Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
674/14.5T8BJA.E1
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECONVENÇÃO
CONEXÃO OBJECTIVA
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Para efeitos de compensação, o ser o crédito judicialmente exigível significa apenas ser cobrável para efeitos do disposto no artigo 817.º do Código Civil, maxime através de acção declarativa ou executiva, no caso de o credor dispor de título executivo, mas não tem de estar judicialmente reconhecido.
Decisão Texto Integral: Processo 674/14.5T8BJA.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja
Juízo Central Cível e Criminal de Beja - Juiz 3

I. Relatório
Grupo (…) – Comércio e Serviços, S.A, instaurou contra (…) e (…), acção declarativa a seguir a forma do processo comum, pedindo a final a condenação do 1.º R a pagar-lhe o montante de € 945.233,40 e a declaração de ineficácia em relação à demandante da doação feita pelo 1.º ao 2.º R tendo por objecto os cinco imóveis que identificou, devendo ser-lhe reconhecido o direito a executar tais bens no património do adquirente donatário.
Alegou para tanto e em síntese ser credora do 1.º R pelo valor de € 945.233,40, por via de acordo de assunção de dívida celebrado em 22/1/2013, nos termos do qual, com exoneração do 2.º R., aquele assumiu o pagamento à demandante da quantia de € 680.000,00 por este último devida, correspondente ao resto do preço das quotas representativas da totalidade do capital social da então denominada sociedade (…), Comércio de Automóveis, Lda., e que adquirira mediante contrato datado de 8/4/2008, sendo ainda o R. (…) devedor do montante de € 265.233,40, resto do preço das participações detidas pela autora na sociedade (…) e Filhos, Lda., as quais lhe foram cedidas por contrato celebrado no mesmo dia 22/1/2013, obrigações que há muito se encontram vencidas.
Mais alegou que o identificado 1.º R. é também devedor ao (…) Banco do valor de € 1.122.450,00, dívida contraída no âmbito de um financiamento concedido pela referida entidade bancária, tendo entrado em incumprimento em Julho de 2014, situação que se mantém, vindo a afirmar a este respeito que quaisquer consequências decorrentes de tal incumprimento em nada o afectarão, uma vez que não dispõe de quaisquer bens. E assim é porque na sequência da recepção em 31/10/2014 de carta que lhe foi enviada pela autora, na qual o interpelava para regularizar os pagamentos em atraso, o 1.º R., mediante escritura pública outorgada em 4/11/2014, doou ao 2.º R as cinco fracções autónomas ali identificadas, as quais se encontram já registadas a favor do adquirente.
Em resultado da aludida doação o património do 1.º R ficou seriamente afectado, não dispondo actualmente de bens que garantam o cumprimento das obrigações que assumiu, tendo actuado com o claro propósito de defraudar os seus credores, incluindo a aqui requerente, encontrando-se reunidos os pressupostos da impugnação pauliana consagrados no art.º 610.º do CC, disposição legal que expressamente invocou.
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Regularmente citados, os RR contestaram e deduziram ambos reconvenção.
Em sua defesa alegaram, em sede de excepção, que o aludido contrato de compra e venda das participações da sociedade (…), Lda. foi alterado e substituído em parte pelo acordo celebrado entre a A., os RR e as restantes herdeiras legitimárias do 1.º R, suas filhas (…) e (…), que as partes outorgantes denominaram de “contrato promessa de doações, compras e vendas e permutas”, e visava a distribuição, em vida do 1.º R., pelos seus três filhos e únicos herdeiros legitimários, do vasto património pelo primeiro acumulado. Sucede que este acordo não se mostra cumprido pela autora (5.ª outorgante), que vem afirmando por intermédio das respectivas accionistas e administradoras, as identificadas filhas e irmãs do 1.º e 2.º RR, que não pretendem cumpri-lo, donde ser legítima a invocação pelos RR da excepção do não cumprimento no que se reporta à dívida no alegado montante de € 680.000,00, uma vez que nos termos globalmente acordados o cumprimento de cada um dos contratos dependia do cumprimento dos restantes.
