Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
490/16.0T8PTG.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: ALIMENTOS A FILHO MAIOR
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 11/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo autor na petição inicial, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir e confrontando-a com o pedido formulado pelo demandante.
II - No que respeita à competência em razão da matéria, os tribunais podem ser de competência especializada, mista e genérica, desdobrando-se em instâncias centrais e locais, sendo que, em face do disposto no artigo 80.º da LOSJ, em regra, se uma determinada causa não couber na competência de uma instância central de competência especializada ou mista, caberá na competência residual da instância local de competência genérica.
III - Atento o preceituado no artigo 123.º, n.º 1, alínea e), da LOSJ, a competência só se mostra deferida às instâncias de competência especializada quando está em causa a obrigação prevista no artigo 1880.º do CC, pelo que, as acções em que se pretenda a fixação de alimentos a filho maior que ali não sejam enquadradas, serão da competência da secção cível da instância central ou da secção de competência genérica da instância local, em função do valor do processo, nos termos previstos nos artigos 117.º, n.º 1, alínea a), e 130.º, n.º 1, alínea a) da LOSJ.
IV - No caso vertente, não estamos em presença de uma acção de alimentos a filho maior com fundamento no artigo 1880.º do CC, posto que, de acordo com a factualidade que alegou na petição inicial, o autor não visa obter uma prestação de alimentos com vista a completar a sua formação, visando antes obter alimentos do seu progenitor por não se encontrar a trabalhar nem a estudar por força da doença de que padece e que o impede de conseguir prover ao próprio sustento, fundando juridicamente tal pretensão nos artigos 1905.º e 2003.º da referida codificação.
V - Consequentemente, o seu pedido não se reconduz a uma obrigação balizada no tempo, antes se reportando a uma necessidade de carácter permanente mercê da invocada doença, para cuja apreciação são competentes ab initio os tribunais judiciais, já que não nos movemos no âmbito dos “processos de jurisdição voluntária concernentes a relações familiares”, relativamente aos quais se verificou a “transferência de poderes para as conservatórias”, quando a vontade das partes for conciliável.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I – RELATÓRIO

1. AA, no dia 26 de Janeiro de 2016, propôs a presente acção contra o seu pai, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe uma pensão de alimentos, invocando - para o que importa neste recurso -, que tem 25 anos, não se encontra a estudar ou trabalhar porque padece de doença do foro psiquiátrico (esquizofrenia), que lhe aporta incapacidade permanente global de 70% de acordo com a TNI, conforme documentos juntos.
No intróito do requerimento inicial efectuou expressa alusão aos artigos 1905.º e 2003.º do Código Civil[2], evidenciando em questão prévia destacada do corpo do petitório o respectivo entendimento quanto à competência do Tribunal para apreciar o pedido deduzido que, na sua perspectiva, não se enquadra no artigo 1880.º do CC.

2. Por despacho proferido em 18 de Abril de 2016 foi o requerimento inicial liminarmente indeferido, com o fundamento de que o Tribunal não é competente em razão da matéria para apreciar o pedido, em face do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, alínea a) do DL 272/2001, de 13 de Outubro, 96.º, n.º 1, e 590.º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Civil[3], e 1880º do Código Civil, e terminando com a consideração de que deve o Requerente, caso mantenha a sua pretensão, apresentar o respectivo requerimento na competente Conservatória do Registo Civil.
Em fundamento, invocando em abono da decisão proferida o Acórdão do TRL de 10/03/2005[4], aduziu-se no despacho recorrido, para além do mais, que:
«No dia 1 de Janeiro de 2002 entrou em vigor o Decreto-Lei n.° 272/2001, de 13 de Outubro (cfr. artigo 22.° deste diploma), o qual, no seu Capítulo III estabelece o procedimento perante o conservador do registo civil que é, conforme dispõe o artigo 5.°, n.° 1, alínea a) desse diploma aplicável aos pedidos de “Alimentos a filhos maiores ou emancipados”.
Temos assim que o citado diploma atribuiu às Conservatórias de Registo Civil a competência para o procedimento relativo a alimentos a filhos maiores – cfr., ainda, o artigo 6.°, n.° 1 do mencionado diploma legal.
