Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
32/20.2GACUB.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A utilização de um cinto enrolado na mão para desferir um soco na cabeça da vítima não é utilização de um meio particularmente perigoso para efeitos da al. h) do nº 2 do artº 132º do Cód. Penal, aplicável por força do artº 145º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

O arguido AA, entre outros, foi submetido a julgamento, no âmbito do qual foi proferida sentença que o absolveu da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º n.º 2, alíneas h), i) e l), ambos do Código Penal, tendo sido condenado pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o total de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), a que correspondem, subsidiariamente, 100 (cem) dias de prisão.

Inconformado com a absolvição do referido crime na forma qualificada, o Ministério Público recorreu, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

1. Na sentença recorrida o tribunal a quo absolveu o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º n.º 2, alíneas h), i) e l), ambos do Código Penal (na pessoa do ofendido BB).

2. Porém, o Ministério Público não se conforma com tal decisão nem com a matéria de facto dada como não provada na sentença recorrida, devendo o arguido AA ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º n.º 2, alínea h), ambos do Código Penal.

3. Com efeito, o tribunal a quo deu, incorretamente, como não provado o seguinte facto: F) Que os arguidos CC e AA sabiam e não podiam ignorar que o cinto utilizado para ofender o corpo do ofendido BB encerrava um potencial de perigosidade muito superior aos meios normalmente utilizados para atentar contra a integridade física e que, pela sua natureza, dimensões e características, aumentava significativamente a potencialidade das lesões que pretendia infligir na vítima, e limitava exponencialmente as suas capacidades de defesa, o que conseguiram. (ponto F. dos factos não provados).

4. Com efeito, os factos dados como provados nos presentes autos, analisados à luz das regras da experiência, impunham ao tribunal a quo que desse como provado que o arguido AA sabia e não podia ignorar que o cinto utilizado para ofender o corpo do ofendido BB, nas concretas circunstâncias em que foi usado, encerrava um potencial de perigosidade muito superior aos meios normalmente utilizados para atentar contra a integridade física e que aumentava significativamente a potencialidade das lesões que pretendia infligir na vítima, e limitava exponencialmente as suas capacidades de defesa.

5. Porquanto, analisando o concreto circunstancialismo em que o arguido AA atuou, à luz das regras da experiência comum e o conhecimento científico, as mesmas impunham ao tribunal a quo que considerasse como provado que o uso do cinto pelo arguido AA para atentar contra a integridade física do ofendido consubstancia um meio particularmente perigoso e o que o arguido sabia e não podia ignorar tal circunstância.

6. O Tribunal a quo alterou a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido AA, condenando-o por um crime de ofensas à integridade física simples na pena de pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, e afastando a qualificativa da utilização de um meio particularmente perigoso previsto e punido pelo(s) artigo(s) 145º, nº 1 a) e nº 2 e 132º, nº 2 alínea h) do Código Penal.

7. Contudo, a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo (nos pontos 9 a 12) integra o crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma consumada, e não o crime de ofensas à integridade física simples por que o arguido AA veio a ser condenado na sentença recorrida.

8. Resultou demonstrado que o arguido AA praticou esses factos, dados como provados, mediante a utilização de um cinto, visando e atingindo a cabeça do ofendido, por uma vez pelo menos, provocando-lhe uma ferida na região frontal, que lhe determinou cinco dias para cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.

9. Mais resultou demonstrado que o arguido AA atuou juntamente com CC (e ainda DD, menor de 15 anos), os quais em comunhão de esforços e vontades, desferiram socos e pontapés no corpo de BB e a dado momento, no decorrer dessas agressões, o arguido AA empunhou um cinto, enrolando-o na mão, deixando a fivela de metal de fora e de seguida desferiu pelo menos um soco, com o cinto, na cabeça do ofendido.

10. Contrariamente ao entendimento veiculado pela decisão recorrida, consideramos que no caso concreto a utilização de um cinto dotado de fivela metálica, no âmbito de uma agressão física perpetrada por vários agentes, é suscetível de se subsumir ao conceito de “meio particularmente perigoso” e, por essa via, de qualificar a conduta do agente, por ser especialmente censurável.

