Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
235/21.2T8ELV.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CAUSA DE PEDIR
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 05/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Estando em causa uma acção por via da qual os AA pretendem exercer o seu direito de resolução de um contrato de arrendamento, o núcleo essencial da causa de pedir, atento o que dispõe o n.º 4 do artigo 581.º do CPC, é constituído pela alegação da celebração do contrato, com enunciação dos factos que permitam a identificação dos seus elementos caracterizadores, e daqueles que integram o incumprimento que é fundamento resolutivo.
II. Não tendo os AA alegado em momento algum ter celebrado com o R. um contrato de arrendamento, nada se dizendo quanto ao tempo e modo de celebração, renda fixada ou prazo de vigência, tal configura uma situação de verdadeira falta de causa de pedir por ausência de alegação de factos essenciais e que não é suprível mediante recurso ao despacho de aperfeiçoamento, que pressupõe a mera insuficiência da alegação dos factos que a integram.
III. Verificada a ausência de alegação dos factos concretos essenciais que constituem o núcleo da causa de pedir, tal acarreta a ineptidão da petição inicial por falta do próprio objeto do processo (o pedido, fundado numa causa de pedir) e, consequentemente, a sua nulidade (artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), excepção dilatória de conhecimento oficioso que determina a absolvição do R. da instância nos termos conjugados dos artigos 278.º, n.º 1, alínea b), 577.º, alínea b) e 578.º, todos do Código de Processo Civil.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo 235/21.2T8ELV.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre
Juízo Local Cível de Elvas - Juiz 1

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I. Relatório
(…) e mulher, (…), instauraram contra (…) a presente acção declarativa constitutiva, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final: i. que fosse decretada a resolução do contrato de arrendamento relativo ao prédio identificado na p.i.; ii. a condenação do R. a despejar de imediato o locado, entregando-o de seguida livre e devoluto de pessoas e bens e em bom estado de conservação; iii a pagar aos AA. a quantia de € 6.000,00 (seis mil euros) a título de rendas vencidas até Maio de 2021, acrescida de juros de mora à taxa legal até efectivo pagamento, bem como as vincendas até efectivo pagamento, e ainda de € 1.200,00 (mil e duzentos euros), devidos nos termos dos artigos 1041.º, n.º 1 e 1048.º, n.º 1, ambos do Código Civil.
Alegaram, para tanto, que são os donos do prédio sito em Elvas que identificaram, tendo antes instaurado acção de reivindicação contra o aqui R., a qual correu termos pelo mesmo Tribunal Judicial de Portalegre, Juízo Local Cível de Elvas, sob o n.º 547/19.5TBELV, pedindo a condenação do demandado a restituir o imóvel livre e devoluto.
Na aludida acção alegaram ter celebrado contrato de arrendamento para habitação com (…), nos termos do qual se obrigaram a ceder o gozo do mesmo imóvel mediante o pagamento, por esta, da renda fixada, acordo no qual o então (e também aqui) R., pai da arrendatária, interveio como fiador. Mais alegaram que após a arrendatária ter abandonado o locado nele se instalou o demandado, que nenhum título detinha que legitimasse tal ocupação.
O R. apresentou ali contestação, peça na qual se arrogou a qualidade de arrendatário, o que, todavia, não correspondia à verdade, pretendendo apenas perpetuar uma ocupação ilícita e gratuita do imóvel.
A referida acção terminou por transacção homologada por sentença, nos termos da qual os AA se obrigaram a entregar ao R. a importância de € 750,00 até ao dia 10 de Novembro de 2020 e igual valor com a entrega da chave do imóvel; o R., por seu turno, obrigou-se a entregar a chave no escritório da sua il. Patrona até ao dia 31 de Dezembro de 2020, deixando o locado livre e devoluto de pessoas, bens e eventuais animais.
Sucede, porém, que pese embora o acordo celebrado, devidamente homologado por sentença transitada em julgado, os AA tomaram conhecimento do facto de a companheira do R. andar a proclamar publicamente que, mesmo recebendo a totalidade do valor que os AA se obrigaram a entregar, não sairiam da casa. Face a tal declaração, os AA abstiveram-se de proceder à entrega de qualquer quantia, considerando nula e de nenhum efeito a obrigação assumida.
Considerando que o R., que mantém a ocupação do imóvel, assumiu naquela acção a qualidade de inquilino e não tem pago as rendas contratadas, em violação do disposto no artigo 1038.º, alínea a), do CC, concluem os demandantes ser-lhes inexigível a manutenção do contrato, o que legitima o pedido de resolução formulado, com a consequente entrega do locado e condenação do demandado nas quantias peticionadas.
