Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3022/16.6T8STR.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: CONVENÇÃO ARBITRAL
PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O “Protocolo” outorgado pela Associação Portuguesa de Seguradores e Brisa-Auto Estradas de Portugal. S.A. em 03.10.2008, não contempla a criação de um Tribunal Arbitral, para julgar ações de responsabilidade civil extracontratual, resultantes de atos ilícitos causadores de danos nas infra-estruturas das auto-estradas concessionadas.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:





Relatório

BB, com sede em …, Cascais, intentou a presente ação declarativa de condenação, na forma de processo comum, contra CC - Companhia de Seguros, S.A., sedeada na rua …, nº …, Lisboa, pedindo a sua condenação no pagamento da importância de €6.574,10, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal - aqueles, no montante de €750,71 -, articulando factos, que, em seu critério, conduzem à sua procedência, a qual, culminou, em sede de audiência prévia, com a sua absolvição da instância, com fundamento na verificação da exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral.




Inconformada com o decidido, apelou a dita demandante, com as seguintes conclusões:


- No entender da recorrente, o Tribunal a quo não interpretou corretamente o teor do Protocolo celebrado entre a Brisa - Auto Estradas de Portugal, S.A. e a Associação Portuguesa Seguradores - APS, em 3 de outubro de 2008, que subscreveu, designadamente no que à cláusula 7ª e à Comissão de Acompanhamento diz respeito;


- A cláusula 7ª do Protocolo estabelece o seguinte: “(…) Comissão de Acompanhamento 1. Para a resolução de eventuais conflitos sobre a interpretação do presente Protocolo ou definição de valores de danos a indemnizar ao abrigo do mesmo é criada uma Comissão de Acompanhamento;


- Nos termos do nº 4 da referida cláusula, compete à Comissão: a) apreciar e deliberar sobre matérias relativas à interpretação do Protocolo, que lhe forem apresentadas, por escrito, por qualquer das subscritoras; b) Deliberar por unanimidade sobre a proposta de atualização dos valores que lhe for apresentada, nos termos do nº 4 da cláusula 10ª;


- A referida cláusula constitui um compromisso entre as partes e seguradoras aderentes, apenas quanto a eventuais conflitos gerados no âmbito da interpretação das cláusulas ou definição de valores a indemnizar - apenas conflitos quanto à “definição de valores de danos”, a inserir na tabela anexa ao Protocolo e não “definição do valor dos danos”;


- O protocolo em evidência não tem como objeto a definição, averiguação ou confirmação de responsabilidades pela produção de acidentes que possam provocar danos nas infraestruturas da concessionária;


- A referida Comissão de Acompanhamento não tem qualquer competência para dirimir eventuais litígios resultantes de valores indemnizatórios, que a ora recorrente tenha direito a receber;


- São estas as matérias em discussão nos presentes autos e que delimitam o litígio respeitante à definição da responsabilidade da Ré - derivada de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel - perante a Autora, que assumiu a reparação dos danos provocados pelo sinistro em causa, ao abrigo de um contrato de operação e manutenção, celebrado com a Brisa - Concessão Rodoviária, S.A.;


- Ainda que entendesse que o referido Protocolo é aplicável ao caso em apreço nos presentes autos, sempre se dirá que, no âmbito do mesmo, as partes não renunciaram, expressa ou tacitamente, ao recurso às vias judiciais, nem tão pouco estabeleceram qualquer obrigatoriedade de intentar a presente ação no Tribunal Arbitral;


- Ao decidir da forma como o fez a decisão em crise fez incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 64º., 96º., b) e 576º., nº 2 do Código de Processo Civil;


- Termos em que deve a decisão recorrida ser revogada e, em consequência, ser o Tribunal a quo considerado competente para apreciar a matéria dos autos.


Contra-alegou a recorrida, pugnando pela manutenção decidido.


O recurso tem por objeto a seguinte questão: saber se ocorre ou não a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral.



Foram colhidos os vistos legais.