Das disposições acabadas de referir retira-se que, desde 01/01/2002, o tribunal não tem competência, ou melhor, jurisdição, para apreciar o pedido de alimentos a filho maior.
Trata-se efectivamente, ab initio, de falta de jurisdição do tribunal.
A competência para o efeito inicia-se na Conservatória do Registo Civil, não obstante poder o processo posteriormente transitar para o tribunal (no caso de falta de acordo), daí que não esteja a matéria contemplada na competência exclusiva do Conservador, nos termos do artigo 12.° do diploma citado.
Nem se alegue que, sempre que seja evidente a conflitualidade das partes, terá que ser afastada a intervenção do Conservador.
Não é a conflitualidade ou não conflitualidade que determina a competência.
A aferição da consensualidade é apreciada na Conservatória, mediante a oposição apresentada e uma vez ali constatada a impossibilidade de acordo, então aí, e só aí, será o processo remetido ao tribunal, nos termos dos artigos 7.° e 8.°. do mencionado Decreto-Lei n.º 272/2001.
Verifica-se, como afirmado, uma falta de jurisdição do tribunal para conhecer do requerimento inicial, uma vez que existe legislação que em primeira linha atribui essa apreciação à Conservatória do Registo Civil.
À falta de jurisdição aplicar-se-á, analogicamente, o regime jurídico da incompetência absoluta, pelo que, face ao estipulado no artigo 96.°, n.° 1 do novo CPC, há lugar ao indeferimento liminar. (…)
Note-se que o requerente não foi interditado ou inabilitado nem se encontra pendente qualquer processo dessa natureza, pelo que não se aplica a jurisprudência citada na petição inicial. Para além do mais, e ao contrário do alegado pelo requerente, a aplicação do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro não pressupõe a aplicação do disposto no artigo 1880.º do Código Civil».

3. Inconformado, o Recorrente apresentou o presente recurso, finalizando a respectiva minuta com as seguintes conclusões:
1. « O douto despacho sob recurso, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 5º nº1, al. a) do DL 272/2001 de 13 de Outubro, 96º, nº1 e 590º nº1, al. a) do CPC em vigor, indeferiu liminarmente o requerimento inicial apresentado pelo recorrente, por considerar que carece de jurisdição para conhecer do pedido.
2. Entende o respeitoso Tribunal que a competência para conhecer do pedido formulado cabe à Conservatória do Registo Civil, caso no mesmo o requerente mantenha interesse.
3. Com o devido respeito, que é muito, não concordamos com a interpretação e decisão proferida pelo Tribunal a quo.
4. No dia 11 de Abril de 2016, o requerente deu entrada com a presente ação de alimentos a filho maior, instruindo o pedido com a documentação pertinente.
3. Pretende seja o requerido seu pai condenado a pagar-lhe pensão de alimentos, porque padece de doença crónica do foro psiquiátrico que lhe aporta uma incapacidade permanente global de 70%, residindo com a mãe, reformada, sem qualquer contribuição/ assistência por parte do requerido até ao momento, que recusa fazê-lo.
4. Como se alcança da fundamentação do douto despacho recorrido, o Tribunal a quo referiu que a ação em causa não deve correr por apenso ao processo de regulação do exercício do poder paternal no âmbito do qual foi regulado esse exercício sobre o ora requerente,
5. não podendo aplicar-se o nº2 do artigo 989º do CPC, uma vez que este normativo apenas se aplica às situações em que ainda exista processo a correr termos no momento em que acontece a maioridade (...) o que não sucede no caso.
6. Enquadrando, a final, pretensão do requerente, na situação prevista do artigo 1880º do Código Civil, que determina a competência inicial da Conservatória do Registo Civil para apreciar estes pedidos.
7. Diz-nos o artigo 1880º do Código Civil que: “se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o número anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.”
5. Assim, de acordo com o Tribunal a quo, a competência para as ações de alimentos previstas no artigo 1880º do Código Civil, compete às conservatórias do registo civil como igualmente se alcança do preâmbulo do DL 272/01 de 13/10, que atribuiu tais competências em matérias de jurisdição voluntária às conservatórias, cfr artigo 5º do indicado DL 272/01.