11. Face à conduta típica prosseguida pelo agente, o meio empregue (uso de um cinto com fivela metálica) não era o “normal” para conseguir concretizar tal finalidade sendo, sendo ao invés um meio que acarreta dificuldades acrescidas para a defesa da vítima e que, além disso, constitui perigo para outros bens jurídicos pessoais, por ser suscetível de provocar lesões graves no corpo da vitima.

12. No caso concreto, o uso de um cinto com fivela de metal não é apenas o meio adequado para provocar uma ofensa no corpo e saúde do ofendido, mas sim um meio desproporcionado a atingir tal objetivo tendo inerente a si próprio, pela sua configuração e composição (metálica), uma danosidade superior a um mero objecto com o qual se agride outra pessoa (por exemplo, um pau, uma pedra, etc.) ou da mera utilização das mãos ou pés.

13. Acresce que resultou demonstrado e provado que o arguido AA enrolou na mão o cinto, deixando de fora e solta a fivela de metal, de forma a amplificar a força do ataque e a causar mais danos e ferimentos ao ofendido atingido pelo soco.

14. Deste modo, o arguido conseguiu dar uma utilização ao cinto como se de uma verdadeira soqueira se tratasse, com vista a infligir maiores lesões no ofendido e retirar-lhe qualquer capacidade de defesa, o que se verificou no presente caso.

15. A atuação do arguidoAA, concertada com a atuação do arguido CC (e ainda da atuação do menor DD) diminuiu consideravelmente qualquer possibilidade razoável de defesa ao ofendido BB, o qual foi alvo de vários socos e pontapés, infligidos pelos arguidos, e a dado momento, sofreu um soco com a utilização do cinto, infligido pelo arguido AA, que o atingiu na cabeça, deixando a vitima numa situação de quase completa impossibilidade de se defender.

16. O objeto utilizado pelo arguido AA, concretamente o cinto com fivela de metal (que, pela sua configuração, tamanho e forma como foi usado), deixou o ofendido completamente desprotegido e incapaz de se defender sendo um meio particularmente perigoso, face à enorme supremacia que confere e da sua exponencial perigosidade, o que dificulta a defesa da vítima. Porquanto, a utilização de um cinto com fivela de metal, na concreta forma como foi usado, é suscetível de causar, pelo menos, lesões graves no corpo da vitima.

17. Tal factualidade é demonstrativa da especial perversidade e censurabilidade do comportamento do arguido AA, que não se bastando com a atuação com mais dois agentes, utiliza um objeto que pelas suas características, além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, revela uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excecional em relação aos meios ou instrumentos mais comuns de agressão, com aptidão para provocar danos físicos e já de si perigosos ou muito perigosos.

18. Consideramos que se encontra preenchida a qualificativa prevista na alínea h) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, sendo a factualidade dada como provada na sentença recorrida subsumível ao crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo(s) artigo(s) no artigo 145º, nº 1 a) e nº 2 do Código Penal.

19. Em consequência do que se expôs supra, forçoso será concluir que o arguido AA sabia e não podia ignorar que o cinto utilizado para ofender o corpo do ofendido BB encerrava um potencial de perigosidade muito superior aos meios normalmente utilizados para atentar contra a integridade física e que, pela sua natureza, dimensões e características, aumentava significativamente a potencialidade das lesões que pretendia infligir na vítima, e limitava exponencialmente as suas capacidades de defesa, o que conseguiu.

20. Assim, não é admissível a conclusão formulada pelo tribunal a quo de que o arguido AA desconhecia tal facto.

21. Ora, tal juízo contraria as regras de experiência comum e da lógica, já que o homem médio, colocado na real posição do arguido, saberia que a utilização de um cinto, enrolado na mão com fivela de metal solta, para agredir o corpo de outra pessoa, em comunhão de esforços com mais agentes, consubstancia um potencial lesivo da saúde física, em grau muito elevado, em face dos normais instrumentos usados para a agressão.

22. O tribunal a quo violou as regras da lógica e da experiência comum, tendo-se pautado por critérios ilógicos, incompreensíveis e irracionais, ao considerar como não provado o facto de o arguido AA não ter ficado ciente desse facto (ponto F. dos factos não provados).