Fundamentação


A- Decisão impugnada


“ (…)


Em sede de contestação veio a ré CC - Companhia de Seguros, S.A. invocar a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral.


(…)


Com interesse para a apreciação da exceção, resultam apurados os seguintes factos:


A) Em 03/10/2008 foi celebrado entre a Associação Portuguesa de Seguradores e a Brisa – Auto - Estradas de Portugal, S.A. (atualmente, Brisa. Concessão Rodoviária, S.A., um acordo escrito denominado “Protocolo”.


B) Constam do referido Protocolo as seguintes cláusulas:


(….)


Cláusula Primeira


Objeto


O presente Protocolo tem por objeto simplificar e agilizar a gestão dos processos de sinistros automóveis ocorridos nas auto-estradas que são objeto de concessão e/ou operação da Brisa, e o pagamento dos danos provocados nas infra-estruturas rodoviárias em consequência desses sinistros nomeadamente nas suas instalações e nos seus equipamentos (…), estabelecendo para o efeito as regras e os procedimentos a adotar entre a Brisa e as seguradoras associadas da APS que aderirem ao presente Protocolo.


Cláusula segunda


Âmbito de aplicação


1.O presente protocolo é aplicável aos acidentes de viação dos quais resultem danos materiais nas infra-estruturas da Brisa, suscetíveis de serem indemnizados ao abrigo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel celebrado com seguradoras aderentes ao presente Protocolo.


(...)


Cláusula terceira


Danos regularizáveis


1. São regularizáveis ao abrigo do presente Protocolo os danos materiais causados nas infra-estruturas das auto-estradas concessionadas à Brisa constantes do Anexo I e do Anexo II que fazem parte integrante do presente Protocolo.


2. O Anexo I estabelece a tabela de preços unitários a aplicar diretamente pela Brisa, relativos a danos que não carecem de peritagem de avaliação por parte das seguradoras aderentes.


3. Pontualmente, e relativamente às situações previstas no número anterior, as seguradoras aderentes poderão requerer peritagens de avaliação ou proceder a auditorias às avaliações da Brisa.


4. No Anexo II do presente protocolo consta a tabela de preços a utilizar pelos peritos avaliadores a designar pelas seguradoras aderentes, relativos a danos que carecem de peritagem de avaliação por parte destas.


(…)


Cláusula Sétima


Comissão de Acompanhamento


1. Para a resolução de eventuais conflitos sobre a interpretação do presente Protocolo ou definição de valores de danos a indemnizar ao abrigo do mesmo é criada uma Comissão de Acompanhamento.


2. A referida Comissão de Acompanhamento será constituída por 3 (três) membros, sendo um membro designado pela APS, um membro designado pela Brisa e um terceiro membro designado por comum acordo pelas Seguradoras Aderentes ao presente Protocolo.


(…)


4. Compete à Comissão:


a) Apreciar e deliberar sobre matérias relativas à interpretação do Protocolo que lhe forem apresentadas, por escrito, por qualquer uma das subscritoras;


b) Deliberar por unanimidade sobre a proposta de atualização dos valores que lhe for apresentada nos termos do disposto no nº 4 da Cláusula Décima.


5. A emissão das deliberações é efetuada no prazo máximo de 30 dias, a contar da data constante da comunicação na qual se solicita a sua intervenção.


(…)”


C -A Ré aderiu ao protocolo acima mencionado.


(…)


Revertendo ao caso dos autos, a autora alega que o acidente ocorreu em 26/11/2103, na Auto-Estrada A1 e que o mesmo lhe causou danos no separador central.


Assim, face às cláusulas contidas no referido Protocolo, o mesmo á aplicável à situação em apreço, pelo que deverá ser a Comissão de Acompanhamento a vincular as partes no litígio e não este tribunal.


Com efeito, as cláusulas do Protocolo constituem cláusulas compromissórias na medida em que o seu objeto são litígios que eventualmente venham a emergir na aplicação ou execução do referido Protocolo, obrigando as partes a submeterem a arbitragem os litígios aí previstos que venham a correr entre eles.