6. É um facto que a competência das conservatórias do registo civil está restringida aos casos de alimentos a maiores com vista a conclusão da respetiva formação profissional, ou seja, às ações de alimentos previstas no artigo 1880º do Código Civil.
7. Porém, a pretensão do requerente não se enquadra, de todo, nesse normativo do Código Civil!
8. Pretende o requerente, por via da presente ação e, tendo em conta a sua situação clínica e a incapacidade permanente geral de que padece, que o impede de estudar ou ter emprego compatível, que o requerido seu pai assegure a sua subsistência e assistência médica que precisa, em condições de igualdade com a progenitora, pois a tal encontra-se vinculado desde logo nos termos do artigos 2003º e 2009º do Código Civil e, nº3 do artigo 36º da Constituição da República Portuguesa.
9. Logo, a competência para conhecer do pedido compete ao Tribunal cível, não às conservatórias.
10. Mesmo que assim não se entenda, por mera hipótese, entende boa parte da jurisprudência que quando há elementos que demonstram existir um verdadeiro litígio entre as partes – como sucede- não se justifica o recurso prévio à conservatória do registo civil para obter o acordo previsto no nº1 do artigo 5º do DL 272/01 de 13/10, podendo a ação ser desde logo intentada no tribunal – conferir, entre outros, o Ac. Da Relação do Porto de 05/05/2011 – Relator Des. Leonel Serôdio, in www.dgsi.pt
11. Refira-se em abono da verdade, não obstante não estar esse facto documentado nos autos, que previamente à instauração da presente ação no Tribunal da Comarca, a ora signatária submeteu o pedido aqui formulado à douta apreciação da Senhora Conservadora do Registo Civil, de modo a aquilatar da sua eventual jurisdição para a matéria em causa.
12. A qual refutou competencia para apreciar o pedido de alimentos formulado, atenta a especificidade clínica do requerente, não se enquadrando na previsão normativa do artigo 1880º do Código Civil e por conseguinte do artigo 5º nº1 al. a) do DL 272/2001 de 13 de Outubro.
13. Pelo que, não restou alternativa ao ora recorrente, senão intentar a presente ação na instância local da Comarca de Portalegre, ainda que sob risco de indeferimento liminar que sobreveio.
14. Pese embora as divergencias na exegese das normas, facto é que a subsistência e a dignidade do requerente como filho e, cidadão doente mental, não se coadunam com mais delongas, urgindo materializar, na "prática", o direito que a "teoria" lhe consagra.
15. O douto despacho recorrido violou, assim, por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 1880º, 1905º, 1906º, 2003º e 2009º nº1 c), todos do Código Civil, e a contrario, o artigo 5º do DL 272/01 de 13/10.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso merecer provimento e, por via dele, revogar-se o douto despacho recorrido, substituindo-se por outro que declare competente o Tribunal da Comarca de Portalegre, mormente, a sua instância local, secção cível, para conhecer da presente ação de alimentos a filho maior com fundamento nos artigos 1905º e 2003º do Código Civil, por via da ação especial prevista no artigo 989º do atual Código de Processo Civil, adaptada nos termos do disposto no artigo 6º nº2 do mesmo diploma, assim se fazendo a habitual Justiça».

4. Dispensados os vistos, cumpre decidir.
*****
II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, no caso em apreço, a única questão que importa decidir é a de saber se o tribunal é ou não competente para a presente acção.
*****
III – Fundamentos
III.1. – De facto
A tramitação processual relevante para a decisão do presente recurso é a que se referiu no relatório.
*****
III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Enquadramento jurídico
III.2.1.1. – Direito a alimentos
O requerente pretende fazer valer por via da presente acção o direito a obter do seu pai uma prestação mensal a título de alimentos.
Conforme é sabido, a noção de «alimentos» é-nos dada, para o que ora importa, pelo artigo 2003.º, n.º 1, do Código Civil[5], de acordo com cuja previsão «por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário», sendo a sua medida determinada nos termos do disposto no artigo 2004.º do CC, ou seja, «os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los», atendendo-se ainda na respectiva fixação «à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência».