23. O tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, padecendo, nesta parte, a sentença recorrida de nulidade, atento o vício em causa, tal como está previsto no art.º 410º n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal, ao considerar como não provado o facto de que os arguidos CC e AA sabiam e não podiam ignorar que o cinto utilizado para ofender o corpo do ofendido BB encerrava um potencial de perigosidade muito superior aos meios normalmente utilizados para atentar contra a integridade física e que, pela sua natureza, dimensões e características, aumentava significativamente a potencialidade das lesões que pretendia infligir na vítima, e limitava exponencialmente as suas capacidades de defesa, o que conseguiram. (ponto F. dos factos não provados)

24. Assim, deverá ser considerado como provado o seguinte facto: Que o arguido AA sabia e não podia ignorar que o cinto utilizado para ofender o corpo do ofendido BB encerrava um potencial de perigosidade muito superior aos meios normalmente utilizados para atentar contra a integridade física e que, pela sua natureza, dimensões e características, aumentava significativamente a potencialidade das lesões que pretendia infligir na vítima, e limitava exponencialmente as suas capacidades de defesa, o que conseguiu.

25. Contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, entende o Ministério Público que se encontram verificados todos os pressupostos e elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo(s) artigo(s) no artigo 145º, nº 1 a) e nº 2 do Código Penal, por força do disposto no art.º 132.º n.º 2 al. h) do Código Penal, devendo o arguido AA ser condenado por este crime.

26. Em consequência, atendendo às elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir e às medianas exigências de prevenção especial, consideramos ajustada e adequada a aplicação ao arguido AA de uma pena de prisão de 1 ano, tendo em conta a gravidade, a elevada ilicitude da conduta do arguido, a sua culpa elevada e o dolo direto, a agressão perpetrada com este objeto, a zona do corpo visada e atingida (cabeça) e as lesões causadas.

27. No entanto, consideramos que ainda é possível a formulação de um juízo de prognose favorável ao arguido, no sentido em que a simples ameaça de prisão será suficiente para impedir o arguido de voltar a delinquir, atendendo a que o mesmo não apresenta antecedentes criminais por crimes da mesma natureza.

28. Em consequência, entende o Ministério Público que o arguido deverá ser condenado na pena de prisão de 1 ano, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova.

Nestes termos, deve o presente recurso ser declarado totalmente procedente, devendo a decisão recorrida ser revogada, sendo substituída por outra que determine a condenação do arguido AA nos termos supra expostos.

Vossas Excelências decidirão, porém, como for de JUSTIÇA!

#

O arguido não respondeu ao recurso.

#

Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada resposta.

#

APRECIAÇÃO

Importa apreciar no presente recurso se deve ser alterada a decisão de facto no que diz respeito à matéria da al. F) da matéria considerada como não provada e, em consequência dessa alteração, se deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada.

#

A decisão de facto contida na decisão recorrida é do seguinte teor (na parte que interessa):

“II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

a) Matéria de facto provada:

Da prova produzida, e com interesse para a boa decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:

Da acusação:

1) No dia 1 de Junho de 2020, pelas 20h03, os arguidos EE, AA, CC e DD, menor, com quinze anos de idade à data, após terem ingerido um número não concretamente apurados de bebidas alcoólicas, deslocaram-se ao estabelecimento comercial “Café …”, sito no Largo …., em …, para adquirirem mais bebidas alcoólicas.

2) Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, junto à entrada do estabelecimento, devido às restrições de lotação de estabelecimentos comerciais relacionados com o combate à pandemia COVID-19, o arguido EE foi informado por FF, filho da proprietária do “Café …”, da impossibilidade de os mesmos entrarem, uma vez que o estabelecimento estava, de momento, com a lotação máxima.

3) Acto contínuo, sem que nada o fizesse prever, o arguido EE, com foros de seriedade, dirigiu a FF a expressão: “Ou me deixas entrar, ou parto esta merda toda!”

4) Entretanto, GG deslocou-se para junto do seu filho, FF, e informou o arguido EE, novamente, da impossibilidade de entrar.

5) Seguidamente, o arguido EE e DD, acompanhados de outros indivíduos não identificados, contrariando as indicações dos proprietários do estabelecimento comercial, em conjugação de esforços, desviaram para o lado GG, e assim lograram entrar no café, causando distúrbios junto dos clientes que ali se encontravam.

