, a sua prova cabia àqueles contra quem a invocação foi feita, ou seja, à entidade empregadora e à seguradora responsáveis pela reparação (neste sentido cf. entre muitos outros, o acórdão do STJ de 20.10.2011 - processo n.º 1127/08.6TTLRA.C1.S1, relator FERNANDES DA SILVA).
13. As rés não provaram factos que justifiquem a referida descaraterização.
Não só não provaram que o acidente se deveu a negligência grosseira do sinistrado, como não provaram que a conduta do sinistrado foi a causa exclusiva do sinistro.
14. Como pouco mais foi possível apurar que a circunstância de o sinistrado se encontrar numa área onde a árvore abatida o podia atingir, faltam elementos para concluir que o acidente só aconteceu por responsabilidade exclusiva de um comportamento negligente do sinistrado.
15. É pacífico que para se verificar a referida descaraterização de um acidente de trabalho não basta a verificação da culpa leve, a mera distração, imprevidência ou comportamentos afins. Exige-se um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência.
16. Por isso, ainda que se possa entender que, ao ter-se deslocado para o local, o sinistrado foi negligente, isso não significa que o seu comportamento constituiu uma negligência grosseira, pois não sabemos que tarefa concreta visava realizar no local onde se encontrava, pois quanto a isso nada se provou.
17. Não se tendo apurado as razões da presença do sinistrado no local da queda da árvore, não podia o acidente ser-lhe imputado a título de culpa.
18. Não cabe ao tribunal integrar lacunas de matéria de facto através de presunções judiciais, pelo que, na falta de prova dos elementos descaraterizadores do acidente de trabalho, o Tribunal deveria ter concluído que o acidente não se encontra descaraterizado, havendo lugar a reparação das suas consequências danosas (neste sentido cf. o acórdão do TRP de 15.12.2003, o acórdão do TRC de 23.03.2006, e o acórdão do TRP de 03.12.2007, in Acidentes de Trabalho. Jurisprudência 2000-2007, Coordenação de Luís Azevedo Mendes e Jorge Manuel Loureiro, Coletânea de Jurisprudência, Edições, páginas 46, 115 e 165).
19. Todas as testemunhas que conheciam o sinistrado referiram que o mesmo não era conhecido por violar as regras de segurança previstas para as situações de abate de árvores, as quais ele bem conhecia, sabendo dos riscos da sua profissão, não constando também que tivesse tendências suicidas.
20. Concluir que a razão para o acidente acontecer foi apenas um comportamento negligente do sinistrado, e que este foi temerário e inútil, é algo que extravasa a matéria de facto assente e o disposto na lei sobre os acidentes de trabalho e sobre a prova.
21. Ainda que se aceite que o sinistrado se distraiu e foi imprevidente, isso não é suficiente para descaraterizar o acidente de trabalho.
22. Por isso, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, os recorrentes entendem que, que relativamente ao elemento da descaraterização que é a exclusividade da culpa causal (cuja materialidade, enquanto constitutiva do facto impeditivo do direito invocado, competia às rés demonstrar), nada de concreto se apurou que justificasse a decisão do Tribunal no sentido da descaraterização do acidente de trabalho em causa nos autos.
23. Pelo exposto, como a factualidade fixada não se mostrava suficiente no sentido de permitir concluir que o acidente se ficou a dever exclusivamente à negligência grosseira do sinistrado, entendemos que, com a douta sentença recorrida, o Tribunal a quo violou o disposto no n.º 1 do artigo 14.º da LAT e no n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil.
24. Os recorrentes não concordam ainda com o teor do facto assente com o n.º 18, de acordo com o qual “em 2019 os autores F… e I… auferiram rendimentos provenientes de pensões no montante de € 4 244,10 e rendimentos provenientes de prestação de serviços no montante de € 4 900”.
25. O Tribunal fundamentou a matéria de facto dada como provada como tendo resultado da apreciação conjugada de todos os depoimentos ouvidos na audiência de julgamento, bem como da prova documental constante dos autos, considerados uns e outros à luz das regras de experiência comum, referindo ainda que foram relevantes as declarações prestadas pelo autor F…, o qual detalhou os rendimentos auferidos por si e pela sua mulher, esclarecendo a respetiva proveniência, em termos conformes com a prova documental disponível nos autos.
