Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
23/16.8T8FTR.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
Data do Acordão: 10/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: 1. Os factos elencados no art. 186.º n.º 2 do CIRE constituem presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário.
2. Ocultam ou fazem desaparecer o património da insolvente, os gerentes que procedem à total depreciação contabilística de uma vedação cercando uma zona de caça turística, e permitem que os terrenos abrangidos pela exploração cinegética dessa zona passem a ser explorados por outras pessoas colectivas, onde eles mantêm o poder decisório relevante, continuando a dita vedação a manter a sua utilidade económica, agora para estas outras pessoas colectivas.
3. Procedem à criação artificial de prejuízos os gerentes que não renovam uma concessão de zona de caça turística, e permitem que os terrenos ali abrangidos passem a ser explorados por outras pessoas colectivas, onde eles mantêm o poder decisório relevante, levando assim a insolvente a perder a sua principal fonte de rendimentos.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Na Instância Local, por apenso ao processo onde AA, Lda., se apresentou à insolvência, sendo esta decretada por sentença de 27.01.2016, o credor BB apresentou requerimento no sentido da mesma ser qualificada como culposa.
Instruída a causa e realizado o julgamento, a final foi proferida sentença qualificando a insolvência como culposa e, em consequência, considerados afectados pela qualificação os sócios-gerentes CC e DD, com inabilitação dos mesmos, por 2 anos, para administrar patrimónios de terceiros e inibição para o exercício do comércio também durante 2 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos mesmos; e, ainda, condenação dos mesmos a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património.