Invocou ainda o 1.º R. a excepção do abuso de direito, com fundamento no facto de ter injectado capital seu, “na ordem das centenas de milhar de euros”, na sociedade autora através de suprimentos, termos em que “mesmo que devesse alguma coisa [à Autora] (…) esta, pelas razões invocadas, não deveria exigir do seu fundador e criador de valor o que quer que fosse, porque isso ofende designadamente os limites impostos pela boa-fé previstos no art.º 334.º do CC”, exercício abusivo que surge ainda evidenciado pelo facto de imputar ao 1.º R. uma situação de quase insolvência enquanto se apropria ilicitamente, todos os meses, do valor de € 3.564,00 proveniente de rendas que a este são devidas.
Impugnaram finalmente ambos os contestantes a factualidade alegada na petição, chamando a atenção para o facto dos contratos invocados pela autora serem meramente instrumentais de um objectivo comum, que consistia na partilha consensual do património do 1.º R, ainda em vida deste, pelos seus herdeiros ou sociedades pelos mesmos detidas, o que implicava a celebração de outros contratos, não tendo tais acordos existência autónoma.
Tendo finalmente alegado que as accionistas da demandante são solidariamente responsáveis pela dívida ao (…) Banco, concluíram pela improcedência da acção.
Em via reconvencional, com fundamento nas ditas injecções de capital que alegou ter introduzido na autora, quantias que só no ano de 2013 ascenderam a € 99.000,00, pediu o 1.º R fosse declarada a compensação, ao abrigo do disposto nos art.ºs 847.º e 848.º do CC, do crédito reclamado pela A. com o crédito que sobre ela detém, a apurar, e a condenação da reconvinda no eventual excedente, mais pedindo a condenação desta a restituir o valor das rendas “de que se tem vindo a apoderar ilicitamente, bem como das que se venha a apoderar, acrescidas dos juros legais vencidos e vincendos”.
O 2.º R, por seu turno, pediu a condenação da Autora “a celebrar os contratos prometidos nas cláusulas 6.ª e 7.ª do contrato promessa de doações, compras e vendas e permutas celebrado em 1 de Março de 2012” ou, subsidiariamente, a condenação da mesma “no pagamento do valor dos prejuízos que o incumprimento daqueles contratos lhe venha a causar”, cujo valor relegou “para a fase de execução de sentença”.
A autora replicou, defendendo a inadmissibilidade dos pedidos reconvencionais formulados.
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Teve lugar audiência prévia e nela o Mm.º Juiz, para o que ora releva, proferiu o seguinte despacho:
“Da Admissibilidade das Reconvenções:
A presente acção tem como causa de pedir um contrato de assunção de dívida, contratos de cessão de quotas e ainda a impugnação pauliana de determinadas doações de bens imóveis que, na perspectiva da Autora, põem em causa o cumprimento daqueles contratos.
Por sua vez na reconvenção vem o primeiro Réu procurar obter uma compensação de créditos e eventualmente, se assim for reconhecido, a condenação da Autora no pagamento do excedente caso o seu crédito sobre a mesma seja superior e, por outro lado, o 2.º Réu vem pôr em causa direitos que também não foram salvaguardados pela Autora no cumprimento de um contrato de promessa de compras e vendas, permutas e doações.
Estas reconvenções assentam assim na defesa que os próprios Réus deduzem em relação à acção, para além da questão da compensação, e, como tal, são admissíveis nos termos do disposto no art.º 266.º, n.º 2, als. a) e c), do CPC”.

Do assim decidido veio a autora, inconformada, interpor o presente recurso e, tendo desenvolvido nas alegações que apresentou as razões da sua discordância, formulou a final as seguintes conclusões:
1. Incide o presente recurso sobre o despacho proferido pelo Tribunal a quo, em sede de audiência prévia, na parte em que admitiu as Reconvenções formulados pelos RR.
