Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
374/13.3TUEVR.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL NO TEMPO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: TRIBUNAL DO TRABALHO DE ÉVORA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
I- A eficácia retroativa da lei processual é admitida, por via, por exemplo, da consagração de disposições transitórias, desde que não viole a Constituição da República Portuguesa.
II- A norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos (artigo 703º do novo CPC), quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.
III- A eliminação dos documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelos devedores do elenco dos títulos executivos, constitui uma alteração no ordenamento jurídico que não era previsível. Se, à data em que tais documentos foram constituídos os mesmos eram dotados de exequibilidade, é de esperar alguma constância no ordenamento no âmbito da segurança jurídica constitucionalmente consagrada. Assim, a alteração da ordem jurídica não era de todo algo com que se pudesse contar. Daí que os titulares de documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que tinham a característica da exequibilidade conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do velho código, tivessem uma legítima expectativa da manutenção da anterior tutela conferida pelo direito.
IV- Por conseguinte, a aplicação retroativa do artigo 703º do novo Código de Processo Civil, a títulos anteriormente tutelados com a característica da exequibilidade, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas.
V- De acordo com a Exposição de Motivos apresentada na Proposta de Lei nº 113/XII, a retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos teve dois objetivos em vista: (i) diminuir o número de ações executivas; (ii) criar medidas para agilizar o processo executivo, libertando o mesmo de identificadas causas de protelamento e complexidade (v.g. oposições à execução).
VI- As razões de interesse público subjacentes à opção da retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos, não prevalecem, sobre as legítimas expectativas individuais geradas pelo próprio ordenamento jurídico.
VII- Uma alteração da ordem jurídica que sacrifique legítimas expectativas de particulares juridicamente criadas só faz sentido e só pode ser admitida quando valores mais elevados se impõem, ou seja, o sacrifício imposto apenas tem razão de ser perante a inevitabilidade de razões da maior importância para a sociedade, justificando-se, então, o sacrifício de alguns em prol do coletivo.
VIII- Os fins que se visam alcançar com a eliminação dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos não constituem razões de tal forma ponderosas para o bem comum coletivo que justifiquem o sacrifício das legítimas expectativas de, muito provavelmente, um número significativo de cidadãos que se limitou a agir de acordo com a lei vigente, na altura, confiando que a sua atuação estaria protegida pelo Estado de Direito Democrático.

Sumário da relatora
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório
N..., com o NIF …, residente …, veio propor, em 16/10/2013, ação executiva contra C..., com o NIPC … e escritório …, por meio de requerimento próprio, apresentando como título executivo um documento particular assinado pelas partes, que consubstancia um acordo extrajudicial feito na presença do Procurador da República junto do Tribunal do Trabalho de Évora, através do qual a executada se comprometeu a pagar ao exequente a quantia de € 4.092,21, por transferência bancária, em 2 prestações, sendo a primeira no valor de € 1.523,02, com vencimento em 30 de agosto de 2012 e a segunda, no valor de € 2.569,19, com vencimento em 30 de dezembro de 2012. A execução é proposta pelo valor da 2ª prestação acordada, que o exequente declarou não ter sido liquidada (cfr. fls. 4).
Tendo a secretaria aberto conclusão ao Meritíssimo Juiz, por ter dúvidas sobre a validade do título executivo, em 30/10/2013, foi proferido o seguinte despacho, com a referência nº 502550:
«Com a entrada em vigor do novo C.P.C. o documento junto deixou de ser título executivo, nos termos do art.ª 703º, pelo que indefiro liminarmente a presente execução.».
Inconformado com este despacho, veio o exequente, patrocinado pelo Ministério Público, interpor recurso do mesmo, apresentando no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
A. Os autos de tentativa de conciliação, que incorporam acordo extra judicial, em Processo Administrativo do Ministério Público, face à entrada em vigor do novo CPC, não deixaram de ser título executivo, desde que elaborados na presença e sob a presidência desse magistrado.
B. Mantêm esse valor quer por força do disposto no artigo 703º, nº. 1 do novo CPC, quer por força do artigo 707º do mesmo diploma, sempre que parte da obrigação se mostre cumprida (no caso dos autos foi paga a primeira prestação),
C. Pois nos autos de tentativa de conciliação em processo administrativo do Mº Pº, o Magistrado do Mº Pº intervém vinculado a critérios de objetividade e de legalidade, no quadro das suas competências e atribuições legais e estatutárias, sendo de considerar outra entidade no exercício das suas funções produz documentos autênticos que incorporam obrigações.