(…)


A preterição de tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal e constitui uma exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância - cfr. arts. 96º., alínea b), 576º., nº. 1 e 2 e 577º., alínea a), todos do NCPC.


Assim, por verificada, deverá ser julgada procedente a exceção invocada.


(…)”.


B - O direito/jurisprudência/doutrina


- Se o litígio, referente a interesses de natureza patrimonial, não estiver submetido, por lei especial, aos Tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros; a convenção de arbitragem pode ter como objeto um litígio atual ou litígios eventuais, emergentes de determinada relação jurídica contratual ou extracontratual[1];


- A preterição de tribunal arbitral constitui uma causa de incompetência absoluta do tribunal[2];


- A incompetência absoluta do tribunal configura uma exceção dilatória[3];


- A exceção dilatória obsta que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar, em princípio, à absolvição da instância[4];


- “A convenção arbitral é um negócio jurídico bilateral, no sentido de que há vontade concorrente de duas partes para a sua formação. Com ela pretende-se submeter à decisão de árbitros a resolução de um litígio eventual - modalidade tradicionalmente designada de cláusula compromissória - ou de um litígio atual - modalidade também tradicionalmente designada de compromisso; ambas estas modalidades foram hoje absorvidas pela convenção arbitral. Desta convenção nasce um direito potestativo para as partes, que as vincula à constituição de um tribunal arbitral para o julgamento de litígios nela previstos. A convenção não afeta diretamente a relação jurídica material, sendo acessória dela; não é a solução para o litígio entre as partes, mas apenas o meio de elas o poderem solucionar. Recorrendo uma das partes ao tribunal judicial para resolução de um litígio objeto da convenção arbitral, em vez de se socorrer ao tribunal arbitral, a outra parte deve arguir e a exceção dilatória de preterição do tribunal arbitral…”[5];


- “I. Em qualquer das suas modalidades - compromisso arbitral - se o litígio ou a questão é atual ou presente, ou cláusula compromissória, se o litígio ou a questão é futura ou eventual -, a convenção de arbitragem é um negócio que gera, para ambas as partes, o direito potestativo de submeter à decisão por árbitros um litígio compreendido no seu objeto e que as vincula à sujeição correlativa de ver um litígio que caiba no seu objeto ser cometido a árbitros. II. Simultaneamente, a convenção de arbitragem constitui para ambas as partes no ónus de, querendo ver decidido o litígio que se compreenda no seu objeto preferirem a jurisdição arbitral à jurisdição pública” [6];


- “O árbitro não é conciliador; a decisão arbitral não é uma transação; o árbitro é um juiz e a sua decisão é uma sentença. Só que se a decisão arbitral tivesse efeitos meramente privados, entre as partes, a utilidade dos seus efeitos seria muito reduzida. É então que a lei, no nosso caso a Lei Fundamental, tendo em conta as reconhecidas vantagens da arbitragem, equipara essa função jurisdicional dos tribunais arbitrais à função jurisdicional dos tribunais judiciais. Desta forma, os Tribunais arbitrais não deixam de ser instituições de natureza privada para se transformarem em órgãos do Estado. O Estado é que, reconhecendo a utilidade pública da arbitragem voluntária, quebra o monopólio do exercício da função jurisdicional pelos seus órgãos atribuindo à decisão os efeitos próprios da sentença judicial: a força de caso julgado e a força executiva. (…) A arbitragem voluntária é contratual na sua origem, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado” [7];


- “O sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Excetuam-se apenas os casos de não pode ser imputado ao declarante, razoavelmente aquele sentido (…), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante” [8];


- ”Da convenção de arbitragem nasce um direito potestativo para cada uma das partes, cujo conteúdo consiste na faculdade de fazer constituir um tribunal arbitral para julgamento de certo litígio que, à data da convenção, tanto pode ser atual como futuro. Correlativamente, cada um das partes fica sujeita a uma vinculação” [9];


- “… para que se verifique a exceção dilatória da preterição do tribunal arbitral basta que se alegue e prove ao tribunal judicial a existência de convenção de arbitragem que não seja manifestamente nula ou anulável e que seja apenas suscetível de vincular as partes no litigio e de conter tal litígio no seu objeto. Nada mais é necessário” [10].