Inconformados, a insolvente e os referidos sócios-gerentes recorrem e concluem:
a) «Ao contrário do alegado pelo tribunal “a quo” na douta decisão recorrida, não é verdade que a “vedação existente nos prédios rústicos que constituíam a zona de caça, ali se mantém, sendo a mesma utilizada pela sociedade EE, S.A.,”, uma vez que dita “vedação metálica que abrangia uma área de 4886 hectares” sendo que a partir de 2013 a sociedade “EE, S.A.” passou a explorar duas zonas de caça turísticas cuja área conjunta ascende a 3330 hectares;
b) Ao contrário do alegado pelo tribunal “a quo” na douta decisão recorrida, a Rec.te AA fez ao longo dos anos a depreciação contabilística progressiva do activo fixo tangível, sendo que em 2010 o mesmo já se encontrava totalmente depreciada, com um valor contabilístico de 0 euros.
c) Na análise desta questão da vedação olvidou-se o tribunal “a quo” de ter em consideração um facto essencial, de que a Rec.te AA fez uso dos terrenos que são actualmente propriedade da “EE, S.A.” ao abrigo de um contrato de comodato para neles fazer exploração cinegética.
d) Uma vez cessado esse contrato de comodato (finais de Dezembro de 2013 na sequência da extinção da ZCT 192), a Rec.te AA tinha direito a proceder ao levantamento das benfeitorias úteis que pudessem ser separadas desses terrenos, na condição de repor a vedação original, não o tendo feito porque não tinha disponibilidade financeira para tal.
e) Face à cessação do referido contrato de comodato e à impossibilidade económico financeira da Rec.te AA para fazer o levantamento dessas benfeitorias, e reposição da vedação original, é manifesto que o abate contabilístico feito no ano de 2013 não é susceptível de qualquer crítica.
f) Ainda que por mera questão de raciocínio, resulta do senso comum que a operação de substituição de uma vedação de 2,00m com 24 anos por uma nova de 1,60 m era para a Rec.te AA deficitária do ponto de vista económico-financeiro.
g) O requisito da alínea a) do n.º 2, do artigo 186.º não se encontra minimamente preenchido, não tendo os Rec.tes acuado, com dolo ou culpa grave, “Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor”, devendo considerar-se que a sua conduta destes no trato desta questão foi correcta, diligente e prudente.
h) Ao contrário do alegado pelo tribunal “a quo”, não decorre de nenhuma prova produzida aos autos, nomeadamente de um qualquer documento / despacho do ICNF, nem consta da matéria de facto dada como provada, que a insolvente (Rec.te AA) poderia ter realizado um pedido para a concessão/renovação da zona de caça turística 192 para as duas zonas de caça turísticas que vieram a ser concedidas à “Cavalinhos-Florestal, S.A.”.
i) Nos termos do n.º 5 do art.º 36º do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto (REGULAMENTO LEI DE BASES GERAIS DA CAÇA) “Qualquer alteração dos titulares dos direitos sobre os prédios integrados em zona de caça obriga ao estabelecimento de novo acordo, no termo do prazo da concessão ou renovação.”.
j) Entre a data de criação da zona de caça turística 192 (Janeiro de 2002) e a data da sua extinção (final de 2013) verificou-se uma alteração dos proprietários dos terrenos que compunham essa zona de caça turística, pelo que para que a Rec.te AA pudesse obter a renovação desta zona de caça, ainda que com uma área menor e com exclusão dos terrenos cujos acordos de cedência cinegética foram denunciados, era condição “sine qua non” o estabelecimento de novos acordos de cedência cinegética.
k) Ao contrário do que presume erradamente o tribunal “a quo”, sem novos acordos de cedência cinegética a favor da Rec.te AA, havia uma razão “… para que as atuais zonas exploradas pela EE, S.A. não continuassem a ser exploradas pela sociedade Insolvente...”.
l) É abusiva e nula, por desprovida de qualquer fundamento de facto ou de direito, a conclusão retirada pelo tribunal “a quo” de que em relação ao referido pedido hipotético de renovação que tivessem “... os gerentes da Insolvente optado por não o fazer ...”.
m) Imaginando por mera hipótese de raciocínio um cenário sem os obstáculos de facto e de direito acima referidos, no qual se concebesse que os Rec.tes poderiam requerer a renovação da zona de caça turística 192 para as zonas de caça turísticas, tal decisão não lhes era exigível de ser tomada enquanto sócios e gerentes da AA a partir do momento em que dois sócios da Rec.te AA, ambos da família FF, detentores de 50% do capital social e um deles inclusivamente à altura gerente da sociedade, denunciam os acordos de cedência cinegética dos terrenos de que eram comproprietários e se recusam a contribuir com esses terrenos para a actividade da Rec.te AA.
n) É inadmissível, por errada, a análise retrospectiva feita pelo tribunal “a quo” no ano de 2016 das decisões de gestão dos Rec.tes tomadas no ano de 2012 / 2013, num momento temporal em que o crédito do interessado, que deduziu o incidente que deu origem a estes autos, não se mostrava exigível, já que faz a analise de acontecimentos depois destes ocorrerem e considerando, erroneamente, que no momento da tomada de decisão era muito provável eles virem a ocorrer, só porque vieram a ocorrer.
o) O requisito da alínea b) do n.º 2, do artigo 186.º não se encontra preenchido, uma vez que os Rec.tes tudo fizeram para obter junto do ICNF a renovação da concessão da zona de caça turística 192, tendo actuado com diligência, prudência e boa fé ao longo desse processo renovação da concessão, não lhes podendo ser imputada qualquer conduta dolosa ou com culpa grave que tivesse dado origem ou agravado a situação de insolvência da Rec.te AA, nem lhes sendo exigível que tivessem tomado decisões de administração distintas das que tomaram.
p) A decisão recorrida ao qualificar a insolvência da Rec.te AA como culposa violou o disposto no art.º 186º do CIRE, art.ºs 216º, 1138º e 1273º do Código Civil e art.º 36º do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto.»

