Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
789/17.8T8BJA.E2
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
NULIDADE DO CONTRATO DE SEGURO
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – No contrato de seguro recaem deveres quer sobre o tomador do seguro quer sobre o segurador.
II – Em caso de omissões ou inexatidões de declarações relevantes para a apreciação do risco por parte do tomador do seguro o regime jurídico a aplicar é diverso quer estejamos perante comportamento doloso ou negligente, sendo que no primeiro caso o contrato é anulável e no segundo caso o contrato é alterado ou cessado.
III – Compete à entidade empregadora fazer a prova da transferência do risco dos trabalhadores que tem a seu cargo para a seguradora e à seguradora fazer a prova da existência de omissões ou inexatidões nas informações prestadas pelo tomador do seguro, à data da celebração do contrato de seguro; que essas omissões ou inexatidões foram prestadas com dolo ou negligência; sendo que, neste último caso, para poder fazer cessar o referido contrato de seguro e não cobrir qualquer parcela do sinistro terá de fazer também a prova de que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexatamente, pelo que, se tivesse tido conhecimento do facto omitido ou declarado inexatamente, em caso algum, teria celebrado aquele contrato.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
O sinistrado A.B. veio participar acidente de trabalho de que foi vítima, o qual ocorreu em 21-01-2017, pelas 10h45, em Serpa, quando se encontrava ao serviço de J.H., o qual tinha transferido a responsabilidade infortunística para a seguradora “Tranquilidade”.
Em 04-08-2017, foi realizada perícia médico-legal ao sinistrado, tendo-lhe sido atribuída uma incapacidade permanente parcial de 4,96%, sendo a data da consolidação médico-legal das lesões fixada em 16-02-2017 e a incapacidade temporária absoluta fixada em 27 dias.
Realizada a tentativa de conciliação, não houve conciliação das partes, devido ao facto de o sinistrado não concordar com a IPP atribuída e de a seguradora não reconhecer o acidente sofrido como de trabalho nem aceitar o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões sofridas.
O sinistrado A.B. (Autor), com o patrocínio do Ministério Público, veio intentar ação especial emergente de acidente de trabalho contra J.H. e “Seguradoras Unidas, SA(Rés), solicitando, a final, que sejam as Rés condenadas a pagar ao Autor:
- pensão global, anual e vitalícia, com início no dia seguinte ao da alta definitiva;
- a quantia de €383,81, a título de diferencial de 27 dias de incapacidade temporária absoluta;
- a quantia de €140,00, a título de despesas de transportes; e
- juros de mora sobre todas as importâncias em dívida, à taxa legal, desde o vencimento e até integral pagamento.
Requereu ainda a realização de exame por junta médica, nos termos do art. 139.º do Código de Processo do Trabalho, formulando os respetivos quesitos.
Em síntese, alegou que, em 2017, trabalhava sob as ordens e direção do 1.º Réu J.H., exercendo funções de trabalhador agrícola, auferindo a retribuição base mensal de €557,00 e subsídio de alimentação no montante diário de €3,52, tendo o 1.º Réu celebrado com a 2.ª Ré um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 0004335561, para transferência da responsabilidade civil emergente de acidentes laborais dos trabalhadores.
Mais alegou que, no dia 21-01-2017, pelas 10h45, em Serpa, no exercício das suas funções e por ordem do 1.º Réu, o Autor foi atingido na mão esquerda por uma motosserra, com a qual estava a trabalhar, sendo-lhe, posteriormente, atribuída uma IPP de 4,96%, com a qual o Autor não concorda, pois desde a data do acidente não consegue agarrar objetos com a mão esquerda, dada a reduzida sensibilidade que tem.
Alegou ainda que já se deslocou seis vezes de Serpa a Beja para consulta no médico da seguradora e uma vez ao tribunal.
O Réu J.H. contestou, solicitando, a final, a procedência da ação, devendo a companhia de seguros ser condenada na medida da sua responsabilidade.
Alegou, em síntese, que o Réu já manifestou a sua concordância com o acidente, aceitando-o como acidente de trabalho, tenho transferido a sua responsabilidade para a Ré Companhia de Seguros, sendo que nas condições particulares está previsto que a companhia cobre o risco de quatro trabalhadores agrícolas, cada um com um salário base de €557,99, constando ainda “Natureza dos trabalhos: Trabalhos Agrícolas – utiliza pontualmente motosserra”.
A Ré “Seguradoras Unidas, S.A.” contestou, solicitando, a final, que o contrato de seguro de acidente de trabalho fosse considerado inválido e ineficaz, sendo a 2.ª Ré absolvida do pedido.
Para o efeito alegou, em síntese, que não foi validamente transferida para a 2.ª Ré a responsabilidade por acidente de trabalho, uma vez que foi celebrado entre o 1.º Réu e a 2.ª Ré um contrato de seguro de acidente de trabalho nos termos da modalidade “fixo sem nomes”, abrangendo um número de quatro trabalhadores agrícolas eventuais, sendo que, à data do acidente, na unidade de exploração abrangida pelo seguro prestavam a sua atividade, por conta e direção do 1.º Réu, doze trabalhadores agrícolas, sendo que a cobertura do seguro abrangia apenas o capital seguro referente aos salários de quatro trabalhadores, valor esse que precedeu a determinação do prémio do contrato.
