Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
448/05.4TALLE.E1
Relator: ANA BACELAR CRUZ
Descritores: MAUS TRATOS A OUTREM
OMISSÃO DE AUXÍLIO
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 09/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I – Tendo presentes os factos apurados que dão uma imagem muito negativa do comportamento da arguida no desempenho da sua atividade profissional de enfermeira e perante pessoas particularmente frágeis – em função da idade que contavam e das doenças de que padeciam, colocadas em ambiente estranho e na inteira dependência de quem delas cuidasse – bem como a sua postura arrogante em sede de audiência de julgamento, a ausência de arrependimento, os antecedentes criminais que já averba, é de concluir que a imposição de pena privativa de liberdade, de cumprimento tendencialmente não efetivo, não realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 448/05.4TALLE, do 1.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Loulé, o Ministério Público acusou M, divorciada, nascida a 13 de abril de 1949, na freguesia de Vale da Senhora da Póvoa, concelho de Penamacor, filha de…, residente…, em Albufeira, pela prática, em autoria material e na forma consumada:

- de quatro crimes de maus tratos, previstos e puníveis pelos artigos 10.º, n.º 1 e n.º 2, e 152.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal – atualmente previstos e puníveis pelos artigos 10.º, 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal;

- de um crime de maus tratos agravado, previsto e punível pelos artigos 10.º, n.º 1 e n.º 2, e 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 5, alínea a), por referência ao artigo 144.º, alínea c), do Código Penal – atualmente previsto e punível pelos artigos 10.º e 152.º-A, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 144.º, alínea c), do Código Penal;

- de dois crimes de omissão de auxílio, previstos e puníveis pelos artigos 10.º, n.º 1 e n.º 2, e 200.º, n.º 1, do Código Penal;

- de um crime de falsificação de documento agravado, previsto e punível pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea d), e n.º 4, do Código Penal.

Não foi apresentada contestação escrita.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Coletivo, por acórdão proferido e depositado em 13 de junho de 2012, foi a Arguida:

(i) absolvida da prática de três crimes de maus tratos, previstos e puníveis pelo artigo 152.º do Código Penal, que lhe eram imputados:

(ii) condenada

- pela prática de um crime de maus tratos, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- pela prática de um crime de omissão de auxílio, previsto e punível pelo artigo 200.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão;

- pela prática de um crime de omissão de auxílio, previsto e punível pelo artigo 200.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;

- pela prática de um crime de falsificação, previsto e punível pelo artigo 256.º, n.º 1 e n.º 4, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

- em cúmulo, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.

Inconformada com tal decisão, a Arguida dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:

«1. A douta decisão recorrida, ao condenar a Recorrente na pena de prisão em que o condenou, fez aplicação incorrecta do Direito, violando os princípios da proporcionalidade e adequação da pena ao tipo de ilícito cometido.

2. A aplicação de uma pena de quatro anos de prisão efectiva à Recorrente excede as necessidades exigidas pelas teorias legalmente acolhidas, para justificar os fins das penas.

3. Ao aplicar à Recorrente uma pena efectiva de prisão, o Tribunal a quo fez errada aplicação do Direito, nomeadamente dos artigos 50°, 70° e 71° do Código Penal.

4. Face aos ilícitos cometidos pela Recorrente é suficiente, adequada e proporcional a condenação da Recorrente numa pena de quatro anos de prisão suspensa na sua execução.

5. É de salientar que os factos em causa têm mais de seis anos.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o Presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada a douta decisão recorrida na parte em que condena a Recorrente na pena de quatro anos de prisão efectiva, portanto ser aquela decisão revogada e substituída por outra que:

a)Condene a Recorrente, numa pena de quatro anos de prisão suspensa na sua execução;

b) Caso V. Exas. assim o entendam, que esta suspensão seja sujeita ao cumprimento de condições que V.Exas. entendam convenientes ou aue seja a mesma acompanhada de regime de prova;

c) E assim dê à Recorrente uma maior probabilidade de ficar integrada na sociedade como já o é e continuar a ter uma vida decente e honrosa.

Pelo exposto e pelo mais e melhor de Direito que V. Exas. não deixarão de suprir, deve dar-se provimento ao recurso aplicando à Recorrente a pena acima proposta, nos termos referenciados na presente motivação.

Assim se fazendo JUSTIÇA

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, pugnando pela improcedência do recurso.

Invoca, para tanto, a impossibilidade de formulação de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro da Arguida – dado o seu significativo percurso criminal e a demissão da função pública que lhe foi imposta, na sequência de processo disciplinar – e que as exigências de prevenção geral impostas pela gravidade dos factos desaconselham claramente a suspensão da execução da pena aplicada.

O recurso foi admitido.
v
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, sufragando a resposta apresentada pelo Ministério Público, na 1.ª Instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
v
Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal[[2]].

