Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
344/15.7GCSLV.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL NO SANGUE
RECOLHA DE AMOSTRA DE SANGUE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Na linha do que já tem vindo a ser defendido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, a admissibilidade da colheita de amostra de sangue, para exame do estado de influenciado pelo álcool, a condutor de veículo interveniente em acidente de viação não comporta, por si, um juízo de desconformidade constitucional.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, da Instância Local de Silves da Comarca de Faro, realizado o julgamento, o arguido A. foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1, do Código Penal (CP), na pena de 70 (setenta) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros), no total de € 350,00, e na pena acessória de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias de proibição de condução de veículos motorizados, nos termos do art. 69.º, n.º 1, alínea a), do CP.

Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões:

1.º Do acervo de factos dados como assentes concluiu o douto tribunal "a quo" pela condenação do aqui recorrente pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º do Código Penal, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz a quantia de € 350,00 e condenar o arguido numa pena acessória de 3 meses e 15 dias de proibição de conduzir veículos a motor.

2.º No âmbito da fundamentação não esclarece, o tribunal "a quo" o que foi determinante da sua convicção.

3.º - Entende, porém, o Arguido, ora Recorrente, com a devida vénia por opinião diversa, que não pode deixar de ser muita, em face do direito aplicável, que da factualidade dada como provada, diferente deveria ter sido a douta decisão do Tribunal.

4.º - Com efeito, é inexistente o suporte na prova produzida para os factos que o tribunal recorrido dá como provados.

5.º - Em todo o processo, em nada é referido que a recolha de sangue ao arguido foi consentida pelo ora arguido.

6.º - Em todo o processo, ninguém confirma, muito menos as testemunhas de acusação confirmam, terem assistido à recolha de sangue.

7.º - Constata-se que a retirada do direito de o Arguido poder recusar a recolha de sangue padece de inconstitucionalidade orgânica e, sendo assim, o Arguido poderia ter recusado expressamente a colheita do sangue, sem que o mesmo praticasse qualquer crime de desobediência.

8.º- Conclui-se do factualismo provado que o Arguido não foi previamente informado do destino ou fim da colheita de sangue.

9.º - A concreta recolha de sangue ao arguido que serviu de base à análise para apurar o seu grau de alcoolémia, constitui prova ilegal, inválida ou nula, que não pode produzir efeitos em juízo.

10.º - Nesta conformidade, e por total ausência de prova válida da prática do crime de que vem acusado, deve o Arguido ser absolvido.

11.º - Por outro lado, ficaram provadas a existência de irregularidades durante a "recolha do sangue do Arguido".

12.º - Irregularidades essas que foram considerados meros lapsos, concluindo-se de antemão que o sangue recolhido, pertencia ao arguido, porque assim se quis acreditar, fechando os olhos às irregularidades assumidas pelas testemunhas da acusação e pelos documentos juntos aos autos.

13.º - A matéria de facto considerada provada pelo Tribunal a quo também está deficientemente apreciada uma vez que, dos depoimentos das testemunhas militares da GNR, tem que se retirar as seguintes conclusões:

Uma troca e números nos referidos kits, e um relatório com uma data diferente da data em que ocorreu o acidente de viação.

14.º - Nenhum médico, técnico de saúde ou militar da GNR, aferiu que assistiu à recolha de sangue.

15.º - Ao considerar-se tais factos como provados, a verdade é que não se pode concluir, com a certeza que é exigida no âmbito de um processo-crime, que o sangue retirado era efectivamente o do ora arguido, nem sequer se pode concluir qual o procedimento técnico prosseguido no momento da recolha do sangue.

16.º - Outra não podia ser a decisão que não fosse a aplicação do princípio in dubio pro reo, basilar no sistema processual penal português, sendo a expressão, em matéria de prova, do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido (art. 32º, n.º 2, da CRP).

17.º - É indubitável, que não foram assegurados os direitos de defesa e face à reduzida prova produzida em audiência de julgamento, impunha­-se a aplicação do princípio in dubio pro reo.

18.º - Ao arrepio da presunção de inocência, salvo o devido respeito e melhor opinião, deu o tribunal "a quo" como provada toda a matéria constante da acusação que não foi objecto de prova em sentido oposto, invertendo, assim, o ónus da prova que considera o Direito Penal português.

19.º - Ao não ser aplicado o principio in dubio pro reo, o Tribunal violou o preceituado no art.º 32.º n.º 2 da CRP.

20.º - O Tribunal a quo condenou o ora recorrente apenas por convicção. com base, unicamente, numa presunção de culpa, subjectivamente considerada que, à revelia dos princípios supra enunciados, valorou prova objectivamente inexistente.

21.º - De facto, o Tribunal a quo, acreditando ab initio na culpa do arguido, sindicou a sua decisão através de um juízo presuntivo, discricionário e inelutavelmente carecido de suporte factual.

22.º - É patente a violação, por parte do tribunal "a quo" do artigo 127.º do C.P. Penal e ainda do artigo 32.º, n.º 2 da C.R. Portuguesa.

Nestes termos e nos mais de direito que V/Exas. doutamente suprirão, deverá a sentença que condenou o recorrente pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º do Código Penal, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz a quantia de € 350,00 e condenar o arguido numa pena acessória de 3 meses e 15 dias de proibição de conduzir veículos a motor, ser revogada e, proceder-se à repetição da audiência de julgamento em primeira instância.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:

1º - O arguido ora recorrente foi condenado, como autora material e na forma consumada, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292º/1 do Código Penal, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de €5,00, e na pena acessória de três meses de proibição de conduzir veículos motorizados, nos termos do disposto no artigo 69º/1 al. a) do Código Penal.

2º - Inconformado com a Douta Sentença proferida nos autos em epígrafe, o arguido recorre da mesma, alegando que é inexistente o suporte na prova produzida, que não foi solicitado o consentimento ao arguido aquando a recolha do sangue, o que padece de inconstitucionalidade, pugnando assim pela sua absolvição, ou se assim não se entenda, na repetição do julgamento.

