Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1041/18.7T8TMR.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
ARGUIÇÃO
CONTRATO DE TRABALHO
COMISSÃO DE SERVIÇO
ISENÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO
RETRIBUIÇÃO
Data do Acordão: 01/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- A arguição extemporânea de nulidade processual não pode ser conhecida, porque a eventual nulidade se considera sanada.
II- Os factos que se revelem inócuos para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, não deverão ser considerados na decisão sobre a matéria de facto, sob pena de se estarem a praticar atos inúteis, o que se mostra proibido pelo artigo 130.º do Código de Processo Civil.
III- Tendo as partes celebrado, na mesma data, um contrato de trabalho em regime de comissão de serviço e um acordo de isenção de horário de trabalho, considerado um aditamento ao primeiro, e resultando da conjugação dos textos dos acordos, a identificação e estipulação de duas retribuições autónomas (retribuição mensal ilíquida, que integra o subsidio de refeição e retribuição especial por isenção de horário de trabalho), sem outros elementos que contrariem ou completem o que resulta dos textos e do contexto factual em que os mesmos foram celebrados, há que concluir que a retribuição mensal ilíquida acordada não integra a compensação pela isenção de horário de trabalho.
IV- A não reclamação, pelo trabalhador, das diferenças salariais peticionadas na ação judicial durante a vigência do contrato de trabalho, não constitui abuso de direito. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

I. Relatório
D… intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a G…, S. L., pedindo que a Ré seja condenada a:
1. Reconhecer que a retribuição base mensal ilíquida da A., durante a vigência do contrato de trabalho, era de € 2.594,41;
2. Pagar à A. a quantia de € 65.538,95 (sessenta e cinco mil, quinhentos e trinta e oito euros e noventa e cinco cêntimos), relativa a créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação, assim discriminada:
a) € 40.299,35, referente a diferença salarial, quanto à retribuição base;
b) € 6.168,89, a título de subsídios de férias;
c) € 6.168,89, a título de férias não gozadas;
d) € 4.266,32, a título da diferença quanto a subsídio de Natal;
e) € 8.635,50, referente a diferença quanto à retribuição especial por isenção de horário de trabalho.
3. Pagar à A. juros legais sobre a quantia em dívida, desde a data da citação até integral pagamento.
Alegou, em breve síntese, que a R. não lhe pagou as diferenças remuneratórias peticionadas, e que não gozou quaisquer férias, durante a vigência do contrato de trabalho.
Realizada a audiência de partes, na mesma não foi possível obter uma solução conciliatória para o litígio.
Contestou a R., por impugnação e por exceção, invocando, nesta última parte, o abuso de direito.
Respondeu a A., negando a existência da invocada exceção.
Foi proferido despacho saneador tabelar, tendo-se remetido o conhecimento da defesa por exceção para a decisão final.
Identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova, com formulação de artigos.
O valor da ação foi fixado em € 65.538,95.
Após a realização da audiência final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«4.1. Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, decido:
a) Reconhecer que a retribuição base mensal, ilíquida, devida pela R. G…, S.L., à A. D… durante a vigência do contrato de trabalho - 24 de Dezembro de 2014 e 31 de Dezembro de 2017, era de € 2.594,41;
b) Condenar a R. G…, S.L., a pagar à A. D… a a quantia total de € 37.615,57, a título de diferenças salariais (incluindo a retribuição base, subsídio de alimentação e retribuição pela isenção de horário de trabalho);
c) Condenar a R. G…, S.L., a pagar à A. D… a quantia total de € 7.597,47, a título de diferenças salariais relativas ao gozo de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal;
d) Condenar a R. G…, S.L., a pagar à A. D… os juros calculados sobre as quantias acima indicadas, desde a data da citação (18/7/2018 – fls. 63) e até efetivo e integral pagamento, à taxa legal que estiver em vigor; e,
e) Absolver a R. G…, S.L., de tudo o mais que foi peticionado pela A. D….(…)»
Não se conformando com o decidido, veio a R. interpor recurso, com arguição da nulidade da sentença apresentada no requerimento de interposição do mesmo, extraindo no final das alegações do recurso, as conclusões que, seguidamente, se transcrevem:
«I. A Recorrente não se conforma com a decisão tomada nos autos supra indicados, a qual decidiu:
a) Reconhecer que a retribuição base mensal, ilíquida, devida pela R. G…, S.L., à A. D… durante a vigência do contrato de trabalho - 24 de Dezembro de 2014 e 31 de Dezembro de 2017, era de € 2.594,41;
b) Condenar a R. G…, S.L., a pagar à A. D… a quantia total de € 37.615,57, a título de diferenças salariais (incluindo a retribuição base, subsídio de alimentação e retribuição pela isenção de horário de trabalho);
c) Condenar a R. G…, S.L., a pagar à A. D… a quantia total de € 7.597,47, a título de diferenças salariais relativas ao gozo de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal;
d) Condenar a R. G…, S.L., a pagar à A. D… os juros calculados sobre as quantias acima indicadas, desde a data da citação (18/7/2018 – fls. 63) e até efetivo e integral pagamento, à taxa legal que estiver em vigor;
II. A Recorrente discorda da Douta Sentença a quo em quatro (4) pontos fundamentais:
i. Tem por base dois despachos nulos que obstaram a que a audiência fosse gravada, inutilizando para efeitos de recurso o depoimento das testemunhas;