D. Por força do artigo 6º, nº. 3 da Lei que aprovou o novo CPC, ainda que interpretado extensivamente, os títulos executivos que face ao antigo CPC tinham força executória, não perdem esse valor com entrada do novo CPC.
E. A não se entender assim, ficariam preteridos direitos legítimos dos trabalhadores - bastaria que já tivesse decorrido mais de um ano sobre a cessação do contrato de trabalho, como é o caso dos autos (o acordo data de 27/05/2012 e a cessação do contrato aconteceu em 30/06/2011).
F. O despacho ora posto sob sindicância violou o disposto nos artº.s 6º da Lei que aprovou o novo CPC e os artigos 703º, nº 1 alínea b) e 707º do CPC.
Termos em que deve o presente recurso ser provido e, consequentemente, revogar-se o despacho recorrido e ordenar-se a citação do executado para os termos da execução.
A acompanhar o recurso é apresentado um documento, constituído pela certidão do processo administrativo com o nº320/12.1TUEVR, tendo por requerente o ora exequente e por requerida a ora executada, no âmbito do qual foi celebrado o “acordo extrajudicial” apresentado como título executivo.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata e efeito devolutivo.
Tendo os autos sido remetidos a este Tribunal, foi ordenado por despacho da Relatora a sua devolução à 1ª instância, para que fosse fixado o valor à ação.
Foi, então, fixado à causa, o valor de € 2.569,19.
Após nova remessa do processo a este tribunal de 2ª instância, foram colhidos os vistos legais, competindo agora decidir.
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II. Questão Prévia - da admissibilidade da junção de documentos com as alegações de recurso
A acompanhar o recurso, foi apresentado um documento constituído por uma certidão do processo administrativo que correu termos nos serviços do Ministério Público junto do Tribunal do Trabalho de Évora, no âmbito do qual foi realizado o acordo extrajudicial, formalizado em documento particular assinado pelos litigantes, documento esse apresentado como título executivo.
De harmonia com o normativo inserto no artigo 651º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho, aplicável ex vi do artigo 87º, nº1 do Código de Processo do Trabalho, as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
Ora, o documento apresentado pelo recorrente, não constitui um documento cuja apresentação só agora tenha sido possível, mas afigura-se-nos que é um documento relevante ou necessário para a boa decisão da causa.
Deste modo, ao abrigo do artigo 651ºdo Código de Processo Civil, admite-se a sua junção ao processo.
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III. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso, que in casu não se vislumbra.
Em função destas premissas, constitui objeto do presente recurso saber se o documento junto com o requerimento executivo constitui ou não título executivo.
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IV. Matéria de facto
A matéria de facto a atender é a que consta do relatório supra, para a qual remetemos, sem necessidade da sua repetição, transcrevendo apenas o teor documento particular assinado por ambas as partes, que acompanhou o requerimento executivo:
«Auto de Tentativa de Conciliação
P.A. nº 320/12.1TUEVR
Aos 21 de maio de 2012 nesta Procuradoria, perante mim Procurador da República, lic. Carlos Pereira, compareceram os trabalhadores e entidade empregadora infra identificadas, as quais terminaram o litígio subjacente aos autos com o seguinte:
Acordo Extra Judicial
Entre N... e C..., representada pelo vice presidente T…, estabelece-se o seguinte:
1º A segunda outorgante compromete-se a pagar ao primeiro, a quantia de 4.092,21 euros, a pagar, por transferência bancária, em 2 prestações, sendo a primeira no valor de 1.523,02 euros, com vencimento em 31 de agosto de 2012 e a segunda no valor de 2.569,19, com vencimento em 31 de dezembro de 2012.
2ª A primeira aceita e diz-se ressarcida de todos os direitos acerca do presente litígio laboral, logo que pago, e dá pelo presente quitação após cumprimento.»
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V. Direito
Tal como já se referiu supra constitui objeto do presente recurso saber se o documento junto com o requerimento executivo constitui ou não título executivo.
Apreciemos, então, a questão.
Em 16 de outubro de 2013, deu entrada no Tribunal do Trabalho de Évora o requerimento executivo acompanhado de um documento escrito, assinado por exequente e executada, com o teor supra transcrito.
Considerando a data da apresentação do requerimento executivo, é aplicável aos autos o regime resultante da conjugação dos artigos 88º, 90º, 98º e 98ºA do Código de Processo do Trabalho com o regime do processo executivo previsto pelo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho, que entrou em vigor em 1 de setembro de 2013.