3º - Incidindo o recurso sobre matéria de facto, é nosso entendimento que o recorrente não cumpriu com o previsto no artigo 412º/4 do Código de Processo Penal,

Mas se assim não se entenda,

4º - Cremos que a decisão posta em crise não merece qualquer censura, devendo a mesma ser mantida porque devidamente fundamentada de facto e de direito.

5º - O recorrente põe em crise a forma como o Tribunal a quo apreciou a prova produzida em sede de audiência de julgamento, impugnando assim a convicção adquirida e pondo em causa a livre apreciação da prova.

6º - Ora, em sede de audiência de julgamento, o recorrente admitiu ter ingerido bebidas alcoólicas antes de iniciar a condução,

7º - Admitiu ter sido interveniente em acidente de viação.

8º - Invoca o recorrente que o Tribunal a quo não procurou saber a causa do acidente. Ora, a causa do acidente não é elemento objectivo do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

9º - Por ter sido interveniente em acidente de viação e ter desmaiado, o recorrente foi levado para o Hospital de Portimão, tendo nessa sequência, procedido à recolha de sangue a fim de averiguar da existência de álcool no organismo do recorrente.

10º - Os lapsos eventuais na selagem da amostra de sangue encontram-se devidamente explicados nos autos, documentalmente,

11º - As militares da GNR, de maneira isenta e com depoimentos credíveis, exemplificando em sede de audiência de julgamento, que procederam às selagens explicaram que o lapso nada tinha a ver com a amostra de sangue, em si – a primeira selagem é que demonstrava uma “bolha de ar” e, por isso é que se procedeu a uma segunda selagem, tendo aquela militar colocado o primeiro “envelope” no segundo “envelope” devidamente selado, ou seja sem bolha de ar.

12º - Mais se dirá que estabelece o artigo 4º da Lei 18/2007 de 17 de Maio, no seu número um (…) quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste (teste de ar expirado) é realizada a análise de sangue.

13º - O recorrente afirma não ter dado o seu consentimento à recolha de sangue – e não tinha que dar, tal norma não está ferida de inconstitucionalidade – vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2013.

14º - Todo o alegado pelo recorrente faz com que o Ministério Público entenda que a sua convicção pessoal sobre a prova produzida diverge da convicção que o tribunal a quo firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova.

15º - Ao insurgir-se contra matéria de facto dada como provada, esquece o recorrente que no processo penal a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente para o julgamento (artigo 127º do CPP).

16º - De acordo com o princípio da livre apreciação, o julgador dispõe de liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.

17º - O princípio da oralidade e da imediação está intimamente ligado às regras da livre apreciação da prova e da íntima convicção do juiz. O juiz está impossibilitado de conhecer a verdade absoluta devido às limitações a que as capacidades humanas estão sujeitas.

Importante é que esse apuramento se faça com base nas provas e no respeito das garantias fundamentais.

18º - A verdade que surge ao tribunal é a verdade que decorre da audiência.

19º - Ao valorar livremente a prova, procurando através dela alcançar a verdade material, tem o julgador a obrigação de ser claro, enunciando genericamente as suas motivações explanadas de forma racional, coerente, justa e fundamentada de modo a afastar o livre arbítrio, e bem assim justificar a confiança no julgador.

20º - Refira-se, uma vez mais que, o facto do juiz de julgamento ser também ele o juiz da oralidade e da imediação, faz com que se encontre numa posição privilegiada para melhor poder apreender as emoções, a sinceridade, a objectividade, a isenção, as contradições, as solidariedades, as pequenas cumplicidades, entre muitas outras, avaliando o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais e que facilmente escapam no recurso. O juiz de julgamento tem, assim, uma percepção própria do material probatório que é insindicável.

21º - Assim sendo, entendemos que a factualidade apurada não foi resultado de uma convicção puramente subjectiva, emocional ou imotivável do juiz a quo, mas, ao invés, resultou de uma convicção pessoal, em todo o caso objectivável e motivável, conforme é exigido pelo artigo 374º/ 2 do CPP.

22º - No caso em apreço, o tribunal levou em consideração, prova testemunhal, nomeadamente a do arguido ora recorrente bem como as das militares da GNR, bem como o relatório pericial e ainda a documentação/informação constante nos autos, relativas aos lapsos de selagem, que mais uma vez se afirma, nada têm a ver com a amostra de sangue em si, mas sim, com o selar “defeituoso” do envelope.

23º - Assim, relativamente à globalidade da prova produzida, resulta uma assinalável coerência, no sentido da matéria de facto dada como provada.

24º - Por todas as razões ora aduzidas entende-se que a sentença proferida pelo Tribunal a quo não deverá merecer qualquer censura, pelo que, deve ser negado provimento ao recurso interposto e mantida aquela decisão nos seus precisos termos.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo à argumentação expendida na referida resposta e no sentido que, ao recurso, deva ser negado provimento.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido nada veio acrescentar.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades da sentença (art. 379.º, n.º 1, do CPP), os vícios da decisão (art. 410.º, n.º 2, do CPP) e as nulidades que não se considerem sanadas (art. 410.º, n.º 3, do CPP), designadamente de acordo com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10 (publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995).

Delimitando-o, reside em apreciar:
A)- da ausência de fundamentação da sentença;
B) - da invalidade da prova;
C)- da aplicação do princípio in dubio pro reo.

Saliente-se que o recorrente, embora refira que o objecto versa matéria de facto, não a impugnou em conformidade com as exigências que poderiam motivar a sua modificação nos termos do art. 431.º do CPP, ou seja, quer por via da existência de vícios da decisão (art. 410.º, n.º 2, do CPP), quer na vertente de reapreciação da prova e erros de julgamento (art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP).

