Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1802/20.7GBABF.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: CRIME DE PERSEGUIÇÃO
CRIME DE FOTOGRAFIAS ILÍCITAS
DIREITO À IMAGEM
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Constituiu-se como autor material de um crime de perseguição, previsto e punido no artigo 154º-A do CP., o arguido que, durante um expressivo período de tempo – cerca de três meses – e movido pela obsessão em reatar a relação amorosa que anteriormente mantivera com a assistente, resolveu levar a cabo, de forma reiterada e persistente, várias condutas intimidatórias e perturbadoras do quotidiano daquela, aptas a determinarem limitações relevantes na sua vida quotidiana e uma desvaliosa perturbação no seu sossego diário.
II - O arguido procedeu à gravação audiovisual da assistente durante um período de lazer do casal, portanto, com o seu consentimento. Porém, nenhum consentimento obteve da mesma para proceder à publicação na rede social Facebook do vídeo que realizara, bem sabendo que, por tal via, alargaria incomensuravelmente o universo de pessoas a quem a imagem da assistente seria exposta, pelo que a sua conduta consubstancia uma utilização proibida e agravada, tendo o mesmo incorrido na prática do crime fotografias ilícitas agravado, p. e p. pelos artigos 199º n.ºs 1 e 2, alínea b) e 197.º alínea b) do CP.

III - O facto de ter decidido deixar-se fotografar ou filmar numa praia pública no âmbito de uma relação privada não faz precludir o direito da pessoa fotografada ou filmada a decidir sobre a exposição pública da sua imagem; são momentos diferentes, nos quais são exercidos direitos autónomos legalmente protegidos, cuja violação assume relevância penal: por um lado, o direito a decidir registar a sua imagem para memória futura num local público; por outro, o direito a decidir sobre a exposição pública de tal registo de imagem.

IV - Os agressores do direito à imagem e à privacidade em geral não são as novas tecnologias, entendidas como entidades abstratas e personificadas, mas sim os que as utilizam indevidamente, delas se servindo para levar a cabo condutas ilícitas e lesivas de tais direitos.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo Local Criminal de …- J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 1802/20.7GBABF.E1, foi o arguido AA, responsável de área comercial, filho de BB e de CC, divorciado, nascido em …1972, natural de …, domicílio: Rua …, …, condenado de seguinte forma:

- Pela prática de um crime de perseguição previsto e punido no artigo 154.º-A, n.º 1 do Código Penal, na pena de p. e p. pelo artigo 154.º-A, n.º 1 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa.

- Pela prática de um crime de crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelos artigos 199º n.ºs 1 e 2, alínea b) e 197.º alínea b) do Código Penal, na pena de 105 (cento e cinco) dias de multa.

- Em cúmulo jurídico (1), das penas parcelares, foi condenado na pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de 7,00 € (sete euros), perfazendo a quantia de 1 120,00 € (mil, cento e vinte euros).

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Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1. O arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de perseguição, p. e p. pelo artigo 154.º- A, n.º 1 do Código Penal na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa.

2. E pela prática, em autoria material, de um crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelos artigos 199.º, n.º 1 e 2, alínea b) e 197.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 105 (cento e cinco) dias de multa.

3. Perfazendo, em acumulação material, uma pena unitária de 160 (cento e sessenta dias) de multa à razão diária de € 7,00 (sete euros), totalizando a quantia de € 1.120,00 (mil cento e vinte euros).

4. Consideramos que andou mal o Tribunal a quo quando na leitura da súmula sentença em crise manifestou que o preenchimento dos elementos objetivos no crime de perseguição se encontrava “muito na fronteira”.

5. Tal viola o preceito ínsito no artigo 32.º, n.º 1, 2.ª parte da Constituição da República Portuguesa, porquanto existe uma orientação vinculativa para o julgador, ou seja, o princípio insofismável de in dubio pro reo.

6. Ao considerar que o preenchimento dos elementos objetivos estavam na fronteira deveria ter, em nossa opinião, absolvido o arguido do crime de perseguição, uma vez que não está em crise a qualificação jurídica, nem a fundamentação de direito.

7. A dinâmica da relação entre Arguido e Assistente não foi devidamente valorada, uma vez que não atendeu também à conduta da Assistente que em muito contribuiu para a atuação do Arguido, nomeadamente quanto ao término de uma relação análoga à dos cônjuges por carta manuscrita, sem que tenha havido qualquer explicação para o sucedido.

8. Considerando, ainda, o Arguido que é credor de montantes advindos de prestação de serviços no estabelecimento comercial da Assistente.

9. Adicionalmente, a conduta do Arguido não preencheu diversos elementos objetivos, mormente o da reiteração, uma vez que na douta sentença é estabelecido um hiato temporal de frequência de visitas entre 19 a 53 dias, o que permite considerar que no limite mais baixo poderemos enquadrar a conduta do arguido como apenas de frustração e desânimo, sem que isso reflita qualquer comportamento desviante.

10.Ademais, o Arguido também procurou reaver os montantes que lhe eram devidos, exercendo, para tal, alguma pressão, tal qual fazem as empresas de recuperação de crédito, sem que para isso incorram em ilícitos criminais.

11. No que respeita à adequação do ato, o mesmo não é apto a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, porquanto o Arguido limitou-se a deslocar-se ao estabelecimento

comercial explorado pela Assistente, dirigindo-lhe palavras corteses ou deixando-lhe flores, nunca tendo ameaçado a mesma, demonstrado atos de violência ou telefonado insistentemente.

12. E deslocou-se lá até ao dia em que a Assistente contactou/contratou um “amigo” para a ameaçar o Arguido, data em que este deixou de se deslocar lá.

13. Tal facto demonstra não só que o principal problema existente entre os dois era de índole financeira, tendo a Assistente recorrido à ameaça para afastar o Arguido.

