Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
664/14.8T8FAR.1.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DE FAMÍLIA
Data do Acordão: 11/19/2015
Votação: RELATOR
Texto Integral: S
Sumário: Resulta da normação aplicável in casu (os artigos 85º, nº 1, do NCPC e 103º da LOFTJ) que caberá ao tribunal autor da decisão condenatória em execução tramitar a execução da sua própria decisão.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 664/14.8T8FAR.1.E1-1ª (2015)
Apelação-1ª
(Acto processado e revisto pelo signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
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I – RELATÓRIO:

No âmbito de processo de inventário, que tem corrido termos na Secção de Família e Menores da Instância Central de Faro da Comarca de Faro (depois de iniciado no Tribunal de Família e Menores de Faro), para partilha de bens em consequência de dissolução do casamento por divórcio, respeitante ao requerido (…), que exerce funções de cabeça-de-casal, e à requerente (…), vem interposto por esta última o presente recurso de apelação, com referência a despacho ali proferido (a fls. 1196 dos autos), no qual se declara a incompetência em razão da matéria desse Tribunal para a tramitação da execução de decisão condenatória proferida nos autos, enquanto tal execução deva prosseguir a tramitação própria do processo executivo, e que culmina com uma ordem de oportuno arquivamento dos autos (não obstante se reconhecer uma concomitante competência material, para o efeito, de secção de execução).

Nesse processo de inventário, e no quadro de partilha adicional de bens, que teve por objecto benfeitorias efectuadas em 2 prédios urbanos na constância do casamento e a expensas de ambos os interessados, e depois de prolongadas vicissitudes processuais, foi proferida decisão, já em sede de recurso (cfr. acórdão de fls. 983-1011), que determinou a actualização do valor dessas benfeitorias até à data do divórcio, segundo o critério do artº 551º do C.Civil, através da aplicação dos índices de preços ao consumidor publicados pelo Instituto Nacional de Estatística, e a que se seguiu, em cumprimento do referido acórdão da Relação de Évora, decisão (de fls. 1041) estabelecendo os respectivos montantes, a qual foi confirmada em recurso (cfr. acórdão certificado a fls. 1160-1165).

Com vista à obtenção do pagamento da quantia devida por referência ao valor das mencionadas benfeitorias, apresentou entretanto a requerente, em 18/3/2014, requerimento de execução (cfr. fls. 1047-1049), sobre o qual recaiu despacho (de fls. 1102), que considerou ter a requerente usado indevidamente do processo executivo, por se entender que o pagamento de tornas tinha disposições próprias aplicáveis no âmbito do processo de inventário, pelo que se concluiu no sentido do indeferimento liminar daquele requerimento executivo. Em recurso desse despacho interposto pela requerente, veio a ser proferido, em 26/2/2015, acórdão por este Tribunal da Relação (cfr. aresto certificado a fls. 1190-1192), que entendeu ter sido proferida nos autos decisão judicial condenatória, relativamente ao pagamento do valor das aludidas benfeitorias, já transitada, pelo que (e não obstante se reconhecer que se deveria ter seguido outra via processual) deve ter-se a mesma como título executivo e deve esse título ser executado, pelo que se revogou aquele despacho liminar de indeferimento, com a consequência do necessário prosseguimento dos termos da respectiva execução.

Ora, é precisamente em sede de cumprimento do citado acórdão desta Relação que o tribunal de 1ª instância vem a proferir a decisão de incompetência material ora recorrida (de fls. 1196, datado de 14/5/2015), em que, e perante a imposição de os autos terem de prosseguir os termos do processo executivo, se declara aquela incompetência e um oportuno arquivamento dos autos, invocando, como fundamento da referida excepção, o disposto no artº 122º, nº 1, al. f), da Lei nº 62/2013, de 26/8 (Lei de Organização do Sistema Judiciário, doravante LOSJ), segundo o qual as secções de família e menores apenas terão competência para «preparar e julgar “acções e execuções por alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges”, para além das execuções de alimentos de filhos menores ou maiores», e no artº 129º do mesmo diploma, que atribuiria tal competência às secções de execução.