2. Sustenta o Tribunal a quo que as Reconvenções foram apresentadas com respeito ao disposto no art.º 266.º do CPC que regula os requisitos legais de admissibilidade.
3. Especificamente entendeu o Tribunal a quo que as reconvenções foram feitas com respeito e ao abrigo do disposto no art.º 266.º, n.º 2, als. a) e c), do CPC.
4. Com tal entendimento não se compadece a A.
5. No tocante ao pedido reconvencional formulado pelo primeiro R., constata-se ainda que funda a admissibilidade processual da sua reconvenção no n.º 1 e no n.º 2, als. a) e c) do art.º 266.º do CPC, declarando expressamente que pretende a compensação do seu crédito com os contra créditos peticionados pela autora, ou a restituição do excedente [cfr. artigos 154.º a 156.º da contestação].
6. Nas palavras de Miguel Mesquita, “[p]ara que a reconvenção seja admissível, tem de verificar-se, desde logo, uma conexão objectiva ou material entre as duas acções cruzadas, ou, por outras palavras, uma ligação ou nexo entre os objectos da causa inicial e da causa reconvencional”.
7. De acordo com a conexão exigida pela primeira alternativa da al. a) do n.º 2 do art.º 266.º do CPC, o pedido reconvencional é admissível se assentar na causa de pedir da acção, podendo haver uma coincidência total ou parcial.
8. Sucede que a causa de pedir da A., ora Recorrente, cinge-se apenas aos incumprimentos contratuais relativos ao contrato de assunção de dívida e ao contrato de compra e venda de participações sociais identificados na P.I., bem como aos contratos de doação relativos aos cinco imóveis identificados nos artigos 28.º e 29.º da P.I.
9. Nada mais foi dito ou especificado pela A., designadamente quanto a outros factos ou situações jurídicas de que o R. e a A. possam ser titulares.
10. Consequentemente, a causa de pedir elencada pelo primeiro R. nos artigos 124.º e ss. da contestação-reconvenção não coincide, nem sequer parcialmente, com a causa de pedir da acção intentada pela A.
11. Pelo que é forçoso concluir que a admissibilidade do pedido reconvencional não pode residir na primeira alternativa da al. a) do n.º 2 do art. 266.º do CPC.
12. A segunda hipótese legal de admissibilidade da reconvenção é a que se encontra na segunda alternativa da al. a) do n.º 2 do art. 266.º do CPC e consiste na circunstância de o pedido do réu emergir do facto jurídico que serve de fundamento à defesa, devendo esta ser entendida como a impugnação (direta ou indireta) da factualidade alegada pelo autor, bem como a alegação de contrafactos impeditivos, modificativos ou extintivos.
13. Neste contexto, é evidente que da impugnação feita pelo R. (na sua contestação-defesa) não deriva a causa de pedir que pretende agora enxertar nos presentes autos pela via reconvencional, já que os factos alegados não o autorizam a transformar a sua defesa em demanda reconvencional.
14. A mesma conclusão impõe-se quando examinados os factos que o R. excecionou expressamente na sua contestação-defesa, pois apenas se refere a uma suposta exceção de não cumprimento do contrato e a uma peregrina alegação de abuso de direito.
15. Assim, é por demais evidente que estas duas circunstâncias não têm qualquer conexão com os pedidos reconvencionais agora em apreço, pois estes respeitam a relações contratuais que nada têm que ver com a causa de pedir e os pedidos deduzidos pela A.
16. Forçoso se torna, pois, concluir que os pedidos reconvencionais não se apresentam como uma decorrência natural da atividade defensiva do primeiro réu, razão por que a reconvenção não pode ser admitida ao abrigo da segunda alternativa da al. a) do n.º 2 do art.º 266.º do CPC.
17. Ainda, no tocante à alínea c) do n.º 2 do art.º 266.º do CPC, prevê agora o CPC que a reconvenção pode ser deduzida “[q]uando o réu pretenda o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor”.