6) Entretanto, deslocou-se ao local uma patrulha da GNR composta pelos militares HH e II.

7) Aos mesmos juntou-se BB, militar da GNR que se encontrava fora de serviço, mas que reside nas imediações, e se encontrava junto ao local.

8) No momento em que os militares HH e II questionavam o arguido EE sobre o sucedido, DD desferiu um pontapé na direcção de GG, não a tendo conseguido atingir devido à rápida intervenção de BB, que o imobilizou.

9) Acto contínuo, os arguidos CC e AA, em conjugação de esforços, desferiram socos e pontapés no corpo de BB, provocando-lhe dores.

10) Imediatamente a seguir, o arguido AA retirou da sua cintura o cinto que trazia nas calças, enrolou-o numa das mãos, e desferiu um soco na cabeça de BB, provocando-lhe dores e uma ferida com sangramento.

11) Seguidamente, já no exterior do estabelecimento comercial, DD arremessou garrafas de cerveja, em vidro, na direcção dos militares da GNR e da viatura caracterizada ali presente, permitindo que os arguidos se colocassem em fuga.

12) Como consequência directa e necessária da acção dos suspeitos CC e AA, o ofendido BB sofreu dores nas zonas atingidas e, em consequência do soco com o cinto, sofreu uma ferida pouco profunda centimétrica na região frontal, que lhe determinou cinco dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

13) O arguido EE sabia que a entrada no Café … lhe estava legalmente vedada, que FF era filho da proprietária e que a expressão que lhe dirigiu, com prenúncio de prática de um mal futuro contra os bens que compunham o estabelecimento, era adequada a limitar a sua liberdade de determinação pessoal e de o constranger a deixá-lo entrar, a si e aos restantes indivíduos que o acompanhavam, no referido estabelecimento e, mesmo assim, quis agir daquela forma, com essa intenção, querendo aproveitar-se do medo e inquietação que aquela expressão lhe poderia provocar.

14) Os arguidos CC e AA sabiam que as suas condutas eram aptas a atingir a integridade física de BB, provocando-lhe dores, lesões físicas e mal-estar e, não obstante, quiseram actuar daquela forma, em conjugação de esforços quanto ao facto referido em 9), com o propósito de alcançar tal resultado, o que lograram.

15) Todos os arguidos agiram sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

Dos pedidos de indemnização civil:

16) Em consequência da conduta do arguido EE o ofendido FF sentiu medo e inquietação no momento da prática dos factos.

17) No dia 01 de Junho de 2020, após os factos supra descritos, BB deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital de … em …, apresentando as lesões descritas no facto 12).

18) O preço da assistência médica a que foi submetido foi de € 85,91, titulado pela factura n.º … de 02/06/2021.

Mais se provou:

(…)

31) O arguido AA não frequentou a escola e não sabe ler nem escrever.

32) Está desempregado e o seu agregado familiar recebe a quantia de € 700,00 mensais, a título de RSI.

33) Vive com a companheira e 6 filhos com 3, 4, 8, 12, 14 e 16 anos de idade, respectivamente.

34) Residem em casa própria e despende cerca de € 50,00 a € 60,00 mensais com consumos domésticos.

35) Não é proprietário de qualquer veículo automóvel.

36) No âmbito do processo n.º 16/05.0PEBJA, do Tribunal Judicial da Comarca de …, ….º Juízo, foi o arguido condenado por sentença de 13/07/2010, transitada em julgado a 02/09/2010, pela prática no ano de 2005 de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, na concreta pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfaz o total de € 480,00.

37) No âmbito do processo n.º 122/14.0GAVRS, do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Competência Genérica de …, foi o arguido condenado por sentença de 31/01/2017, transitada em julgado a 03/03/2017, pela prática em 02/06/2014 de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, na concreta pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o total de € 300,00.

**

b) Matéria de facto não provada:

Com interesse para a boa decisão da causa ficaram por provar os seguintes factos:

(…)

F) Que os arguidos CC e AA sabiam e não podiam ignorar que o cinto utilizado para ofender o corpo do ofendido BB encerrava um potencial de perigosidade muito superior aos meios normalmente utilizados para atentar contra a integridade física e que, pela sua natureza, dimensões e características, aumentava significativamente a potencialidade das lesões que pretendia infligir na vítima, e limitava exponencialmente as suas capacidades de defesa, o que conseguiram.

