Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
712/13.9TBMMN-M.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 01/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Por força do estatuído no art. 422º do Cód. Civil, o direito de preferência constituído pelo Administrador de Insolvência a favor do cessionário não dispõe de eficácia real e, por esse motivo, nunca tal direito poderá ser exercido e vir a ser atendido na venda judicial em processo de insolvência.
2 - Assim, é nula a cláusula que publicite a transmissão do aludido estabelecimento de farmácia, por negociação particular, na qual é afirmado que “o actual cessionário terá opção de exercer um direito de preferência nessa transmissão”.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 712/13.9TBMMN-M.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

Da análise dos autos constata-se que, em 2/12/2015, entre o Administrador de Insolvência, em representação da “Massa Insolvente de Farmácia (…) de Vendas Novas, Lda.”, e (…) Numérica, Lda., foi celebrado, por documento particular, contrato de cessão de exploração que teve por objecto a Farmácia (…) de Vendas Novas.
A cessão de exploração da referida farmácia foi outorgada por 1 ano, com início em 01/01/2016, sendo que no aludido contrato a Massa Insolvente obrigou-se a dar preferência à (…) Numérica, em caso de venda ou qualquer outra forma de alienação da dita farmácia a terceiros.
Em 8 e 9 de Março de 2017, foram publicados nos jornais Correio da Manhã e Público, os anúncios para transmissão de estabelecimento de farmácia, por negociação particular, dos quais constam, no que ora nos interessa, o seguinte:
"OUTRAS CONDIÇÕES:
Caso venha a ser decidida nos autos a transmissão definitiva e onerosa do Estabelecimento de Farmácia, o actual cessionário terá opção de exercer um direito de preferência nessa transmissão, sem prejuízo de eventuais direitos legais de preferência existentes ou de outros direitos contratuais de preferência anteriores".
O Administrador de Insolvência deu conhecimento nos autos de que tinham sido apresentadas propostas e, de tal informação consta em anexo, para além do mais, a proposta apresentada por (…), Lda., sendo que esta sociedade foi a que apresentou a proposta mais elevada para a aquisição do estabelecimento de farmácia “Farmácia (…) de Vendas Novas”.
O Administrador de Insolvência, após a recepção desta proposta mais elevada para a aquisição da dita farmácia apresentada por (…), Lda., notificou então o actual cessionário para, em 30 dias, exercer o direito de preferência que lhe havia sido conferido por via contratual, direito de preferência que este exerceu, e que foi comunicado à proponente acima identificada.
Em 31/5/2017 a sociedade (…), Lda. apresentou requerimento nos autos, no qual sustenta que a proposta por si apresentada para aquisição da dita farmácia é a única que deve prevalecer, uma vez que, por força do art. 819º do C.P.C., aplicável ex vi do art. 165º do CIRE, o direito de preferência tinha de ser exercido em sede de diligência de abertura de propostas em carta fechada, o que, de todo, não sucedeu no caso em apreço. Além disso, o Administrador de Insolvência não tinha poderes para constituir direitos de preferência na cessão da exploração da referida farmácia, sob pena de colocar, no caso, o cessionário numa posição privilegiada quanto aos eventuais demais interessados e, mesmo que assim não se venha a entender, sempre o direito convencional de preferência não pode proceder relativamente à alienação efectuada em insolvência, atento o estipulado no art. 422º do Cód. Civil.
Por decisão proferida pela M.ma Juiz “a quo” foi indeferido o requerimento em causa apresentado pela sociedade (…), Lda.