18. Quanto a este fundamento, afigura-se inequívoco que o R. pretende o reconhecimento de créditos, pedindo expressamente a sua compensação com o montante que lhe é exigido por força da ação, ou mesmo o pagamento do valor dos seus alegados créditos na parte em que excedam o da autora, aqui reconvinda.
19. Ora, a compensação é uma forma de extinção de duas obrigações, “sendo o credor de uma delas, devedor na outra, e o credor desta última devedor na primeira”, representando, por isso, um “encontro de contas” [Mário Júlio de Almeida Costa – Direito das Obrigações. 12.ª ed. rev. e actual. Coimbra: Almedina, 2009, p. 1099].
20. Dito de outra forma, a compensação pressupõe o reconhecimento, por parte daquele que a pretende realizar do crédito cujo pagamento lhe é exigido.
21. Assim, a declaração de compensação apresenta-se como um negócio jurídico unilateral, que reveste a natureza de um direito potestativo extintivo, e tem lugar quando o devedor que seja credor do seu próprio credor se pretende liberar da dívida à custa do seu crédito.
22.Tendo presente esta circunstância, é curioso notar que o primeiro R. não atribuiu natureza subsidiária ao pedido de compensação nem ao pedido de pagamento do seu suposto contracrédito na parte que exceda o crédito da autora.
23. Logo, não sendo possível negar uma dívida e, simultaneamente, pretender compensá-la, é forçoso concluir que o primeiro R., afinal acaba por reconhecer o mérito da pretensão da A., já que assume que é devedor da quantia peticionada, resumindo a sua defesa a saber se tal valor será integralmente compensado pelo seu contra-crédito ou se ainda haverá lugar à restituição do remanescente de que se afirma credor.
24. No tocante à admissibilidade da reconvenção, afigura-se que o pedido reconvencional também não deve ser admitido com base neste fundamento normativo. Porquanto, de acordo com o estatuído no art. 847.º do CC, são requisitos da compensação: (i) a existência de dois créditos recíprocos; (ii) que ambos os créditos sejam judicialmente exigíveis e não proceda contra eles exceção, perentória ou dilatória, de direito material; (iii) que os dois créditos tenham por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.
25. Impõe-se, ainda, para que possa haver lugar à compensação: (i) a sua não exclusão por força da lei, e (ii) a declaração da vontade de compensar.
26. No presente caso encontra-se por demonstrar o requisito da exigibilidade judicial do contracrédito invocado pelo R. De facto, a al. b) do art.º 847.º do CC pressupõe que o crédito seja “exigível judicialmente” e o R. não logrou demonstrar sequer a existência ou exigibilidade do seu crédito.
27. No seguimento da doutrina e jurisprudência maioritárias, é possível concluir com segurança que o legislador, ao usar a expressão “exigível”, pretendeu referir-se a um crédito certo, seguro, e não meramente hipotético ou eventual. Significa isto que, enquanto tal crédito não estiver reconhecido, não pode servir de sustento a uma compensação de créditos.
28. Assim, é evidente que não é nos presentes autos que tal reconhecimento do crédito invocado pelo R. pode ter lugar, mas sim em ação autónoma, pois tal contracrédito já tem de estar definido (para poder ser “exigível”) no momento em que se alega a compensação de créditos.
29. De facto, a alegação genérica de suprimentos e de “injeções de capital”, ou do suposto desvio de rendas (quando não se logra sequer demonstrar a titularidade do direito ao seu recebimento), não permite a conclusão sobre a existência de tais alegadas quantias, nem sobre os seus concretos montantes, e muito menos sobre o vencimento da obrigação do seu pagamento ou sobre a sua exigibilidade.
30. É certo que a iliquidez do crédito não obsta à compensação. No entanto, isso não afasta a exigência legal de que o crédito tem de existir efetivamente ou realmente no momento em que se invoca a compensação.