26. Os documentos a que o Tribunal se refere na douta sentença são as informações prestadas pelo Serviço de Finanças de Moura, a fls. 281 e seguintes dos autos.
27. Contudo, o Tribunal não se referiu nem teve em consideração outros documentos, também eles provenientes da Autoridade Tributária e Aduaneira, os quais constam nos autos a fls. 102 e 255.
28. Em 2019, ano em que ocorreu o acidente de trabalho que vitimou o filho dos recorrentes, o casal composto por F… e I… teve um rendimento anual conjunto de € 4 340,46 (cf. doc. n.º 1 que se juntou à petição inicial – fls. 255 do processo) e as deduções específicas que o Serviço de Finanças teve em consideração foram no valor de € 4 104,00.
29. Porém o Tribunal, tendo em consideração apenas o documento que consta nos autos a fls. 281 e seguintes, considerou como provado que em 2019 os recorrentes F… e I… auferiram rendimentos provenientes de pensões no montante de € 4 244,10 e rendimentos provenientes de prestação de serviços no montante de € 4 900, nada mais acrescentando que permita determinar qual o seu rendimento para efeitos do disposto nos artigos 57.º, n.º1, alínea d), e 49.º n.º1, alínea d), da LAT.
30. Efetivamente na declaração de IRS que consta a fls. 281 e segs. os recorrentes declararam, para além da sua parca pensão de reforma, o valor que F… recebeu como pagamento de serviços de agricultura que prestou já depois de se ter reformado, com isso obtendo um total de € 4 900.
31. F… esclareceu no julgamento a que se referiam esses rendimentos, mas o Tribunal não atendeu à circunstância de aquela quantia de € 4.900 corresponder ao valor global recebido, sem quaisquer deduções relativas às despesas com a prestação de serviços (com combustíveis, alimentação e outras).
32. O valor correto dos rendimentos do casal composto F… e I…, no ano de 2019, é o que a Autoridade Tributária e Aduaneira considerou, no valor de € 4 340,46 (com deduções específicas no valor de € 4 104,00 - cf. doc. n.º 1 que se juntou à petição inicial – fls. 255 do processo).
33. Por isso, o rendimento a ter em conta relativamente aos recorrentes no ano de 2019 deve ser no valor de € 4 340,46 (e não, como parece resultar do facto provado com o n.º 18, no valor de € 4 244,10 + € 4 900).
36. Requer-se, por isso, a V. Exas. Venerandos Desembargadores que, tendo em consideração o que resulta do doc. n.º 1 junto com a petição inicial (fls. 255 dos autos), determinem a alteração do referido facto provado com n.º 18, passando o mesmo a ter o seguinte teor: “Em 2019 os autores F… e I… auferiram um rendimento anual conjunto de € 4 340,46”.
Nestes termos, nos demais de direito aplicáveis e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser concedido provimento ao recurso ora interposto, revogando-se a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra que decida:
1. Que F… foi vítima de um acidente de trabalho, e que esse acidente, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo não se encontra descaraterizado.
2. Que o sinistrado tinha como pessoas a cargo, os seus pais, F… e I…, os quais tiveram, no ano de 2019, um rendimento global conjunto de € 4 340,46;
Condenando, consequentemente, as Rés “Zurich Insurance PLC –Sucursal em Portugal” e “Sotimber – Serviços Florestais, S.A.” a pagar:
1. Ao pai do sinistrado, F…:
a) o capital de remição calculado em função de uma pensão anual e vitalícia de € 1 221,64, ficando cada uma das entidades responsáveis pelo pagamento das seguintes parcelas dessa pensão:
- € 1 120 da responsabilidade da seguradora;
- € 101,64 da responsabilidade da empregadora;
b) um subsídio por despesas de funeral no montante de € 1 990;
c) os juros de mora sobre as referidas prestações, à taxa legal anual, vencidos e vincendos, desde a data do respetivo vencimento a até integral pagamento.
2. À mãe do sinistrado, I…:
a) o capital de remição calculado em função de uma pensão anual e vitalícia de € 1 221,64, ficando cada uma das entidades responsáveis pelo pagamento das seguintes parcelas dessa pensão:
- € 1 120 da responsabilidade da seguradora;
- € 101,64 da responsabilidade da empregadora.”
b) os juros de mora sobre as referidas prestações, à taxa legal anual, vencidos e vincendos, desde a data do respetivo vencimento a até integral pagamento.