14. Ao invés de recorrer às autoridades policiais e/ou judicias como seria expetável.

15. Não foi dado como provado que a Assistente tenha alterado o seu modo de vida, tenha padecido de alguma enfermidade, tenha deixado de dormir, de frequentar espaços públicos, de conduzir sozinha, isto é, que tenha exibido comportamentos condizentes com alguém que se sentia como vítima.

16. Se é verdade que o crime de perseguição é abstrato, não é menos verdade que este tem de ser analisado e interpretado casuisticamente, tendo em consideração, neste caso específico, a dinâmica da relação e o seu término.

17. Além de que deverá ter em consideração a emoção humana na sua vertente mais pura, a de que há sentimentos que demoram mais tempo a ser compreendidos, sem que tal configure qualquer conduta ilícita.

18. No que concerne ao crime de gravações e fotografias ilícitas, mais concretamente, aos seus números 1 e 2, alínea b, o Arguido é a considerar que não se encontra preenchido o elemento objetivo da “contra vontade”.

19. Porquanto a norma não prevê qualquer presunção de consentimento de utilização de fotografia em áreas não comerciais.

20. A interpretação da norma é feita com recurso ao artigo 79.º do Código Civil que carece, em nossa opinião, não só de uma revisão, como de uma interpretação atualista.

21. Sendo que, no caso em crise, a fotografia é lícita.

22.O Arguido é a considerar que a sentença a quo não valorou devidamente o contexto do circunstancialismo que conduziu à captação da referida imagem/vídeo.

23.Uma vez que a imagem da Assistente em topless foi captada numa praia pública, onde havia a presença de mais pessoas.

24.A Assistente não tinha expetativa de privacidade quando circulou em topless.

25.A Assistente permitiu que o Arguido tirasse a referida fotografia, tendo permitido também que o mesmo a mantivesse.

26.A Assistente não advertiu o Arguido que este não a podia utilizar.

27.A fotografia/vídeo foi captada através de um smartphone que, por sua vez, através de um sistema operativo, realiza um upload para a cloud.

28.Adicionalmente, tanto a Assistente como o Arguido mantêm páginas no Facebook onde publicam fotografias, histórias, comentários, entre outros, para uma comunidade de estranhos.

29.O Arguido publicou nessa mesma plataforma o vídeo que achava ser uma fotografia, como sempre o fez e como a Assistente sempre o conheceu.

30.O Arguido considerou que não precisava do consentimento, porquanto a fotografia tinha sido tirada naquele contexto específico.

31. Tendo retirado a fotografia imediatamente após ter sido informado que a Assistente não se queria ver exposta.

32.A questão de privacidade no novo paradigma digital é complexa, uma vez que o utilizador abdica ab initio de qualquer privacidade quando expõe a sua vida para terceiros.

33.O utilizador das novas tecnologias tem de se saber proteger das novas ferramentas digitais, pois uma vez captada uma fotografia num smartphone esta nunca mais deixa de existir.

34.Destarte, a norma incriminadora não prevê o consentimento presumido, porquanto a norma tem de ser interpretada num contexto atual onde, Assistente e Arguido, abdicaram da sua privacidade quando decidiram captar uma fotografia num espaço público em topless, em formato digital e guardado num cloud.

35.Pelo exposto o Arguido é a considerar que não se encontram preenchidos os elementos objetivos dos crimes de perseguição e de gravações e fotografias ilícitas.”

Termina pedindo a revogação da sentença e a sua absolvição total.

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O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, tendo pugnado pela sua improcedência e pela consequente manutenção da decisão recorrida, face à inexistência de erro de julgamento quanto à matéria de direito ou de qualquer violação do princípio do “in dubio pro reo” invocados pelo recorrente, não tendo apresentado conclusões.

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Devidamente notificada da apresentação do recurso, não apresentou a assistente contra-alegações.

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A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso.

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Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

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II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir:

A) Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de direito por errada qualificação jurídica dos factos, ou seja, em virtude de os factos provados não integrarem os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de perseguição e de fotografias ilícitas pelos quais o arguido foi condenado.

B) Da alegada violação do princípio “in dubio pro reo”.

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II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que, deu por provados e não provados os seguintes factos:

“3.1. – Factos Provados

3.1.1. - Com relevância para a decisão criminal provaram-se os seguintes factos:

1. O arguido AA e a assistente DD mantiveram uma relação de namoro, a qual durou 8 (oito) meses, tendo terminado em julho de 2020.

2. O arguido, não aceitando o término da relação, a partir de julho de 2020, passou a estar nos locais onde se encontrava a ofendida e contra a sua vontade, bem como a dirigir-lhe mensagens através de telemóvel e e-mail.

3. Com efeito, pelo menos entre julho de 2020 ate quase à segunda quinzena de agosto de 2020, o arguido passou a deslocar-se com uma frequência diária, ao local de trabalho da ofendida, o estabelecimento comercial “…” sito na …, …, e à sua residência, sita em …, …, tendo entre os últimos dias de agosto ate outubro de 2020, se deslocado, pelo menos, uma vez por semana.

4. Nessas ocasiões, o arguido dirigia-se à ofendida e dizia “bom dia” ou “boa tarde”, consoante a hora do dia, e “vim ver-te, porque tenho saudades”.

5. No dia 31 de julho de 2020, o arguido remeteu uma mensagem eletrónica (e-mail) através do seu endereço eletrónico …@gmail.com para o endereço eletrónico da assistente …@gmail.com, manifestando desagrado pelo término da relação e a solicitar o pagamento de uma quantia.