31. Ou seja, liquidar o crédito é uma coisa; reconhecer a sua existência é outra bem diferente. E se o primeiro pode ter lugar no processo em que se invoca a compensação, já o segundo não pode ter lugar nos presentes autos, pois quando o contracrédito é invocado já tem de estar declarado, ou seja, deve ser “exigível”.
32. Ora, da factualidade alegada pelo R. nada se diz quanto ao vencimento ou exigibilidade dos alegados contracréditos sobre a A., pelo que não faz qualquer sentido falar-se em vencimento dos pretensos créditos invocados pelo R. e que este pretende compensar – o qual tem natureza apenas hipotética –, não sendo, portanto, exigível no sentido acima descrito.
33. Em conformidade, deve improceder liminarmente o pedido reconvencional do primeiro R.
34. Por sua vez, o pedido reconvencional do segundo R. consiste na condenação da A. “a celebrar os contratos prometidos nas cláusulas 6ª e 7ª do contrato promessa de doações compras e vendas e permutas celebrado entre os outros, pela Autora e pelo 2º Réu em 1 de Março de 2012” ou, em alternativa, na condenação da A. “a pagar ao 2º Réu o valor dos prejuízos que o não cumprimento definitivo daqueles contratos lhe venha a causa e cujo valor relega para a fase de execução de sentença”.
35. O segundo R. justifica a admissibilidade processual da sua reconvenção no n.º 1 e no n.º 2, al. a) do art. 266.º do CPC [cfr. artigo 154.º da contestação], alegando que os seus pedidos reconvencionais subsidiários emergem de factos que servem de fundamento à ação ou à defesa.
36. Esta estratégia tem apenas intuitos dilatórios e visa apresentar a este Tribunal uma visão distorcida dos factos, querendo enxertar na lide factos e circunstâncias que não têm qualquer conexão com a causa.
37. De facto, o segundo R. parece não ter consciência de que a sua intervenção nos presentes autos resulta apenas e tão-só da circunstância de ter celebrado com o primeiro R. os negócios de doação relativos aos cinco imóveis identificados nos artigos 28.º e 29.º da P.I., encontrando-se, pois, o litígio circunscrito à impugnação pauliana de tais negócios, em particular quanto à procedência dos pedidos B. e C. da P.I.
38. Na verdade, tratando-se de um terceiro às relações contratuais estabelecidas entre o primeiro R. e A., a causa de pedir que lhe é imputada [ou seja, “os factos que servem de fundamento à ação”] resume-se à verificação dos pressupostos legais de que depende a procedência do pedido de impugnação pauliana, designadamente a aquisição direta de bens que integravam a garantia patrimonial do primeiro R., sendo certo que, por se tratar de aquisições gratuitas, nem sequer se torna exigível a prova do requisito da má-fé, conforme se explicitou já na P.I.
39. Dito de outra forma: a A. apenas peticionou o direito de executar os aludidos imóveis no património do R. e de aí praticar os atos de conservação e de garantia patrimonial autorizados pela lei civil.
40. Assim, tratando-se, quanto ao segundo R., de uma típica ação de impugnação pauliana, a única matéria que pode ser objeto de controvérsia é saber se o impugnante é credor do transmitente, se o comprador e o vendedor agiram de má-fé [o que, nos presentes autos, é dispensado, dado tratar-se de um ato gratuito, que não foi impugnado pelos réus] e se o obrigado possui outros bens que garantam a dívida.
41. Mais ainda, apenas se pode considerar que a reconvenção emerge do facto jurídico que serve de fundamentação à ação ou à defesa quando o réu invoque, como meio de defesa, qualquer ato ou facto jurídico que afete o pedido do autor, reduzindo-o, modificando-o ou extinguindo-o.
42. Assim, para se verificar a conexão prevista na al. a) do n.º 2 do art.º 266.º, não basta que a reconvenção emerja dos factos alegados na petição ou na contestação, sendo necessário que estes tenham a virtualidade de extinguir, reduzir ou modificar o direito alegado pelo autor.