3. A ré seguradora respondeu e concluiu que:
A – Alegam os recorrentes, no essencial, que não se tendo apurado as razões da presença do sinistrado no local da queda da árvore não pode o acidente ser-lhe imputado a título de culpa, e mais alegam que não se provou que a conduta deste foi a causa única do acidente.
B – Não lhes assiste, no modesto entender da recorrida, qualquer razão.
C – Importa, desde logo, salientar que o acidente sub judicio não dá direito a reparação por força do disposto na alínea b) do nº 1 do artº 14º da Lei nº 98/2009, de 04/09, ou seja por resultar exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, e não por via do disposto na alínea a) do mesmo preceito, ou seja porque tenha resultado de ato ou omissão do sinistrado que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei.
D – É que os requisitos exigidos em uma e outra das alíneas são distintos.
Enquanto para o preenchimento dos requisitos constantes da alínea a) do nº 1 do artº 14º da LAT importa a inexistência de causa justificativa da violação de regras de regras de segurança, já para a alínea b) a exigência da lei é a da verificação de um comportamento altamente reprovável, indesculpável, inadmissível, e que seja ele a causa única do acidente
E – E todos estes pressupostos – exigidos pela al. b) – se verificam no caso dos autos.
F – De toda a fundamentação de facto e de direito da douta sentença recorrida resulta claro que o Tribunal levou seguramente em conta a circunstância de não se saber o motivo concreto que levou o sinistrado àquele local.
G – O que acontece é que, com todo o respeito por opinião contrária, saber quais os motivos que levaram o sinistrado a estar naquele local, onde e quando se desenrolavam os trabalhos de corte de árvores, é uma questão sem qualquer relevância no caso concreto do acidente sub judicio uma vez que, como se disse, a inexistência de causa justificativa como um dos elementos para integrar a descaraterização apenas é exigida pela lei nos casos previstos na alínea a) do nº 1 do artº 14º da LAT, mas já não para a descaracterização prevista na alínea b) do mesmo preceito.
H – O que importa é apurar se o comportamento do sinistrado integra o conceito de negligência grosseira e se foi a causa exclusiva do acidente.
I – Ora ficou provado que o sinistrado F… exercia funções de motorista; não tinha qualquer papel a desempenhar no corte de árvores; nem nenhum trabalho a desenvolver na zona onde se procedia ao corte das mesmas. No âmbito das suas funções cabia-lhe permanecer no local destinado a carregamento, ou carregadouro, que era onde o camião pelo mesmo conduzido se encontrava estacionado a, pelo menos, 50 metros do local onde se procedia ao corte das árvores. Mais se sabe que no início dos trabalhos de abate o sinistrado estava junto do camião; que não deu a conhecer ao motosserrista e ao manobrador da máquina que se encontrava na zona dos trabalhos de abate da árvore; e que, tendo em conta o local onde veio a ser colhido pela árvore, não era possível que o motosserrista e/ou o manobrador do harvester o tivessem visto.
J – Mais ficou provado que tendo o eucalipto que estava a ser abatido cerca de 15 metros de altura, as normas técnicas aplicáveis determinam que não se encontrem trabalhadores (ou outras pessoas) numa área equivalente ao dobro dessa altura, ou seja, numa área de 30 metros em redor da zona de abate. De igual modo que ficou provado que o sinistrado tinha tido formação sobre os riscos profissionais associados aos trabalhos desenvolvidos pelo seu empregador, nomeadamente quanto aos procedimentos relativos ao corte de árvores.
K – Perante estes factos, não pode deixar de concluir-se que ao colocar-se a cerca de 19 metros do local onde a árvore foi abatida, quando as normas técnicas que o sinistrado conhecia determinam que não podia estar a menos de 30 metros em redor da zona de abate, e sem dar a conhecer aos trabalhadores diretamente envolvidos no abate que ali estava, o sinistrado agiu de modo temerário e essa temeridade foi, e é, uma temeridade inútil, e foi a causa única do acidente.
L – Como bem salienta a meritíssima juiz a quo na douta sentença recorrida, não é possível aceitar que o sinistrado não estivesse ciente do perigo em que se colocava.
M – Além disso, o acidente que vitimou F… ocorreu, em termos de causalidade adequada, exclusivamente, devido ao comportamento temerário e inútil do mesmo. Nenhum outro facto concorreu para a produção do acidente, a não ser o comportamento do sinistrado, tanto mais que, para lá dos trabalhadores diretamente envolvidos no abate (que não sabiam, e não podiam ver, que o sinistrado ali estava) ninguém mais estava na zona onde se procedia ao corte do eucalipto.
N – Em suma, da matéria de facto provada resulta que o acidente proveio exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado F… pelo que, por força do disposto na alínea b) do nº 1 do artº 14º da Lei nº 98/2009, de 04/09 o mesmo não dá lugar a reparação.
O – Mas mesmo que assim não fosse, como é, nunca os recorrentes teriam direito às prestações que reclamam em virtude de não reunirem as condições previstas na alínea d) do nº 1 do artigo 49º da Lei nº 98/2009.
P – A matéria de facto dada como provada sob o nº 18 deve ser inteiramente confirmada, não assistindo razão aos recorrentes.
Q – Não existe qualquer fundamento para que os rendimentos mensais a que se alude no artº 49º nº 1 da Lei nº 98/2009 sejam “rendimentos líquidos”, muito menos a Lei fala na aplicação de qualquer dedução específica, mormente das deduções aplicadas para os efeitos de cálculo do IRS!
R – As deduções específicas para efeitos de IRS correspondem a um valor que é retirado ao rendimento bruto para se chegar ao rendimento líquido sobre o qual é calculado o imposto pela Autoridade Tributária. Não faz qualquer sentido a interpretação pretendida pelos recorrentes, segundo a qual ao valor dos seus rendimentos há que abater as deduções específicas aplicadas para efeitos de liquidação de IRS.
S – Aliás, o artigo 71º nº 1 da Lei nº 98/2009, de 04/09, determina que as prestações devidas, quer a título de indemnização por incapacidade temporária, quer a título de pensão por morte ou por incapacidade permanente, absoluta ou parcial, são calculadas com base na retribuição anual ilíquida normalmente devida ao sinistrado à data do acidente. Pelo que exatamente a mesma regra tem de imperar para o cálculo dos rendimentos das pessoas a cargo do sinistrado a que alude o artº 49º nº 1 da Lei nº 98/2009.
T – A douta sentença recorrida não merece, pois, qualquer censura, pelo que deve ser inteiramente confirmada.