O objeto do recurso interposto pela Arguida Maria dos Prazeres Leitão, delimitado pelo teor das suas conclusões, reconduz-se a determinar se deve ficar suspensa a execução da pena de prisão que lhe foi imposta.
v
No acórdão recorrido foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:

«1.1 A arguida, desde 1973 e até 2005 exercia a profissão de enfermeira, tendo a categoria profissional de enfermeira graduada sendo, pelo menos desde 2000 funcionária pública do Serviço Nacional de Saúde.

1.2 Prestou serviço no centro de saúde de Loulé, sito nesta cidade, pelo menos desde 2000, na unidade de internamento.

1.3 A arguida exercia funções no horário diurno, das 8 horas às 16 horas.

1.4 À arguida, no exercício da sua actividade laboral, cabiam, entre outras, as seguintes funções, que devia desempenhar diariamente e ainda sempre que fosse necessário: administrar a medicação prescrita pelos médicos do Centro de Saúde de Loulé aos doentes aí internados; lava-los; mudar-lhes as fraldas (caso as usassem); mudar pensos, adesivos e efectuar curativos em feridas; alimentar (à colher ou através de sonda) os doentes que não conseguissem, devido às doenças, alimentar-se sem ajuda; mudar os lençóis; escrever no livro “notas do enfermeiro”, todas as informações relativas a cada doente; informar os médicos e os enfermeiros do turno seguinte qualquer alteração do estado de saúde dos doentes e ainda prestar assistência, em caso de emergência, aos doentes que dela necessitassem, pessoalmente ou chamando o médico de serviço, quando necessário.

1.5 Tais funções faziam parte das suas competências profissionais, enquanto enfermeira graduada, profissão para a qual estava devidamente habilitada.

1.6 Alguns dos doentes que estavam internados no Centro de Saúde de Loulé, onde a arguida prestava serviço, eram idosos ou inválidos, sendo particularmente indefesos, em virtude das doenças que padeciam e que levavam ao seu internamento.

1.7 L, nascido a 16.10.1960, esteve internado na Unidade de internamento do Centro de Saúde de Loulé.

1.8 L. é paraplégico, deslocando-se em cadeira de rodas e sofria de úlceras de pressão grave, paraplegia post traumática, dispepsia e infecção do trato urinário de repetição.

1.9 Atentas as maleitas sofridas pelo paciente, este necessitava da administração de diversos medicamentos e ainda da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, que consistiam em lavar o corpo e a cabeça do ofendido, diariamente e ainda sempre que fosse necessário.

1.10 À arguida competia cuidar do ofendido, dentro das suas funções de enfermeira, no horário das 8 às 16 horas, durante o tempo em que esteve internado, todos os dias, excepto nos dias de folga semanal da arguida.

1.11 JC, nascido a 24.06.1940, sofreu amputação nos membros inferiores, sendo que no membro inferior esquerdo a amputação se situa ao nível do joelho.

1.12 E esteve internado na Unidade de internamento do Centro de Saúde de Loulé.

1.13 Atentas as maleitas sofridas pelo paciente, este necessitava da administração de diversos medicamentos e ainda da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, que consistiam em mudar a ligadura do coto do membro inferior esquerdo e fazer a cama de lavado, diariamente e ainda sempre que fosse necessário.

1.14 À arguida competia cuidar do ofendido, dentro das suas funções de enfermeira, e prestar-lhe os cuidados supra referidos, no horário das 8 às 16 horas, durante o tempo em que esteve internado, todos os dias, excepto nos dias de folga semanal da arguida.

1.15 A arguida, no período em que durou tal internamento, entregou a medicação (comprimidos) que tinha sido prescrita a JC a uma funcionária que efectuava a limpeza, para que esta a entregasse àquele.

1.16 ME, nascida a 28.12.1927 (entretanto falecida), esteve internada na unidade de internamento do Centro de Saúde de Loulé durante o mês de Junho de 2004.

1.17 ME sofria de hipertiroidismo, quadro demencial ligeiro e cardiopatia, descompensada por quadro infeccioso respiratório.

1.18 ME era colaborante, deslocando-se pelos seus próprios meios até ao refeitório onde tomava as suas refeições.

1.19 À arguida competia cuidar da ofendida, administrando-lhe a medicação prescrita, lavando-a e verificando o seu estado de saúde, dentro das suas funções de enfermeira, no horário das 8 às 16 horas, durante o tempo em que esteve internada, todos os dias, excepto nos dias de folga semanal da arguida.

1.20 Sucede que no dia 14.06.2004, pelas 7 horas, a ofendida sentiu falta de forças no corpo, do lado direito.

1.21 Por esse motivo, e quando a arguida, pelas 8h30 estava a efectuar a ronda matinal de higienização e verificação do estado de saúde pelos doentes que se encontravam ao seu cuidado, LM, auxiliar de acção médica, reparou que ME tinha falta de forças e estava “desfalecida”.

1.22 LM de imediato alertou a arguida, para verificar o que se estaria a passar com a paciente.

1.23 Sucede que a arguida, ao arrepio do que lhe competia em situações de idêntica natureza, pois que lhe cabia, no cumprimento das suas funções de enfermeira, chamar de imediato o médico que estava ao serviço na unidade de internamento (ou qualquer outro médico que se encontrasse no C. S. Loulé) para uma correcta observação clínica, nada fez e deixou ME entregue a si própria e sem mais se preocupar com ela.