43. Ora, os pedidos reconvencionais subsidiários não colocam em causa o direito da A. à impugnação pauliana, apenas dependendo a procedência da ação da prova dos pressupostos legais já enunciados.
44. Deste modo, inexistindo qualquer conexão objetiva ou material entre a causa inicial e a causa reconvencional, não pode a reconvenção formulada pelo segundo R. ser admitida.
45. Pelo que, impõe-se a revogação do despacho proferido na parte em que admitiu os pedidos reconvencionais formulados pelos RR., devendo ser substituído por decisão que os rejeite liminarmente por serem legalmente inadmissíveis.
Contra alegaram os apelados, sustentando a manutenção do despacho recorrido.

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Sabido que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, a única questão submetida à apreciação deste Tribunal impõe que se indague da admissibilidade legal dos pedidos reconvencionais formulados.
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II. Fundamentação
À decisão importam os factos relatados em 1.
Como se vê do teor do despacho proferido e ora impugnado pela autora, o primeiro réu pretende, pela via reconvencional, “obter uma compensação de créditos e eventualmente, se assim for reconhecido, a condenação da Autora no pagamento do excedente caso o seu crédito sobre a mesma seja superior”, ao passo que o 2.º R. formulou pedido de execução específica “dos contratos prometidos nas cláusulas 6.ª e 7.ª do acordo celebrado em 1 de Março de 2012” ou, subsidiariamente, a condenação da autora/reconvinda “no pagamento do valor dos prejuízos que o incumprimento daqueles contratos lhe venha a causar”, a liquidar.
Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 266.º do CPC, a reconvenção é possível
“a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa; b) Quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; c) Quando o R. pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor; d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter”.
No que respeita ao pedido reconvencional formulado pelo 1.º R, a sua admissibilidade terá de ser aferida à luz do disposto na al. c), uma vez que, tendo alegado ser titular de um contra crédito, emitiu declaração compensatória, pretendendo ainda, no caso de se vir a apurar que excede o crédito da autora, a condenação desta no pagamento do excedente.
A compensação[1] “traduz-se fundamentalmente na extinção de duas obrigações, sendo o credor de uma delas devedor na outra, e o credor desta última devedor na primeira. Representa um encontro de contas, que se justifica pela conveniência de evitar pagamentos recíprocos” (cf. art.º 847.º, n.º 1 do Código Civil). Torna-se efectiva mediante declaração de uma das partes à outra, exigindo assim a lei a manifestação da vontade de compensar por um dos credores-devedores (cf. n.º 1 do art.º 848.º do mesmo diploma legal), sendo seus pressupostos i. a reciprocidade dos créditos (cf. n.º 1 do art.º 847.º e 851.º); ii. a validade e exigibilidade do crédito compensante (al. a) do n.º 1 do art.º 847.º; e iii. a homogeneidade das prestações (al. b) do n.º 1 do art.º 847.º).
Finalmente, importa ainda reter que a lei admite uma compensação parcial (cf. art.º 847.º, n.º 2) e a iliquidez da dívida não constitui obstáculo à compensação (vide n.º 3 do preceito).
A apelante, como vimos, sustenta ser a reconvenção inadmissível por não se encontrar demonstrado “o requisito da exigibilidade judicial do contracrédito invocado pelo R.”, acrescentando que “enquanto tal crédito não estiver reconhecido, não pode servir de sustento a uma compensação de créditos”, e “não é nos presentes autos que tal reconhecimento do crédito invocado pelo R. pode ter lugar, mas sim em ação autónoma, pois tal contracrédito já tem de estar definido (para poder ser “exigível”) no momento em que se alega a compensação de créditos”, para concluir que “deve improceder liminarmente o pedido reconvencional do primeiro R”.
Não lhe assiste, porém, razão, o que desde já se adianta.