Por seu turno, o credor BB contra-alegou e concluiu como segue:
1. «A douta sentença recorrida não merece qualquer reparo.
2. As apreciações que os recorrentes fazem quanto à matéria de facto dada como provada carecem de razão e não merecem qualquer acolhimento.
3. Os sócios e gerentes da sociedade Insolvente actuaram dolosamente, criando uma situação de insolvência, ao retirar à sociedade a exploração dos prédios rústicos, sendo esta a única actividade da mesma, tendo continuado os mesmos, enquanto titulares de órgãos estatutários de outra sociedade e de uma associação, a explorar exactamente a mesma zona de caça.
4. Foi efectivamente requerida, pela sociedade Insolvente, a renovação da licença de exploração da zona de caça. No entanto, devido a dificuldades derivadas da posição de um dos co-proprietários de alguns dos prédios rústicos, foi a mesma informada pelo ICNF que teria que os retirar do pedido, para que a licença fosse concedida.
5. Ora, em vez de o fazer, permitindo que a sociedade Insolvente continuasse a explorar uma zona de caça, embora com menos hectares, foram efectuados dois pedidos de licença de exploração, por duas entidades em que os gerentes da Insolvente detêm um papel decisório relevante.
6. Assim, e para as zonas em que não seria possível a licença de caça anteriormente existente, foram criadas duas zonas de caça associativa, explorada por associação de Caçadores. E para as outras duas zonas foram pedidas licenças de exploração pela sociedade EE, S.A.
7. Ora, se no que respeita aos prédios rústicos correspondentes às zonas em que que foram criadas as zonas de caça associativa, os mesmos não poderiam, de facto, continuar a ser explorados pela sociedade Insolvente, atendendo à não concordância de um dos co-proprietários e à consequente posição do ICNF, nenhuma razão existiria para que as atuais zonas exploradas pela EE, S.A. não continuassem a ser exploradas pela sociedade Insolvente.
8. O pedido que foi realizado pela EE, S.A. para explorar 2 zonas de caça podia ter sido realizada pela Insolvente, como decorre do despacho do ICNF, tendo os gerentes da Insolvente optado por não o fazer.
9. A actividade cinegética tem interesse comercial para a EE, S.A., caso contrário esta sociedade não teria prosseguido a mesma.
10. Verifica-se a existência de uma criação artificial dos prejuízos, na medida em que à sociedade Insolvente foi retirada, pelos sócios, a única forma de obter lucros, ou seja, a exploração da reserva de caça.
11. A concessão não foi renovada porque a gerência da AA não quis.
12. E porque isso constituiria a melhor desculpa para invocar a falta de receitas e apresentar-se à insolvência – o que foi feito
13. E permitia, ao mesmo tempo, e em prejuízo da insolvente, ceder gratuitamente 28 Km de vedação metálica a cercar 4886 ha. de terreno de caça, à nova concessionária da exploração, o que também foi feito.
14. Socorrendo-se, em termos de dissimulação de património, da figura contabilística do abate da rubrica 432 do balancete – a vedação - colocando o de património a zeros, como se nada existisse.
15. Essa vedação metálica, com 2 metros de altura, com 28 km de comprimento e cercando uma área de 4886 hectares, existente nos prédios rústicos que constituíam a zona de caça, ainda ali se mantém, sendo a mesma utilizada pela mesma sociedade EE, S.A., de que o recorrente DD é Presidente do Conselho de Administração, sem que a sociedade Insolvente tenha tido alguma contrapartida por tal facto.
16. Os requisitos das alíneas a) e b) do nº 2 do artº 186º do CIRE encontram-se claramente preenchidos, atenta a matéria dada como provada, e decorrente do comportamento dos sócios e gerentes da Insolvente.
17. A douta sentença recorrida não violou qualquer disposição legal, designadamente aquelas indicadas pelos apelantes.
18. Desse modo, não lhes assiste o direito que invocam.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto, antes se confirmando a douta sentença recorrida.»

Também a Digna Magistrada do Ministério Público contra-alegou, concluindo:
1.ª «Os recorrentes interpuseram recurso da douta sentença, sindicando o preenchimento do artigo 186.º, n.º 2, alínea a) e b) do CIRE e defendendo a qualificação da insolvência como fortuita.
2.ª Ora, atenta a prova produzida em juízo, é nosso entendimento que a mesma é suficiente para concluir que se encontram preenchidas as alíneas a) e b) do número n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
3.ª A depreciação do valor da cerca pode ser contabilisticamente justificável, mas se o bem em causa tem valor da “utilidade” que lhe subjaz, não foi convenientemente explicado porque se a cerca estava “amortizada” há tantos anos, só após 2013 foi retirada do balancete;
4.ª Resulta dos autos que a insolvente poderia ter ficado a explorar os terrenos cinegéticos que ora estão na “EE, S.A”, pese embora tivesse que celebrar novos acordos, pois a testemunha GG, Gestor Florestal foi claro, na sessão de dia 5 de Julho de 2016, entre o minuto 21:17 e 22:45, quando explicou que a insolvente poderia ter aproveitado o acordo que tinha para um dos terrenos e apresentar o projecto para a outra parcela.
5.ª Devendo por isso, negar-se provimento ao recurso e manter-se a qualificação de insolvência como culposa contra os gerentes CC e DD.»

Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

A matéria de facto a ponderar é a seguinte (rectificando lapso material ocorrido nos pontos 25 e 27, em que trocou o valor total de vendas e prestações de serviços realizados nos anos de 2014 e 2015):
1. A Insolvente “AA, Lda.” é uma sociedade comercial por quotas, pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º XXXX.
2. A apresentante dedica-se à exploração cinegética, piscícola e respectivo turismo, nomeadamente a criação de espécies destinadas a esse fim. Execução e acompanhamento na implementação de projectos nas áreas agrícola, florestal, agro-industrial, cinegética e aquícola.
3. Tem o capital social de € 5.000,00, constituído por quatro quotas, no valor de € 1.250,00 cada.
4. Cada uma das quotas pertence a HH, II, Joaquim Maria Pereira Valadares Couceiro e Fernando Maria Pereira Valadares Couceiro.
5. Os gerentes da sociedade são CC e DD.
6. A Insolvente explorava a zona de caça turística 192 da Herdade e outras, situada nos concelhos, com uma área total de 4886 hectares.
7. A validade da licença de exploração terminava a 10 de Dezembro de 2013.
8. A renovação da concessão da zona de caça em apreço foi requerida pela Insolvente a 17 de Dezembro de 2012.
9. Um dos comproprietários dos prédios rústicos, HH, denunciou os acordos de cedência de exploração cinegética.
10. O Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) comunicou, a 09 de Novembro de 2012, à Insolvente que, devido a tal denúncia, os prédios em causa deveriam ser retirados da zona de caça.
11. A Insolvente respondeu, por carta datada de 12 de Dezembro de 2012, não aceitando a retirada de tais prédios da zona de caça.
12. Por comunicação datada de 27 de agosto de 2013, o ICNF informou a Insolvente de que era “intenção destes serviços propor superiormente o indeferimento da pretensão” pela mesma apresentada.
13. A 15 Outubro de 2013 o ICNF informou a insolvente que “não obstante as reuniões tidas nos serviços centrais entre os representantes da requerente não foram entregues novos acordos que incluíssem as assinaturas de todos os titulares dos prédios objecto da reclamação”.
14. Informou, ainda, que “entretanto deram entrada novos processos para renovação e/ou concessão de novas zonas de caça para os terrenos em causa”.
15. Por despacho de 09 de Dezembro de 2013, foi extinta a zona de caça turística da Herdade, referindo o mesmo que “considerando que a concessão da zona de caça acima referida não foi renovada no termo do seu prazo, encontra-se a mesma caducada”
16. A zona de caça referida em 1. é actualmente explorada pela EE, S.A. (3330 hectares), que detém duas zonas de caça turística, e pela Associação de Caçadores (1556 hectares), que detém duas zonas de caça municipal.
17. A sociedade EE, S.A. explora os prédios rústicos de que é proprietária e relativamente aos quais foi celebrado acordo de cedência cinegética.
18. A Associação de Caçadores explora aqueles prédios rústicos onde não foi possível obter o acordo de exploração cinegética.
19. A sociedade EE, S.A. é detida a 100% pela sociedade comercial JJ-SGPS, S.A.
20. A sociedade EE, S.A. é proprietária das herdades.
21. Existem outros prédios rústicos afectos às zonas de caça turísticas de que não são propriedade desta sociedade, encontrando-se dados de arrendamento a esta.
22. Os sócios da Insolvente DD e CC pertencem ao concelho de administração da sociedade EE, S.A., sendo o primeiro presidente deste órgão.
23. Os sócios da Insolvente DD e CC são, respectivamente, presidente e vogal da direcção da Associação de Caçadores.
24. A sociedade EE, S.A. tem como objecto social exercer actividades relacionadas com a agricultura, pecuária, caça, silvicultura e exploração florestal, bem como o desenvolvimento de todas e quaisquer actividades preparatórias, acessórias ou complementares às referidas.
25. No ano de 2014 as receitas obtidas por esta sociedade com a actividade cinegética ascenderam a €28.690,78, sendo o total de vendas e prestações de serviços realizados pela sociedade de €704.424,21.
26. No exercício de 2014 os gastos directamente relacionados com a actividade cinegética computaram-se em +/- €24.000,00, havendo outros gastos relacionados com esta actividade, nomeadamente com o pessoal e com a organização de caçadas, que se mostram computados noutras rubricas das contas.
27. No ano de 2015 as receitas obtidas por esta sociedade com a actividade cinegética ascenderam a €29.640,51, sendo o total de vendas e prestações de serviços realizados pela sociedade de €351.053,07.
28. No exercício de 2015 os gastos directamente relacionados com a actividade cinegética computaram-se em +/- €26.050,00, havendo outros gastos relacionados com esta actividade, nomeadamente com o pessoal e com a organização de caçadas, que se mostram computados noutras rubricas das contas.
29. No balancete da sociedade Insolvente do ano de 2013 está atribuída à rubrica 432 (investimentos-edifícios e outras construções) o valor de €131.399,06.
30. O valor atribuído, em tal documento, às depreciações acumuladas de tal rúbrica foi de €131.399,06.
31. Tal rubrica incluía os bens da sociedade insolvente, entre os quais uma vedação metálica que abrangia uma área de 4886 hectares.
32. Em 1989 a sociedade Insolvente substituiu a cerca existente na zona de caça por a cerca actualmente lá implantada, com cerca de 2,00 metros de altura.
33. Esta rubrica foi contabilisticamente abatida, na sua totalidade, em 2013.
34. A vedação mantém-se no mesmo sítio.
35. Para proceder ao levantamento da mesma, a Insolvente teria que repor a cerca anteriormente existente, de 1,60mentros, não possuindo, em 2013, disponibilidade financeira para tal.
36. O veículo de matrícula 00-DB006 de marca Mitsubishi L200 foi adquirido por €17.182,35, em 2007.
37. Em 14 de Novembro de 2013 foi o mesmo avaliado pela sociedade “LL”, que se dedica ao comércio de automóveis, em €4.471,54+IVA.
38. O veículo em causa foi vendido, em 2013, à sociedade EE, S.A. por €4.878,05.
39. No final de 2013 o montante das depreciações acumuladas referentes ao veículo em causa era de €16.982,35.
40. O referido veículo automóvel era usado pela sociedade Insolvente em serviços no campo/terrenos degradados, tendo o mesmo sido objecto de intervenções de manutenção que custaram:

- No ano de 2011, €1.863,92;

- No ano de 2012, €3.120,94;

- No ano de 2013, €1.916,50.

APLICANDO O DIREITO
Da qualificação da insolvência
Estão em causa, fundamentalmente, as duas alíneas iniciais do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, dispondo que se «considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas.»
Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação à referida norma[1], afirmam que ali se estabeleceu uma presunção inilidível, pelo que, verificadas as circunstâncias ali descritas, a insolvência terá sempre carácter culposo. E em igual sentido se pronuncia Menezes Leitão[2], afirmando que, verificados alguns dos factos descritos no art. 186.º n.º 2 do CIRE, “o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no art. 186.º n.º 2, uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário.”
E pelo mesmo caminho tem seguido a jurisprudência, citando-se a título meramente exemplificativo o Acórdão da Relação de Coimbra de 21.01.2014, no Proc. 174/12.8TJCBR-C1, publicado em www.dgsi.pt.
Mas vejamos se estão reunidas as circunstâncias a que aludem as supra transcritas als. a) e b) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.
A 1.ª instância entendeu que se enquadrava na primeira daquelas alíneas a total depreciação contabilística, ocorrida em 2013, da vedação cercando os 4.886 hectares da ZCT n.º 192, concessionada à insolvente até 09.12.2013, uma vez que esta continua a ter utilidade económica, continua instalada no local e está a ser utilizada pela sociedade EE, S.A. e pela Associação de Caçadores, que exploram actualmente duas zonas de caça turística ocupando o terreno que anteriormente era explorado pela insolvente. Com efeito, uma explora 3.330 hectares da anterior ZCT n.º 192, e a segunda os restantes 1.556 hectares, o que nos conduz à totalidade do terreno anteriormente explorado pela insolvente: 4.886 hectares.
Não podemos deixar de reconhecer o acerto da primeira instância quanto a esta questão. Com efeito, está demonstrado que a vedação mantém-se no mesmo sítio, continuando a vedar o mesmo terreno que era explorado cinegeticamente pela insolvente na ZCT n.º 192. Este facto, aliado à circunstância das novas entidades que exploram aqueles 4.886 hectares serem dominadas pelos sócios-gerentes da insolvente, CC e DD, levam o Tribunal a concluir que a vedação continua a ter efectiva utilidade económica e correspondente valor. Não se olvidando, naturalmente, que contra a insolvente corria uma acção judicial movida pelo credor BB, desde 2011, pelo que a súbita depreciação total daquela vedação em 2013, a não renovação da concessão da ZCT n.º 192, e a tomada dos terrenos que esta ocupava por entidades dominadas pelos sócios-gerentes da insolvente, que passaram a aproveitar-se da utilidade proporcionada pela vedação, mais não foram que uma forma de desvio do património do devedor, assim se demonstrando o preenchimento da al. a) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.
Quanto à al. b), a primeira instância entendeu que correspondeu a uma criação artificial de prejuízos a não renovação da ZCT n.º 192.