6. Nessa comunicação, o arguido escreveu, além de outras, as seguintes expressões “Como vês a hora eu ando doente”, “Não é normal num ser humano de um dia para o outro ganhares um ódio tão grande por mim, não me queres ver houvir nem falar e sem explicação honesta”, “Sinto-me gozado, uzado por ti a todos os níveis o que estás a fazer é desumano ou de uma pessoa com problemas graves de loucura” “DD custa muito mas como não estás a ser honesta comigo e brincas com a saúde de uma pessoa eu me sinto enganado e uzado como já referi me sinto no direito de ser pago mas se vieres falar comigo como mulher e seres honesta comigo e me explicares sem mentiras o porquê deste não é não e não voltas a trás honestamente eu esqueço mas não venhas com desculpas das sms e amor acabou isso é tretas e vê nos teus olhós que me amas só de és uma boa actriz”.

7. Não obstante ter enviado tal comunicação, o arguido, poucos dias após, imprimiu o referido e-mail e deixou-o à porta da residência da assistente, apondo frases manuscritas com o seguinte teor: a. “não mereço”; b. “nunca te pedia nada mas… como vês não estás bem. AMO-TÊ MUITO MAS ESTE FIM REPENTINO É DE LOUCOS…” c. “Não esquecer a minha residência é na tua morada algo que não me seja entregue e me prejudique terás problemas judiciais”.

8. Em dia não concretamente apurado, mas em agosto de 2020 o arguido deixou um ramo de flores em cima do capô do veículo conduzido pela assistente, contendo um bilhete com os dizeres “AMO-TE” e “ACREDITA”.

9. Em datas indeterminadas, mas pelo menos, em cinco ocasiões distintas, o arguido deixou flores no tapete da residência da ofendida, bem como junto à porta do seu estabelecimento comercial ou sob o capôt do carro, tendo a ultima vez ocorrido na ultima quinzena de outubro e novembro de 2020.

10. Em data não determinada, mas apos o términus da relação, o arguido publicou na sua rede social Facebook um vídeo, onde aparece a imagem da assistente a exibir os seus seios na praia (top-less), sem que lhe fosse concedida autorização pela mesma para partilha do vídeo.

11. Em data indeterminada, mas em outubro de 2020, o arguido deixou um manuscrito à porta da residência da assistente com o seguinte teor “ADEUS PUTA SECA, Por Dentro já mais vais saber e ter AMOR, ESTÁS MORTA POR Dentro queres é €€€€€ e PICHA” “Miseravel” e “ADEUS …, IPOCITAS”.

12. Em dia não concretamente apurado, mas entre setembro e outubro de 2020, o arguido deslocou-se ao local de trabalho da assistente e permaneceu no exterior daquele espaço a olhar para o seu interior, de forma persistente, na direção da assistente, por um hiato temporal não superior a dez minutos.

13. Como consequência direta e necessária das condutas de AA supra descritas, DD passou a sentir-se constrangida na sua liberdade de determinação, na vida privada, na sua paz e sossego, chegando inclusivamente a recear pela sua própria vida e integridade física.

14. Sabia o arguido que a assistente não pretendia receber as suas mensagens ou ser confrontada com a presença daquele nos locais que frequentava, designadamente no seu local de trabalho e na sua residência.

15. O arguido atuou do modo descrito com o claro e firme propósito de perturbar a vida privada, a paz e o sossego da assistente, bem como de perturbar a liberdade de determinação desta causando-lhe medo e inquietação, fazendo-a temer pela sua integridade física e vida, o que logrou conseguir, ciente de que a sua conduta era adequada a produzir o pretendido efeito.

16. Agiu ainda o arguido bem sabendo que não estava autorizado a partilhar vídeos com terceiros, contendo a imagem da assistente, querendo com isso violar, como violou, o direito à sua imagem.

17. Bem sabia o arguido que, ao partilhar tal vídeo numa rede social, estava a difundir tal conteúdo através da Internet e que aumentava significativamente o acesso do sobredito conteúdo a terceiros, o que logrou.

18. O arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que o seu comportamento se encontra previsto e é punido pela lei penal. Mais se apurou que:

19. O arguido vive numa habitação cedida por uns amigos na ….

20. Exerce a atividade de vendedor na “….”, no departamento de carros usados, em …, com um contrato de trabalho a termo certo.

21. Da consulta às bases de dados da Segurança Social consta registado o valor de 1652.07 € como a sua renumeração de outubro de 2022.

22 Do certificado de registo criminal nada consta.

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3.2. – Factos Não Provados

a) Entre julho de 2020 a outubro de 2020, o arguido passou a deslocar-se com uma frequência diária, ao local de trabalho da ofendida e à sua residência.

b) Noutro dia não concretamente apurado, mas também em agosto de 2020, o arguido deixou um ramo de flores pendurado num frigorífico que a assistente tem à porta da sua residência.

c) No dia 24 de agosto de 2020 o arguido publicou na sua rede social Facebook um vídeo, onde aparece a imagem da assistente.

II.III - Apreciação do mérito do recurso.

*** A) Do invocado erro de julgamento quanto à matéria de direito por errada qualificação jurídica dos factos: a) Em virtude de os factos provados não integrarem os elementos objetivos e subjetivos do crime de perseguição.

Alega o recorrente que “No que respeita ao preenchimento dos elementos objetivos do tipo legal, o arguido é a considerar que não se encontram preenchidos, pelo menos a adequação do ato e a reiteração, nem tampouco que eram aptos a produzir medo, inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. (…) Destarte, somos a considerar que não estão preenchidos os elementos objetivos no que concerne à ação do agente, ou seja, que se tenha consubstanciado numa perseguição ou assédio.”

Dispõe o artigo 154.º-A, n.º 1 do Código Penal que: “Artigo 154.º-A Perseguição 1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal. 2 - A tentativa é punível. 3 - Nos casos previstos no n.º 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição. 4 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 5 - O procedimento criminal depende de queixa.”