Inconformada com tal decisão dela apelou a referida sociedade, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1. Os poderes e competências do Administrador Judicial em processo de insolvência definidos no artigo 550º do CIRE são de natureza temporária, provisória e respeitam apenas à administração dos bens apreendidos em processo de insolvência.
2. A celebração pelo Administrador Judicial – em representação da massa insolvente – de um contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial de farmácia apreendido insere-se dentro das funções e atribuições do Administrador Judicial.
3. Nesse contrato de cessão de exploração da farmácia não pode ser criado pelo Administrador Judicial um direito de preferência a favor do cessionário na futura venda desse bem que explora.
4. Os direitos de preferência (convencionais ou legais) para serem considerados na venda judicial a ocorrer em processo de insolvência têm de estar consolidados na esfera jurídica do seu titular antes da declaração de insolvência.
5. Considerando que o contrato de cessão e exploração celebrado pelo Administrador Judicial e pelo cessionário tendente à exploração do estabelecimento comercial de farmácia – Farmácia de Vendas Novas – à luz do art. 1051°, c), do C.C. caduca com o termo dos poderes da administração com base na qual foi celebrado, significa que no caso em apreço caduca com a venda da farmácia no procedimento desencadeado pelo Administrador Judicial e nessa medido o nele convencionado não é oponível ao procedimento de venda e às propostas nele apresentadas.
6. Ao caducar o contrato significa que nenhum aspecto deste pode perdurar, designadamente o direito de preferência constituído.
7. Não existe qualquer norma legal que habilite o Administrador Judicial a constituir um direito convencional de preferência decorrente da celebração de negócio jurídico durante a pendência da liquidação, mesmo que tenha existido publicitação desse mesmo negócio e o assentimento da comissão de credores.
8. O facto do douto despacho recorrido ter entendido de forma diversa e ao ter concluído ser possível ao Administrador Judicial constituir direito de preferência a favor do cessionário violou a lei, designadamente o art. 55° do CIRE, fazendo uma interpretação dos artigos 161°, 163°, 164° e 165° do CIRE que a letra desses preceitos não autoriza, pelo que tendo sido constituído o direito de preferência à revelia de norma legal habilitante o mesmo é nulo, nulidade que ora se invoca.
9. No caso dos autos o Administrador Judicial escolheu para transmissão do estabelecimento comercial de farmácia – Farmácia de Vendas Novas – a modalidade por negociação particular prevista no processo executivo, sendo certo que o exercício do direito de preferência em processo executivo tem de ser efectuado nos termos do art. 819° do C.P.C.
10. No caso concreto o direito de preferência não foi exercido nos moldes previstos no art. 819° do CPC. e o douto despacho recorrido reconhecendo que tal podia acontecer violou o art. 165° do CIRE e o art. 819° do CPC.
11. Sem prejuízo de tudo o que atrás se disse, o art. 422° do C. C. revela expressamente que o direito de preferência de cariz convencional se não gozar de eficácia real não pode proceder relativamente à alienação efectuada de um bem em processo de insolvência.
12. No caso concreto o direito convencional de preferência estabelecido a favor do cessionário em contrato de cessão de exploração da farmácia outorgado pelo Administrador Judicial não dispõe de eficácia real, pelo que não pode ser invocado para proceder na venda efectuada do estabelecimento comercial de farmácia contra qualquer outra proposta apresentada, no caso a da Apelante.
13. O tribunal ao não atender ao supra citado regime violou o art. 422º do C. C. e o art. 819º do C.P.C. na parte em que se refere: "o titular do direito de preferência legal ou convencional com eficácia real".
14. Em face do exposto, devem V. Exas. dar provimento ao recurso ora interposto, revogando o douto despacho recorrido, determinando que não existe qualquer direito de preferência a favor do cessionário e ordenando que o estabelecimento comercial de farmácia seja vendido à proposta apresentada com valor mais elevado, no caso da Apelante. Assim se fará Justiça.
Pela Massa Insolvente de Farmácia (…) de Vendas Novas, Lda. e pelo Ministério Público foram apresentadas contra-alegações de recurso, nas quais pugnam pela manutenção da decisão recorrida.
Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável à recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela sociedade (…), Lda., aqui apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se o Administrador de Insolvência não tinha poderes para constituir um direito de preferência a favor do cessionário no contrato de cessão da exploração do estabelecimento de farmácia “Farmácia (…) de Vendas Novas” com este celebrado.
2º) Saber se, por força do art. 819º do C.P.C., aplicável ex vi do art. 165º do CIRE, sempre o direito de preferência tinha de ser exercido, de imediato, em sede de diligência de abertura de propostas em carta fechada, o que, de todo, não sucedeu no caso dos autos.
3º) Finalmente saber se, face ao estatuído no art. 422º do Cód. Civil, o direito convencional de preferência constituído pelo Administrador de Insolvência, sem eficácia real, não pode proceder relativamente à alienação efectuada em insolvência.
Importa apreciar, desde já, esta última questão, uma vez que, no caso de eventual procedência da mesma, sempre fica prejudicado o conhecimento das restantes questões supra elencadas.