Tentando concretizar a noção legal de alimentos à luz de uma existência digna, a doutrina e a jurisprudência têm ainda densificado o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 2004.º, através do binómio necessidade do alimentando/possibilidade do obrigado, e da avaliação da possibilidade de aquele prover à sua subsistência.
De acordo com o disposto nos artigos 2009.º, n.ºs 1 e 2, e 2010.º do Código Civil, a vinculação à obrigação de prestar alimentos encontra-se legalmente deferida pela ordem ali indicada nas sucessivas alíneas, encontrando-se em igualdade de posições nessa obrigação os ascendentes [alínea c)], salvo se algum dos onerados não puder satisfazer a parte que lhe cabe, caso em que o encargo recai sobre os demais obrigados.
Diz-nos ainda o artigo 1879.º do CC, a respeito das Despesas com o sustento, segurança, saúde e educação dos filhos, que os pais ficam desobrigados de prover ao sustento dos filhos e de assumir as referidas despesas, na medida em que os filhos estejam em condições de suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, aqueles encargos. Assim, a contrario, se os filhos não estiverem nestas condições, a obrigação dos pais proverem às sobreditas despesas mantém-se.
Por seu turno, o artigo 1880.º do CC, sob a epígrafe Despesas com os filhos maiores ou emancipados, estabelece que “se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o número anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.”
Considerámos necessário efectuar previamente este enquadramento jurídico porquanto, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do CPC, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, incumbindo-lhes ainda formular ao tribunal competente a pretensão cuja tutela pretendem ver assegurada por via da acção que introduzem (artigo 3.º, n.º 1, do CPC).
Postas estas considerações gerais, cabe agora olhar a questão suscitada no presente recurso, à luz do sobredito.
*****
III.2.1.2. – Competência em razão da matéria
Conforme é entendimento pacífico, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo autor na petição inicial, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir e confrontando-a com o pedido formulado pelo demandante[6].
É ainda igualmente pacífico que os tribunais judiciais têm a sua competência regulada desde logo na Constituição da República Portuguesa, cujos artigos 202.º, n.º 1; 209.º; 210.º, e 211.º a 214.º, regem sobre a respectiva categoria e instâncias, podendo estas ser especializadas por matérias, encontrando-se a concretização da previsão genérica da lei fundamental actualmente consagrada na Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto[7], e, no que tange à concreta jurisdição de família e menores, também pelo Código de Processo Civil actualmente vigente, que - à semelhança do que já sucedia anteriormente -, nos artigos 64.º a 95.º faz a concretização da repartição da competência pelos tribunais judiciais, em razão da matéria, do valor, da hierarquia e do território, atribuindo às leis de organização judiciária a determinação das causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada – cfr. artigo 65.º do CPC.
Assim, no que respeita à competência em razão da matéria, os tribunais podem ser de competência especializada, mista e genérica, desdobrando-se em instâncias centrais e locais, sendo que, em face do disposto no artigo 80.º da LOSJ, em regra, se uma determinada causa não couber na competência de uma instância central de competência especializada ou mista, caberá na competência residual da instância local de competência genérica[8].
Cabe, pois, primeiramente atentar no que nos diz a actual LOSJ sobre a competência das instâncias centrais de família e menores, verificando-se, desde logo que a respectiva competência se concentra nas questões respeitantes: i) ao estado civil das pessoas e família (122.º), ii) a menores e filhos maiores (123.º); iii) e à matéria tutelar educativa e protecção (124.º).
Estando em causa um pedido de alimentos de um filho ao seu pai, atento o preceituado no artigo 123.º, n.º 1, alínea e), da LOSJ, a competência daquelas instâncias centrais abrange apenas a fixação dos alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil, e a preparação e julgamento das execuções por alimentos, ressalvando o n.º 3 os casos em que a lei reserve a competência referida nos números anteriores a outras entidades, situação em que a competência das secções de família e menores respeita à reapreciação das decisões dessas entidades.