Tal como já anteriormente explanámos no acórdão desta Relação datado de 23.11.2021, por nós relatado (2), o tipo de crime de perseguição foi introduzido no nosso ordenamento jurídico, concretamente no Código Penal, pela Lei n.º 83/2015 de 05 de agosto, momento em que o legislador nacional decidiu criminalizar uma realidade já anteriormente debatida nos fóruns jurídicos e nos meios académicos, quer ao nível nacional, quer internacionalmente, o chamado stalking. (3) A respeito de tal fenómeno, escreveu o Professor Manuel da Costa Andrade, de forma bastante assertiva, que “o stalking abrange as diferentes manifestações de perseguição persistente e repetida de uma pessoa, imposta contra a vontade da vítima, provocando-lhe estados de ansiedade, stress, perturbação e medo. Impondo-lhe sacrifícios (v.g., mudança de hábitos, de lugares frequentados, de casa.), e impedindo-a de conduzir e conformar livremente a sua vida”(4) Inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal, concretamente no capítulo IV do Título I do Código Penal, o crime de perseguição tutela o bem jurídico que de há muito se visava proteger com a criminalização do fenómeno do stalking: a liberdade de autodeterminação pessoal, i.e., a liberdade em algumas das suas manifestações específicas, tais como a liberdade de decisão, de ação, de organização da própria vida, em suma, a liberdade de viver o dia a dia num ambiente de paz e sossego.

Trata-se de um crime de natureza complexa – pois que, pese embora o bem jurídico eminentemente protegido seja, sem dúvida, a liberdade de autodeterminação pessoal, ainda que reflexamente, o crime de perseguição tutela também a reserva da vida privada, a imagem e a saúde da vítima – e duradouro – uma vez que a execução do crime pode prolongar-se por um período de tempo mais ou menos longo, sendo que a reiteração é uma exigência do tipo. A análise do tipo penal consagrado no artigo 154º-A acima transcrito permite-nos constatar, desde logo considerando a opção do legislador nacional pela expressão “de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, estarmos em presença de um crime de perigo concreto – pois que a hipotética lesão vem descrita na norma mas não necessita de existir para que o crime se verifique – não sendo necessária para a sua consumação a efetiva lesão do bem jurídico, bastando-se aquela com a adequação da conduta a provocar a referida lesão, ou seja, exigindo-se apenas que a conduta criminosa seja idónea a prejudicar a liberdade de determinação da vítima ou a provocar-lhe medo. Ao nível do tipo objetivo, o crime de perseguição, tal como foi acolhido pelo nosso ordenamento jurídico-penal não é um crime de execução vinculada, mas sim um crime de execução livre, pois a conduta punida pode ser levada a cabo por “qualquer meio, direta ou indiretamente”. Descortinamos na previsão do n.º 1 do artigo 154.º-A do CP, três elementos fundamentais: - O agente persegue ou assedia a vítima através de qualquer meio, direto ou indireto; - O agente realiza tais condutas de modo reiterado e recorrente, e não através de ato isolado; - A conduta do agente é suscetível de provocar medo ou inquietação à vítima ou ainda de prejudicar a sua liberdade de determinação. Quanto ao tipo subjetivo, o crime de perseguição é um crime doloso, não admitindo a sua configuração objetiva qualquer concessão a comportamentos negligentes, desde logo porquanto as próprias condutas criminosas evidenciam uma premeditação e uma reiteração que não abrem caminhos a eventuais processos não intencionais ou meramente resultantes de violações de deveres de cuidado. O crime em causa pressupõe a ideia de reiteração e de frequência, através da repetição temporal sucessiva de duas ou de várias condutas. O perseguidor ou stalker sabe porque persegue e com que intuito o faz, agindo necessariamente de forma dolosa, em qualquer das formas previstas no artigo 14º do CP, com dolo direto, necessário ou eventual. (5) (6) No presente recurso propugna o recorrente que o tribunal “a quo” subsumiu incorretamente os factos provados à previsão do artigo 154.º-A, nº 1 do CP, sustentando que àqueles falta a reiteração e a adequação exigidos pelo tipo.