4. Dispensados os vistos, em conferência, cumpre apreciar e decidir.

5. Objeto do recurso

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
Questões a decidir:
1. Descaraterização do acidente de trabalho.
2. Impugnação da matéria de facto (se o acidente não estiver descaraterizado).
3. Aplicação do direito aos factos se o acidente não estiver descaraterizado.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A) DE FACTO
A sentença recorrida considerou provada a matéria de facto seguinte:
1. Em 04 de julho de 2019, F… exercia a profissão de motorista, ao serviço de Sotimber – Serviços Florestais, SA, mediante contrato de trabalho, auferindo uma retribuição anual de € 12 216,40 [(€ 800 × 14) + (€ 4,20 × 242)].
2. Nessa data, a entidade empregadora Sotimber – Serviços Florestais, SA tinha a sua responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho ocorridos com o referido F… transferida para a ré Zurich Insurance, Plc – Sucursal em Portugal, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 007806607, mas apenas pelo montante anual de € 11 200,00 (€ 800 × 14).
3. No dia 04 de julho de 2019, pelas 17h20, na Tapada da Penina, em Alvor, quando F… se encontrava a desempenhar a sua atividade profissional ao serviço da ré Sotimber – Serviços Florestais, SA, foi atingido por uma árvore, sofrendo lesões crânio-encefálicas graves, das quais veio a resultar a sua morte, em 05 de julho de 2019.
4. No dia 04 de julho de 2019 a ré Sotimber, SA procedia a trabalhos de desmatação de um terreno com eucaliptos e outras árvores na Tapada da Penina, em Alvor - Portimão.
5. O sinistrado, no exercício das suas funções de motorista, estava na Tapada no local destinado a carregamento, ou carregadouro, que era o local onde o camião conduzido pelo sinistrado estava estacionado.
6. No âmbito das suas funções cabia-lhe permanecer nesse local com vista a orientar a carga do camião com a estilha proveniente das árvores abatidas.
7. Com o objetivo de, após o carregamento, transportar o material lenhoso até ao seu destino.
8. A zona de carregadouro, onde estava aparcado o camião, situava-se a cerca de 50 metros de distância do local onde se desenvolviam os trabalhos de corte de árvores.
9. O sinistrado não tinha nenhum trabalho a desenvolver na zona onde se procedia ao corte de árvores.
10. Aquando do início dos trabalhos de abate o sinistrado estava junto do camião.
11. A última vez que os trabalhadores envolvidos no corte de árvores, a saber o motosserrista e o manobrador da máquina harvester, viram o sinistrado foi precisamente na zona de carregadouro, próximo do camião.
12. Quando se procedia ao abate de um eucalipto com cerca de 15 metros de altura, o mesmo ao cair foi embater na cabeça do sinistrado, o qual nesse momento se encontrava a cerca de 19 metros do local onde a árvore foi abatida.
13. Tendo a árvore cerca de 15 metros de altura, determinam as normas técnicas aplicáveis que não se encontrem trabalhadores (ou outras pessoas) numa área equivalente ao dobro dessa altura, ou seja, numa área de 30 metros em redor da zona de abate.
14. O sinistrado não deu a conhecer ao motosserrista e ao manobrador da máquina que se encontrava na zona dos trabalhos de abate da árvore.
15. O sinistrado tinha tido formação sobre os riscos profissionais associados aos trabalhos desenvolvidos pelo seu empregador, nomeadamente quanto aos procedimentos relativos ao corte de árvores
16. Os autores F…, nascido em 09.01.1952, e I…, nascida em 24.07.1953, são pais de F….
17. A autora A…, nascida em 20.02.1986, viveu em condições análogas às dos cônjuges com o sinistrado falecido F…, entre novembro de 2014 e 05 de julho de 2019.
18. Em 2019 os autores F… e I… auferiram rendimentos provenientes de pensões no montante de € 4 244,10 e rendimentos provenientes de prestação de serviços no montante de € 4 900.
19. F… gastou com a realização do funeral do seu filho sinistrado, o montante global de € 1 990.