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Foi apresentada contestação pelo Il. Patrono nomeado, na qual impugnou em bloco a factualidade alegada na petição, pese embora tenha informado não ter sido possível contactar o R., seu patrocinado.
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Por despacho datado de 15-11-2021 foram as partes convidadas a pronunciar-se sobre a eventual ineptidão da petição inicial por contradição entre a causa de pedir (ausência de relação locatícia estabelecida com o R. – artigos 7.º e 8.º) e o pedido (incumprimento do contrato de arrendamento e pedidos dele dependentes) – tudo sem prejuízo da matéria do eventual caso julgado ou da eficácia novatória da transacção celebrada no proc. n.º 547/19.5T8ELV.
Pronunciaram-se apenas os AA, tendo esclarecido que a relação locatícia decorreria da transacção celebrada no processo identificado, nos termos da qual o réu teria sido reconhecido como inquilino, tal como invocara.
Foi de seguida proferida decisão que julgou verificada a excepção dilatória de nulidade de todo o processo, e, em consequência, foi o R. absolvido da instância.

Inconformados, interpuseram os AA o presente recurso e, tendo desenvolvido no corpo das alegações apresentadas os fundamentos da sua discordância com o decidido, formularam a final as seguintes conclusões:
I. A sentença proferida põe em causa o legítimo direito dos AA. de fruírem e auferirem plena e exclusivamente os frutos materiais do bem a eles pertencente e dele legítimos proprietários.
II. A tentativa de conciliação, conseguida esta com êxito, de 13/10/20 permitiu, ainda que fugazmente, terem as partes convencionado a existência duma relação locativa, evidenciando a todos os títulos o propósito, judicialmente reconhecido, de entre AA. e R. se ter celebrado um contrato de arrendamento.
III. O uso da expressão LOCADO, contida na ACTA DE TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO de 13/10/20 permitiu ficar explícito muito claramente o reconhecimento de adesão a um contrato obtido por transigência entre as partes, que envolve, como definição, a composição dum desacordo por meio de concessões recíprocas (“mais vale transigir que litigar…”).
IV. Para haver LOCADO dúvidas não podem haver quanto à existência duma locação e para isso necessariamente têm de existir um locador (os AA.) e um locatário (o R.).
V. E isso foi homologado judicialmente por sentença transitada quanto aos termos acordados, dos quais se destaca o seu Nº 2 (dois).
VI. E tendo a LOCAÇÃO como única fonte a existência dum contrato foi isto que passou a haver face à liberdade prevista no artigo 405.º do Código Civil.
VII. Entende-se estar errada a douta decisão proferida, porquanto a relação locatícia resultou do acordo a que aqueles antes tinham chegado.
VIII. Perante aquela inegável validação inexiste qualquer tipo de ineptidão da petição inicial pois não ocorre nenhum dos casos previstos aludidos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 186.º do NCPC.
IX. A “contestação” apresentada pelo novo patrono oficioso designado configura um acto inútil visto o seu subscritor carecer de legitimidade e estar ferida de extemporaneidade impondo-se, o seu desentranhamento e devolução do subscritor e nada justificando qualquer pagamento por intervenção profissional no âmbito do Apoio Judiciário.
Indicando como violadas as disposições legais contidas nos artigos 370.º e 371.º, n.º 1, 405.º, 1022.º, 1024.º e 1305.º, todos do Código Civil, artigos 6.º, n.º 2 e 547.º, estes do CPC, requerem que, na procedência do recurso, seja proferida decisão que substitua a sentença proferida, ordenando a baixa dos autos à 1.ª instância para se decidir do mérito da causa, com observância dos ulteriores trâmites processuais.
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Não foram oferecidas contra-alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
i. da ineptidão da p.i.
ii. da extemporaneidade da contestação apresentada.
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II. Fundamentação
Interessando à decisão os factos relatados em I., importa ter presente que ao autor cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir (artigo 5.º, n.º 1, do CPC[1]).
A causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer e nas acções constitutivas “é o facto concreto que se invoca para obter o efeito pretendido” (artigo 581.º, n.º 4).
Nos termos do artigo 186.º, são causas de ineptidão da petição inicial, geradoras da nulidade de todo o processo, i. a falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir; ii. a contradição entre o pedido e a causa de pedir e iii. a cumulação de pedidos ou causas de pedir substancialmente incompatíveis (cfr. alíneas a), b) e c) do n.º 2 do preceito).