Não lhe assiste, porém, razão. Levando em conta as precedentes considerações sobre o crime em análise e atentando na factualidade imputada ao arguido e que resultou provada nos autos – consubstanciada em deslocações persistentes ao seu local de trabalho e à sua residência, onde deixava ramos de flores e mensagens escritas em papel e no envio de mensagens de telemóvel e através de e-mail, contendo não só referências à relação amorosa que existira entre ambos e aos sentimentos do arguido, mas também críticas à personalidade e à conduta da assistente – entendemos que o caso que ora nos ocupa não pode deixar de se lhe subsumir. Não subscrevemos, de todo, a posição do recorrente no sentido de que as condutas que lhe são imputadas não foram reiteradas e não se revelaram aptas a produzir medo, inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima, visando principalmente cobrar uma dívida da assistente para consigo, pelo que não se encontrariam preenchidos a adequação do ato e a reiteração previstos como elementos objetivos do tipo de perseguição. Na verdade, tal como acertadamente refere a sentença recorrida,“(…) a conduta do arguido não consistiu, conforme o mesmo alegou numa mera tentativa de ser ressarcido por uma suposta divida, porquanto tal não é explicável com as flores e mensagens de amor deixadas no capot do veiculo, na porta da residência da ofendida, do seu local de trabalho, os convites para almoçarem ou jantarem, ou as mensagens de desdém para com a personalidade e a própria sexualidade da ofendida dirigida aquela ou ate a terceiros e manifestação de incompreensão do fim da relação. Com efeito, se o conteúdo da maioria das referidas mensagens contenha menções sobre uma alegada divida constata-se igualmente da analise pormenorizada dos mesmos que esta extrapola tal conteúdo no sentido de critica à ofendida como pessoa, como mulher, e outras decisões referentes à vida pessoal daquela, mas sobretudo é percetível a tentativa de controlo do quotidiano da mesma. A justificação do arguido também com as deslocações semanais ao local de trabalho da ofendida, não obstante se tratar de um espaço comercial aberto é incoerente sobretudo se atentarmos que, por vezes, permanecia apenas a observa-la durante um período considerável de tempo, alegando que a ofendida sabia a razão deste aí estar.(…)”. Contrariamente ao que propugna o recorrente, os factos demonstram que os comportamentos de assédio e perseguição à assistente ocorreram várias vezes, em dias seguidos ou em semanas consecutivas, de forma repetitiva o que manifesta uma incontornável reiteração, afigurando-se-nos evidente que os descritos comportamentos, concretizados de forma reiterada, se revelaram adequados a intimidar a ofendida e a perturbar a tranquilidade do seu dia a dia. Por outro lado, não reconhecemos qualquer relevância às circunstâncias convocadas no recurso para pôr em causa os requisitos da reiteração e da adequação. Com efeito, de forma alguma o número de vezes em que o arguido concretizou os comportamentos descritos nos factos provados – segundo o próprio, ocorridos num número concreto que se situa entre 19 e 53 dias – terá a virtualidade de condicionar a qualificação dos mesmos como reiterados. Tal característica não demanda a prova de qualquer número concreto de ocorrências, decorrendo antes da repetição persistente, que, indubitavelmente se verificou na situação dos autos. No que tange à adequação, tal como acima explanámos, o crime de perseguição assume a natureza de um crime de perigo concreto, pelo que a sua consumação exige apenas que a conduta criminosa seja idónea a prejudicar a liberdade de determinação da vítima ou a provocar-lhe medo, o que, in casu, claramente se verifica, sendo certo que o arguido impôs a sua presença à assistente contra a vontade expressa da mesma, com absoluto desrespeito pela privacidade e pelo espaço próprio daquela. Nenhuma relevância assume, pois, para o preenchimento do tipo, que nos factos provados se não encontrem concretizadas quaisquer mudanças de comportamento da assistente causadas pelas condutas do arguido, nem tão pouco a forma como tais condutas tiveram impacto na sua vida privada, tal como refere o arguido na sua motivação de recurso. Acresce que, pese embora a prova da concreta perturbação se não revele necessária para o preenchimento do tipo, a verdade é que, tal como se atesta pela leitura integral da sentença, designadamente da parte relativa à motivação da convicção probatória (7), quer a assistente, quer o arguido terão admitido nas suas declarações que aquela, após ter bloqueado o contacto telefónico e o e-mail do arguido e de o ter igualmente bloqueado nas redes sociais, perante a persistência das condutas daquele, acabou por solicitar a um amigo que se deslocasse ao seu estabelecimento com o propósito de o demover de dar continuidade a tais comportamentos. Ora, tal diligência da assistente é obviamente reveladora do estado de perturbação em que a mesma se encontrava, manifestamente causado pelos reiterados assédios do arguido. E nem se diga, como afirma o recorrente, que as condutas censuradas nos autos mais não foram do que “uma tentativa ingénua de perceber os motivos que conduziram a assistente a terminar uma relação de namoro por carta manuscrita” ou que aquele “se deslocou ao estabelecimento comercial da assistente para lhe pedir as quantias que considerava que era credor. Na verdade, a persistência, a intensidade e a reiteração dos comportamentos do arguido de formam alguma se coadunam com tais desideratos, assumindo, outrossim, um cariz obsessivo e apto a perturbar e a intimidar a pessoa a quem se dirigem. Estamos perante um padrão de comportamentos manifestamente enquadráveis na previsão do tipo penal em apreciação, para cuja interpretação a sentença recorrida pertinentemente convocou o texto da exposição de motivos do projeto de lei nº. 647/XII que esteve na sua base, no qual se consignou que: “A perseguição - ou stalking - é um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo. Estes comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas (como oferecer presentes, telefonar insistentemente) ou em ações inequivocamente intimidatórias (por exemplo, perseguição, mensagens ameaçadoras).” Constatamos, pois, que, na situação que constitui o objeto da nossa análise, durante um expressivo período de tempo – cerca de três meses – e movido pela obsessão em reatar a relação amorosa que anteriormente mantivera com a assistente, o arguido resolveu levar a cabo, de forma reiterada e persistente, várias condutas intimidatórias e perturbadoras do quotidiano daquela, aptas a determinarem limitações relevantes na sua vida quotidiana e uma desvaliosa perturbação no seu sossego diário, pelo que se constituiu como autor material de um crime de perseguição, previsto e punido no artigo 154º-A do CP. ***

b) Em virtude de os factos provados não integrarem os elementos objetivos e subjetivos do crime de fotografias ilícitas. O crime de fotografias ilícitas pelo qual o arguido foi condenado encontra a sua previsão nos artigos 199º n.ºs 1 e 2, alínea b) e 197.º alínea b) do CP, que dispõem da seguinte forma:

“Artigo 199.º Gravações e fotografias ilícitas 1 - Quem sem consentimento: (…) 2 - Na mesma pena incorre quem, contra vontade: a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos. 3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 197.º e 198.º

* Artigo 197.º Agravação As penas previstas nos artigos 190.º a 195.º são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo se o facto for praticado: a) Para obter recompensa ou enriquecimento, para o agente ou para outra pessoa, ou para causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado; ou b) Através de meio de comunicação social, ou da difusão através da Internet, ou de outros meios de difusão pública generalizada.”