ii. Não levou em consideração a totalidade da matéria de facto que estava disponível e provada por documentos nos autos;
iii. Fez um incorreta apreciação da vontade das partes quando negociaram os três contratos em questão (que na verdade é apenas um) e;
iv. Fez uma incorreta valoração do comportamento da Recorrida em toda a execução do contrato e mais recentemente quando interpôs a presente ação;
III. Começando pelo ponto i), conclui a Recorrente que os dois despachos proferidos pelo Digníssimo Tribunal na 1.ª sessão de julgamento (13/03/2019) são nulos por violação do dever de gestão processual e do princípio da cooperação – Artigos 6.º, n.º 1, 2, 7.º, n.º 1 e 195.º, n.º 1 todos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex. vi. artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho;
IV. Essa convicção assenta no facto de a Recorrente ter solicitado ao Digníssimo Tribunal que autorizasse a gravação da audiência, requerimento que obteve a anuência da Recorrida e o despacho ter sido, em ambas as ocasiões, negativo;
V. Não entende a Recorrente que motivo levou o Tribunal a recusar a gravação da audiência, algo que assegurava os direitos de garantias de defesa de ambas as Partes em caso de recurso, apenas por uma questão formal relacionado com prazos;
VI. A Recorrente foi transparente e admitiu desde logo o lapso e o Tribunal, que apenas teria de sanar esse lapso, pois a gravação já estava em funcionamento, decidiu contra a vontade de ambas as partes e inquinou as suas possibilidades de defesa, sem sequer justificar o porquê de não utilizar as prerrogativas de sanação de falta de pressupostos processuais que estavam ao seu alcance;
VII. Ao fazê-lo violou os deveres de gestão processual e de cooperação que estão previstos nos artigos 6.º e 7.º do CPC, resultando por isso na nulidade dos mesmos ao abrigo do disposto no artigo 195.º, n.º 1 do CPC porquanto esta violação influiu sobremaneira no exame da causa pois impossibilitou o recurso da matéria de facto na parte que dependia da produção de prova testemunhal;
VIII. A comunicação prevista no artigo 195.º, n.º 2 do CPC é que o ato em questão (os Despachos) e os subsequentes que dele dependam absolutamente sejam anulados, fazendo com que a instância tenha de ser reaberta para se proceder à inquirição de todas as testemunhas, ficando registado o seu depoimento.
IX. Passando para o ponto ii), entende a Recorrente que houve diversa matéria de facto que ficou provada pela documentação junta (e não impugnada) e que não foi tida em consideração pelo Digníssimo Tribunal a quo;
X. Esses factos decorrem dos Doc.1 a Doc.4-C e Doc.6 a Doc.30-C juntos com a Contestação, que correspondem a diversos e-mails e anexos aos mesmos, dirigidos à Recorrida por parte da Recorrente, onde lhe é remetido o recibo vencimento e indicado expressamente qual o valor da segurança social a entregar por parte da Recorrida em nome da Recorrente;
XI. Esses factos são essenciais não só para demonstrar que a vontade real das partes foi que o valor indicado na cláusula quinta do contrato de trabalho incluía TUDO, ou seja, retribuição base, IHT, SA e TSU;
XII. Mas também para demonstrar a atitude absolutamente reprovável e abusiva da Recorrida ao longo da execução do contrato;
XIII. Como tal requer-se o aditamento à matéria de facto com base nos documentos juntos como Doc.1 a Doc.4-C e Doc.6 a Doc.30-C com a Contestação – Artigo 640.º, n.º 1, alínea a) e b) e n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil tal como se encontra descrito no artigo 42 do presente Recurso e que atenta a sua extensão aqui se dá por inteiramente reproduzido;
XIV. Prosseguindo para o ponto iii), entende a Recorrente que o Digníssimo Tribunal não soube apreciar qual a real vontade das partes quando celebrarem os três acordos em discussão;
XV. Começando pelo valor devido a título de isenção de horário de trabalho, resulta claro, independentemente do que se decidir quanto à retribuição base mensal acordada, que esse montante estava incluído no valor indicado na cláusula quinta do contrato de trabalho;
XVI. Tal conclusão é suportada no facto de o acordo de isenção de horário de trabalho não só ter sido celebrado na mesma data do contrato de trabalho, mas também e sobretudo por o mesmo ser um aditamento ao primeiro;
XVII. Sendo um aditamento, tudo se passa e deve ser interpretado como se as cláusulas de um documento sejam partes integrantes do outro e vice-versa;
XVIII. Resultando por isso que quando a cláusula quinta faz referência ao valor bruto da retribuição mensal da Recorrida, ter-se-á que interpretar como estando incluindo o valor previsto na cláusula 3 do acordo de IHT;
XIX. Passando a incidir a análise sobre o valor da TSU sobre o empregador e o trabalhador, fica igualmente claro que também esse montante as partes quiseram incluir no valor indicado na cláusula quinta;
XX. É aliás o que decorre do ponto 2.2.2 e 2.2.3. do contrato de mandato e da cláusula primeira n.º 3 do contrato de trabalho, ficando claríssimo que a responsabilidade por entregar o valor da TSU devido por ambas as partes, mas cujo deve incumbia à Recorrente ficou a cargo da Recorrida;
XXI. Decorre de todos os e-mails juntos como Doc.1 a Doc.4-C e Doc.6 a Doc.30-C com a Contestação e que se espera venham a integrar a matéria de facto assente, que todos os meses a Recorrente enviava à Recorrida o recibo de vencimento e nesse mesmo e-mail informava que parte do valor recebido devia entregar à segurança social para pagamento da TSU;
XXII. Além disso, se tivermos em conta o ponto G da matéria de facto dada como assente, podemos ainda verificar que todos os meses, sem exceção, em que durou a relação contratual ente a Recorrente e a Recorrida, esta última recebeu sempre o montante de € 1.443,00 a título de retribuição base;