Considerou-se na decisão recorrida que a petição era inepta por existir contradição entre o pedido e a causa de pedir, entendimento do qual os AA ora apelantes dissentem. Vejamos:
A ineptidão da petição inicial com fundamento na contradição entre a causa de pedir e o pedido implica uma contradição lógica entre uma e outro, ou seja, “o pedido briga com a causa de pedir, opondo-se-lhe, não jurídica, mas logicamente”[2].
Conforme explica A. Geraldes[3], “A petição, tal como a sentença final, deve apresentar-se sob a forma de um silogismo, ao menos implicitamente anunciado, que estabeleça um nexo lógico entre as premissas e a conclusão.
Em tal silogismo, a premissa maior é constituída pelas razões de direito invocadas, a premissa menor é preenchida com as razões de facto, e o pedido corresponderá à conclusão.
Por isso mesmo, a causa de pedir não deve estar em contradição com o pedido, o que não se confunde com a simples desarmonia entre um e outro dos elementos objectivos da instância”.
E citando o Prof. A. Varela “a contradição não pressupõe uma simples desarmonia, mas uma negação recíproca, um encaminhamento de sinal oposto … uma conclusão que pressupõe exactamente a premissa oposta àquela de que se partiu.”
Diversamente, a ausência de concretização de factos essenciais, sendo igualmente vício gerador da petição inicial, consubstancia a nulidade da petição decorrente da falta de causa de pedir, inviabilizando o conhecimento do mérito da causa.
Estando em causa uma acção por via da qual os AA pretendem exercer o seu direito de resolução de um contrato de arrendamento, o núcleo essencial da causa de pedir, atento o que dispõe o antes citado n.º 4 do artigo 581.º do CPC, é constituído pela celebração do contrato, com enunciação dos factos que permitam a identificação dos seus elementos caracterizadores, e daqueles que integram o incumprimento que é fundamento resolutivo.
No caso dos autos, da leitura e análise da petição inicial resulta evidente que os AA não alegaram em momento algum ter celebrado com o R. um contrato de arrendamento, nada se dizendo quanto ao tempo e modo de celebração, renda fixada ou prazo de vigência, o que configura antes, em nosso entender, uma situação de verdadeira falta de causa de pedir por ausência de alegação de factos essenciais e que não é suprível mediante recurso ao despacho de aperfeiçoamento, que pressupõe a mera insuficiência da alegação dos factos que a integram.
Por outro lado, e ao invés do que sustentam os recorrentes, não encontra a mínima correspondência no texto da transacção celebrada na precedente acção o sentido que dela agora pretendem extrair – o de que teriam então reconhecido que o contrato de arrendamento havia sido, na verdade, celebrado com o R., que demandaram na qualidade de ocupante ilícito da fracção. Na verdade, a referência a locado compreende-se no contexto daquela acção, em que os AA alegaram ter celebrado contrato de arrendamento com a filha do R., que no acordo celebrado interviera na qualidade de fiador.
Aqui chegados, não pode deixar de se observar que, queixando-se os recorrentes, injustamente, de que a decisão recorrida põe em causa “o conteúdo do seu inalienável direito (…) de fruírem e disporem de modo pleno e exclusivo do prédio sito em Elvas na Rua (…), n.º 23-B”, a verdade é que foi a incompreensível opção dos próprios, primeiro pelo incumprimento da transacção homologada por sentença -que constitui título executivo, podendo, em caso de incumprimento por parte do R., fundamentar acção executiva para entrega de coisa certa- e, depois, a propositura de uma acção sem causa de pedir, que prolongou a privação do uso e fruição do imóvel.
Verificada a ausência de alegação dos factos concretos essenciais que constituem o núcleo da causa de pedir, o que acarreta a ineptidão da petição inicial por falta do próprio objeto do processo (o pedido, fundado numa causa de pedir) e, consequentemente, a sua nulidade (artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), estamos perante excepção dilatória de conhecimento oficioso que determina a absolvição do R. da instância nos termos conjugados dos artigos 278.º, n.º 1, alínea b), 577.º, alínea b) e 578.º, todos do CPC. Tal como foi decidido e se confirma, embora com diversa fundamentação quanto ao vício gerador da ineptidão, resultando prejudicada a apreciação da segunda questão suscitada no recurso (artigo 608.º, n.º 2, do CPC).
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso e, embora na consideração de que a petição inicial enferma de ineptidão com fundamento na falta da causa de pedir, vício gerador da nulidade de todo o processo, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
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Sumário: (…)
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Évora, 12 de Maio de 2022
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
Vítor Sequinho dos Santos


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[1] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Prof. Lebre de Freitas, “A acção declarativa comum à luz do Código Revisto”, 2.ª edição, pág. 47.
[3] “Temas da Reforma do processo Civil”, vol. I, 2.ª ed. Revista e ampliada, pág. 139.