Deste modo, apenas como consequência da análise de alguma das questões definidas, essa matéria de facto eventualmente sucumbirá.

No que ora releva, consta da sentença recorrida:

Factualidade provada:

1. No dia 28/09/2015, pelas 14h00m, o Arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, matricula ---SD, em Várzea do Benaciate, São Bartolomeu de Messines, Silves.

2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o Arguido entrou em despiste, capotando.

3. O condutor, ora Arguido, foi transportado para o SUB de Albufeira pelos Bombeiros Voluntários de São Bartolomeu de Messines.

4. Uma vez que não se logrou efectuar o teste de alcoolemia por ar expirado no local, foi efectuada colheita de sangue no SUB de Albufeira.

5. Remetidas as respectivas análises toxicológicas, verificou-se que o Arguido conduzia com uma TAS de 1,42 g/l, com um erro máximo admissível de 0,18g/l.

6. Agiu o Arguido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que se encontrava sob influência do álcool, em limites superiores aos legais e que, nessas circunstâncias, lhe estava vedada por lei a condução de veículos automóveis.

7. O Arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

8. O Arguido não tem antecedentes criminais averbados.

9. O Arguido tem a 4.ª classe.

10. Vive com o pai de 90 anos.

11. É agricultor, efectuando uma agricultura de subsistência.

12. Encontra-se com problemas de saúde.

13. O pai recebe €300 de reforma e um suplemento de apoio a terceira pessoa no montante de €270.

14. Suporta o pagamento do lar no montante de €257.

Factos não provados:
a) O Arguido perdeu o controlo do veículo.

Motivação:
A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio.

O Tribunal escudou a sua convicção acerca dos factos vertidos na acusação, desde logo, nas declarações do próprio Arguido, o qual admitiu ter consumido álcool antes de iniciar a condução e o facto de ter tido um acidente.

Os procedimentos seguidos na operação de recolha de sangue para análise toxicológica com vista a apurar o “estado de embriaguez” do Arguido e que conduziu ao relatório de fls. 23, teve por base os depoimentos de todas as testemunhas arroladas na acusação, que de forma coerente e credível descreveram a sua participação no sucedido.

Com efeito, resultou do depoimento das testemunhas VV e CF, que o Arguido teve um acidente de viação no dia 28 de Setembro de 2015, na Várzea do Benaciate, em São Bartolomeu de Messines, Silves, tendo efectuado no local o sopro do aparelho qualitativo, tendo acusado álcool. Como o Arguido se encontrava ferido foi transportado para o SUB de Albufeira, tendo sido efectuado a recolha de sangue e utilizado o Kit n.º 41209. Mais esclareceram que em virtude de ter ocorrido uma anomalia na selagem, que se prendia com a falta de colocação da requisição, tal kit teve de ser substituído pelo Kit n.º 41208, tendo ambas as testemunhas sido peremptórias ao afirmar que tais Kits transportavam o sangue do Arguido.

Mais esclarecerem que o IML, por lapso, colocou no relatório de folhas 51 a data da colheita como sendo dia 29 de Setembro de 2015, lapso que corrigiu, prontamente, com o envio do relatório constante a folhas 23.

Ora, neste contexto, é óbvio a irrelevância das «irregularidades», porquanto, no caso, são insusceptíveis de abalar o juízo de certeza o qual, com base nos ditos depoimentos, podemos asseverar quanto aos factos provados em função da fidedignidade, a todos os níveis, do «exame» e respectivo «resultado».

O Tribunal teve ainda em consideração o depoimento de DF e de VC, amigos do Arguido, tendo o primeiro referido que o Arguido necessita da sua carta de condução, uma vez que vive numa zona sem transporte público, sendo o seu pai totalmente dependente e o segundo atestado que no dia do acidente apenas beberam meio litro de vinho, confirmando o consumo de álcool pelo Arguido.

Quanto ao elemento subjectivo do tipo, para além das declarações do Arguido, tivemos também em conta as regras da experiência e da normalidade do acontecer, em situações como aquelas em que o Arguido se envolveu.

Baseou-se, ainda, nos documentos juntos aos autos, todos devidamente examinados: o auto de notícia de folhas 3, a participação de acidente de folhas 17 e seguintes, o exame de toxicologia de folhas 23 e o documento de folhas 111.

Foram igualmente valoradas as declarações do Arguido sobre as respectivas condições sócio-económicas e familiares.

Quanto à ausência de antecedentes criminais o Tribunal fundou a sua convicção no certificado de registo criminal junto aos autos.

Os factos não provados resultam de ausência de prova em ordem à sua sustentação.

Apreciando, conforme definido:

A)- da ausência de fundamentação da sentença:
O recorrente invoca que No âmbito da fundamentação não esclarece, o tribunal "a quo" o que foi determinante da sua convicção, apesar de resultar na perspectiva de insuficiência de prova para a decisão, manifestando, desse modo, a sua discordância quanto à circunstância da mesma ter conduzido ao elenco dos factos provados, mormente, os atinentes à sua culpabilidade.

Desde logo, decorre, pois, que a sua argumentação não tem virtualidade para suportar ausência/deficiência relevante da fundamentação da sentença, que, a existir, redundaria em nulidade da mesma, nos termos do art. 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP.

Na verdade, a fundamentação decisória insere-se em exigência do moderno processo penal, com dupla finalidade: extraprocessualmente, constituir condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que a determinaram; intraprocessualmente, realizar o objectivo de reapreciação da decisão por via do sistema de recursos.

Acompanhando Paulo Saragoça da Matta, in “A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença”, em “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, coorden. científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 255, a exigência de motivação acaba por ter uma função dupla, pré e pós judicatória – naquela primeira fase permite ao julgador exercer um auto-controle do acerto dos seus próprios juízos; na segunda fase permite à comunidade, e ao destinatário das medidas a tomar pelo sistema penal, compreender os critérios seguidos pelo julgador e aferir da respectiva legitimidade, razoabilidade e aceitabilidade.