XXIII. E por fim que conforme decorre do extrato de transferências junto com o requerimento datado de 11/12/2018 (extrato da conta bancária) com a Ref.ª Citius n.º 5511490, todos os meses eram feitas duas transferências em separado por parte da Recorrente para a Recorrida;
XXIV. A conjugação destes quatro fatores, a saber: i) Mandato a favor da Recorrida para que entregasse o valor total da TSU em nome da Recorrente; ii) Todos os e-mails enviados à Recorrida por parte da Recorrente continham não só o recibo de vencimento, mas também a indicação do montante a entregar pela Recorrida à segurança social; iii) Todos os meses, sem exceção, a Recorrida recebeu “apenas” o montante de € 1.443,00 a título de retribuição base e; iv) Todos os meses eram feitas duas transferências separadas para a conta da Recorrida;
XXV. E ainda o silêncio absoluto da Recorrida durante toda a execução do contrato;
XXVI. Só pode levar à conclusão de que a vontade das partes era que a Recorrida entregasse o valor referente à totalidade da TSU por parte da Recorrente;
XXVII. Terminando, os cálculos elaborados pela Douta Sentença a quo quanto às férias, subsídio de férias e de natal partem do pressuposto errado de que o valor inscrito na cláusula quinta dizia respeito apenas à retribuição base, por isso os mesmos estão errados na mesma medida;
XXVIII. Por fim e chegados ao ponto iv), e na mera hipótese académica de o supra exposto não ter provimento, entende a Recorrente que ainda assim andou mal o Tribunal a quo ao não ter considerado abusiva para efeitos do disposto no artigo 334.º do Código Civil a atuação da Recorrida;
XXIX. Decorre da matéria de facto assente e documentação junta aos Autos que:
• As partes celebraram um contrato de trabalho em regime de comissão de serviço em 24/12/2014 (facto A);
• Desse contrato resultava na cláusula oitava que qualquer das partes poderia por termo livremente o contrato bastando que desse um pré-aviso de 30 dias (facto A);
• A Recorrente pagou à Recorrida todos os meses em que durou o contrato a retribuição base de € 1.443,00 (facto G);
• Todos os meses a Recorrente enviava o recibo de vencimento por e-mail à Recorrida e indicava-lhe o montante a entregar à segurança social (vide Doc.1 a Doc.4-C e Doc.6 a Doc.30-C juntos com a Contestação);
• A Recorrente não apresentou qualquer reclamação durante a pendência do contrato referente ao valor que lhe era pago (à contrário da matéria de facto assente);
• A Recorrida comunicou a cessação do contrato à Recorrente com efeitos a partir de 31/12/2017 (facto F);
• Sem qualquer outra comunicação, a presente ação deu entrada a 26/06/2018;
XXX. Com base nestes factos, é impossível não se concluir que a Recorrida teve um comportamento abusivo em relação à Recorrente ao permitir que esta questão, que só ela colocava, não fosse resolvida na pendência do contrato;
XXXI. Não é aceitável que uma parte que esteja de boa-fé detete um aparente lapso desta magnitude e permita que o contrato seja executado durante três (3) anos sem nada dizer ou alertar;
XXXII. Não é aceitável que uma parte que esteja de boa-fé receba todos os meses indicações por parte da outra que contradizem diretamente aquela que é agora a sua interpretação da vontade negocial e se mantenha em absoluto silêncio;
XXXIII. Sobretudo não é aceitável que se perceba, fazendo uso das regras de experiência comum, que a Recorrida sabendo do tipo de contrato de trabalho que tinha celebrado, o qual permitia a desvinculação livre de qualquer das partes, tenha tomado a decisão consciente (recorda-se o artigo 27.º da PI que diz: “E essa diminuição da retribuição, nunca foi aceite pela A., que, contra isso se insurgiu, no final de Fevereiro de 2015 e posteriormente”) um mês após o contrato estar em vigor, de nada dizer e esperar pelo avolumar da alegada dívida;
XXXIV. Para mais tarde vir cobrar aquilo que sabe a que não tem direito nem nunca negociou;
XXXV. Para a Recorrente não é relevante a modalidade de abuso de direito, pois o Direito é da exclusiva competência dos tribunais, porém entende que seja através do “venirem contra facto próprio” ou “supressio”, a verdade é que o comportamento da Recorrente foi abusivo à luz do disposto no artigo 334.º do Código Civil;
XXXVI. Pois relembra-se para que não reste qualquer dúvida, que em todos os 36 meses de duração do contrato a Recorrida NUNCA recebeu o montante de € 2.597,41 a título de retribuição base, ou a qualquer outro título, global ou não;
XXXVII. À Recorrida foi-lhe pago SEMPRE o montante de € 1.443,00 a título de retribuição base;
XXXVIII. A Recorrida NUNCA efetuou qualquer reclamação, escrita, verbal, judicial ou de qualquer outra índole sobre o facto de alegadamente receber cerca de 50% do salário acordado;
XXXIX. Só passados seis (6) meses do contrato terminar por sua iniciativa é que deu entrada à presente ação.
XL. E como tal, não havendo sanção específica prevista no artigo 334.º do Código Civil, deverá a Recorrida ser punida pelo não pagamento dos créditos que reclama a esse título.
XLI. Pelo que a Recorrente deveria ter sido absolvida da totalidade do pedido.
XLII. Requerendo-se que seja nessa medida alterada a Douta Sentença a quo,»
Contra-alegou a A., pugnando pela improcedência do recurso.
O tribunal de 1.ª instância proferiu despacho (ref. 82027205), com o seguinte teor:
«Refª: 33260884:
A ré veio arguir a nulidade do despacho que indeferiu, por extemporânea, a gravação da audiência, por violação do dever de gestão processual e do princípio da cooperação.