1.24 Pelas 15 horas do mesmo dia, e sem ter tido qualquer assistência médica, devido à falta de acção da arguida, o médico FA, que se encontrava de serviço aos internados e estava a realizar a ronda médica pelos pacientes, verificou que ME estava a dormir e, a fim de se inteirar do seu estado de saúde, questionou directamente a arguida sobre se tinha existido alguma incidência importante com a paciente, ao que a arguida, informou, contrariamente ao sucedido, que estava tudo bem com ela.

1.25 Nesse dia 14.06.2004, a arguida registou, no diário de enfermagem da doente, vulgo “notas do enfermeiro”, omitindo deliberadamente a situação referida, a seguinte informação “doente passou o turno calma. Fez levante reagindo bem. P. vitais verificados e registados”.

1.26 Ainda no mesmo dia, cerca das 16.20 horas, à hora do lanche, a auxiliar de acção médica MF levou o lanche a ME, mas esta não reagiu, ao contrário do que era habitual, e continuou deitada, não colaborando.

1.27 Assustada com o estado de prostração da doente, MF deu alerta, sendo que o médico FA, de imediato, se deslocou junto daquela e, após examiná-la, concluiu que poderia a mesma ter sofrido um acidente vascular cerebral (A.V.C), com hemiparésia direita, determinando a sua transferência imediata para o Hospital distrital de Faro.

1.28 Por esse motivo o enfermeiro graduado JC escreveu no diário de enfermagem da doente, vulgo “notas do enfermeiro”, a seguinte informação “Foi enviada ao H D Faro no início do turno”, logo após o escrito da arguida.

1.29 Como consequência do comportamento da arguida, ME esteve desde as 8h30 até às 16h20, em sofrimento, com um acidente vascular cerebral a decorrer, com hemiparésia nos membros direitos, e sem qualquer assistência médica.

1.30 Sucede que a arguida, já no dia 15.06.2004, acrescentou, logo após a nota escrita por JC, a seguinte informação, referente ao dia anterior: “A doente neste turno da manhã, foi higienizada no leito, colaborou bem sem queixas. Tentou-se o banho na casa de banho mas a doente recusou. Nesta altura encontrava-se no cadeirão bem disposta. Nem sequer apresentava diminuição da força como foi referido por alguém. Visto a doente cerca das 15:00h ter sido observada pelo Dr. F que nada observou na doente de anormal (aparentemente tudo dentro dos parâmetros normais) visto o médico do internamento ter observado a doente. Como a doente não se queixou toda a manha não notei diminuição de forças. Registo que a doente se deitou com ajuda e sem essa tal diminuição de força esq. como está escrito. Nada mais a registar”.

1.31 Desenhou ainda uma seta destinada a unir esta informação à que prestara anteriormente.

1.32 ES, nascido a 29.07.1958 e entretanto falecido, esteve internado na Unidade de internamento do Centro de Saúde de Loulé desde 10.01.2005 e pelo menos até Abril do mesmo ano.

1.33 ES era tetraplégico, deslocando-se em cadeira de rodas, e foi internado na Unidade de Internamento do Centro de Saúde de Loulé por apresentar feridas na pele infectadas, que se vinham a agravar de dia para dia.

1.34 Atentas as maleitas sofridas pelo paciente, este necessitava de medicação específica, cuidados de prevenção para evitar a progressão das infecções, que incluíam, entre outros, a limpeza das feridas, mudança de pensos e eventualmente limpeza de feridas e da pele, na zona onde se colam os pensos e adesivos quando necessário.

1.35 À arguida competia cuidar do ofendido, dentro das suas funções de enfermeira, e prestar-lhe os cuidados supra referidos, no horário das 8 às 16 horas, durante o tempo em que esteve internado, todos os dias, excepto nos dias de folga semanal da arguida.

1.36 A arguida, num dia de Janeiro de 2005, na parte da manhã, quando se encontrava na unidade de internamento do Centro de Saúde de Loulé acompanhada da auxiliar de acção médica MB, ao invés de limpar cuidadosamente a zona da ferida que se situava na zona sacra do ofendido, ao arrepio do deveria ser feito em situações de idêntica natureza, verteu directamente na ferida uma quantidade indeterminada de éter etílico, quando paciente se encontrava deitado de barriga para baixo.

1.37 Tal éter etílico escorreu para o pénis e testículos do ofendido.

1.38 Como consequência directa e necessária do comportamento da arguida, o ofendido sentiu dores no pénis e testículos e sofreu ainda lesões ao nível da uretra e fistulas nos testículos, ficando a pele nesses locais completamente queimada (vulgo “carne viva”).

1.39 ML, nascida a 07.05.1932 (falecida a 10.02.2005), esteve internada na unidade de internamento do centro de saúde de Loulé de 03.02.2005 a 04.02.2005.