Conforme decorre do próprio elemento literal do preceito em análise, a competência só se mostra deferida às instâncias de competência especializada quando está em causa a obrigação prevista no artigo 1880.º do CC, pelo que, as acções em que se pretenda a fixação de alimentos a filho maior que ali não sejam enquadradas, serão da competência da secção cível da instância central ou da secção de competência genérica da instância local, em função do valor do processo, nos termos previstos nos artigos 117.º, n.º 1, alínea a), e 130.º, n.º 1, alínea a) da LOSJ.
Acresce ainda na situação vertente que a LOSJ veio a ser regulamentada pelo DL n.º 49/2014, de 27 de Março, que estabeleceu o Regime Aplicável à Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, ressaltando quanto ao Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre o desdobramento constante do artigo 92.º, do qual resulta que nesta Comarca não foi criada a especialização na área de Família e Menores, pelo que, mesmo a competência para a tramitação das acções referidas no artigo 123.º da LOSJ, cabe à instância central cível prevista na alínea a) ou à instância local, secção de competência genérica, desdobrada em matéria cível e criminal, com sede em Portalegre, prevista na alínea d), consoante o valor da causa, aplicando-se evidentemente também neste caso, a ressalva a que alude o citado n.º 3 do artigo 123.º da LOSJ.
Ora, volvendo ao caso dos autos, a Senhora Juíza considerou que o mesmo se integrava precisamente nesta ressalva, pese embora não o tenha referido, já que entendeu que a competência se encontrava ab initio deferida à Conservatória do Registo Civil porque o pedido se enquadrava no preceituado no artigo 1880.º do CC.
Porém, no caso vertente, não podemos concordar com tal entendimento.
Encurtando razões, conforme se afirmou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-04-2008[9] «O Decreto-lei nº 272/2001, de 13 de Outubro, (…) procedeu à transferência de competência para as Conservatórias do Registo Civil de um conjunto de matérias respeitantes a processos de jurisdição voluntária relativos a relações familiares, até aí atribuídas aos tribunais judiciais.
Um procedimento administrativo, a decorrer nas conservatórias de registo civil, seguramente mais célere, simples e vantajoso para as partes.
Conforme resulta do respectivo preâmbulo, teve o legislador por objectivo “desonerar os tribunais de processos que não consubstanciem verdadeiros litígios, permitindo uma concentração de esforços naqueles que correspondem efectivamente a uma reserva de intervenção judicial”, mas também na estrita medida em que se verifique ser a vontade das partes conciliável salvaguardando-se o acesso à via judicial com a remessa dos processos para efeitos de decisão final sempre que se constate existir oposição de qualquer interessado.
Esse deferimento de competência material não se concretizou, todavia, de modo uniforme, pois que se surge exclusiva nos casos enunciados no art. 12º, nº 1 do mencionado diploma (reconciliação dos cônjuges separados, separação e divórcio por mútuo consentimento, e declaração de dispensa de prazo internupcial), é concorrente com a dos tribunais judiciais nas matérias e circunstâncias descritas nos nºs 1 e 2 do seu art. 5º, porque só pode ser exercida na ausência de cumulação com outras pretensões ou de dependência de outras acções processuais.
Tal concorrência ocorre quando estejam em causa: alimentos devidos a filhos maiores e emancipados, atribuição da casa de morada de família, privação do direito ao uso dos apelidos do outro cônjuge, autorização do uso dos apelidos do ex-cônjuge, e conversão de separação judicial de pessoas e bens em divórcio.
No que ao caso interessa, estabelece o art. 5º, nº 1, al. a) do citado diploma que “O procedimento regulado na presente secção aplica-se aos pedidos de alimentos a filhos maiores ou emancipados”[ Ac. STJ de 31-05-2011, proferido no processo n.º 2563/09.6TMPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Estabelece o art. 1880º do citado Código:
“Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete”.