E, de harmonia com o normativo inserto no artigo 88º do Código de Processo do Trabalho, podem servir de base à execução:
a) Todos os títulos a que o Código de Processo Civil ou lei especial atribuam força executiva;
b) Os autos de conciliação.
Principiemos por analisar o título a que alude a alínea b) do mencionado artigo 88º: “os autos de conciliação”.
Esta espécie de título executivo encontra-se prevista desde há muito como um título específico do foro laboral [cfr. artigo 91º, alínea c) do Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº 272-A/81, de 30 de setembro]. Contudo, os “autos de conciliação” a que a lei se refere são todos aqueles que resultam da audiência, visto que neste caso não carecem de homologação judicial (cfr. relatório do Decreto-Lei nº 480/99, de 9/11 e artigo 52º do Código de Processo do Trabalho).
Assim, os designados “autos de conciliação” elaborados no âmbito de diligências realizadas pelo Ministério Público em processos administrativos, de natureza laboral, não integram o título executivo previsto na alínea b) do referido artigo 88º.
Logo, o documento apresentado com o requerimento inicial executivo, que constitui um acordo obtido no âmbito de uma tentativa de conciliação dirigida pelo Ministério Público, em sede de processo administrativo que correu termos no tribunal recorrido, não se enquadra na mencionada alínea b).
Analisemos, então, os títulos a que se reporta a alínea a) do aludido artigo 88º.
Desde já se adianta que não nos iremos debruçar sobre títulos executivos previstos em lei especial, uma vez que o que está em discussão no âmbito do recurso interposto se relaciona com a eliminação dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos levada a cabo pela reforma do Código de Processo Civil, aprovada pela Lei nº41/2013.
Passemos a explicar.
Confrontando o estipulado pelo artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, com o consagrado no artigo 703º do novo Código de Processo Civil, de imediato se conclui que os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações, deixaram de integrar o elenco de títulos executivos taxativamente previsto pelo aludido artigo 703º. Deste modo e por força da disposição transitória consagrada no artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, porque o disposto no novo Código de Processo Civil tem aplicação imediata a todas as execuções iniciadas após a sua entrada em vigor (1/9/2013-cfr. artigo 8º da Lei nº41/2013), parece que o legislador processual quis retirar qualquer força executiva aos documentos particulares previstos na anterior alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código.
Ora, a aplicação da nova lei processual para futuro, isto é, para documentos particulares redigidos e assinados, após 1 de Setembro de 2013, não nos suscita qualquer dúvida. Tais documentos perderam a característica da exequibilidade.
O problema surge em relação a documentos particulares constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor anteriormente a 1 de Setembro de 2013, como é o caso do documento apresentado no âmbito dos presentes autos como título executivo, em que o executado assumiu uma obrigação pecuniária, apondo a sua assinatura no documento, em 21 de maio de 2012, ou seja, quer antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil quer antes da data da publicação do diploma que o aprovou (Lei nº41/2013, de 26 de junho).
No fundo, o cerne da questão traduz-se no seguinte: à data em que tais documentos particulares foram elaborados e assinados, os mesmos tinham força executiva. Integravam o elenco dos títulos executivos previsto no mencionado artigo 46º do velho Código. A nova lei retira-lhes a característica da exequibilidade.
Poderá fazê-lo?
No que concerne à aplicação no tempo da lei processual civil, a regra é a mesma que vale na teoria geral do direito- aplicação imediata da nova lei.
Tal regra mostra-se consagrada no nº1 do artigo 12º do Código Civil. Todavia, admite-se a eficácia retroativa da lei processual, por via, por exemplo, da consagração de disposições transitórias.
Todavia, tal retroatividade tem um limite: a Constituição da República Portuguesa.
Pelo que temos conhecimento até ao momento, a questão da inconstitucionalidade da disposição que elimina os documentos particulares do elenco dos títulos executivos, quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº 41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar aos documentos particulares validamente constituídos antes da sua entrada em vigor e ao abrigo do disposto na alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, apenas foi suscitada num artigo publicado na Revista JULGAR on line-2013, da autoria de Maria João Galvão Teles.
Refere a Ilustre Advogada neste artigo que “uma aplicação retroativa ou retrospetiva da nova lei que afete de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos deve ser declarada inconstitucional com fundamento na violação do princípio da segurança e proteção da confiança ínsito no artigo 2º da Constituição (CRP)”.
Concordamos em absoluto com tal entendimento.
De harmonia com o disposto no artigo 2º da Lei Fundamental da Nação, a República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático.
Ora, deste princípio do Estado de Direito Democrático decorre o princípio constitucional da segurança jurídica, na vertente da proteção da confiança dos cidadãos.