Mais uma vez, concorda-se com a decisão recorrida. Entre 1989 e 2013, a insolvente explorou as potencialidades cinegéticas daquela ZCT, não a renovando em 2013, em momento contemporâneo com o prosseguimento da acção que lhe havia sido instaurada pelo credor BB e subsequente processo executivo. Se é certo que um dos co-proprietários – e sócio de insolvente – denunciou os acordos de cedência de exploração genética relativos a parte do terreno ocupado por aquela ZCT – os 1.556 hectares que depois passaram a ser explorados pela Associação de Caçadores– a insolvente mantinha a possibilidade de continuar a explorar os restantes 3.330 hectares. Como devia e podia ter sido feito, se os respectivos gerentes usassem da diligência devida e tivessem interesse na manutenção da actividade económica da sociedade.

Não o fizeram e os autos revelam que todos os terrenos que estavam incluídos na ZCT n.º 192 foram concessionados a pessoas colectivas dominadas pelos sócios-gerentes da insolvente, pelo que acompanhamos o raciocínio que a este respeito se desenvolve na sentença recorrida: em vez de permitir «que a sociedade Insolvente continuasse a explorar uma zona de caça, embora com menos hectares, foram efectuados dois pedidos de licença de exploração, por duas entidades em que os gerentes da Insolvente detêm um papel decisório relevante. (…) se no que respeita aos prédios rústicos correspondentes às zonas em que que foram criadas as zonas de caça associativa, os mesmos não poderiam, de facto, continuar a ser explorados pela sociedade Insolvente, atendendo à não concordância de um dos co-proprietários e à consequente posição do ICNF, nenhuma razão existiria para que as actuais zonas exploradas pela EE, S.A. não continuassem a ser exploradas pela sociedade Insolvente. (…) Ademais, apesar de não se ter logrado provar que os lucros apresentados pela sociedade EE, S.A. adviessem, em particular e de forma relevante, da actividade cinegética, a verdade é que se revelou uma actividade interessante, em termos comerciais, caso contrário a sociedade em causa não teria prosseguido a mesma.»
Objectivamente, o que se passou foi que os sócios-gerentes da insolvente permitiram que a exploração cinegética dos terrenos compreendidos na ZCT n.º 192 deixasse de lhe estar concessionada e passasse a ser efectuada por outras pessoas colectivas, que os mesmos gerentes controlam. E daí que não impressione o argumento de ter sido um dos co-proprietários dos terrenos que denunciou o acordo de cedência de exploração cinegética – no final, o que se passou foi que a insolvente ficou sem a sua principal fonte de rendimentos, passando esta para outras pessoas colectivas, dominadas pelos gerentes da insolvente, mas não sujeitas às responsabilidades impostas pela acção judicial movida pelo credor BB.
Este é o facto insofismável que determina a improcedência do recurso.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Évora, 20 de Outubro de 2016
Mário Branco Coelho (relator)

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Isabel de Matos Peixoto Imaginário

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Maria da Conceição Ferreira
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[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 2.ª ed., págs. 718 e 719.
[2] Direito da Insolvência, 5.ª ed., pág. 248.