Afigura-se ao signatário que uma decisão que indefira a gravação da audiência poderá ferir diversos princípios, mas muito dificilmente constituirá uma violação do dever de gestão processual e do princípio da cooperação.
E tal decisão não será uma violação do dever de gestão processual e do princípio da cooperação, por uma razão extraordinariamente simples: a gravação da audiência – nos moldes em que a lei processual a consagrava no momento da decisão – não depende absolutamente da vontade do juiz, da observância do dever de gestão processual ou do seu espirito de cooperação. No essencial, a gravação da audiência depende do livre exercício de um direito das partes: requerer a gravação.
Por conseguinte, a arguida nulidade nada mais faz do que transferir a inércia da parte para a esfera do juiz, sendo certo que a lei ainda em vigor reconhece à parte a liberdade de exercício desse direito.
Além disso, a ré parece esquecer que a tal argumentação não será válida apenas no seu caso, mas em todos os casos. Não é de crer que o juiz só devia ordenar oficiosamente a gravação nas causas da ré, mas sim em todas as causas. Mesmo nos casos em que as partes podiam requerer a gravação, mas não exerceram tal direito, parece que seria de aplicar o raciocínio da ré: o juiz devia mandar gravar a audiência. Logo, parece que o raciocínio e argumentação da ré assenta no pressuposto de um erro que não é apenas do juiz, mas igualmente do legislador do Código de Processo do Trabalho, na sua redação originária (“erro” legislativo entretanto corrigido pela Lei n.º 107/2019, de 9/9).
No entanto, porque se continua a seguir o preceituado no art.º 9.º, n.º 3, do Código Civil, entende-se que o legislador soube exprimir corretamente o seu pensamento e, quanto à questão da gravação das audiências, fez depender a sua realização da manifestação de vontade das partes, independentemente do apelo ao dever de gestão processual e do princípio da cooperação.
Outrossim, parece que a ré valoriza excessivamente a prova testemunhal no tocante à questão da interpretação da vontade das partes considerando que as mesmas estipularam por escrito a declaração negocial.
Pelo exposto, indefiro a arguida nulidade.»
O recurso de apelação foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos.
Tendo o processo subido à Relação, foi observado o preceituado no artigo 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer favorável à confirmação da sentença recorrida.
Não foi oferecida resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso.
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso são as seguintes:
1.ª Nulidade da sentença.
2.ª Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.ª Incorreta apreciação da vontade negocial.
4.ª Existência de abuso de direito.
*
III. Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância considerou assente a seguinte factualidade:
A) Com data de 24/12/2014, como primeira outorgante o legal representante da ré G…, S.L., e como segunda outorgante a autora D… assinaram o escrito denominado contrato de trabalho em regime de comissão de serviço, cuja cópia foi junta como documento de fls. 11 a 13, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
B) Desse contrato consta, entre o mais, na cláusula primeira:

C) Desse contrato consta também a cláusula quinta:

D) Com data de 24/12/2014, como primeira outorgante o legal representante da ré G…, S.L., e como segunda outorgante a autora D… assinaram o escrito denominado acordo de isenção de horário de trabalho – aditamento ao contrato de trabalho, cuja cópia foi junta como documento de fls. 13 verso e 14, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
E) Com data de 24/12/2014, como primeira outorgante o legal representante da ré G…, S.L., e como segunda outorgante a autora D… assinaram o escrito denominado contrato de mandato, cuja cópia foi junta como documento de fls. 14 verso e 15, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
F) A A. denunciou à R., com efeitos a 31 de Dezembro de 2017, o contrato de trabalho.
G) No seguimento do acordo referido em A), a ré entregou à autora os seguintes valores:


Com a exclusão da quantia de € 4.502,18 paga em Dezembro de 2014 sob a rúbrica RETRO.
-
E considerou que não se provou a seguinte factualidade:
H) A. e R. acordaram que a quantia de € 2.691,35 referida na cláusula quinta incluía:
- A compensação pela isenção de horário de trabalho;
- As contribuições e cotizações devidas à segurança social [da responsabilidade da ré
I) A A. gozou férias.
*
IV. Nulidade da sentença
No requerimento de interposição de recurso, dirigido ao tribunal de 1.ª instância, o apelante argui a «nulidade da sentença».
Todavia, o que se extrai da leitura da argumentação apresentada, e reiterada em sede de recurso, é que o mesmo argui a nulidade de dois despachos proferidos pelo Meritíssimo Juiz a quo na audiência de discussão e julgamento.
Alega o apelante que os despachos proferidos na 1.ª sessão de julgamento que indeferiram a requerida gravação da audiência, violam o dever de gestão processual e o princípio da cooperação, respetivamente, previstos nos artigos 6.º e 7.º do Código de Processo Civil, sendo os mesmos nulos, de harmonia com o preceituado no artigo 195.º, n.º1 do referido compêndio legal.
No fundo, o que apelante vem invocar é a verificação de uma nulidade processual, por o tribunal não ter determinado a gravação da audiência, como, no entender do apelante, lhe competiria, ao abrigo dos referidos artigos 6.º e 7.º do Código de Processo Civil.
É consabido que as nulidades podem ser processuais ou da sentença.
As nulidades processuais resultam de atos ou omissões que foram praticados antes de ser proferida a sentença, e que implicaram um desvio da tramitação prevista pela lei, podendo traduzir-se na prática de um ato proibido, na omissão de um ato prescrito na lei ou na realização de um ato que a lei prevê, mas sem o cumprimento do formalismo exigido.