*** A sentença recorrida contém uma ampla explanação teórica sobre o tipo em análise, abordando as temáticas do bem jurídico protegido, dos elementos objetivos e subjetivos do tipo e das diferenças relevantes entre a proteção do direito à palavra e a tutela do direito à imagem, em termos que, abstratamente, não se encontram postos em causa no recurso, pelo que se não justifica voltar a abordá-las. Em jeito de síntese conclusiva e com vista a melhor se enquadrar o tratamento da concreta questão colocada no recurso relativamente à subsunção da conduta do arguido ao identificado ilícito criminal, diremos apenas que o tipo penal previsto e punido no artigo 199º do CP contém duas incriminações distintas: no seu nº 1 o crime de gravações ilícitas que tutela o direito à palavra e no nº 2 o crime de fotografias ilícitas, que protege o direito à imagem, pelo qual o recorrente foi condenado. Como elemento distintivo nas duas incriminações destaca-se o que se reporta à forma como se encontra prevista em cada uma delas a falta de autorização da vítima, sendo que a gravação da palavra é ilícita se for obtida ou utilizada “sem consentimento”, enquanto a fotografia só será ilícita se for que produzida ou utilizada “contra a vontade” do titular do direito à imagem, decorrendo de tal diferença a existência de uma menor tutela penal do direito à imagem. A situação dos autos reporta-se apenas à violação do direito à imagem, encontrando-se o arguido condenado pela prática do crime de fotografias ilícitas agravado, p. e p. pelos artigos 199º n.ºs 1 e 2, alínea b) e 197.º alínea b) do CP. No tipo legal da condenação incriminam-se as condutas cuja ilicitude resulta da sua concretização contra a vontade da pessoa a quem respeita a fotografia ou a filmagem realizadas e utilizadas, protegendo-se o direito daquela a não ser fotografada ou filmada e a não ver exposta em público, contra a sua vontade, a sua imagem, na medida em que esta é o reflexo da sua identidade pessoal. Concretamente, na situação que nos ocupa, censura-se e pune-se a utilização, contra a vontade da assistente, de uma filmagem contendo a sua imagem, que havia sido obtida com o seu consentimento e, portanto, de forma lícita. O ponto de discórdia do recorrente relativamente à sua condenação pela prática do crime em análise reporta-se ao elemento objetivo do tipo consubstanciado na utilização das imagens “contra a vontade” da assistente. A este propósito, alega o mesmo, nas conclusões do recurso, que: “(…) 18. No que concerne ao crime de gravações e fotografias ilícitas, mais concretamente, aos seus números 1 e 2, alínea b, o Arguido é a considerar que não se encontra preenchido o elemento objetivo da “contra vontade”.19. Porquanto a norma não prevê qualquer presunção de consentimento de utilização de fotografia em áreas não comerciais. 20. A interpretação da norma é feita com recurso ao artigo 79.º do Código Civil que carece, em nossa opinião, não só de uma revisão, como de uma interpretação atualista. 21. Sendo que, no caso em crise, a fotografia é lícita. 22.O Arguido é a considerar que a sentença a quo não valorou devidamente o contexto do circunstancialismo que conduziu à captação da referida imagem/vídeo. 23.Uma vez que a imagem da Assistente em topless foi captada numa praia pública, onde havia a presença de mais pessoas. 24.A Assistente não tinha expetativa de privacidade quando circulou em topless. 25.A Assistente permitiu que o Arguido tirasse a referida fotografia, tendo permitido também que o mesmo a mantivesse. 26.A Assistente não advertiu o Arguido que este não a podia utilizar. 27.A fotografia/vídeo foi captada através de um smartphone que, por sua vez, através de um sistema operativo, realiza um upload para a cloud. 28.Adicionalmente, tanto a Assistente como o Arguido mantêm páginas no Facebook onde publicam fotografias, histórias, comentários, entre outros, para uma comunidade de estranhos. 29.O Arguido publicou nessa mesma plataforma o vídeo que achava ser uma fotografia, como sempre o fez e como a Assistente sempre o conheceu. 30.O Arguido considerou que não precisava do consentimento, porquanto a fotografia tinha sido tirada naquele contexto específico. 31. Tendo retirado a fotografia imediatamente após ter sido informado que a Assistente não se queria ver exposta. 32.A questão de privacidade no novo paradigma digital é complexa, uma vez que o utilizador abdica ab initio de qualquer privacidade quando expõe a sua vida para terceiros. 33.O utilizador das novas tecnologias tem de se saber proteger das novas ferramentas digitais, pois uma vez captada uma fotografia num smartphone esta nunca mais deixa de existir. 34.Destarte, a norma incriminadora não prevê o consentimento presumido, porquanto a norma tem de ser interpretada num contexto atual onde, Assistente e Arguido, abdicaram da sua privacidade quando decidiram captar uma fotografia num espaço público em topless, em formato digital e guardado num cloud. (…)”