1.40 ML sofria de neoplasia pulmonar em fase avançada.

1.41 Todavia, estava lúcida, colaborante, e perfeitamente orientada no tempo e no espaço.

1.42 Atenta a doença de que padecia a ofendida, esta necessitava da administração diária de diversos medicamentos, entre eles dois aerossóis (Atrovent — brometo de ipratrópio e Ventilan - salbutamol) que se destinavam a manter o equilíbrio respiratório, e ainda da prestação de cuidados de enfermagem e de higiene, que consistiam em mudar a fralda e lavar a doente, e mudar-se o penso da escara que a mesma sofria na região sacra, diariamente e ainda sempre que fosse necessário.

1.43 À arguida competia cuidar de ML, administrando-lhe a medicação prescrita, lavando-a e verificando o seu estado de saúde, dentro das suas funções de enfermeira, no horário das 8 às 16 horas, durante o tempo em que esteve internada, excepto nos dias de folga semanal da arguida.

1.44 Pelo menos na manhã do dia 04.02.2005, a arguida não mudou a fralda a ML nem lhe mudou o penso da escara, ficando esta com a fralda suja, desde o dia anterior e com o penso da escara, também, desde o dia anterior.

1.45 A mudança da fralda e a lavagem da ofendida acabou por ser feita pela filha, AH e pela enfermeira chefe MJ.

1.46 Nesse dia 04.02.2005, ML começou a desencadear um edema agudo do pulmão.

1.47 Alertado o médico de serviço, FA, este chegou para socorrer ML e chamou a arguida para o auxiliar na prestação dos cuidados necessários.

1.48 No entanto, a arguida sentou-se num cadeirão e recusou-se a colaborar dizendo que estava muito cansada e que lhe doía a cabeça.

1.49 Foi o enfermeiro JC, que ainda não tinha entrado ao serviço e ainda não se encontrava equipado com bata hospitalar que foi auxiliar o médico na assistência prestada a ML.

1.50 ML veio a ser transferida para o Hospital Distrital de Faro.

1.51 E veio a falecer no dia 10.02.2005.

1.52 Em tudo acima descrito, agiu a arguida sabendo que iria provocar danos físicos e psicológicos aos ofendidos como consequência necessária das suas condutas.

1.53 E ao recusar a prestar-lhes cuidados de saúde, sabia que punha em perigo a saúde, a integridade física e mesmo a vida dos ofendidos e sabia que necessariamente poderia causar nestes desespero, intranquilidade e receio pela sua segurança e bem estar.

1.54 A arguida agiu com desrespeito pela condição e dignidade humana dos ofendidos, ofendendo-os psicológica e fisicamente, não lhes aliviando a dor e recusando-se a prestar-lhes a assistência para a qual estava perfeitamente apta a realizar.

1.55 Sabia a arguida que era enfermeira graduada, que os ofendidos estavam ao seu cuidado, que eram pessoas particularmente indefesas, em razão da idade e/ou doença.

1.56 A arguida, enquanto enfermeira graduada, tinha o dever de prestar assistência aos ofendidos e de lhes administrar a medicação prescrita, situação que bem conhecia.

1.57 Caso a arguida tivesse, como era seu dever jurídico, alertado o médico do Centro de Saúde de Loulé da alteração do estado de saúde da ofendida ME, evitava a maior gravidade dos efeitos imediatos e sequelas do A.V.C., que esteve cerca de 8 horas em sofrimento sem qualquer assistência médica.

1.58 Sabia a arguida que a informação que escrevera no dia 14.06.2004 no documento de fis. 1227 (“doente passou o turno calma. Fez levante reagindo bem. P. vitais verificados e registados.”), não correspondia à verdade, que era juridicamente relevante e que iria induzir os médicos, enfermeiros e auxiliares de acção médica em erro sobre o estado de saúde da ofendida ME, ao lerem o escrito da arguida.

1.59 Mais sabia a arguida que a informação que acrescentou no dia 15.06.2004, referente ao dia anterior (“A doente neste turno da manhã, foi higienizada no leito, colaborou bem sem queixas. Tentou-se o banho na casa de banho mas a doente recusou. Nesta altura encontrava-se no cadeirão bem disposta. Nem sequer apresentava diminuição da força como foi referido por alguém. Visto a doente cerca das 15:00h ter sido observada pelo Dr. F. que nada observou na doente de anormal (aparentemente tudo dentro dos parâmetros normais) visto o médico do internamento ter observado a doente. Como a doente não se queixou toda a manhã não notei diminuição de forças. Registo que a doente se deitou com ajuda e sem essa tal diminuição de força esq. como está escrito, Nada mais a registar.”) também não correspondia à verdade, que era juridicamente relevante e que ia por em causa toda a actuação da equipa médica que tinha determinado a transferência da ofendida para o Hospital Distrital de Faro.

1.60 Sabia ainda a arguida que ao escrever essas informações causava um prejuízo para a saúde da ofendida ME, o que efectivamente aconteceu, e um beneficio para si, que com estes escritos pretendia eximir-se de qualquer responsabilidade ao ter omitido o auxílio a que estava obrigada por dever jurídico.