Já as nulidades da sentença derivam de atos ou omissões que o juiz pratica na sentença
A arguição de nulidade processual deve ser apresentada perante o juiz do processo e, eventualmente, da decisão proferida sobre tal nulidade, por norma, poderá haver recurso[2].
De harmonia com o disposto no artigo 199.º do Código de Processo Civil, as nulidades previstas no artigo 195.º do mesmo Código, devem ser arguidas:
a) Se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas e enquanto o ato não terminar;
b) Se a parte não estiver presente, por si ou por mandatário, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse tomar conhecimento, agindo com a devida diligência.
Na situação dos autos, ainda que a arguida nulidade processual tenha sido apresentada em requerimento dirigido ao tribunal de 1.ª instância, embora com erro na forma processual utilizada, porque se adotou a forma prevista na lei processual laboral, então em vigor[3], para a arguição da nulidade da sentença, o que não seria impeditivo do aproveitamento do ato, de harmonia com o princípio da economia processual[4], o certo é que a arguição da nulidade se mostra extemporânea.
Efetivamente, tendo a R. estado representada pelo Ilustre Mandatário na sessão de julgamento de 13-03-2019, como resulta da respetiva ata, em que foram proferidos os invocados despachos “nulos” , e também presente, nas mesmas condições, nas demais sessões de julgamento, não arguiu a nulidade dos referidos despachos até ao final do julgamento, como deveria ter feito, atento o prescrito no artigo 199.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Destarte, a arguição da nulidade apresentada aquando da interposição do recurso, mostra-se intempestiva, pelo que a eventual nulidade se considera sanada.
Nesta conformidade, não se apreciará a arguida nulidade processual.
*
V. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
O apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto, pugnando pelo aditamento da factualidade indicada no artigo 42.º das suas alegações.
Justifica o visado aditamento pela prova documental junta ao processo, reportando-se especificadamente aos documentos 1 a 4-C e documentos 6 a 30-C, apresentados com a contestação.
Observado o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obsta ao conhecimento da impugnação.
A prova documental em que se baseia o apelante corresponde ao print de diversos e-mails e respetivos anexos.
Tal prova foi apresentada para contrariar o valor da retribuição acordada alegado pela A..
Na versão apresentada na contestação, alegou a R. que as partes processuais acordaram que a quantia de € 2. 691,35, referida na cláusula 5.ª do contrato, já contemplava a compensação pela isenção de horário de trabalho e as contribuições e quotizações para a Segurança Social.
Ora, os prints dos e-mails e respetivos anexos constituem documentos particulares, com a força probatória que lhes é conferida pelo artigo 376.º do Código Civil e reportam-se a período cronológico posterior ao da outorga do contrato de trabalho.
Em nenhum dos aludidos documentos consta qualquer declaração emitida pela A. a reconhecer que o valor de € 2.691,35, a que se refere a cláusula 5.ª do contrato, contemplava a compensação pela isenção de horário de trabalho e as contribuições e quotizações para a Segurança Social.
Os anexos juntos aos e-mails que correspondem a “recibos de vencimento”, “resumo de processamento” e “folhas de remunerações da Segurança Social”, também não se mostram assinados pela A. .
Por conseguinte, a retribuição alegada pelo apelante, não resulta de qualquer declaração emitida pela A. – n.º 2 do referido artigo 376.º.
Dessarte, os referidos prints dos e-mails e respetivos anexos, per si, não têm força probatória suficiente para contrariar o contrato de trabalho escrito, assinado pelas partes processuais, no qual se fez constar, na cláusula 5.ª, com a epígrafe “Retribuição”, que a retribuição mensal ilíquida de € 2.691,35, apenas incluiria o subsídio de alimentação, conforme resulta assente na alínea C) dos factos considerados provados.
Não invocando o apelante qualquer outro meio probatório para justificar a alteração da decisão sobre a matéria de facto, no que concerne à alínea H) dos factos não provados, julga-se, consequentemente, improcedente a impugnação deduzida.
Acresce que o teor dos diversos e-mails, que o apelante entende que deveria ficar a constar do conjunto dos factos assentes, é absolutamente inócuo, pois, como refere o tribunal a quo na sua motivação, «[o]s numerosos e-mails trocados pelas partes após a outorga do contrato de trabalho não esclarecem a questão da vontade determinante de ambas as partes à data da sua celebração.»
Ademais, a receção pela A. dos aludidos e-mails com os respetivos anexos, não poderia constituir fundamento para se concluir pela existência de uma atitude “absolutamente reprovável e abusiva”, por não ter reclamado, na vigência do contrato, as diferenças remuneratórias que agora peticiona[5], pelo que o teor dos e-mails também se revela absolutamente inócuo para a apreciação da invocada exceção de abuso de direito.
Ora, o princípio geral da economia processual, consagrado no artigo 130.º do Código de Processo Civil, impõe que o resultado processual seja atingido com a maior economia de meios, devendo, por isso, comportar só os atos e formalidades, indispensáveis ou úteis[6].
Deste modo, a decisão sobre a matéria de facto deve abarcar, simplesmente, factos com interesse ou relevância para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Assim sendo, os factos que se revelem inócuos para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, não deverão ser considerados /apreciados na decisão sobre a matéria de facto, sob pena de se estarem a praticar atos inúteis.
Pelo exposto, claudica ab initio o visado aditamento do teor dos e-mails à matéria de facto.
Concluindo, julga-se improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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VI. Vontade negocial das partes quanto à retribuição
Entende o apelante que o tribunal a quo não soube apreciar qual a real vontade das partes aquando da celebração do contrato de trabalho, designadamente no que concerne à retribuição base mensal acordada.