Inconformado com tal decisão, dela apelou a requerente, formulando as seguintes conclusões:

«1. Violou o despacho recorrido o disposto nos artº 6, artº 85º, artº 152º, artº 195º e artº 726º, todos do C.P.C..
2. Não fez o despacho boa aplicação da lei. Vejamos:
3. O douto Acórdão da Relação de Évora de 26 de Fevereiro de 2015, já transitado em julgado, julgou procedente o recurso, procedeu à revogação do despacho recorrido e ordenou “…Execute-se o título…” (sentença condenatória).
4. O referido recurso foi interposto de um despacho que indeferiu liminarmente o processo executivo interposto pela Apelante.
5. Após trânsito do referido Acórdão foi a Apelante notificada do despacho de 29/4/2015: “Tomei conhecimento da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora”.
6. Em 4/5/2015 a Apelante requer ao Solicitador de execução a continuação da execução e seguimento das diligências requeridas.
7. Foi notificada a Apelante do despacho de 14/5/2015, do qual se recorre, que declara a secção de família e menores incompetente em razão da matéria para a execução intentada, condena a apelante em custas e ordena o arquivamento dos autos de execução.
8. Desrespeitou o despacho o Acórdão da Relação que manda executar (artº 152º do C.P.C.).
9. Violou o artº 85º do C.P.C., que em caso de incompetência de um tribunal manda remeter a acção para o tribunal competente. Não manda arquivar os processos.
10. O despacho está ferido de nulidade. É a prática de um acto que a lei não permite. Para além de que:
11. Acarreta vários prejuízos à Apelante. Pelo que já despendeu com o processo de execução e pelo entrave contínuo no seu ressarcimento.
12. A celeridade, a legalidade e a urgência exigidas pela lei não estão a ser cumpridas.
13. Dever-se-á ordenar a nulidade do despacho recorrido e, ou a sua revogação, ordenando a continuação da execução em causa, e a remissão dos autos, com urgência, ao tribunal competente

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações da recorrente resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar do acerto da decisão recorrida (de fls. 1196) – ou seja, e muito singelamente: a) saber se a competência para a prossecução dos presentes autos, segundo a tramitação própria do processo executivo, cabe à secção de família e menores em que tem decorrido até ao momento ou se, pelo contrário, tal competência cabe à secção de execução do mesmo tribunal de comarca; e b) saber se, em consequência dessa incompetência material (e a confirmar-se esta), devem os presentes autos ser arquivados.

Cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:

Como vimos, a questão central do presente recurso é a da definição da competência para a tramitação do presente processo de inventário, nesta fase em que o mesmo passou a prosseguir como execução, por força de decisão, já transitada (proferida por este Tribunal da Relação), que determinou que o pagamento de tornas devidas pelo requerido à requerente, enquanto imposição decretada por decisão condenatória proferida nos autos, deveria ter lugar por via executiva. Já não está aqui em discussão se essa via é a legalmente adequada: é a que foi definitivamente estabelecida nos autos e é essa que se terá de seguir. A dúvida está é em saber se o tribunal competente para tal fase será ainda a secção de família e menores em que o processo vem decorrendo – ou se essa competência cabe agora à secção de execução.

Comece-se por salientar que tem sido princípio geral do nosso sistema de organização judiciária o de que os tribunais, independentemente da sua específica competência material, são, em regra, competentes para executar as suas próprias decisões. Essa regra aflorava já no disposto nos artos 55º, nº 1, al. g), 71º e 78º da Lei nº 38/87, de 23/12 (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, doravante LOTJ) e foi retomada no artº 103º da Lei nº 3/99, de 13/1 (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, doravante LOFTJ): neste último, podia ler-se que «os tribunais de competência especializada e de competência específica são competentes para executar as respectivas decisões» (e na mesma linha, com texto muito próximo, se posicionou o artº 134º da subsequente LOFTJ, aprovada pela Lei nº 52/2008, de 28/8, ainda que de aplicação restrita às comarcas piloto). Por sua vez, os regimes processuais reforçam essa regra: o artº 90º, nº 1, do CPC dispunha que «para a execução que se funde em decisão proferida por tribunais portugueses, é competente o tribunal de 1ª instância em que a causa foi julgada»; e o actual artº 85º, nº 1, do NCPC mantém, no essencial, essa solução, estabelecendo que «na execução de decisão proferida por tribunais portugueses, o requerimento executivo é apresentado no processo em que aquela foi proferida, correndo a execução nos próprios autos e sendo tramitada de forma autónoma» (apenas se ressalva, no nº 2 da mesma disposição legal, a possibilidade de a competência caber a secção especializada de execução por força da lei de organização judiciária, caso em que cumpre ao tribunal incompetente remeter àquela secção os elementos necessários ao prosseguimento da execução).