Mas não tem razão. Antes de mais, cabe salientar que o recorrente parece confundir o plano factual com o da valoração dos factos, pois que a sua linha argumentativa assenta na alegada falta de prova de que o vídeo foi publicitado pelo arguido contra a vontade da assistente. Olvida, porém, que nos factos provados nºs 10, 16, 17 e 18, que não se encontram impugnados no recurso, se consignou que: “10. Em data não determinada, mas apos o términus da relação, o arguido publicou na sua rede social Facebook um vídeo, onde aparece a imagem da assistente a exibir os seus seios na praia (top-less), sem que lhe fosse concedida autorização pela mesma para partilha do vídeo. (…) 16. Agiu ainda o arguido bem sabendo que não estava autorizado a partilhar vídeos com terceiros, contendo a imagem da assistente, querendo com isso violar, como violou, o direito à sua imagem. 17. Bem sabia o arguido que, ao partilhar tal vídeo numa rede social, estava a difundir tal conteúdo através da Internet e que aumentava significativamente o acesso do sobredito conteúdo a terceiros, o que logrou. 18. O arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que o seu comportamento se encontra previsto e é punido pela lei penal.” Ora, se é certo que a expressão utilizada relativamente ao elemento em causa não é exatamente a que é usada no tipo – “contra a vontade”– não temos dúvida que, quando nos pontos transcritos se refere “publicou na sua rede social Facebook um vídeo, onde aparece a imagem da assistente a exibir os seus seios na praia (top-less), sem que lhe fosse concedida autorização pela mesma para partilha do vídeo.” e “Agiu ainda o arguido bem sabendo que não estava autorizado a partilhar vídeos com terceiros, contendo a imagem da assistente, querendo com isso violar, como violou, o direito à sua imagem” (8), se pretendeu significar que a publicação do vídeo em causa foi realizada contra a vontade da titular do direito à imagem no mesmo exibida. No mesmo registo argumentativo contrário ao teor da factualidade provada, que decidiu não impugnar, alega o recorrente que quando fez a publicação em causa achava que o vídeo era uma fotografia. Quanto a tal alegação factual, diremos que, a mais de não poder ser valorada nos autos por ser contrária ao teor dos factos provados que transcrevemos, a mesma se revela absolutamente desrazoável e inverosímil por ser contrária às regras da experiência comum, pois que, como bem faz notar a sentença recorrida “a alegação do arguido do desconhecimento que o vídeo publicado seria uma reprodução de imagem e som da ofendida semidesnuda, afigura-se inverosímil atendendo que foi o próprio quem procedeu à captura das imagens, bem como, ainda que se acreditasse na versão do arguido, aquando da publicação, o mesmo, de imediato, se aperceberia do teor da imagem (vídeo e não fotografia) e, no entanto, o arguido manteve a publicação diversos dias até decidir apagar a mesma. Acresce que o mesmo não se limita a indicar eventual receio que algo lhe suceda por causa da ofendida, aproveitando a publicação para tecer comentários sobre a personalidade daquela e, estranhamente, a mencionar que tem autorização desta para as fotografias e vídeos.” Por outro lado, o recorrente confunde manifestamente os dois momentos a que acima nos reportámos, parecendo pretender decalcar a autorização para a publicação sobre a que lhe havia sido concedida para o registo da imagem. Por último, nenhum mérito reconhecemos ao argumento apresentado pelo recorrente no sentido de que “23.Uma vez que a imagem da Assistente em topless foi captada numa praia pública, onde havia a presença de mais pessoas. 24.A Assistente não tinha expetativa de privacidade quando circulou em topless.”. É, quanto a nós, absolutamente errado tal entendimento e a visão dos acontecimentos em concreto que lhe está associada. Como pode o recorrente afirmar que o facto de ter decidido deixar-se fotografar ou filmar numa praia pública no âmbito de uma relação privada, faz precludir o seu direito de decidir sobre a exposição pública da sua imagem?! Não lhe assiste, de todo, razão. São momentos diferentes, nos quais são exercidos direitos autónomos legalmente protegidos, cuja violação assume relevância penal: por um lado, o direito a decidir registar a sua imagem para memória futura num local público; por outro, o direito a decidir sobre a exposição pública de tal registo de imagem. Esta a razão pela qual, conforme bem se refere na sentença, a autorização deverá ser específica para cada um dos atos, ou seja, é necessária quer para tirar a fotografia ou para realizar o filme, quer para os divulgar. Na verdade, o visado pode consentir no registo da sua imagem e, legitimamente, não consentir que tal registo seja divulgado, pelo que o uso contra a sua vontade se encontra criminalizado. (9) E nem se diga, como diz o recorrente, que “a Assistente não tinha expetativa de privacidade quando circulou em topless.”, ou que “tanto a Assistente como o Arguido mantêm páginas no Facebook onde publicam fotografias, histórias, comentários, entre outros, para uma comunidade de estranhos”, ou ainda que “o utilizador das novas tecnologias tem de se saber proteger das novas ferramentas digitais, pois uma vez captada uma fotografia num smartphone esta nunca mais deixa de existir.”. Refira-se, em primeiro lugar que a expetativa de privacidade protegida pelo tipo penal em análise nada tem que que ver com o contexto situacional onde a imagem foi registada, revelando-se absolutamente irrelevante a circunstância de tal registo ter sido realizado numa praia pública na qual a assistente, no pleno uso do seu livre arbítrio, decidiu estar com os seios descobertos e deixar-se filmar na referida situação. O que, porém, não autorizou foi a divulgação de tal registo de imagem, pelo que o desrespeito voluntário e consciente de tal vontade é penalmente censurado. Igualmente irrelevante é o facto de a assistente ser utilizadora da rede social Facebook, na qual publica fotografias, disponíveis para uma comunidade de estanhos, pois que este vídeo em concreto a mesma não decidiu publicar, nem deu autorização para que o arguido o fizesse. Por último, afigura-se-nos absolutamente descabida afirmação de que “o utilizador das novas tecnologias tem de se saber proteger das novas ferramentas digitais, pois uma vez captada uma fotografia num smartphone esta nunca mais deixa de existir”. De outra sorte, entendemos que o utilizador das novas tecnologias encontra a sua proteção contra a utilização abusiva das mesmas nos instrumentos legais criados para o efeito, entre os quais se inclui a criminalização de condutas semelhantes à que nos presentes autos foi objeto de condenação. Os agressores do direito à imagem e à privacidade em geral não são as novas tecnologias, entendidas como entidades abstratas e personificadas, como parece resultar da linha argumentativa do recorrente, mas sim os que as utilizam indevidamente, delas se servindo para levar a cabo condutas ilícitas e lesivas de tais direitos. Em suma, o arguido procedeu à gravação audiovisual da assistente durante um período de lazer do casal, portanto, com o seu consentimento. Porém, nenhum consentimento obteve da mesma para proceder à publicação na rede social Facebook do vídeo que realizara, bem sabendo que por tal via, alargaria incomensuravelmente o universo de pessoas a quem a imagem da assistente seria exposta. Assim, a sua conduta consubstancia uma utilização proibida e agravada, nos termos estabelecidos nos artigos 199.º, n.º 2, alínea b) e 197.º, al. b) do Código Penal, o que o arguido não podia desconhecer, porquanto sabia não ter obtido o consentimento da assistente para a utilização do vídeo, sabendo igualmente que atuava de modo proibido e punido por lei. (10)

* Nestes termos, nenhuma dúvida temos de que se se encontram preenchidos quer os elementos objetivos, quer os subjetivos do tipo de fotografias ilícitas agravado imputado ao recorrente, impondo-se concluir pelo bem fundado do juízo condenatório constante da sentença recorrida, que se manterá. ****

B) Da alegada violação do princípio “in dubio pro reo”.