1.61 A arguida praticou estes factos enquanto funcionária pública em exercício de funções

1.62 Sabia ainda a arguida que com este comportamento se destinava também a encobrir a sua omissão de auxílio.

1.63 A arguida tinha perfeito conhecimento que sobre ela recaia um dever jurídico, enquanto enfermeira responsável pela ofendida ME, de alertar o médico responsável em caso de alterações negativas do seu estado de saúde, e que, ao decidir não chamar um médico na situação descrita, promovendo o seu socorro, criava um perigo concreto para a integridade fisica e saúde da paciente, o que efectivamente aconteceu.

1.64 A arguida agiu sabendo que com a sua acção provocaria dores no ofendido ES e, necessariamente, lhe provocaria as lesões supra descritas e, logo, doença dolorosa (lesões ao nível da uretra e fístulas nos testículos, ficando a pele nesses locais completamente queimada).

1.65 Mais sabia a arguida que, enquanto enfermeira responsável pela ofendida Maria Lurdes Henriques, estava obrigada, por dever jurídico que advinha da profissão exercida a prestar-lhe assistência e que ao escolher não o fazer contribuiria para agravar o seu estado de saúde, já muito débil.

Mais se provou que:

1.66 A arguida exerceu funções como enfermeira desde 1973, tendo começado por fazê-lo em Lisboa.

1.67 Veio, mais tarde, para a zona do Algarve, acompanhando o marido que aqui foi colocado.

1.68 Entretanto divorciou-se.

1.69 Tem filhos, autónomos, e vive em casa de renda.

1.70 Na sequência de processo disciplinar, foi aplicada, pela Ordem dos Enfermeiros, pena de expulsão à arguida que, desde 28/11/2006, se encontra impedida de exercer a profissão de enfermeira e de utilizar esse título profissional.

1.71 Na sequência de processo disciplinar foi, pela Inspecção-Geral de Saúde, em 22/06/2005, decidido aplicar à ora arguida a pena de demissão, com o consequente afastamento definitivo da esfera da Administração Pública.

1.72 Actualmente, não desempenha qualquer função profissional.

1.73 No decurso do julgamento, apresentou-se a arguida com uma postura arrogante, não demonstrando qualquer tipo de arrependimento.

1.74 No seu certificado do registo criminal consta que a mesma foi condenada:

1.74.1 Em17/11/2000, no processo ---/99.8GBABF do 2° Juízo do Tribunal de Albufeira pela prática, em 13/04/1999, de um crime de difamação na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 1.000$00;

1.74.2 Em 23/02/2001, no processo ---/00.OGBABF do 3° Juízo do Tribunal de Albufeira pela prática, em 25/05/2000, de um crime de ameaça na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 750$00;

1.74.3 Em 10/11/2004, no processo --/01.6GELLE do 2° Juízo Criminal do Tribunal de Loulé pela prática, em Dezembro de 2002, de dois crimes de ameaça, na pena única de 200 dias de multa à taxa diária de €6;

1.74.4 Em 30/01/2006, no processo ----/03.5GAABF do 3° Juízo do Tribunal de Albufeira pela prática, em 21/09/2003, de um crime de usurpação de funções na pena de 180 dias de multa à taxa diária de €6;

1.74.5 Em 15/02/2006, no processo --/05.8TAABF do 3° Juízo do Tribunal de Albufeira pela prática, em 2/12/2004, de um crime de descaminho na pena de 7 meses de prisão, suspensa por 1 ano;

1.74.6 Em 20/12/2007, no processo ---/06.9GAABF do 1° Juízo do Tribunal de Albufeira pela prática, em 6/10/2006, de um crime de dano na forma tentada na pena de 8 meses de prisão, suspensa por 1 ano sob condição de, no mesmo período, proceder ao pagamento da quantia de €1.277,08 ao ofendido.»

Relativamente a factos não provados, consta do acórdão que [transcrição]:

«Não se provou que:

a)A arguida se recusou a lavar o corpo e a cabeça de LN, tendo-lhe dito directamente e por diversas vezes, que não o fazia porque o ofendido era de etnia cigana.

b) Como consequência directa e necessária do comportamento da arguida, LN sentiu-se inferiorizado na sua dignidade humana, amedrontado perante esta, e ofendido na sua honra e consideração.

c) LN, temendo a arguida, não apresentou queixa e suportou o facto de a arguida o tratar de forma cruel, e maltratar fisica e psicologicamente, não lhe prestando os cuidados de enfermagem prescritos e adequados a minorar as suas doenças, não o tratando nem o lavando como lhe competia.

d) A arguida recusava-se a mudar a ligadura de JC, a administrar-lhe a medicação prescrita pelo médico da unidade de internamento e a fazer-lhe a cama de lavado, dizendo-lhe que “não fazia cama de preto”.

e) A arguida entregou a medicação que tinha sido prescrita a JC à senhora que efectuava a limpeza por não querer ter contacto directo com o paciente.

f) JC não aceitou os comprimidos em causa por a empregada da limpeza não ter as mãos lavadas, não os tendo tomado.