Identicamente, conforme Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1993, vol. II, págs. 112 e seg.:

Quando tratámos dos actos decisórios referimos a finalidade da sua fundamentação: lograr uma maior confiança do cidadão na Justiça, o autocontrolo das autoridades judiciárias e o direito de defesa a exercer através dos recursos.

A primeira das finalidades indicadas ajuda à compreensão da decisão e, consequentemente, à sua aceitação, facilitando a necessária confiança dos cidadãos nas autoridades judiciárias.

O autocontrolo que a exigência de motivação representa manifesta-se a níveis diferentes: por um lado, obsta à comissão de possíveis erros judiciários, evitáveis precisamente pela necessidade de justificar a decisão; por outro lado, implica a necessidade de utilização por parte das autoridades judiciárias de um critério racional de valoração da prova, já que se a convicção se formou através de meras conjecturas ou suspeitas, a fundamentação será impossível. Assim, a motivação actua como garantia de apreciação racional da prova.

Finalmente, a motivação é absolutamente imprescindível para efeitos de recurso, sobretudo quando tenha por fundamento o erro na valoração da prova; o conhecimento dos meios de prova e do processo dedutivo são absolutamente necessários para poder avaliar-se da correcção da decisão sobre a prova dos factos, pois só conhecendo o processo de formação da convicção do julgador se poderá avaliar da sua legalidade.

Concretiza o desiderato constitucional do art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que impõe a fundamentação “na forma prevista na lei”, em sintonia e parte integrante do conceito de Estado de Direito democrático e da legitimação da decisão judicial e da garantia do direito ao recurso, por respeito às garantias de defesa do condenado (art. 32.º, n.º 1, da CRP) e de acesso à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º, n.º 4, da CRP), no sentido de que assegure um julgamento equitativo, como vem sendo reconhecido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e se apresenta consagrado, em termos amplos, no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Assim, é inequívoco que, à fundamentação, correspondem as exigências previstas no art. 374.º, n.º 2, do CPP, devendo conter a indicação e o exame crítico das provas, sem a qual não é viável atingir as finalidades em vista, além do mais, de forma a compatibilizá-las com a livre apreciação da prova consagrada no art. 127.º do CPP.

Através da fundamentação, se reflete a explicitação dos elementos que, em razão das regras da experiência e/ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção se formou em determinado sentido ou foram valorados os diversos meios (acórdão do STJ de 13.02.1992, in CJ ano XVII, tomo I, pág. 36), assim se tornando compreensível a quem se dirige e para a comunidade em geral.

A densificação do exame crítico das provas, que a lei não explicita, tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo que serviu de suporte ao seu conteúdo (acórdãos do STJ de 12.04.2000, no proc. n.º 141/2000-3.ª, in Sum. Acs. STJ, n.º 40, pág. 48, e de 03.10.2007, no proc. n.º 07P1779, in www.dgsi.pt).

Assim, segundo este acórdão de 03.10.2007:
O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto -, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.

Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova.

O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01).

O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00).

Em síntese, haverá de concluir-se que, se a motivação explicar o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, de forma bastante e inteligível, inexiste falta ou insuficiência de fundamentação para a decisão que consubstancie preterição daquele referido art. 374.º, n.º 2 e, bem assim, de nulidade da sentença.

Postas estas considerações, como já se deixou antever, afigura-se que o recorrente mais não faz senão apelar a divergências valorativas dos meios de prova para essa alegada ausência/deficiência de exame crítico que suportou a convicção extraída pelo tribunal, destacando a alegação atinente à valoração da prova decorrente do exame de recolha de sangue, acerca da qual caberá subsequente apreciação, uma vez que a mesma foi tida em conta na fundamentação operada.

Assim, não obstante o que se analisará nessa vertente, resulta manifesto que o tribunal cuidou, de modo transparente e exaustivo quanto baste, de transmitir as razões por que alcançou a factualidade que fixou, através da ponderação conjugada dos meios de prova que indicou e criticamente apreciou.

Mormente, os depoimentos das testemunhas da acusação (militares da GNR) foram considerados credíveis pelos motivos constantes da fundamentação, que são plenamente inteligíveis, sendo irrelevante que tivessem, ou não, presenciado a colheita de sangue, que teve lugar no SUB de Albufeira, além de que ficou bem esclarecida a divergência das datas da colheita e da numeração de kit de selagem, corroborada pela documentação mencionada, de molde a que se tivesse logrado concluir que o sangue pertencia ao aqui recorrente e não a outra pessoa.

O acompanhamento da ocorrência ficou reflectido nesses depoimentos, motivo por que o tribunal, como explicitou, não atribuiu relevo às pretensas «irregularidades».

Não se aceita, pois, que o recorrente, ainda que discordando da valoração probatória, acabe por a equiparar à dita ausência/deficiência da fundamentação.

Assim, a decisão não está, nesse aspecto, inquinada de nulidade.

B) - da invalidade da prova:
Transparece da alegação do recorrente que, no essencial, põe em crise a validade da colheita de sangue a que foi sujeito, assente em que a mesma se efectuou sem informação prévia do fim que se destinava e sem que, por isso, tivesse tido possibilidade de a recusar.

Invoca que nunca permitiu a recolha de sangue, nomeadamente para outros fins que não puramente médicos, nem para estes deu o seu consentimento, deverá ter à sua disposição a possibilidade de recusar a recolha da amostra, Sendo a colheita de sangue apenas mais um meio, entre vários, e que nem será o primeiro a realizar-se, para obter o fim último que é a averiguação do estado de influenciado pelo álcool do condutor, A lei positiva vigente à data dos factos, ainda não dava uma resposta a esta situação porquanto a mesma se encontrava ferida de inconstitucionalidade orgânica e, ainda, tratando-se de um acto que viola a integridade física e tem como objectivo uma possível incriminação do doente/sinistrado, é nosso entendimento de que o mesmo deve ser informado ou estar devidamente esclarecido do fim que se destina a recolha do sangue.