No caso presente, a que já é aplicável, neste momento (e neste aspecto particular), o actual CPC, por este ser de imediata aplicação, conforme artos 5º, nº 1, e 6º, nº 1, do respectivo diploma preambular (Lei nº 41/2013, de 26/6), há, pois, que considerar o disposto no citado artº 85º, nº 1, do NCPC, sendo certo que a legislação de organização judiciária a que se terá de atender, para aferição da questão da competência, não é ainda a inscrita na actual LOSJ, já que esta apenas entrou em vigor em 1/9/2014, conforme artº 118º do Regulamento da LOSJ (Decreto-Lei nº 49/2014, de 27/3), mas antes a que a precede, ou seja, a constante do mencionado artº 103º da LOFTJ. E isso porque, no âmbito da legislação de organização judiciária, está de há muito consagrada a regra da perpetuatio fori (ou jurisdictionis), segundo a qual a competência do tribunal se fixa no momento da propositura da acção, sendo, em princípio, irrelevantes as modificações, de facto ou de direito, que ocorram posteriormente (sobre esta regra, v. LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª edição, 2008, p. 135): tal regra foi consagrada, sucessivamente, e sem alterações significativas, no artº 22º da LOFTJ, no artº 24º da posterior LOFTJ e no artº 38º da actual LOSJ. E, no caso presente, sempre será de atender àquele artº 103º da LOFTJ, independentemente de se considerar como relevante, para o efeito, a data da instauração do processo de inventário (em 30/12/2003) ou a da apresentação do requerimento executivo (em 18/3/2014), já que o mesmo vigorava em qualquer dessas datas.

Resulta, pois, da normação aplicável in casu (artº 85º, nº 1, do NCPC e artº 103º da LOFTJ, este por vigorar no momento definidor da respectiva competência, conforme decorre do seu artº 22º, nº 1) que caberá ao tribunal autor da decisão condenatória em execução tramitar a execução da sua própria decisão.

Não obviará a esta solução a entretanto verificada implementação do novo mapa judiciário (instituído pela LOSJ). É que, por um lado, a regra da perpetuatio fori apenas deixaria de se aplicar nas circunstâncias excepcionais indicadas no artº 22º, nº 2, da LOFTJ: «São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa». E, por outro lado, não oferece contestação que houve uma mera sucessão de jurisdições, na relação de continuidade entre as novas secções de família e menores das Instâncias Centrais e os precedentes Tribunais de Família e Menores, sem que tal sucessão possa ser caracterizada como a «supressão do órgão a que a causa estava afecta» ressalvada pela regra da perpetuatio fori, solução que também encontra apoio nas regras de transição de processos pendentes estabelecidas no artº 104º (em particular, no seu nº 1) do Regulamento da LOSJ.

Concretizando: a competência do foro de família e menores de Faro, enquanto autor da decisão condenatória em execução e para efeitos dessa execução, foi fixada, o mais tardar, à data da apresentação do respectivo requerimento executivo (em 18/3/2014) e assim se deve manter, atento o disposto no artº 103º da LOFTJ; é, assim, competente para prosseguir a tramitação dos autos como de execução a actual secção de família e menores da Instância Central da Comarca de Faro em que os autos têm decorrido.

Ainda uma última nota, sobre a questão do arquivamento determinado pelo tribunal a quo, na sequência da sua decisão de incompetência material. Trata-se de questão que fica prejudicada pela solução a que aqui se chegou, de manutenção da competência do tribunal a quo. Porém, não se deixará de salientar que, mesmo no quadro da opção sustentada na decisão recorrida quanto à questão da competência, não seria admissível o arquivamento puro e simples dos autos, tal como decretado por aquele tribunal, em face do disposto no já mencionado artº 85º, nº 2, do NCPC, que imporia o procedimento ali estabelecido.

Assim, e em suma: merece provimento o presente recurso, pelas razões aduzidas, devendo ser revogada a decisão recorrida e determinada a competência da mencionada secção de família e menores para a subsequente tramitação processual.
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se conceder provimento à presente apelação, revogando a decisão recorrida, e declarar competente, para a prossecução dos pertinentes trâmites processuais dos presentes autos como de execução, a secção de família e menores da Instância Central de Faro da Comarca de Faro em que aqueles já vinham sendo tramitados.

Sem custas.
Notifique-se.
Évora, 19/11/2015
O Relator,
Mário António Mendes Serrano