g) Como consequência directa e necessária do comportamento da arguida, JC não tomou a medicação que lhe tinha sido prescrita, sentiu-se inferiorizado na sua dignidade humana, amedrontado perante esta, e ofendido na sua honra e consideração.

h) JC, temendo a arguida, não apresentou queixa e suportou o facto de a arguida o tratar de forma cruel, o maltratar fisica e psicologicamente, não lhe prestando os cuidados de enfermagem prescritos e adequados a minorar as suas doenças.

i)ME se tenha queixado de falta de forças e dores no braço.

j) A arguida tenha medido a tensão de ME e administrou-lhe um copo de água açucarado.

k) Foi alertado o enfermeiro JC.

l) A limpeza de feridas e da pele de ES, na zona onde se colam os pensos e adesivos quando necessário, era efectuada com um pouco de éter etílico (fórmula molecular C4H100/fórmula estrutural CH3CH2-O-CH2CH3) colocado numa compressa.

m) Durante o tempo em que ES esteve internado na unidade de internamento do centro de saúde de Loulé e sempre que estava ao cuidado da arguida, esta costumava, deliberadamente, trocar a medicação que tinha sido prescrita ao ofendido por outra, cujos componentes se desconhecem.

n) Todavia, e com o ofendido conhecia bem a cor e forma dos medicamentos que habitualmente tomava, chamava-a á atenção, e esta acabava, contrariada, por lhe entregar os medicamentos correctos.

o) Quanto verteu o éter etílico a arguida disse “cheira mal”.

p) ES não apresentou queixa por temer a arguida.

q) A arguida não administrou a ML, durante os dois dias em que esta esteve internada na unidade de internamento do centro de saúde de Loulé, os dois aerossóis referidos.

r) Em tudo acima descrito, agiu a arguida com intenção de directamente provocar danos fisicos e psicológicos aos ofendidos;

s) E de os manter sob o seu domínio, através do receio que estes tinham dela, não lhes dando a medicação apesar de saber que a tal estava obrigada pela profissão que exercia, e/ou humilhando-os constantemente devido à cor da pele e/ou à etnia a que pertenciam;»

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:

«Na formação da sua convicção, o Tribunal atendeu aos meios de prova disponíveis, considerando, criticamente, as declarações da arguida, os depoimentos das testemunhas e documentos juntos aos autos, tudo relacionado com as regras da experiência comum.

A arguida, embora não tivesse estado presente desde o início do julgamento, assim que prestou declarações negou, no geral, a prática dos factos (tendo, até, tentado introduzir a tese de tudo se tratava de uma “cabala” destinada a afastá-la — e, relativamente a uma das testemunhas já inquiridas, o médico FA, adiantou que o mesmo “veio de Granada inventar e que vá inventar para a terra dele”).

Perante essa posição e as declarações de LN (que disse não se lembrar se alguma das enfermeiras não o tratou e nada mais acrescentou) e as declarações de JC (que disse nada ter a dizer do tratamento recebido no Centro de Saúde de Loulé — apenas que, de uma vez, foi uma “empregada da limpeza” a dar-lhe os medicamentos) e na ausência de outros meios de prova seguros, as situações descritas na acusação e relacionadas com estas pessoas não poderiam resultar provadas na sua integralidade.

Já quanto ao restante, existiu prova abundante e segura.

Desde logo, pela prova documental junta aos autos (sendo certo que, nessa parte, a arguida admitiu os factos), mas também pelas declarações unânimes das testemunhas (desde logo, naturalmente, da testemunha MG, à data a exercer funções de directora do Centro dc Saúde em causa), chegou-se à prova de que a arguida era enfermeira e desempenhou funções, no período indicado, no Centro de Saúde de Loulé.

Que as pessoas indicadas na acusação estiveram internadas no Centro de Saúde de Loulé resultou, também, da conjugação da prova documental (boletins clínicos) com a prova testemunhal produzida.

Desde logo, quanto à situação de LN e JC, porque estes o referiram. Quanto ao demais (para além da sua permanência no Centro de Saúde), como se viu, não existiu prova.

Quanto à situação de ME atendeu-se ao depoimento seguro, sério e descomprometido de FA. Deste depoimento, conjugado com a prova documental em causa (fis. 1229 e ss.), para além da prova evidente de que tal pessoa esteve internada no Centro de Saúde (aos cuidados da arguida), resultou a prova da integralidade do constante da acusação. E com os depoimentos de MF (auxiliar de acção médica, que viu a ofendida aparentemente sem respirar assim que entrou ao serviço) e, sobretudo, de LM (que logo pelas 8h. avisou a arguida — enfermeira responsável, na altura, pela doente — que a doente em causa não estava bem e esta nada fez), na verdade, reforçou-se a prova segura da situação descrita e da falta da arguida.

Naturalmente que, relacionado com isso, resultou clara a prova de que a informação que, depois, a arguida fez constar (acrescentou) no boletim clínico (fis. 1227 e ss.) não correspondia à verdade e que apenas ali foi colocada para se eximir da sua responsabilidade.