B) APRECIAÇÃO

B1) A descaraterização do acidente de trabalho

Os casos de descaraterização de acidente de trabalho estão previstos no art.º 14.º n.º 1 e suas alíneas da Lei n.º 98/2009, de 04.09 e são os seguintes: o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente:
a) Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei;
b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
Este art.º 14.º prescreve ainda que: para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la (n.º 2); e entende-se por negligência grosseira, o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante de habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão (n.º 3).
Às causas de não reparação referidas no artigo 14.º, acresce a prescrita no artigo 15.º, quando o acidente provier de caso de força maior.
A sentença recorrida considerou que o acidente está descaraterizado devido à violação das regras de segurança e o recurso interposto vem divergir desse entendimento.
Por sua vez, a seguradora conclui que não se trata de violação de regras de segurança, mas de negligência grosseira do sinistrado.
Em relação à violação das regras segurança, analisados os factos provados, verifica-se a violação abstrata desse dever em função da formação que lhe foi ministrada.
Contudo, nada sabemos sobre as regras de segurança comunicadas ao trabalhador no caso concreto. Não basta ministrar cursos de formação sobre os cuidados a ter em abstrato quando se procede ao abate de árvores. É necessário provar que o sinistrado na situação concreta tinha conhecimento das regras de segurança aplicáveis ao trabalho a executar na ocasião do acidente.
Não basta a violação geral de regras de segurança. É preciso que se prove que em concreto o trabalhador sabia que tinha que observar determinadas regras de segurança e que apesar disso não as cumpriu.
Note-se que a lei fala “em violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei”.
No caso, não estão provadas quais foram as condições de segurança estabelecidas pela empregadora nem quais os factos de onde resultou a alegada ausência de causa justificativa. O ónus desta prova incumbe ao responsável pela reparação, ou seja, às rés. Sobre estas recai o ónus de alegar e provar os factos respetivos, nomeadamente que formação, em concreto foi ministrada ao sinistrado, o seu grau de instrução e se este a entendeu para a utilizar durante a prestação de trabalho.
Os factos provados não permitem concluir pela violação das regras de segurança sem causa justificativa pelo sinistrado.
Termos em que improcede esta fonte de descaraterização.
Em relação à negligência grosseira do sinistrado:
Esta causa de exclusão exige dois requisitos cumulativos: negligência grosseira e que se deva a culpa exclusiva do sinistrado.
A conduta do sinistrado deve ser temerária, manifestamente ofensiva da prudência que um trabalhador medianamente cuidadoso observaria se estivesse colocado na sua situação e conhecedor das mesmas circunstâncias.
Não é suficiente a culpa grave. O legislador exige uma culpa grave qualificada.
Não estão provados factos de onde resulte que o acidente resultou exclusivamente de um comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante de habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Os factos provados não permitem que se faça um juízo de censura tão severo sobre a conduta do sinistrado. Não basta que o comportamento seja culposo. Tem de revestir as qualidades de temeridade em elevado e relevante grau, o que não acontece no caso concreto. Acresce que estando habituado a carregar camiões de árvores abatidas, ocorre alguma habituação ao perigo.
Tudo ponderado, concluímos pela ausência de descaraterização do acidente com fundamento em negligência grosseira do sinistrado.
O acidente de trabalho de que foi vítima o sinistrado não se mostra descaraterizado, pelo que se declara como acidente de trabalho reparável nos termos legais.