O Ministério Público discorda, concluindo que a recolha de sangue efectuada ao arguido não se encontra ferida de qualquer ilegalidade, nem colide com a nossa Constituição, fazendo referência, designadamente, ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2013, de que transcreve a decisão aí tomada.

Cabe, então, defrontar as questões suscitadas, sendo certo que as mesmas já têm sido apreciadas, mormente pelo Tribunal Constitucional.

A propósito da invocada inconstitucionalidade orgânica, o recorrente limita-se a afirmar que A lei positiva vigente à data dos factos, ainda não dava uma resposta a esta situação porquanto a mesma se encontrava ferida de inconstitucionalidade orgânica, parecendo reportar-se, como refere, à retirada do direito de o Arguido poder recusar a recolha de sangue (…) sem que o mesmo praticasse qualquer crime de desobediência.

Ora, estando em causa, em concreto, tendo em conta a data dos factos, a aplicação do art. 156.º, n.º 2, do Código da Estrada (CE), na redacção conferida pela Lei n.º 72/2013, de 03.09, que mais recentemente alterou esse Código (aprovado pelo Dec. Lei n.º 114/94, de 03.05, alterado pelo Dec. Lei n.º 44/2005, de 23.02) - “Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas” -, o assunto já por várias vezes foi efecivamente tratado pelo Tribunal Constitucional, ainda que na vigência da anterior redacção, mas, de todo, com fundamentos plenamente transponíveis para os autos, sendo certo que, no que interessa, a redacção desse preceito não sofreu alteração que justifique diferente posição.

Assim, segundo o seu acórdão n.º 485/2010 (acessível in www.dgsi.pt), que apreciou se as normas dos arts. 153.º, n.º 8, e 156.º, n.º 2, do CE, haviam sido emitidas sem prévia autorização legislativa, vindo a retirar ao condutor de veículo automóvel interveniente em acidente de viação a possibilidade de recusar a colheita de sangue para determinação da taxa de alcoolemia, decidiu-se não julgar organicamente inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 156.º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, renumerado pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, fundamentando-se, além do mais:

«Sucede que entrou, entretanto, em vigor a Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, que aprovou o «Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas».

Este diploma visou revogar e substituir o Decreto-Regulamentar n.º 24/98, de 30 de Outubro, que regulamentava o regime jurídico da fiscalização da condução sob a influência do álcool e de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, que então constava do Código da Estrada com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro e, desse modo, toma implicitamente como base o novo regime legal que decorre das sucessivas alterações que foram introduzidas pelos diplomas legislativos posteriores, incluindo as resultantes dos Decretos-Lei n.º 265-A/2001 e n.º 44/2005.

Por outro lado, o novo Regulamento refere-se «à análise de sangue» como um dos métodos de detecção e quantificação da taxa de álcool (artigo 1.º, n.º 2), e especifica que há lugar à realização daquele exame médico «quando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste» (artigo 4.º, n.º 1). Além de que assume ainda um carácter interpretativo relativamente às disposições do n.º 8 do artigo 153.º e do n.º 3 do artigo 156.º do Código da Estrada, ao estatuir no seu artigo 7.º o seguinte:

«1- Para efeitos do disposto no n.º 8 do artigo 153.º e no n.º 3 do artigo 156.º do Código da Estrada, considera-se não ser possível a realização do exame de pesquisa de álcool no sangue quando, após repetidas tentativas, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente.

[…].
Deste modo, o legislador parlamentar esclarece que a impossibilidade de realização do exame de pesquisa de álcool no sangue se afere unicamente em função da impossibilidade médica de proceder à própria colheita de sangue em quantidade suficiente para permitir a sua análise, afastando a hipótese de o exame médico alternativo à colheita de sangue poder vir a ser efectuado com base na simples recusa do examinando, e, dando, assim, implícita cobertura ao regime legal que decorre das disposições do artigos 156.º, n.º 2 e 153.º, n.º 8, na redacção que lhes foi dada, respectivamente, pelos Decretos-Leis n.ºs 265-A/2001 e 44/2005 editados pelo Governo sem prévia autorização legislativa.

À norma do artigo 7.º da Lei n.º 18/2007 pode, por conseguinte, atribuir-se um efeito equivalente ao de uma lei interpretativa, nos termos do artigo 13.º do Código Civil, embora não se possa considerar a retroacção de efeitos à data da entrada em vigor das normas legais interpretadas, em face do princípio de não retroactividade da lei penal, que impede que possam ser qualificadas como crime condutas que no momento da sua prática, eram tidas como irrelevantes – artigo 29.º n.º 1, da CRP (cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1993, pág. 245).

Cabe ainda notar que o Tribunal Constitucional já considerou que a inconstitucionalidade orgânica não é pertinentemente invocável quando a Assembleia da República, em processo de apreciação parlamentar de decreto-lei, manifesta inequívoca vontade política de manter na ordem jurídica as normas organicamente inconstitucionais que foram submetidas à sua apreciação (acórdão n.º 415/89), ou, de outro modo, quando revela uma vontade positiva através da aprovação de alterações ao diploma ou rejeição de propostas de alteração relativamente às normas cuja inconstitucionalidade orgânica vem questionada (acórdão n.º 786/96).

No caso vertente, não estamos perante um processo legislativo específico de aprovação parlamentar de diplomas emanados do Governo, a que se refere o procedimento do artigo 169.º da Constituição, pelo que não é directamente aplicável a referida jurisprudência constitucional. Mas no presente contexto, não pode deixar de atribuir-se relevo à circunstância de a Assembleia da República, no uso da competência legislativa geral consagrada no artigo 161.º, alínea c), da Constituição, ter regulado as matérias da fiscalização da condução sob a influência de álcool, que, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, do diploma preambular do Código da Estrada, se encontrava atribuído ao Governo.