O conteúdo deste princípio tem sido objeto de apreciação pela jurisprudência, com particular enfoque, naturalmente, para a que é originária do Tribunal Constitucional.
Por exemplo no Acordão nº 128/2009 deste Tribunal, publicado no Diário da República, 2ª série, de 24 de abril de 2009, escreveu-se o seguinte, sobre a jurisprudência sustentada no Acordão nº287/90, mencionado no artigo supra identificado:
«De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela cons­tantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da propor­­cionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui proteção”.
O princípio da confiança traduz-se, numa proteção da confiança dos cidadãos na atuação do Estado.
Tal proteção deve manifestar-se nos atos e decisões assumidos pelo Estado, nomeadamente na atividade desenvolvida pelo poder legislativo.
Dito de outro modo, a atuação do Estado deve ter sempre presente e objetivar-se para que haja um mínimo de certeza no direito das pessoas e nas expectativas que lhe são juridicamente criadas.
Por isso, a retroatividade normativa tem restrições: as que resultam dos direitos adquiridos mas também as decorrentes das expectativas juridicamente criadas.
Uma nova lei não pode frustrar de forma intolerável ou arbitrária as expectativas dos cidadãos que haviam sido criadas por uma anterior tutela conferida pelo direito, sob pena de ser considerada inconstitucional por violação do princípio constitucional da confiança que integra o princípio do Estado de Direito Democrático.
E, a nosso ver, a norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos, quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.
Passemos a explicar porquê.
A eliminação dos documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelos devedores do elenco dos títulos executivos, constitui uma alteração no ordenamento jurídico que não era previsível.
Se, à data em que tais documentos foram constituídos os mesmos eram dotados de exequibilidade, é de esperar alguma constância no ordenamento no âmbito da segurança jurídica constitucionalmente consagrada. Assim, a alteração da ordem jurídica não era de todo algo com que se pudesse contar. Daí que os titulares de documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que tinham a característica da exequibilidade conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do velho código, tivessem uma legítima expectativa da manutenção da anterior tutela conferida pelo direito.
Quantas centenas ou milhares de acordos foram formalizados por via de um escrito assinado pelas partes, nomeadamente acordos extrajudiciais realizados em processos administrativos nos tribunais de trabalho e, mesmo, acordos de revogação de contratos de trabalho diretamente celebrados entre os trabalhadores e os empregadores.
Por conseguinte, a aplicação retroativa do artigo 703º do novo Código de Processo Civil, a títulos anteriormente tutelados com a característica da exequibilidade, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas.
Conforme refere Maria João Galvão Teles, no artigo supra identificado, “[s]e, à data da constituição do negócio ou da constituição da relação jurídica, aquele documento não revestisse a força de título executivo, o credor não teria porventura formado a sua vontade nos termos em que a formou, podendo presumir-se que só não requereu a autenticação do documento particular porque tal formalidade não era necessária para que aquele documento fosse um título executivo.
Se a nova lei se aplicar aos documentos particulares validamente constituídos antes da data da sua entrada em vigor, existirão certamente situações em que o credor, mesmo sabendo que a partir de 31 de agosto de 2013 já não pode utilizar aquele documento para intentar a respetiva ação executiva, nada poderá fazer porque o cumprimento da obrigação está, por exemplo, fixado para um momento posterior à data da entrada em vigor da nova lei,
Pode ainda dar-se o caso de, mesmo já tendo havido incumprimento do devedor, o credor não estar, por motivos de ordem pessoal, em condições de intentar imediatamente a respetiva ação executiva. Também nestes casos, a imposição da imediata propositura da ação executiva não é compatível com imperativos de ordem constitucional.
Do exposto resulta claro que as expectativas dos credores (de que os documentos particulares com que se muniram eram já ou poderiam ser títulos executivos) não eram simples expectativas futuras, mas verdadeiros interesses legítimos dignos de tutela”.
Acresce que a alteração ocorrida na ordem jurídica não teve como causa a salvaguarda de qualquer direito ou interesse constitucionalmente consagrado e prevalecente.
Na Proposta de Lei nº 113/XII, na Exposição de Motivos, no que respeita à ação executiva refere-se o seguinte:
«Relativamente à ação executiva, mantendo-se o figurino introduzido pela reforma de 2003, assente na figura do agente de execução, a intervenção legislativa é feita em diversos planos.