(…)

**

c) Motivação da decisão de facto:

O Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto provada segundo o princípio da livre apreciação, nos termos do disposto no art.º 127.º do CPP, i.e., segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, tendo em consideração o conjunto da prova produzida, criticamente analisada e concatenada entre si, nomeadamente:

- Declarações dos arguidos (apenas quanto às suas condições pessoais, uma vez que estes, relativamente aos factos de que vêm acusados, não prestaram declarações, tendo exercido o seu direito ao silêncio).

- Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal de fls. 55 a 57.

- Auto de notícia de fls. 4 a 7 v.

- Diário clínico de fls. 12;

- Fotogramas de fls. 34 a 37;

- auto de apreensão de fls. 38;

- relatório de diligência de fls. 50 a 51 v.;

- resultado de pesquisas de fls. 79 a 84;

- documentos relativos ao telemóvel de fls. 243 a 248;

- factura do Hospital de fls. 254;

- informação clínica de fls. 234 e 235

- CRC juntos aos autos;

- depoimento das 11 testemunhas ouvidas em audiência de julgamento: FF; GG; BB; HH; II; JJ; KK; LL; MM; NN e OO.

*

Assim, e concretizando:

(…)

*

Relativamente à matéria de facto não provada:

(…)

O facto não provado F) resulta, desde logo, da natureza e características do objecto (cinto) que, à luz das regras da experiência comum, não obstante poder encerrar uma perigosidade superior à que resulta do uso do corpo, e poder aumentar a potencialidade das lesões, não permite concluir que encerra um potencial de perigosidade “muito superior” aos meios normalmente utilizados para a prática do crime de ofensas à integridade física e que “aumenta significativamente” a potencialidade das lesões. Além disso, não resultou demonstrado que o uso do cinto, nas condições em que o foi, tenha “limitado exponencialmente” a capacidade de defesa da vítima, tanto mais que o próprio afirmou ter visto o arguido a enrolar o cinto e ter antecipado o soco que lhe seria dirigido. Por conseguinte, não se tendo demonstrado essas circunstâncias, impõe-se a falência dos factos subjectivos a respeito desse uso.”

#

A pretendida alteração da matéria de facto prende-se, de certa forma, com conceitos de direito.

Antes disso, importa referir que não consta na matéria dada como provada, tal como não constava na acusação, que o cinto foi enrolado na mão pelo arguido, ficando a fivela de fora ou a fivela posicionada de modo a que se fosse dado um murro com o cinto, como foi, necessariamente a fivela batia no corpo do agredido.

A testemunha BB (minuto 8.32) efectivamente declarou que o arguido AA enrolou o cinto na mão, “deixando a fivela solta”. E é isso que se coaduna com a ferida provocada na cabeça da referida testemunha, sendo certo que provado está que a mesma “sofreu uma ferida pouco profunda centimétrica na região frontal”.

Significa isto que, pese embora não se tenha especificado o modo de utilização do cinto com referência à fivela do mesmo, uma vez que é esta que aumenta a perigosidade do uso do cinto, temos que forçosamente concluir que a testemunha foi atingida com a fivela.

Por outro lado, não consta nos autos qualquer fotografia do cinto em causa (nem o mesmo foi apreendido), desconhecendo-se em concreto o tamanho e formato da fivela do cinto (partindo do princípio de que o mesmo tinha fivela).

Seja como for, não deixará de se referir o seguinte:

Na sentença recorrida escreveu-se a este propósito:

“No que diz respeito ao meio, não está aqui em causa a utilização de todo e qualquer meio perigoso, mas apenas a utilização de meios particularmente perigosos, ou seja, aqueles que, para além de dificultarem de modo exponencial a defesa da vítima, são susceptíveis de criar perigo para outros bens jurídicos importantes. Por outra palavras, tem de ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para ferir, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente – cfr. Acórdão do STJ, na CJ (STJ), ano VIII (2000), pág. 241.

A este propósito, entendeu a Relação de Coimbra no acórdão de 10/07/2018 no processo 198/17.9PFCBR.C1 disponível em www.dgsi.pt, que “estão, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão”. (sublinhado nosso).