Verificando-se, por outro lado, que o órgão parlamentar, através da emissão das referidas disposições dos artigos 4,º e 7.º do Regulamento aprovado pela Lei n.º 18/2007, veio consignar um regime jurídico consonante com a solução de direito que resultava já, segundo critérios gerais de interpretação da lei, da referida disposição do artigo 156.º, n.º 2, do CE, deixa de haver motivo para manter a arguição de inconstitucionalidade orgânica, até porque por efeito da intervenção parlamentar se operou a novação da respectiva fonte».

Aliás, em sentido idêntico, já haviam decidido os acórdãos do mesmo Tribunal n.º 479/2010, n.º 487/2010, n.º 15/2011, n.º 16/2011, n.º 40/2011 e n.º 47/2011 e, mais recentemente, o acórdão n.º 397/2011 reafirmou essa posição (in www.dgsi.pt).

Decorrendo, pois, que o recorrente nem sequer adianta argumentação para a suscitada inconstitucionalidade orgânica, outras considerações não se impõem, concluindo-se que não se divisa obstáculo, por essa via, à aplicação dos mencionados preceitos legais.

Quanto aos restantes aspectos convocados pelo recorrente - nunca permitiu a recolha de sangue, nomeadamente para outros fins que não puramente médicos, nem para estes deu o seu consentimento, deverá ter à sua disposição a possibilidade de recusar a recolha da amostra, Sendo a colheita de sangue apenas mais um meio, entre vários, e que nem será o primeiro a realizar-se, para obter o fim último que é a averiguação do estado de influenciado pelo álcool do condutor, tratando-se de um acto que viola a integridade física e tem como objectivo uma possível incriminação do doente/sinistrado, é nosso entendimento de que o mesmo deve ser informado ou estar devidamente esclarecido do fim que se destina a recolha do sangue -, também o Tribunal Constitucional, de forma assertiva, amplamente se pronunciou no acórdão n.º 418/2013 (in www.dgsi.pt), citado, e bem, pelo Ministério Público, que decidiu não julgar inconstitucional a interpretação normativa, extraída da conjugação do artigo 4.º, n.os 1 e 2, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, e do artigo 156.º, n.º 2 do Código da Estrada, segundo a qual o condutor, interveniente em acidente de viação, que se encontre fisicamente incapaz de realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, deve ser sujeito a colheita de amostra de sangue, por médico de estabelecimento oficial de saúde, para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, nomeadamente para efeitos da sua responsabilização criminal, ainda que o seu estado não lhe permita prestar ou recusar o consentimento a tal colheita.

Aí se consignou, designadamente (incluindo referências a anterior jurisprudência):

«Comecemos por questionar se a interpretação normativa que constitui objeto do presente recurso contende com a violação do direito à não autoincriminação.

O princípio nemo tenetur se ipsum accusare, não se encontrando expressa e diretamente consagrado no texto constitucional, constitui um corolário da tutela de valores ou direitos fundamentais, com direta consagração constitucional, que a doutrina vem referindo como correspondendo à dignidade humana, à liberdade de ação e à presunção de inocência.

Encontra-se sobretudo associado ao direito ao silêncio, ou seja, à faculdade de o arguido não prestar declarações autoincriminatórias, nomeadamente não respondendo a questões sobre os factos que lhe são imputados e cuja prova pode importar a sua responsabilização e sancionamento. Protege igualmente o arguido contra o exercício impróprio de poderes coercivos tendentes a obter a sua colaboração forçada na autoincriminação, nomeadamente mediante a utilização de meios enganosos ou coação (cfr. M. Costa Andrade, “Sobre as proibições de prova em processo penal”, Coimbra Editora, 1992, p. 120 e ss).

A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado que o direito à não autoincriminação não se estende à utilização, num processo criminal, de meios de prova que possam ser obtidos do arguido e que existam independentemente da sua vontade, por exemplo, recolha de amostras de sangue (cfr. caso Saunders v. Reino Unido, decisão de 17 de dezembro de 1996).

Assim, à semelhança do que o Tribunal Constitucional já decidiu, a este propósito, no âmbito do Acórdão n.º 155/2007 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt, onde se poderão encontrar os restantes arestos, citados infra), diremos que a recolha de amostra de sangue, para deteção do grau de alcoolemia, em condutor incapaz de prestar ou recusar o seu consentimento, não implica uma violação do direito à não autoincriminação, sendo que tal recolha constitui a “base para uma mera perícia de resultado incerto”, não contendo qualquer declaração ou comportamento ativo do examinando no sentido de assumir factos conducentes à sua responsabilização.

Assente que a interpretação normativa que analisamos contende com o direito à integridade pessoal - nas componentes de direito à integridade física e à autodeterminação – e com o direito à reserva da vida privada do examinando, teremos de verificar se tal interferência é justificada pela proteção de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

A circulação rodoviária, constituindo uma atividade de manifesta utilidade social, acarreta riscos consideráveis de lesão de bens jurídicos fundamentais como a vida, a integridade pessoal, a propriedade privada.

Atendendo à elevada sinistralidade das nossas estradas e a preponderância de circunstâncias atinentes ao condutor como fatores causais de acidentes, tornou-se imperioso garantir a adoção de especiais medidas legislativas destinadas a garantir a segurança rodoviária, nomeadamente através da imposição da abstenção de conduzir a indivíduos que se encontrem em condições psicomotoras suscetíveis de propiciar um aumento do risco de produção de acidentes.

Sendo conhecida a interferência do consumo de álcool no comportamento dos condutores – designadamente quanto ao processamento e interpretação de estímulos exteriores, bem como quanto ao tempo e qualidade da reação aos mesmos – o legislador intensificou a tutela dos bens jurídicos afetados pelo incremento do risco resultante da condução sob influência de tal substância.