Ora, a este propósito sempre se dirá que o direito de preferência que está aqui em causa resulta de um contrato de cessão de exploração de natureza privada, tendo sido criado por convenção das partes, podendo, por isso, ser qualificado como um direito de preferência de cariz convencional. Acresce que tal direito de preferência a favor do cessionário não dispõe de eficácia real e, nessa medida, não pode ser atendido na venda judicial a que haja lugar em processo de insolvência.
Com efeito, a este respeito, importa ter bem presente o estatuído no art. 422º do Cód. Civil, preceito legal que, desde já, passamos a transcrever:
- O direito convencional de preferência não prevalece contra o direito legal de preferência; e, se não gozar de eficácia real, também não procede relativamente à alienação efectuada em execução, falência, insolvência ou casos análogos.
Daqui se constata que o referido preceito legal não pressupõe apenas a existência de um concurso de direitos, concretizando também, de uma forma assaz cristalina, que o direito convencional de preferência não pode ser atendido na transmissão futura de bens da insolvência se não for dotado de eficácia real o que, “in casu”, como vimos, não ocorre, de todo!
Por isso, afirmam Pires de Lima e Antunes Varela que se o direito de preferência não goza de eficácia real, o seu titular não é chamado a exercê-lo nos processos de execução, falência, insolvência, etc., nem pode, obviamente, fazê-lo valer contra a alienação aí efectuada – cfr. Cód. Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 399.
E, mais adiante – a propósito da notificação dos preferentes na venda mediante propostas em carta fechada – concluem os referidos Mestres que o preceituado no art.º 892º do Código de Processo Civil (correspondente ao actual art.º 819º do CPC) só tem aplicação, por conseguinte, às preferências legais e aos direitos convencionais de preferência com eficácia real.
Ora, no caso dos autos, forçoso é concluir que, por força do estatuído no citado art.422º do Cód. Civil, o direito de preferência constituído pelo Administrador de Insolvência a favor do cessionário não dispõe de eficácia real e, por esse motivo, nunca tal direito poderá ser exercido e vir a ser atendido na venda judicial em processo de insolvência.
Por isso, quanto a nós, resulta claro que o Administrador de Insolvência, não podia publicitar, nos jornais, os anúncios para transmissão do estabelecimento de farmácia, “Farmácia (…) de Vendas Novas”, por negociação particular, com uma cláusula geral do seguinte teor:
"OUTRAS CONDIÇÕES:
- Caso venha a ser decidida nos autos a transmissão definitiva e onerosa do Estabelecimento de Farmácia, o actual cessionário terá opção de exercer um direito de preferência nessa transmissão, sem prejuízo de eventuais direitos legais de preferência existentes ou de outros direitos contratuais de preferência anteriores".
Na verdade, a referida cláusula viola manifestamente o estipulado no citado art. 422º do Cod. Civil e, por via disso, tal cláusula é nula, o que aqui se declara para os devidos e legais efeitos.
Ora, uma vez que a publicitação da venda do bem em questão, pertencente à massa insolvente, foi feita pelo Administrador de Insolvência, contendo uma cláusula nula, resulta evidente que tal publicitação, nos precisos termos em que foi efectuada, é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, uma vez que, nomeadamente, o cessionário não tem a opção de, posteriormente, vir a exercer o seu direito de preferência na alienação do referido bem.
Assim sendo, atentas as razões e fundamentos aqui explanados, forçoso é concluir que terá de ser anulada a decisão recorrida e todo o processado do incidente de liquidação da massa insolvente, desde a publicitação dos anúncios para venda do estabelecimento de farmácia “Farmácia (…) de Vendas Novas”, ocorrida em 8 e 9 de Março de 2017 nos jornais Correio da Manhã e Público – o que aqui se determina (cfr. arts.195º, nºs 1 e 2 e 196º, “in fine”, do C.P.C.) – devendo ser totalmente eliminada dos novos anúncios, a publicar, para transmissão do aludido estabelecimento de farmácia, por negociação particular, a cláusula geral a que, já acima, se fez referência, a qual se mostra transcrita supra em itálico (cfr. fls. 8, parte final, e 9), prosseguindo depois o referido incidente de liquidação os seus ulteriores termos.
Atenta a anulação supra ordenada fica desde já prejudicado o conhecimento das restantes (duas) questões levantadas pela recorrente.

***

Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
- Por força do estatuído no art. 422º do Cód. Civil, o direito de preferência constituído pelo Administrador de Insolvência a favor do cessionário não dispõe de eficácia real e, por esse motivo, nunca tal direito poderá ser exercido e vir a ser atendido na venda judicial em processo de insolvência.
- Assim sendo, é nula a cláusula que publicite a transmissão do aludido estabelecimento de farmácia, por negociação particular, na qual é afirmado que “o actual cessionário terá opção de exercer um direito de preferência nessa transmissão”.

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, anula-se a decisão recorrida e todo o processado do incidente de liquidação da massa insolvente, desde a publicitação dos anúncios para venda do estabelecimento de farmácia “Farmácia (…) de Vendas Novas”, ocorrida em 8 e 9 de Março de 2017 nos jornais Correio da Manhã e Público, nos exactos e precisos termos acima explanados.
Custas a cargo da massa insolvente (cfr. arts. 303º e 304º do CIRE).
Évora, 11 de Janeiro de 2018
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).