Vejamos, então, como a questão foi analisada e decidida pela 1.ª instância.
Escreveu-se na sentença recorrida:
«O primeiro pedido da autora centra-se no reconhecimento em como a sua retribuição base mensal, ilíquida, durante a vigência do contrato de trabalho - 24 de Dezembro de 2014 e 31 de Dezembro de 2017, era de € 2.594,41.
Em matéria de retribuições, o art.º 258.º, do Código do Trabalho, refere que:
1 - Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho.
2 - A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie.
3 - Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador.
4 - À prestação qualificada como retribuição é aplicável o correspondente regime de garantias previsto neste Código.
As partes expressamente referiram no contrato de trabalho escrito que a empregadora pagaria à trabalhadora a retribuição mensal ilíquida de € 2.691,35, a qual já inclui o correspondente subsídio de alimentação e descontos legais.
Uma vez que, tal como se evidencia da documentação e do acordo das partes, a ré pagava inicial e mensalmente à autora € 93,94 de subsídio de alimentação, a retribuição mensal ilíquida será de € 2.597,41 (excluindo tal subsídio de alimentação).
Deverá incluir-se neste montante o subsídio por isenção do horário de trabalho e outras contribuições e cotizações devidas à segurança social da responsabilidade da ré? Quanto a esta questão, como já se aludiu anteriormente, a ré não fez prova em como a vontade de ambas as partes, quando celebraram o contrato, fosse de incluir tais parcelas na declarada retribuição mensal ilíquida de € 2.691,35.
Por conseguinte, desconhecendo-se qual era a vontade real dos declaratários, o tribunal têm que interpretar as manifestações de vontade expressas no contrato escrito “com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário) - artº 236, nº1, do Código Civil” – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/6/2012, disponível na base de dados da DGSI, proc. n.º 14/06.7TBCMG.
Ora, um declaratário normal, perante as circunstâncias evidenciadas pelos autos, particularmente o contrato de trabalho escrito cuja cópia foi junta aos autos, não deixará de interpretar que a vontade expressa pelas partes no dia 24/12/2014 quando celebraram o negócio jurídico seria de que:
1) A ré pagaria à autora a retribuição mensal ilíquida de € 2.691,35;
2) Nesse valor estaria incluído o subsídio de alimentação;
3) Nesse valor também estariam incluídos todos os descontos a que a empregadora estava legalmente obrigada a fazer na retribuição e que são da responsabilidade da trabalhadora (por isso é que é um valor ilíquido - cfr. parte final da cláusula 5.ª do contrato de trabalho escrito).
Excecionalmente, no presente caso, há uma confusão entre os conceitos de “retribuição ilíquida” e “retribuição líquida”, na medida em que as partes acordaram que a contribuição devida pela trabalhadora à Segurança Social seria paga diretamente por esta. O que não deixa de ser curioso, na medida em que a autora, sendo já trabalhadora da ré é constituída como sua mandatária – cfr. cláusula 2.2.3. do contrato de mandato junto com a petição.
Por conseguinte, a retribuição mensal “ilíquida” de € 2.691,35 era o valor líquido que a ré deveria entregar mensalmente à autora para pagamento da:
- Retribuição base;
- Subsídio de alimentação;
- Contribuição devida pela trabalhadora à Segurança Social (mas não outras eventuais contribuições da responsabilidade da empregadora).
Por conseguinte, entende-se que a autora demonstrou que a sua retribuição base mensal, ilíquida, durante a vigência do contrato de trabalho - 24 de Dezembro de 2014 e 31 de Dezembro de 2017, era de € 2.594,41.»
Desde já se adianta que a decisão recorrida não nos merece qualquer censura.
Constituindo questão controversa nos autos, a interpretação das declarações negociais manifestadas através do conteúdo da cláusula 5.ª do contrato de trabalho, as regras jurídicas a considerar para tal interpretação são as prescritas nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil.
Resulta da factualidade assente que as partes celebraram, entre si, por escrito, um contrato de trabalho em regime de comissão de serviço.
Tal contrato, celebrado em 24-12-2014, constitui um negócio formal, de harmonia com o estipulado no artigo 162.º, n.º 3 do Código do Trabalho.
Prescreve o artigo 238.º, n.º 1 do Código Civil que nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem essa validade – n.º 2 do artigo.
Ora, o que se infere dos factos assentes é que no dia 24-12-2014, as partes celebraram um contrato de trabalho, no qual expressamente estipularam, na cláusula 5.ª, que o agora apelante se comprometia a pagar à trabalhadora «a retribuição mensal ilíquida de € 2.691,35 (dois mil, seiscentos e noventa e um euros e trinta e cinco cêntimos), a qual inclui já o correspondente subsídio de alimentação, sobre o qual incidirão os respetivos descontos legais»
Na mesma data, em aditamento ao contrato de trabalho, foi celebrado o acordo de isenção de horário de trabalho, que faz fls. 14 verso e 15, e cujo teor foi considerado integralmente reproduzido na alínea E) dos factos assentes.
Estipulou-se na cláusula 3.ª deste acordo:

Infere-se do convencionado que a trabalhadora tinha direito a receber uma «retribuição especial» correspondente a uma hora de trabalho suplementar por dia, sujeita aos descontos legais.
A remissão para o Código do Trabalho só pode entender-se como sendo uma remissão para o artigo 265.º, n.º 1, alínea a) deste diploma legal.
Ora, o referido aditamento ao contrato de trabalho constitui o acrescentar de algo ao primeiro acordo celebrado.