Neste contexto, no âmbito da tutela penal, antecipou a proteção do bem jurídico segurança rodoviária – e, reflexamente, a tutela da vida e integridade pessoal, bem como do direito à propriedade privada - a um momento prévio à produção do resultado de dano ou de perigo, consagrando um tipo legal de perigo abstrato, no artigo 292.º do Código Penal (condução de veículo em estado de embriaguez).
(…)

No Acórdão n.º 628/2006, relativamente à norma do n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada, pode ler-se o seguinte:

“(…) o recorrente sustenta a inconstitucionalidade da obrigação de sujeição ao teste de alcoolemia, invocando a violação da integridade física e moral das pessoas, constitucionalmente tutelada pelo nº 1 do artigo 25º da Constituição. Ora, o Tribunal Constitucional, na jurisprudência referida, demonstra que a obrigatoriedade de realização de testes de alcoolemia não afeta de modo constitucionalmente inadmissível os interesses pessoais do sujeito examinado (entendimento que agora se acolhe).

Na verdade, está em causa a recolha de um meio de prova perecível no âmbito da prevenção e punição de comportamentos que põem em perigo a segurança rodoviária e os valores pessoais e patrimoniais inerentes.

(…) Os bens que a norma visa proteger assim como a perigosidade das condutas a prevenir justificam e legitimam a medida normativa em questão.

Por outro lado, o prejuízo do ponto de vista pessoal para o sujeito obrigado ao teste de alcoolemia não atinge o núcleo essencial indisponível de direitos fundamentais, não sendo desproporcionada a sua lesão em confronto com os bens que se pretende tutelar.”
(…)

Na linha do que já tem vindo a ser defendido pela citada jurisprudência do Tribunal Constitucional, poderemos considerar que a admissibilidade da colheita de amostra de sangue, para exame do estado de influenciado pelo álcool, não comporta, por si, um juízo de desconformidade constitucional.

Na verdade, como acabámos de recensear, a jurisprudência deste Tribunal tem vindo a considerar que a Constituição autoriza, atendendo às finalidades em causa, e respeitadas as demais exigências constitucionais, a restrição dos direitos fundamentais à integridade pessoal, à reserva da vida privada ou à autodeterminação informativa (v.g., Acórdãos n.º 254/99 e n.º 155/2007, citados).

E a recolha de amostra de sangue, nas específicas circunstâncias em análise no presente recurso, apesar de contender com o direito à integridade pessoal e o direito à reserva da vida privada do examinando, igualmente não comporta um juízo de desconformidade constitucional.

A intervenção nos referidos direitos fundamentais dirige-se à salvaguarda da eficácia da pretensão punitiva do Estado, relativamente a normas sancionatórias criadas como garantia de efetiva tutela material de outros direitos fundamentais valiosos - a vida, a integridade física, a propriedade privada - abarcados pela proteção da segurança da circulação rodoviária.

Ora, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito à integridade pessoal não impede o “estabelecimento de deveres públicos dos cidadãos que se traduzam em (ou impliquem) intervenções no corpo das pessoas (v. g., vacinação, colheita de sangue para testes alcoolémicos, etc.)”, desde que a obrigação não comporte a sua execução forçada, sem prejuízo da punição em caso de recusa (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, p. 456).

No caso, por um lado, a intervenção em análise é obrigatoriamente realizada em estabelecimento de saúde, com observância das leges artis médicas, e envolve um grau de afetação da integridade corporal muito baixo. Por outro lado, nas circunstâncias que analisamos, tal intervenção não envolve uma direta violação da vontade do examinando, mas uma impossibilidade de consideração da mesma - dada a circunstância de o examinando não estar em condições de prestar ou recusar o consentimento - correspondendo, assim, a uma forma menos grave de interferência no direito à autodeterminação. Por último, apesar de corresponder a uma ingerência no direito à esfera pessoal de privacidade do examinando, tem um alcance intrusivo reduzido, porquanto apenas implica a recolha, para fins restritos e legalmente delimitados, de uma amostra de um material biológico preciso, revelador de limitadas informações acerca da vida privada do visado, realizada no recato conatural ao contexto hospitalar, por pessoal de saúde sujeito a segredo profissional.

Tudo ponderado, resulta que a restrição obedece ao princípio da proporcionalidade, sendo adequada – correspondendo a meio idóneo à prossecução do objetivo de proteção dos direitos fundamentais em análise – bem como necessária – por corresponder ao único meio, face ao caráter perecível da prova, que ainda permite a satisfação da pretensão punitiva do Estado – e proporcional, em sentido estrito, apresentando-se como equilibrada e correspondente à justa medida imposta pela proteção dos direitos que cumpre acautelar».

Por seu lado, pelo acórdão n.º 397/2014, foi reafirmada a posição que ficou explanada.

Dentro de todos estes parâmetros, relativamente aos quais, o recorrente, não traz fundamentação que abale as conclusões extraídas, afigura-se que, não obstante a protecção da integridade física, consagrada no art. 25.º, n.º 1, da CRP, implicando que, nos termos do art. 32.º, n.º 8, da Lei Fundamental, sejam nulas todas as provas obtidas mediante ofensa à integridade física, identicamente ao que se prevê no art. 126.º, n.º 1, do CPP, o meio de obtenção de prova - recolha de sangue a condutor interveniente em acidente de trânsito -, para a finalidade de apuramento do estado de influência pelo álcool, não constitui afronta à integridade física e reputa-se proporcional à necessária restrição tendo em conta os interesses protegidos (art. 18.º, n.º 2, da CRP).

Se assim é, a prova resultante não está ferida de qualquer ilegalidade.