C - Aplicação do direito aos factos


No critério do Tribunal recorrido, “(…) face às cláusulas contidas no referido Protocolo, o mesmo é aplicável à situação em apreço, pelo deverá ser a Comissão de Acompanhamento a vincular as partes em litígio e não este tribunal”.


Acontece, porém, que “o sentido decisivo da declaração negocial”, decorrente do “Protoloco” celebrado entre a Associação Portuguesa de Seguradores e a Brisa-Auto Estradas de Portugal. S.A., nomeadamente, da sua cláusula 7ª, não contempla a criação de um Tribunal Arbitral, para julgar ações de responsabilidade civil extracontratual, resultantes de atos ilícitos causadores de danos nas infra-estruturas das auto-estradas, objeto de concessão, como é o caso da presente ação.


Consagra, essencialmente, o referido Protocolo “tabelas de preços unitários”, para evitar o recurso a peritagens de avaliação de danos, tendo em vista “um rápido ressarcimento dos danos sofridos nas infra-estruturas rodoviárias, por parte das Seguradoras responsáveis”, com recurso a decisão da Comissão de Acompanhamento para, em caso de falta de acordo, se proceder à atualização das ditas tabelas.


Equivale isto a dizer que os membros da dita Comissão não são juízes, com competência para decidir ações de responsabilidade civil extracontratual, em que esteja em causa a indemnização, por danos, causados nas infra-estruturas rodoviárias, concessionadas à Brisa.


Assim sendo, não se verifica a invocada exceção dilatória.


É, pois, de subscrever a pretensão da recorrente BB, S.A., veiculada através do recurso.


Em síntese[11]: O “Protocolo” outorgado pela Associação Portuguesa de Seguradores e Brisa-Auto Estradas de Portugal. S.A. não contempla a criação de um Tribunal Arbitral, para julgar ações de responsabilidade civil extracontratual, resultantes de atos ilícitos causadores de danos nas infra-estruturas das auto-estradas concessionadas.


Decisão


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, julgando a apelação procedente, revogar, com as inerentes consequências, a decisão recorrida.


Custas pela parte vencida, a final.


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Évora, 12 de julho de 2018


Sílvio José Teixeira de Sousa


Manuel António do Carmo Bargado


Albertina Maria Gomes Pedroso

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[1] Artigo 1º, nºs 1 e 3 da Lei nº 63/2011, de 14 de dezembro.
[2] Artigo 96º., b) do Código de Processo Civil.
[3] Artigo 577º., a) do Código de Processo Civil.
[4] Artigo 576º., nº 2 do Código de Processo Civil.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de janeiro de 2000, in www. dgsi. pt..
[6] Acórdão da Relação de Évora, de 21 de março de 2013 (processo nº 1005/11.1 TBVRS.E1), in www. dgsi.pt. (cfr., ainda, o acórdão da Relação de Évora, de 8 de setembro de 2016 (processo nº 2014/14.9 /2GDL.E1), no mesmo portal).
[7] Francisco Cortez, “A Arbitragem Voluntária em Portugal, in O Direito, ano 124, 1992, IV, pág. 555.
[8] Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, pág. 223, e artigo 236º., nºs 1 e 2º. do Código Civil.
[9] Raúl Ventura, “Convenção de Arbitragem”, in Revista da Ordem dos Advogados, nº 46 (setembro de 1986), pág. 301.
[10] João Lopes dos Reis, “A exceção da preterição do tribunal arbitral (voluntário)”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 58, pág. 1131 .
[11] Artigo 713º., nº7 do Código de Processo Civil.