B2) A impugnação da matéria de facto

Os recorrentes concluem que o facto dado como provado no ponto 18 dos factos provados da sentença deve ser alterado e ficar com a redação seguinte:
“18. Em 2019 os autores F… e I… auferiram um rendimento anual conjunto de € 4 340,46”.
Tudo conforme prova que indicam.
Analisada a declaração de IRS dos apelantes, junta aos autos e não impugnada, resulta que estes declararam que auferiram em 2019 os rendimentos dados como provados na resposta ao ponto 18 dos factos dados como provados na sentença.
A prova dos rendimentos impende sobre os ascendentes, beneficiários legais e foram eles próprios que indicaram os rendimentos que foram dados como provados.
Termos em que improcede a pretendida alteração da matéria de facto.

B3) O direito dos apelantes à pensão

O art.º 57.º n.º 1, qlía d), da Lei n.º 98/2009, de 04.09, prescreve:
Em caso de morte, a pensão é devida aos seguintes familiares e equiparados do sinistrado, ascendentes que, à data da morte do sinistrado, se encontrem nas condições previstas na alínea d) do n.º 1 do artigo 49.º;
O art.º 49.º n.º 1, alínea d) prescreve:
Para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo anterior, considera-se pessoa a cargo do sinistrado: ascendente com rendimentos individuais de valor mensal inferior ao valor da pensão social ou que conjuntamente com os do seu cônjuge ou de pessoa que com ele viva em união de facto não exceda o dobro deste valor.
A pensão social no ano de 2019 era no valor de € 210,32 por pessoa, nos termos da Portaria n.º 25/2019, de 17 de janeiro.
O rendimento anual dos dois ascendentes do sinistrado, aqui apelantes, em 2019, foi de € 9 144,10.
O limite a partir do qual cessa o direito dos ascendentes à pensão é de € 210.32 por mês.
O rendimento mensal de cada um dos ascendentes é de € 381 (€ 9 144.10:2):12).
O rendimento dos apelantes é modesto, mas atendendo ao critério legal, mostra-se excedido o limite a partir do qual cessa o direito à pensão por morte do filho de ambos.
Assim, não têm direito à pensão que reclamam.
Apesar de não ter direito à pensão, o pai do sinistrado tem direito ao pagamento das despesas de funeral, no valor de € 1 990, nos termos do art.º 66.º da Lei n.º 98/2009, de 04.09, acrescida dos juros legais, desde a data do vencimento até pagamento.
Nesta conformidade, julgamos a apelação procedente parcialmente procedente nos termos atrás expostos.

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar a apelação parcialmente procedente quanto à qualificação do acidente como de trabalho, o que se declara, e condenam a seguradora a pagar ao autor Francisco Mendes Cabaço a quantia de € 1 990 (mil novecentos e noventa euros, despesas de funeral), acrescida dos juros legais, desde a data do vencimento até pagamento, e se confirma, quanto ao mais, a sentença recorrida, embora com fundamento totalmente diferente.
Custas pelos apelantes e apelados em igual proporção, tendo em conta a isenção dos primeiros.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).
Évora, 28 de outubro de 2021.
Moisés Silva (relator)
Mario Branco Coelho
Paula do Paço