Com efeito, não há que confundir a exigibilidade judicial do contra crédito do devedor com o reconhecimento judicial do mesmo crédito. O “ser o crédito judicialmente exigível” significa apenas ser cobrável para efeitos do disposto no art.º 817.º do CC, maxime, através de acção declarativa ou executiva, no caso de o credor dispor de título executivo, mas não tem de estar judicialmente reconhecido[2]. Assim o entendeu o TRC em acórdão de 3/12/2009 (processo 436/07.6 TBTMR.C1, acessível em www.dgsi.pt), assinalando que “o requisito da compensação, que se traduz na necessidade de o crédito ser exigível judicialmente, significa tão só que o mesmo deve ser susceptível de ser reconhecido em acção de cumprimento”, indo no mesmo sentido o aresto do TRP de 9/5/2007 (processo 0721357, disponível no identificado sítio), no qual, com clareza, ficou dito “(…) podemos assentar em que o crédito é exigível judicialmente quando o declarante da compensação se arroga titular de um direito de crédito susceptível de ser reconhecido em acção de cumprimento. Claro está que, havendo impugnação do crédito activo (nos articulados de resposta ou réplica), a compensação desse crédito só opera se o mesmo for reconhecido por sentença”.
Importa, pois, “(…) clarificar que a exigibilidade judicial do crédito activo (imposta pelo art.º 847º, n.º 1) e o reconhecimento judicial do mesmo, para efeitos do funcionamento do mecanismo da compensação, são realidades distintas: a primeira é requisito da declaração de compensação; a segunda é condição da sua eficácia. Constituiria verdadeiro paradoxo aceitar-se o exercício, pelo credor passivo, do seu direito de crédito, através da competente acção de cumprimento, e exigir-se ao declarante da compensação na mesma acção (réu) que a invocação em juízo do seu crédito carecesse de reconhecimento judicial prévio” (do mesmo aresto).
Mais recentemente, debruçando-se sobre a questão, o STJ, em acórdão de 2/7/2015 (no processo 91832/12.3YIPRT-A.C1.S1, também em www.dgsi.pt) esclareceu igualmente que “O crédito será exigível judicialmente quando o titular do direito de crédito o invoca em acção judicial, por via de acção, excepção ou de reconvenção, com vista ao seu reconhecimento judicial
(…) A exigibilidade do crédito para efeito de compensação não significa que o crédito do compensante, no momento de ser invocado, tenha de estar já definido judicialmente: do que se trata é de saber se tal crédito, que se pretende ver compensado, existe na esfera jurídica do compensante e preenche os demais requisitos legais; ser exigível, não procedendo contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material; e terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade – als. a) e b) do n.º 1 do art.º 847.º do Código Civil.
(…) O invocado crédito não deixa de ser exigível, muito embora no momento em que é oposto não esteja reconhecido, nem judicialmente, nem pelo credor, o que conduz, inexoravelmente, a uma decisão judicial que o reconheça.
Distinto da exigibilidade judicial do crédito, imposta pelo art.º 847.º, n.º 1, al. a) do CC, é o respectivo reconhecimento judicial, não obstante só possa operar-se a compensação caso ambos os créditos venham a ser reconhecidos na acção judicial em que se discutem”.
Sendo o exposto o entendimento que se perfilha e tem por correcto, logo se intui que não assiste razão à apelante quando pugna pela inadmissibilidade do pedido reconvencional formulado pelo 1.º R. Com efeito, tendo este invocado contra crédito proveniente de suprimentos que ao longo dos anos efectuou na sociedade autora e que só no ano de 2013 ascenderam a € 99.000,00, a par de créditos provenientes de rendas por aquela indevidamente recebidas à razão de € 3.564,00 mensais, em montantes a liquidar, está em causa a iliquidez dos créditos e não a sua existência e exigibilidade, podendo o seu reconhecimento ter lugar na presente acção. Acresce que eventual deficiente concretização dos factos alegados em suporte do pedido reconvencional determina o convite ao aperfeiçoamento nos termos prevenidos no art.º 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4 do CPC e não o seu indeferimento ou formulação de um juízo “liminar de improcedência”, conforme pretende a apelante.