O que está na base do normativo do art. 1880º do Código Civil é a incapacidade económica do filho maior para prover ao seu sustento e educação, quando as circunstâncias impõem aos pais, não obstante a maioridade do filho, a obrigação de, em nome do bem-estar e do futuro deste, continuar a suportar tais despesas. (…)
A obrigação excepcional prevista neste normativo tem um carácter temporário, balizado pelo “tempo necessário” a completar da formação profissional do filho, e obedece a um critério de razoabilidade – é necessário que, nas concretas circunstâncias do caso, seja justo e sensato, exigir dos pais a continuação da contribuição a favor do filho agora de maioridade.(…)
Por isso, a lei impõe o dever de contribuição “pelo tempo normalmente requerido para que a formação se complete”».
Ora, conforme observa o Conselheiro Rodrigues Bastos[10] em comentário ao referido artigo 1880.º do Código Civil, “…Não se trata de um caso de direito a alimentos, mas de uma extensão da obrigação dos pais para além da menoridade dos filhos, de modo a que a estes seja, na prática, possível alcançar o termo da sua formação profissional. O auxílio assumirá a forma que melhor permita alcançar esse desígnio”.
De facto, como dito, «a competência em razão da matéria dos tribunais e agora das suas secções para a preparação e julgamento de uma ação deve ser aferida em concreto, tendo em atenção o respetivo regime legal (i) e a natureza da relação substancial em causa, a partir dos seus sujeitos, causa de pedir e pedido (ii)»[11].
No caso em apreço, como desde logo resulta do ponto 1. do relatório, o Recorrente não alicerça a respectiva pretensão nesta obrigação de cariz temporário prevista no artigo 1880.º do CC, mas sim na obrigação de alimentos prevista no artigo 2003.º e seguintes do Código Civil, posto que assenta o respectivo pedido na alegação de uma necessidade de sustento decorrente de doença do foro psiquiátrico (esquizofrenia), que lhe aporta incapacidade permanente global de 70% de acordo com a TNI, impedindo-o de trabalhar ou estudar.
Efectivamente, importa neste tipo de situações proceder à distinção entre o que é a extensão da obrigação de alimentos existente relativamente ao filho menor e que apenas se prolonga na maioridade até completar o respectivo processo educativo - visando, no fundo permitir que o filho alcance a sua autonomia económica por via da formação profissional -, à qual se reporta o artigo 1880.º do CC, e aqueloutra que é a obrigação geral de alimentos cuja consagração legal se mostra plasmada na alínea c) do n.º 1 do artigo 2009.º do CC, e que os ascendentes devem aos descendentes mesmo após a respectiva maioridade, obrigação esta que não se encontra sujeita ao condicionalismo circunstancial e temporal previsto naquele indicado preceito, regendo para os casos em que o filho carece de alimentos não para a sua formação académica ou profissional mas antes para a sua própria subsistência e que pode eventualmente manter-se durante toda a vida do obrigado e daquele que tem a necessidade de ser sustentado.
Na verdade, esta distinção não é inócua, relevando, desde logo, em termos processuais, e na determinação da competência material, já que, enquanto o meio processual de concretização do direito a alimentos do filho maior a que alude o artigo 1880º do CC é o recurso à Conservatória do Registo Civil ou ao processo de jurisdição voluntária previsto no artigo 989.º do CPC, caso não exista ou não seja viável a obtenção de acordo; nos demais casos em que, como no presente, esteja em causa peticionar alimentos devidos por ascendente a filho maior, sem aquele escopo educativo e sem limitação temporal, seguir-se-á a forma processual comum actualmente regulada nos artigos 552.º e seguintes do CPC.
Ora, no caso vertente, como vimos, não estamos em presença de uma acção de alimentos a filho maior com fundamento no artigo 1880.º do CC, posto que, de acordo com a factualidade que alegou na petição inicial, o autor não visa obter uma prestação de alimentos com vista a completar a sua formação, visando antes obter alimentos do seu progenitor por não se encontrar a trabalhar nem a estudar por força da doença de que padece e que o impede de conseguir prover ao próprio sustento, fundando juridicamente tal pretensão nos artigos 1905.º e 2003.º da referida codificação.