E, conjugando os textos dos dois acordos, celebrados no mesmo dia, o que se depreende é que a designada «retribuição especial» pela isenção de horário de trabalho surge como uma realidade autónoma da retribuição a que alude a cláusula 5.ª, reproduzida na alínea B) dos factos assentes.
Lendo o texto completo dos dois acordos, infere-se que as partes separaram a retribuição mensal ilíquida, que tiveram o cuidado de anotar que contemplava o subsídio de alimentação, e estava sujeita aos descontos, da «retribuição especial» pela isenção de horário de trabalho.
Sintetizando e concluindo, do texto dos acordos resulta uma identificação e estipulação autónoma das duas retribuições mencionadas.
Recorrendo ao contexto que emana dos factos assentes, extrai-se do mesmo que os dois acordos foram celebrados na mesma data, pelo que não é de presumir o desconhecimento do acordo de isenção de horário de trabalho e do direito da trabalhadora à retribuição especial convencionada por tal isenção, de modo a justificar a omissão da sua integração na retribuição a que alude a cláusula 5.ª do contrato de trabalho.
Na normalidade da vida, a formalização deste tipo de acordos, por regra, é antecipada de pré-negociação.
O apelante também não conseguiu demonstrar que a vontade real das partes era a de incluir na retribuição convencionada na aludida cláusula 5.ª, a compensação especial pela isenção de horário de trabalho.
Tudo ponderado, afigura-se-nos que a interpretação dos factos e a aplicação do direito, realizadas na sentença recorrida, relativamente à questão apreciada, estão corretas e, nessa medida, improcede o recurso, nesta parte.
Considerando o decidido, confirma-se, igualmente, o cálculo das férias, subsídio de férias e subsídio de natal, realizados na sentença recorrida.
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VII. Abuso de direito
Por fim, alega o apelante que a atuação da apelada só pode ter-se por abusiva para efeitos do disposto no artigo 334.º do Código Civil.
Justifica a sua posição pela circunstância de todos os meses ter enviado um recibo de vencimento por e-mail para a apelada, do qual constava que a retribuição base da mesma era de € 1.443,00, nunca tendo recebido qualquer reclamação relativamente a tal valor durante a vigência do contrato de trabalho.
Na fundamentação da sentença recorrida, sobre esta matéria, escreveu-se o seguinte:
«A ré excecionou que a autora nunca protestou ou reclamou relativamente ao processamento do seu salário, pelo que sempre estaria a exercer abusivamente um direito.
De acordo com o disposto no artigo 334.º, do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. A ré invoca a modalidade de “venire contra factum proprium”.
Pergunta-se:
1) Qual é o “factum proprium” praticado pela trabalhadora que compromete o exercício do seu direito?
2) Será que é abusivo que uma trabalhadora reclame o pagamento integral da retribuição acordada e devida pela prestação de trabalho imediatamente após a cessação do contrato?
Quanto à primeira questão, entende-se que o único facto que releva para esta questão é a falta do pagamento integral da retribuição, mas o mesmo foi praticado pela empregadora e não pela trabalhadora. A trabalhadora, de acordo com a versão invocada pela ré, não praticou qualquer facto relevante. O que poderia abstratamente relevar da parte da trabalhadora é a sua aparente inércia quando confrontada com o processamento de valores inferiores aos que foram inicialmente acordados. Mas tal questão releva apenas da “supressio” enquanto modalidade do instituto do abuso de direito, a qual pressupõe um não-exercício prolongado; uma situação de confiança, daí derivada; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança; a imputação da confiança ao não-exercente – ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, in Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito de Ação e Culpa In Agendo, pág. 58.
A resposta à segunda questão é-nos repetidamente dada pela Lei, desde o princípio consagrado no artigo 59.º, da Constituição da República Portuguesa, até à sua prática concretização consagrada no artigo 337.º, do Código do Trabalho: “O crédito de empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho”.
A doutrina e a jurisprudência clara e inequivocamente reconhecem que o legislador nacional “pretende, sobretudo, ultrapassar a real dificuldade que assiste ao trabalhador de acionar o empregador na pendência do contrato de trabalho” – MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, in Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Almedina 2014, pág. 706, e acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1/12/2014, disponível na base de dados da DGSI, proc. n.º 80/14.1TTVLG.
Ora, antes de decorrido um ano após a cessação do contrato de trabalho, a trabalhadora, só porque não arriscou confrontar logo a sua empregadora, não criou qualquer situação de confiança. A empregadora que incumpre a obrigação de pagar integralmente a retribuição não pode realizar tal investimento de confiança e confiar que a credora – consabidamente, numa posição de dependência económica durante a vigência do contrato – não irá exercer legitimamente os seus direitos em momento oportuno.
Por consequente, improcede a exceção de abuso de direito.»
Analisemos.
Com arrimo nos factos assentes, deduz-se que, em 24-12-2014, as partes celebraram, entre si, dois acordos: o contrato de trabalho em regime de comissão de serviço e o acordo de isenção de horário de trabalho.
Já apreciámos que, de acordo com o convencionado, o apelante se obrigou a pagar à apelada a retribuição mensal ilíquida de € 2.691, 35, que integrava o subsídio de alimentação, e a retribuição especial correspondente a uma hora de trabalho suplementar por dia, pela isenção de horário de trabalho.
O contrato de trabalho cessou em 31-12-2017, por denúncia da apelada.
De harmonia com o preceituado no artigo 337.º do Código do Trabalho, os créditos de empregador ou de trabalhador emergentes de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescrevem decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.
Ou seja, no caso dos autos, quer o apelante quer a apelada, poderiam intentar ação judicial reclamando eventuais créditos laborais emergentes do contrato de trabalho que vigorou entre ambos, até 01-01-2019.