Em face do exposto, e em conclusão, encontrando o pedido reconvencional formulado pelo 1.º R acolhimento na al. c) do n.º 2 do art.º 266.º, a decisão apelada não merece, neste segmento, a censura que lhe foi dirigida, sendo por isso de manter.
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Quanto ao pedido formulado pelo 2.º R, demandado em razão de ser o beneficiário dos actos de disposição efectuados pelo 1.º R devedor e que a A. pretende por esta via impugnar, não questiona a apelante que àquele aproveita a defesa do 1.º R quando opôs ao direito que aqui veio exercer – estamos perante acção de cumprimento, visando a demandante obter a condenação do devedor no cumprimento das obrigações assumidas no âmbito dos contratos entre ambos celebrados, conforme prevê o art.º 817.º do CC- as excepções do não cumprimento do contrato e abuso de direito, com virtualidade para, em caso de procedência, paralisarem o direito de crédito da autora (sem prejuízo de quanto dispõe o n.º 1 do art.º 614.º do CC no sentido da inexigibilidade do direito do credor não constituir obstáculo ao exercício da impugnação). Não obstante, cremos que assiste razão à recorrente quando defende a inadmissibilidade da reconvenção deduzida pelo 2.º R.
Estando em causa a al. a) do n.º 2 do art.º 266.º acima transcrita, para o que aqui releva, faz a lei depender a admissibilidade da reconvenção da existência de conexão entre o pedido reconvencional e o facto jurídico que serve de fundamento à defesa. Conforme com clareza se escreveu no acórdão do TRL de 22/11/2007 (processo 8458/2007-2, em www.dgsi.pt) “iv- O requisito substantivo da admissibilidade da reconvenção, da alínea a) do nº 2 do artigo 274.º do CPC implica que o pedido formulado em reconvenção resulte naturalmente da causa de pedir do autor (ou, até, se contenha nela) ou seja normal consequência do facto jurídico que suporta a defesa, que tem o propósito - regra de obter uma modificação benigna ou uma extinção do pedido do autor”.
No caso dos autos, reconhecendo-se que aproveitam ao 2.º R as excepções invocadas pelo 1.º R. devedor tendo em vista obstar ao exercício pela autora do seu direito de crédito, nomeadamente a excepção do abuso de direito, não se trata de uma defesa assente em factos próprios daquele R. Com efeito, a defesa assentou, como não podia deixar de ser, uma vez que nos encontramos no domínio dos contratos (cf. art.º 406.º, n.º 2), em factos atinentes às relações contratuais que se estabeleceram entre a autora e o réu devedor, sendo para este efeito de todo irrelevante que o R. Leonel António seja, também ele, a par da autora, do 1.º R e de outros intervenientes, parte contratante num outro contrato, diverso daqueles que constituem a causa de pedir, uma vez que foi demandado apenas e só na sua qualidade de beneficiário do negócio de doação que a autora pretende por esta via impugnar.
Inexiste assim qualquer conexão atendível entre a defesa oferecida pelo 1.º R e o pedido de execução específica formulado pelo 2.º, ainda que lhe aproveite aquela defesa, do que resulta não ser admissível o pedido reconvencional por este formulado à luz do disposto no art.º 266.º, n.º 2 do CPC, impondo-se a revogação deste segmento do despacho recorrido.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando a decisão recorrida na parte em que admitiu a reconvenção deduzida pelo 2.º R., a qual declaram inadmissível à luz do disposto no art.º 266.º do CPC, mantendo-se quanto ao mais.
Custas a cargo da autora e do 2.º R., na proporção de metade para cada.
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Évora, 28 de Junho de 2018
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Maria da Conceição Ferreira
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[1] Assim a define o Prof. Almeida e Costa, no seu “Direito das Obrigações”, 9.ª edição, a págs. 1025.
[2] Prof. Rui Pinto, “A problemática da dedução da compensação no Código de Processo Civil de 2013”, nos “Novos estudos de Processo Civil”, págs. 158-159, Petrony 2017.