Por seu lado, mesmo no específico âmbito processual penal, de acordo com o elenco previsto no n.º 2 daquele art. 126.º, essa prova não pode considerar-se como ofensiva da integridade física, sendo que, se o fosse, seria até irrelevante o consentimento do visado.

Irrelevante também é que o recorrente não tivesse manifestado o seu consentimento ou tivesse sido previamente esclarecido acerca da recolha de sangue.

Aliás, como condutor, certamente não desconheceria a obrigatoriedade de sujeição a exame - seja por ar expirado, seja por recolha de sangue, seja por exame médico -, como acontece com o cidadão comum.

Acresce que se encontrava ferido e, como resultou dos depoimentos, não foi possível o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, o que, em sintonia, até, com o por si referido (como alude na motivação de recurso, ficou inconsciente), inviabilizava qualquer outra solução nos termos legais, uma vez que a eventual recusa não estava em condições de ser transmitida.

Por seu lado, tendo o tribunal aceitado esses depoimentos como credíveis como explicitou, mormente porque “descreveram a sua participação no sucedido” e esclareceram as divergências nas datas da colheita e nos números do kit, é manifesto que essa colheita de sangue não tinha de ser presenciada pelas testemunhas, cabendo, sim, à entidade para onde foi conduzido fazê-la, tudo de acordo com o procedimento legalmente previsto (arts. 4.º e 5.º da Lei n.º 18/2007, de 17.05), que, na situação, foi observado.

Relativamente à possível incriminação do recorrente através da recolha de sangue, além do que ficou já expendido, salienta-se, pela pertinência, excerto do acórdão da Relação do Porto de 20.10.2010, no proc. n.º 1271/08.0PTPRT.P1, rel. Olga Maurício: O chamado direito ao silêncio tem uma vertente positiva e uma outra negativa: na positiva, significa que o agente tem total liberdade de intervir no processo em seu favor; na negativa, significa que o tribunal não pode socorrer-se do engano, do subterfúgio, da coacção para recolher provas, nem pode impor-lhe declarações auto-incriminatórias. Esta vertente negativa está, portanto, especialmente ligada às proibições de prova. Mas tem vindo a sedimentar-se o entendimento que este direito do arguido à não auto-incriminação respeita, essencialmente, ao seu direito ao silêncio e já não também ao direito de não ser compelido a realizar determinados exames com vista à obtenção de provas, não alcançáveis por outra via. A este propósito decidiu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em 1996 no caso Saunders v. Reino Unido, que o direito de não contribuir para a sua auto-incriminação pressupõe que, em processos criminais, a acusação deve provar a sua argumentação sem recorrer a elementos de prova obtidos mediante medidas coercivas ou opressivas, que desrespeitem a vontade do acusado, garantia ligada ao princípio da presunção de inocência. No entanto, disse aquele tribunal, este direito não abrange a utilização no processo penal de evidências que podem ser obtidas do acusado mediante o recurso a poderes coercivos, mas que existem independentemente da sua vontade, como seja a obtenção de documentos apreendidos com apoio em um mandato, amostras de hálito, de sangue, urina bem como tecidos corporais para fins de realização de exame de DNA. Entendeu-se, portanto, que as garantias da não auto-incriminação se restringem às contribuições do arguido de pendor claramente incriminatório, não abrangendo o poder de se furtar a diligências de prova, sob pena de deixar desarmados os poderes públicos no desempenho da sua função de protecção e repressão. A esta mesma conclusão já havia chegado Gomes Canotilho.

Em síntese, o tribunal socorreu-se de prova válida, pelo que, vista a matéria de facto e respectiva motivação, a sentença não merece reparo.

C)- da aplicação do princípio in dubio pro reo:
Assente que não se verifica motivo para criticar a posição do tribunal, já que fundamentou a sua convicção nas provas que indicou e criticamente apreciou, porque legalmente admissíveis e ponderadas na sua conjugação, à luz dos critérios do art. 127.º do CPP, o apelo à aplicação do princípio in dubio pro reo está votado ao insucesso.

Em si mesmo, mais não constitui que decorrência da perspectiva do recorrente de que a prova obtida com a recolha de sangue não se apresenta com a necessária certeza, o que não se aceita, em razão, para além do que ficou vertido, da segurança com que se pode afirmar que a colheita a si respeitou e do reconhecido carácter técnico-científico a que obedece o resultado obtido quanto à taxa de alcoolemia.

Se bem que o recorrente invoque que se decidiu ao arrepio da presunção da inocência, consagrada no art. 32.º, n.º 2, da CRP e, bem assim, do seu corolário traduzido no referido princípio, não resulta minimamente que as suas garantias de defesa não tenham sido respeitadas e que alguma dúvida séria, fundada e inultrapassável decorra da motivação do tribunal.

Tendo tal princípio inevitável repercussão ao nível da valoração probatória enquanto critério de decisão reflectido em que essa dúvida deva reverter em favor do arguido - sendo uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa (Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, volume I, pág. 519) -, a motivação em causa não manifesta qualquer incerteza quanto ao caminho por que enveredou, nem mesmo se descortina que assim não devesse ter acontecido.

Em sintonia com a liberdade de apreciação, a formação da convicção é um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse(Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, 1.º volume, pág. 205).

Neste sentido, ficou cabalmente demonstrada e de forma objectiva, sem que alguma hipótese alternativa se tivesse seriamente colocado, para que o juízo de culpabilidade do recorrente pudesse ser diferente.

Norteou-se pela ponderação das provas e sem esquecer as regras da experiência, alcançando a solução que os critérios legais impunham.

Inexiste, pois, qualquer violação dos alegados arts. 127.º do CPP e 32.º, n.º 2, da CRP.

Bem assim, nenhuma censura merece a sentença.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, assim,
- manter integralmente a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 4 UC.

Processado e revisto pelo relator

6.Junho.2017

Carlos Jorge Berguete

João Gomes de Sousa