Invoca o arguido que na sentença recorrida o tribunal “a quo” desrespeitou o princípio do “in dubio pro reo”.

Como corolários do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no seu artigo 1.º, estabelece a Constituição da República Portuguesa, como direitos fundamentais o direito à liberdade (artigo 27.º, nº 1) e o princípio da presunção de inocência dos arguidos, plasmado nos artigos 32.º, nº 2.º e 27.º, nº 1.º. O princípio da livre apreciação da prova a que se refere o artigo 127.º CPP, constitui uma concretização do princípio da presunção de inocência – maxime na sua dimensão in dubio por reo – que encontra referência normativa expressa no artigo 6.º, nº 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 14.º, nº 2.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

Retenhamos, porém, que «o princípio da presunção de inocência excede em significado e consequências o princípio in dubio pro reo, constituindo este apenas um critério de decisão em caso de dúvida quanto à verificação dos factos. (11)» ou seja, uma «regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos» (12). De acordo com tal regra, que inevitavelmente se conexiona com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, determina-se que a dúvida seja resolvida a favor do réu. O seu âmbito reconduz-se, pois, à valoração pelo julgador de toda a prova produzida. Se o resultado desse processo de valoração for uma dúvida – uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos – o juiz terá que decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

Voltando ao caso em apreciação nos presentes autos, verificamos que os princípios explanados se mostram devidamente observados. Efetivamente, analisada a sentença recorrida, constata-se que, após o processo de valoração da prova não subsistiu ao julgador qualquer dúvida razoável que impusesse a aplicação do princípio do in dubio pro reo.

Levando em conta as razões descritas na motivação da decisão recorrida e as considerações que deixámos expostas, somos a concluir que da valoração da prova produzida não surgiu o non liquet, que, por aplicação do aludido princípio, determinaria que alguns dos factos considerados provados devessem ser julgados não provados.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)

Évora, 9 de maio de 2023

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

Maria Margarida Bacelar

1 Pese embora no dispositivo da sentença se refira incorretamente que a pena única foi obtida através de “acumulação material das penas referidas em 1) e 2)”, expressão que atribuímos a manifesto lapso.

2 Disponível em www.dgsi.pt.

3 A problemática subjacente à realidade da perseguição foi primeiramente tratada na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, vulgarmente conhecida como Convenção de Istambul, assinada nessa mesma cidade, em 11 de maio de 2011, ratificada por Portugal em 2013 e cuja entrada em vigor ocorreu a 1 de agosto de 2014.

4 Manuel da Costa Andrade, “Comentário ao artigo 190º do Código Penal”, in Comentário Conimbricense do Código Penal: parte especial, Coimbra Editora, 2ª Edição, 2012, p. 1007.

5 A respeito do crime de perseguição e do fenómeno de stalking, cfr. Mário Ferreira Monte, “Comentários à margem da Lei, nº 83/2005 de 5 de agosto”, in Revista Julgar, nº 28; Ana Teresa Paiva Costa Amaro, Tese “O Crime de Perseguição: Subsídios para a sua Compreensão no Contexto da Sociedade da Informação”, UMinho, outubro de 2017; Sara Figueira, Relatório de estágio no Gabinete de Apoio à Vítima de Lisboa da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, “A necessidade e eficácia do crime de perseguição”, Setembro 2017 e Filipa Isabel Gromicho Gomes, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra “O novo crime de perseguição: considerações sobre a necessidade de intervenção penal no âmbito de stalking.

6 Ao nível da Jurisprudência recente, destacamos, com referência ao crime em análise, o Acórdão da Relação de Guimarães de 05.06.2017, o Acórdão da Relação de Guimarães de 11.02.2019, relatado pela Desembargadora Ausenda Gonçalves e o Acórdão da Relação de Lisboa de 09.07.2019, relatado pelo Desembargador Ricardo Cardoso e o Acórdão da Relação de Évora, de 21.11.2021, por nós relatado, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

7 Aí se consignou que:“(…)Descreveu perturbação e o incomodo provocado pela conduta reiterada e persistente do arguido, mas igualmente o receio que começou a sentir perante o não aceitar do fim da relação por aquele, ao ponto de ter bloqueado o contacto telefónico, das redes sociais e do email do arguido e no final, solicitado a um amigo de nome EE, para se deslocar ao seu estabelecimento numa das visitas do arguido com vista a conversar com aquele, sendo certo que desde essa data, o arguido não persistiu nas deslocações aos locais por aquela frequentados.

Tal facto foi corroborado pelo arguido, alegando ter sido vitima de ameaças pelo referido individuo (..)”

8 Negritos acrescentados.

9 Visão que reflete a chamada “tese dualista” a que alude Manuel da Costa Andrade no seu comentário ao artigo 199º do CP, in Comentário Conimbricence, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, página 831, no qual podemos ler: “a tese dualista projeta-se. assim, numa descontinuidade normativa entre a gravação e a utilização. Por vias dela, tanto pode ser ilícita a utilização de uma gravação lícita (sc. licitamente obtida) como a inversa”.

10 No sentido em que agora decidimos, decidiram também, entre outros, os acórdãos da Relação do Porto de 05.06.2015, relatado pelo Desembargador José Carreto e da Relação de Coimbra de 20.09.2017, relatado pela Desembargadora Brízida Martins, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

11 Helena Bolina, Razão de Ser, Significado e Consequências do Princípio da Presunção de inocência, Boletim da Faculdade de Direito, 70, 1994, pp. 433.

12 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pp. 215.