A petição inicial que se encontra nos autos foi apresentada em 26-06-2018, ou seja, antes do termo do prazo prescricional previsto no aludido artigo 337.º.
Na mesma, foi pedida a condenação da R. a reconhecer que a retribuição base mensal ilíquida da A. era de € 2.594,41 e, na sequência, foi pedido o pagamento de diferenças salariais, devidamente calculadas, bem como o pagamento das férias não gozadas.
Depreende-se da causa de pedir apresentada que o litígio emerge, essencialmente, do valor da retribuição a que a A. tinha direito.
A circunstância da mesma, ao longo do contrato de trabalho, em que se encontra numa relação de subordinação e dependência, não ter reclamado sobre o valor da retribuição que lhe era pago, não constitui comportamento relevante para efeitos do abuso de direito previsto no artigo 334.º do Código Civil.
Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência, destacando-se, a título meramente exemplificativo, o acórdão mencionado na nota de rodapé 5, no qual se escreveu:
«Resta o argumento do não exercício do direito por parte do recorrido desde final de Janeiro de 2011 (primeiro mês em que terá recebido a retribuição no valor de € 1.400,00) até à data em que comunicou a resolução do contrato (05 de Novembro de 2013).
Quanto a este argumento, tem, antes de mais, que se admitir que pode o recorrido apenas ter tomado consciência dos seus direitos (às diferenças salariais) por alturas ou aquando da resolução do contrato.
Além disso, e sobretudo, como já se deixou afirmado, na vigência da relação do trabalho o trabalhador mantém-se na dependência do empregador, pelo que se compreende que nesse período ele não reclame créditos que entende assistirem-lhe e que a lei lhe conceda a faculdade de reclamar os mesmos durante o ano seguinte ao termo do contrato (n.º 1 do artigo 337.º do Código do Trabalho).
Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011 (Proc. n.º 2/08.9TTLMG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), numa situação com paralelismo com a presente, «[o] facto de o trabalhador vir a exigir do empregador prestações salariais que há longos anos lhe eram devidas, prestações que na altura podia ter exigido, mas que não exigiu, qualquer que tenha sido o motivo — imperfeito conhecimento dos seus direitos, receio de perda do emprego, expectativa de reparação do incumprimento do empregador, etc. — não integra, por princípio, uma atuação com abuso do direito, mas antes um exercício incensurável do mesmo direito.
É que a não reclamação na altura própria de direitos que assistam ao trabalhador não comporta o significado, atenta a natureza e posição das partes no contrato, que o mesmo deles tivesse pretendido abdicar, tanto mais tratando-se de direitos indisponíveis, para mais tarde assumir uma conduta antagónica e surpreender o empregador com um pedido inesperado.
A relação laboral está concebida na lei em termos de ambas as partes poderem reclamar uma da outra créditos que lhes assistam, quer durante a vigência do contrato quer durante o ano seguinte ao seu termo, enquanto tais créditos se não mostrem prescritos. E, assim sendo, cada uma delas, tem de estar consciente e prevenida para a eventualidade de uma petição reclamadora de direitos, tanto mais nas situações em que não possam ignorar a falta de cumprimento da sua parte, por longínqua que ela já se mostre.
E no caso dos autos nem releva que fosse o trabalhador, ora Recorrido, a processar os seus próprios vencimentos, pois que é suposto que o fazia nos termos determinados pela entidade empregadora e não por alvitre próprio.».
Assim, no caso, pode-se até admitir que o trabalhador só tomou consciência do seu direito às diferenças salariais aquando da resolução do contrato.
Contudo, ainda que assim não seja, da falta de reclamação contra o pagamento de uma retribuição inferior à devida não se pode concluir pela aceitação por parte do trabalhador do salário que lhe foi sendo pago, pois esta situação envolveria uma violação do princípio da irredutibilidade da retribuição, que só podia ser reduzida nas circunstâncias supra analisadas e descritas, que, no caso, não se verificavam.
Nesta sequência, somos a concluir que o pedido de pagamento das diferenças salariais referentes a cerca de três anos anteriores à resolução do contrato, formulado aquando desta, não configura abuso do direito.
E assim sendo, são devidas as diferenças salariais constantes da decisão recorrida, contra as quais a recorrente se rebelou com os fundamentos já analisados.»
Partilhamos o mesmo entendimento.
Nesta conformidade, conclui-se que a não reclamação das diferenças salariais peticionadas não constitui abuso de direito, improcedendo o recurso, também, quanto à questão analisada.
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VIII. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
Évora, 16 de janeiro de 2020
__________________________________________________
[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: Emília Ramos Costa; 2.ª Adjunto: Moisés Silva
[2] Embora, por exemplo, o artigo 630.º, n.º 2 do Código de Processo Civil exclua a possibilidade de recurso relativamente aos despachos proferidos sobre as nulidades previstas no artigo 195.º, n.º 1 do mesmo compêndio legal, salvo se as mesmas contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios.

[3] Seguiu-se a forma prevista no artigo 77.º do Código de Processo do Trabalho, antes da alteração introduzida pela Lei n.º 107/2009, de 9 de setembro.
[4] Neste sentido, v.g. Acórdãos da Relação de Évora, de 18-10-2012, Proc. n.º 1027/11.2TTSTB.E1; de 25-09-2014, P. 17/05.9TTSTR.2.E1; e de 12-102017, Proc. 871/16.9T8STC.E1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, v.g. Acórdão da Relação do Porto, de 29-06-2015, P. 682/13.3TTOAZ.P1, publicado em www.dgsi.pt.
[6] José Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, Coimbra Editora, 3.ª edição, pág. 203.