Consequentemente, o seu pedido não se reconduz a uma obrigação balizada no tempo, antes se reportando a uma necessidade de carácter permanente mercê da invocada doença, para cuja apreciação são competentes ab initio os tribunais judiciais, já que não nos movemos no âmbito dos “processos de jurisdição voluntária concernentes a relações familiares”, relativamente aos quais se verificou a “transferência de poderes para as conservatórias”, quando a vontade das partes for conciliável (cfr. preâmbulo da referida lei n.º 272/2001).
Nestes termos, não restam dúvidas que o tribunal recorrido é competente para conhecer da acção em apreço, impondo-se a revogação do despacho de indeferimento liminar e o subsequente processamento dos autos.
Pelo exposto, procede o presente recurso.
*****
III.2.3. - Síntese conclusiva:
I - A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo autor na petição inicial, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir e confrontando-a com o pedido formulado pelo demandante.
II - No que respeita à competência em razão da matéria, os tribunais podem ser de competência especializada, mista e genérica, desdobrando-se em instâncias centrais e locais, sendo que, em face do disposto no artigo 80.º da LOSJ, em regra, se uma determinada causa não couber na competência de uma instância central de competência especializada ou mista, caberá na competência residual da instância local de competência genérica.
III - Atento o preceituado no artigo 123.º, n.º 1, alínea e), da LOSJ, a competência só se mostra deferida às instâncias de competência especializada quando está em causa a obrigação prevista no artigo 1880.º do CC, pelo que, as acções em que se pretenda a fixação de alimentos a filho maior que ali não sejam enquadradas, serão da competência da secção cível da instância central ou da secção de competência genérica da instância local, em função do valor do processo, nos termos previstos nos artigos 117.º, n.º 1, alínea a), e 130.º, n.º 1, alínea a) da LOSJ.
IV - No caso vertente, não estamos em presença de uma acção de alimentos a filho maior com fundamento no artigo 1880.º do CC, posto que, de acordo com a factualidade que alegou na petição inicial, o autor não visa obter uma prestação de alimentos com vista a completar a sua formação, visando antes obter alimentos do seu progenitor por não se encontrar a trabalhar nem a estudar por força da doença de que padece e que o impede de conseguir prover ao próprio sustento, fundando juridicamente tal pretensão nos artigos 1905.º e 2003.º da referida codificação.
V - Consequentemente, o seu pedido não se reconduz a uma obrigação balizada no tempo, antes se reportando a uma necessidade de carácter permanente mercê da invocada doença, para cuja apreciação são competentes ab initio os tribunais judiciais, já que não nos movemos no âmbito dos “processos de jurisdição voluntária concernentes a relações familiares”, relativamente aos quais se verificou a “transferência de poderes para as conservatórias”, quando a vontade das partes for conciliável.
*****
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar procedente o recurso, revogando o despacho de indeferimento liminar, e determinando o prosseguimento dos autos, como for de direito.
Custas do recurso pela parte vencida a final.
*****

Évora, 3 de Novembro de 2016

Albertina Pedroso [12]

Francisco Xavier

Maria João Sousa e Faro

__________________________________________________
[1] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Francisco Xavier;
2.º Adjunto: Maria João Sousa e Faro.
[2] Doravante abreviadamente designado CC.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Proferido no processo n.º 1896/2005-6, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Doravante abreviadamente designado CC.
[6] Cfr. Ac. STJ de 18-06-2015, proferido no processo n.º 13857/14.9T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Doravante abreviadamente designada LOSJ.
[8] Cfr. neste sentido, J.F. Salazar Casanova, in Lei de Organização do Sistema Judiciário, Revista da Ordem dos Advogados, ano 73, II/III – Lisboa, Abr-Set. 2013, pág. 468.
[9] Proferido no processo n.º 08A493, e disponível em www.dgsi.pt.
[10] Citado no indicado Acórdão, in “Notas ao Código Civil”, edição de 2002.
[11] Cfr. Acórdão do TRP de 5-2-2015, processo n.º 13857/14.9T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, que exaustivamente efectua o enquadramento da questão, com recurso a elementos sistemáticos e históricos.
[12] Texto elaborado e revisto pela Relatora.