No caso, relativamente ao arguido CC não se tendo provado que o uso do cinto tivesse tido o seu acordo – cfr. facto não provado E), não há dúvidas de que esta circunstância não se mostra preenchida.

Quanto ao arguido AA, o meio utilizado por este (cinto) é, sem dúvida, perigoso pela potencialidade que tem para causar danos à integridade física.

Porém, como se disse, a lei não se basta com a perigosidade do meio, referindo-se, antes a meio particularmente perigoso.

Em tese, poderão conceber-se casos em que o uso de um cinto possa ser considerado um meio particularmente perigoso, num contexto em que seja usado, por exemplo, para sufocar a vítima, criando-lhe perigo para outros bens jurídicos e dificultando exponencialmente a sua capacidade de se defender das ofensas infligidas.

Porém, nas circunstâncias do caso, em que o cinto foi usado para desferir um soco na cabeça do ofendido, considera-se que o cinto não dificultou, de modo exponencial, a defesa da vítima, nem foi susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes, não revelando uma perigosidade muito superior ao normal, “marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns usados para ferir e que já são, de si, perigosos ou muito perigosos” (citação supra), sob pena de apenas se poder admitir o uso do corpo para o preenchimento do tipo simples do crime de ofensa à integridade física.

Assim sendo, consideramos que não se verifica, no caso, a circunstância prevista na alínea h), do n.º 2, do artigo 132.º, do CP, não só porque não se considera o meio particularmente perigoso, mas porque o seu uso, nas circunstâncias concretas do caso, não revela especial perversidade ou censurabilidade na acepção explanada supra.”

Ora, como refere Paulo Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição, pág. 20: “O meio particularmente perigoso é aquele que tem uma aptidão particular para causar a morte, ou seja, uma perigosidade tal que, para além de dificultar consideravelmente a defesa da vítima, pode atingir terceiros de forma indiscriminada”

Por outro lado, refere Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Tomo I, pág. 37: “(…) deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar ser indispensável determinar, com particular exigências e severidade, se da natureza do meio utilizado – e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes – resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena, de outra forma – aqui, sim! -, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso.”

Ainda Simas Santos e Leal-Henriques Código Penal Anotado, 4ª edição, III vol. Pág. 74: “Entende-se por meio particularmente perigoso todo aquele que, de forma superior à normal, tiver a pontencialidade para, segundo a experiência comum, causar lesão corporal susceptível de pôr em risco, de forma significativa a integridade física ou a vida, como é o caso de algumas armas brancas (faca de ponta e mola, foice, machado, gadanha, etc.) ou de certas armas de arremesso (dardos, setas, etc.). O meio de que fala a lei deve ser entendido em sentido amplo, abrangendo não apenas os instrumentos utilizados como também os métodos ou processos de que fez uso na prática do crime.”

Ponderando o acabado de referir, entende-se que bem andou a decisão recorrida ao não considerar o cinto utilizado como um meio particularmente perigoso.

Com efeito, mesmo que se considere que o cinto foi utilizado enrolado na mão de modo a que a fivela atingisse mais perigosamente a vítima, não se pode considerar que se tratou do uso de um meio particularmente perigoso.

Não se tratou de maior perigo do que, por exemplo, o arguido ter pegado numa pedra e ter desferido com ela um golpe na cara/cabeça da vítima.

Aumentou o perigo é certo, mas tal como se refere na decisão recorrida, tal não basta, sob pena de sempre que a agressão for perpetrada utilizando-se qualquer objecto, que não apenas as mãos, então ter que se entender que se está a utilizar um meio particularmente perigoso.

Nem no caso concreto a utilização do cinto representou um decréscimo da possibilidade de defesa por parte da vítima, o que sempre acontece quando se empunha qualquer tipo de objecto, mesmo que o objecto não seja à partida normalmente utilizado para agredir, como acontece com um cinto (tal como acontece com uma pedra, instrumento que pode ser considerado contundente).

Nada há, pois, a censurar na decisão recorrida.

#

DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso improcedente.

#

Sem tributação.

#

Évora, 10 de Janeiro de 2023

Nuno Garcia

António Condesso

Laura Goulart Maurício