No tocante à situação relacionada com ES (já falecido), a prova foi segura e abundante, pela consideração dos depoimentos de VN (de que resultou ter estado esta pessoa internada no Centro de Saúde, aos cuidados da arguida e que se queixava do tratamento que esta lhe ministrava — de ardor), TM (que bem relatou as consequências para a saúde de ES), MJ (que relatou que ouviu as queixas desta pessoa) e, sobretudo, MB (que relatou o que assistiu, a aplicação, pela arguida, de éter na zona dos genitais de ES) e ES (fis. 1112, declarações bem expressivas).

Da conjugação de todos estes elementos, naturalmente que só poderia resulta a prova dos factos objectivos descritos na acusação (sendo certo que se provou uma intenção directa de produzir o dano — dor — e, também, o conhecimento pela arguida, pela sua experiência, de que necessariamente provocaria aqueles outros danos).
Finalmente no tocante à situação descrita quanto a ML (também já falecida) atendeu-se ao depoimento de AH (que, por ser filha, acompanhou de perto a doente e presenciou a parte final da intervenção — ou falta dela — da arguida: a arguida não fez a higiene da doente a seu cargo e, sobretudo, quando esta mais precisava de assistência e a uma chamada do médico, recusou-se a colaborar), mas também ao depoimento de JC (que relatou como a arguida, por alegar estar cansada, não ter prestado os cuidados solicitados pelo medido) e MJ (que igualmente relatou a recusa da arguida em prestar assistência a esta pessoa).

Já não resultou com toda a segurança (porque sobre isso não houve prova directa) que a arguida se recusou a ministrar os medicamentos a esta doente.

Finalmente, atendeu-se à prova documental constante dos autos (desde logo, quanto às penas disciplinares que lhe foram aplicadas, mas também quanto ao seu percurso profissional que consta da cópia do processo disciplinar junto), às declarações da arguida quanto às suas condições económicas e pessoais e, naturalmente, ao certificado do registo criminal junto aos autos.»

Restringida a cognição deste Tribunal da Relação à matéria de direito, importa desde já referir que do exame da sentença recorrida – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Efetivamente, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal “a quo”, sendo o texto da decisão em crise revelador de coerência e de respeito pelas regras da experiência comum e da prova produzida.
E do texto da decisão recorrida decorre, ainda, que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e que nele não se deteta incompatibilidade entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – artigo 410.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1.ª Instância sobre a matéria de facto.

Quanto à suspensão da execução da pena de prisão imposta

A argumentação da Recorrente, na defesa da suspensão da execução da pena de 4 (quatro) anos de prisão que lhe foi imposta, alicerça-se na errada aplicação, pelo Tribunal recorrido, das regras constantes dos artigos 50.º, 70.º e 71.º do Código Penal, face às suas condições socioeconómicas, entre as quais destaca:

- ter 63 (sessenta e três) anos de idade;
- ter apoio familiar, nomeadamente por parte dos filhos;
- não ter antecedentes criminais da mesma natureza;
- desde a data dos factos [2004-2005], não ter praticado crimes da mesma natureza;
- terem decorrido mais de 6 (seis) anos desde a data dos factos;
- o cumprimento da pena de prisão constituir um retrocesso na sua reabilitação social.

Vejamos se lhe assiste razão.

O Tribunal recorrido tratou das questões da escolha e determinação da medida das penas que impôs à ora Recorrente – penas parcelares e pena única, em cúmulo jurídico – por forma não merecedora de qualquer reparo, e que se acolhe, à exceção da referência aos “crimes de burla a particulares”, constante de fls. 34 da sentença. Trata-se de lapso, manifesto e sem qualquer relevância.

Seria, pois, inútil repetir o que já foi dito pelo Tribunal recorrido.

Determinada a medida concreta da pena – 4 (quatro) anos de prisão – teve ainda o Tribunal recorrido que escolher a forma do seu cumprimento. E optou, justificadamente, por não suspender a sua execução.

O critério orientador de semelhante escolha encontra-se no disposto no artigo 40.º do Código Penal.

«1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa

A suspensão da execução da pena é uma pena de substituição.

Como resulta do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, essa pena de substituição tem dois pressupostos: um formal – ser a sanção aplicada de medida não superior a cinco anos – e um material – ser de concluir, face à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

As finalidades da punição são, como se extrai do artigo 40º, nº 1, do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a integração do agente na sociedade.

«I - A suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido condenado.

II - Na base de uma decisão de suspender a execução de uma pena está sempre uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial.

III - Porém, o juízo de prognose que o tribunal faz não tem carácter discricionário e, muito menos, arbitrário. O tribunal ao decretar a medida terá de reflectir sobre a personalidade do agente, sobre as condições da sua vida, sobre a sua conduta ante et post crimen e sobre o circunstancialismo envolvente da infracção[[3]]

O pressuposto material da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão é que o Tribunal, «atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativo ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta (…) – “bastarão para afastar o delinquente da criminalidade” (…). Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.