Desde logo, é revisto do elenco dos títulos executivos. É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respetivo portador o imediato acesso à ação executiva. Se é certo que tal solução teve por efeito reduzir significativamente a instauração de ações declarativas, a experiência mostra que também implicou o aumento do risco de execuções injustas, risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório. Associando-se a isto uma realidade que, embora estranha ao processo civil, não pode ser ignorada, como seja o funcionamento um tanto desregrado do crédito ao consumo, suportado em documentos vários cuja conjugação é invocada para suportar a instauração de ações executivas, é fácil perceber que a discussão não havida na ação declarativa (dispensada a pretexto da existência de título executivo) acabará por eclodir mais à frente, em sede de oposição à execução. Afigura-se incontroverso o nexo entre o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório.
Considerando que, neste momento, funciona adequadamente o procedimento de injunção, entende-se que os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título executivo assim formado. Como é evidente, se houver oposição do requerido, isso implicará a conversão do procedimento de injunção numa ação declarativa, que culminará numa sentença, nos termos gerais. Deste modo, relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalvam-se os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respetivo credor poder aceder logo à via executiva. Ainda dentro dos títulos de crédito, consagra-se a sua exequibilidade como meros quirógrafos, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente.»
Ora, atenta a motivação exposta, afigura-se-nos que a retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos teve dois objetivos em vista: (i) diminuir o número de ações executivas; (ii) criar medidas para agilizar o processo executivo, libertando o mesmo de identificadas causas de protelamento e complexidade (v.g. oposições à execução).
Ora, as razões de interesse público subjacentes à opção da retirada dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos, não prevalecem, do nosso ponto de vista, sobre as legítimas expectativas individuais geradas pelo próprio ordenamento jurídico.
Ponderando-se os dois interesses em confronto- os particulares têm interesse na estabilidade da ordem jurídica e das situações jurídicas constituídas a fim de organizarem os seus planos de vida, evitando-se o mais possível a frustração das suas expectativas fundadas; o interesse público preocupa-se com a transformação da ordem jurídica de modo a adaptá-la o mais possível às necessidades sociais- o método do juízo de avaliação e ponderação dos interesses relacionados com a proteção da confiança é igual ao que se segue quando se julga sobre a proporcionalidade ou adequação substancial de uma medida restritiva de direitos. Mesmo que se conclua pela premência do interesse público na mudança e adaptação do quadro legislativo vigente, ainda assim é necessário aferir, à luz de parâmetros materiais e axiológicos, se a medida do sacrifício é «inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa» (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 862/13 e n.º 287/90).
E, em nosso entender, prevalecem, desde logo, os interesses particulares.
É que pesando as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim, diremos que o sacrifício das expectativas jurídicas criadas é demasiado oneroso para justificar os fins pretendidos com a alteração da ordem jurídica.
Uma alteração da ordem jurídica que sacrifique legítimas expectativas de particulares juridicamente criadas só faz sentido e só pode ser admitida quando valores mais elevados se impõem, ou seja, o sacrifício imposto apenas tem razão de ser perante a inevitabilidade de razões da maior importância para a sociedade, justificando-se, então, o sacrifício de alguns em prol do coletivo.
Ora, os fins que se visam alcançar com a eliminação dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos não constituem razões de tal forma ponderosas para o bem comum coletivo que justifiquem o sacrifício das legítimas expectativas de, muito provavelmente, um número significativo de cidadãos que se limitou a agir de acordo com a lei vigente, na altura, confiando que a sua atuação estaria protegida pelo Estado de Direito Democrático.
Em suma, consideramos que a norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos, quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.
No concreto caso dos autos, ao acordo extrajudicial apresentado com o requerimento executivo foi conferida a característica da exequibilidade por força do disposto no artigo 46º, nº1, alínea c) do anterior Código de Processo Civil. E, considerando a inconstitucionalidade da norma que retirou essa característica da exequibilidade, conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, na interpretação supra identificada, a mesma é inaplicável, pelo que se mantém o regime anteriormente previsto e, como tal, o documento apresentado pelo exequente constitui um título executivo que, como tal deverá ser aceite, devendo a execução prosseguir a sua normal tramitação.
Concluindo, o recurso mostra-se procedente
Sem custas.
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VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
a) em não aplicar o artigo 703º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº41/2013, na parte que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos, quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, dada a sua inconstitucionalidade por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático;
b) julgar o recurso procedente e, consequentemente, revogam o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que ordene o normal prosseguimento da ação executiva.
Sem custas
Notifique.
Évora, 27 de fevereiro de 2014
(Paula Maria Videira do Paço)
(Acácio André Proença)
(José António Santos Feteira)