A lei torna deste modo claro que, na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto. Por isso, crimes posteriores àquele que constitui o objecto do processo, eventualmente cometidos pelo agente, podem e devem ser tomados em consideração e influenciar negativamente a prognose. Como positivamente a podem influenciar circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham sido já tomadas em consideração – na medida do possível (…) – em sede de medida de pena (…).

A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer “correcção”, “melhora” ou – ainda menos “metanoia” das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, (…) uma questão de “legalidade” e não de “moralidade” que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização, traduzida na “prevenção da reincidência”.»

Aqui chegados, e a propósito do papel que deve ter a prevenção geral no domínio da imposição da suspensão da execução da pena de prisão, importa ter presente que «Ela deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico (…), como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias [[4]]

Porque a privação e a não privação da liberdade são opções legislativas, a sua escolha [quando pode ser feita, como é o caso] e imposição pressupõe a ponderação, também, de interesses coletivos.

A prevenção geral positiva, que é o fim mais importante que atualmente se atribui às penas, visa, desde logo, «a criação de um sentimento de confiança no sistema, por parte da população em geral. A segurança das pessoas resulta também da convicção de que o direito é mesmo para ser respeitado.

Mas, numa perspectiva de prevenção geral positiva, a pena tem ainda um efeito pedagógico. O auto-refreamento de eventuais solicitações para o crime que assaltem os não delinquentes é compensado com a satisfação moral de não se sofrer qualquer pena, facto contraposto à pena que se vê aplicada ao delinquente. Finalmente, assinala-se à prevenção geral positiva, um efeito de coerência lógica: a coercibilidade do direito em geral, e do direito penal, em particular, impõe que o desrespeito das respectivas normas tenha consequências efectivas[[5]]

De regresso ao processo, importa, desde já, referir que da factualidade considerada como provada impressiona de forma muito negativa o comportamento aí descrito da ora Recorrente, no desempenho da sua atividade profissional de enfermeira e perante pessoas particularmente frágeis – em função da idade que contavam e das doenças de que padeciam, colocadas em ambiente estranho e na inteira dependência de quem delas cuidasse.

Um século depois, e com todos os progressos que esse tempo trouxe, custa recordar as palavras de Florence Nightindale[[6]]: «Pode parecer um princípio estranho enunciar-se como primeira exigência num Hospital que não se faça mal ao doente.»

Por outro lado, a atitude adotada pela Arguida, no decurso da audiência de julgamento – arrogância e ausência de qualquer tipo de arrependimento –, causa, pelo menos, espanto.

Ao que acresce que a Arguida regista seis condenações pela prática de um crime de difamação, de um crime de ameaça, de dois crimes de ameaça, de um crime de usurpação de funções, de um crime de descaminho e de um crime de dano, na forma tentada, em penas de multa [os quatro primeiros] e de prisão com execução suspensa [os dois últimos].

Crimes que a Arguida cometeu em 13 de abril de 1999, em 25 de maio de 2002, em dezembro de 2002, em 21 de setembro de 2003, em 21 de dezembro de 2004 e em 6 de outubro de 2006, e pelos quais veio a ser condenada, respetivamente, em 17 de novembro de 2000, em 23 de fevereiro de 2001, em 10 de novembro de 2004, em 30 de janeiro de 2006, em 15 de fevereiro de 2006 e em 20 de dezembro de 2007.

Neste enquadramento, não vislumbramos na idade da Recorrente e na ausência de antecedentes criminais da mesma natureza qualquer valia para evitar o cumprimento da pena de prisão imposta.

Também não assume a relevância pretendida pela Recorrente o tempo que nos separa da data da prática dos factos apurados nos presentes autos, uma vez que no seu decurso cometeu outros crimes.

Resta referir não estar provado que a Recorrente dispõe de apoio familiar, nomeadamente por parte dos filhos.

Nem ter sido objeto de qualquer explicitação a ideia avançada pela Recorrente de que o cumprimento da pena de prisão irá constituir um retrocesso na sua reabilitação social.

Pelo exposto, e não se vislumbrando outros argumentos suscetíveis de consideração, impõe-se concluir, em sintonia com o Tribunal recorrido, que não se verifica o pressuposto material consagrado no n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal – a imposição de pena privativa de liberdade, de cumprimento tendencialmente não efetivo, não realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Improcedendo o recurso.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, o acórdão recorrido.

Custas a cargo da Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

Évora, 10 de Setembo de 2013

(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

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(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)

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(José Proença da Costa)
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[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.

[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].

[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de janeiro de 2002, relatado pelo Senhor Conselheiro Franco de Sá, no processo n.º 3026/01 – 3.ª secção – acessível em www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2002.pdf

[4] Professor Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 3.ª Reimpressão, Coimbra Editora, páginas 333 e 342 e seguintes.

[5] Souto de Moura, in “A jurisprudência do S.T.J. sobre fundamentação e critérios da escolha e medida da pena” – acessível em www.stj.pt/ficheiros/estudos/soutomoura_escolhamedidapena.pdf

[6] Senhora inglesa [1820-1910] a quem é atribuído o aparecimento da enfermagem, como ainda hoje a conhecemos.