Alegou ainda que, segundo a cláusula 7 das condições gerais, o tomador do seguro está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo Segurador, sendo que, de acordo com a cláusula 8, o Segurador não está obrigado a cobrir o sinistro nessas condições, razão pela qual o 1.º Réu, ao declarar que na unidade de exploração em causa, tinha ao seu serviço quatro trabalhadores, violou dolosamente o dever de declarar com exatidão as circunstâncias relevantes para avaliação inicial de risco, uma vez que na modalidade de prémio de contrato de prémio fixo sem nomes é elemento essencial do contrato a declaração do número exato de trabalhadores, visto que é através desse elemento que a seguradora avalia o risco a transferir e define as condições contratuais.
Alegou também que a conduta do 1.º Réu constitui uma conduta manifestamente fraudulenta, na medida em que, tomando vantagem da modalidade do seguro contratado (fixo sem nomes), sempre poderia participar o evento de qualquer um dos trabalhadores ao seu serviço (doze), pagando apenas o equivalente a quatro trabalhadores, sendo que a violação do dever contratual pelo 1.º Réu origina a invalidade do contrato de seguro celebrado.
Alegou, por fim, que, na declaração de risco, o 1.º Réu indicou que a cobertura do contrato se destinava a trabalhadores agrícolas com utilização pontual a motosserra, o que também não corresponde à verdade, uma vez que o sinistrado foi contratado para campanha de limpeza das árvores, cuja função se realizaria com recurso contínuo e necessário à motosserra, tendo o 1.º Réu, também nesta parte, incumprido os deveres de declaração do risco.
Foi proferido despacho saneador, onde foi fixada a matéria de facto assente e elaborada a base instrutória.
Por apenso, foi realizada, a 05-12-2018, junta médica, na qual foi mantida a IPP em 4,96%.
Em 29-01-2019, foi proferida decisão no referido apenso com o seguinte teor:
Por todo o exposto, e ao abrigo do disposto pelo artigo 140.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, declaro que o sinistrado apresenta como sequelas: rigidez da interfalângica proximal do segundo dedo e amputação parcial da falange distal do 3.º dedo (menos de 50%) da mão esquerda, as quais determinam uma IPP de 4,96%, sem IPATH.
Realizada a audiência de julgamento de acordo com as formalidades legais, foi proferida sentença em 22-07-2019, com a seguinte decisão:
Por tudo o exposto, decido:
1) Fixar ao Sinistrado A.B. uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 4,96%, desde a data da alta (16.02.2017);
2) Condenar o Réu J.H. a pagar ao sinistrado:
i. O capital de remição de uma pensão anual e obrigatoriamente remível de €29,57 (vinte e nove euros e cinquenta e sete cêntimos), devida desde 16.02.2017, acrescida de juros de mora, à taxa legal cível, desde o dia seguinte ao da alta até efetivo e integral pagamento;
ii. A quantia de € 44,11 (quarenta e quatro euros e onze cêntimos) a título de indemnização por 27 dias de ITA, quantia a que acrescem juros de mora à taxa civil desde a presente decisão até efetivo e integral pagamento.
3) Condenar a Ré SEGURADORAS UNIDAS, S.A. a pagar ao sinistrado:
i. O capital de remição de uma pensão anual e obrigatoriamente remível de € 270,75 (duzentos e setenta euros e setenta e cinco cêntimos), devida desde 16.02.2017, acrescida de juros de mora, à taxa legal civil, desde o dia seguinte ao da alta até efetivo e integral pagamento;
ii. A quantia de € 339,71 (trezentos e trinta e nove euros e setenta e um cêntimo), a título de diferencial de indemnização por 27 dias de ITA, quantia a que acrescem juros de mora à taxa civil desde a presente decisão até efetivo e integral pagamento.;
iii. A quantia de €140,00 (cento e quarenta euros) referente a deslocações efetuadas pelo sinistrado em virtude do acidente dos autos, acrescida de juros de mora, à taxa legal civil, desde a data da presente sentença.
Não se conformando com tal sentença, vieram o Autor A.B., representado pelo Ministério Público, e a Ré “Seguradoras Unidas, S.A.” interpor recursos de Apelação, os quais, após admissão, levaram à prolação, em 23-04-2020, de acórdão desta Relação, com o seguinte teor decisório:
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso interposto pelo Apelante A.B., ainda que por fundamentação diversa, totalmente procedente, determinando a anulação da sentença recorrida, devendo, em consequência, o tribunal a quo:
1) Proceder à ampliação da matéria de facto, dando resposta ao seguinte quesito:
a) O sinistrado não voltou a trabalhar, por não conseguir agarrar os objetos com a mão esquerda.
2) Determinar a realização de nova junta médica da especialidade de ortopedia, a qual deverá esclarecer as seguintes questões:
a) Considerando as lesões de que padece o sinistrado, as funções por si desempenhadas à data do acidente e as exigências impostas por tais funções, descritas no relatório do IEFP, quais são as funções que o sinistrado pode continuar a desempenhar; e
b) Se, na atividade diária normalmente exercida pelo sinistrado, fundamentalmente a que se reporta ao uso da motosserra, a incapacidade de que veio a padecer em virtude do acidente de trabalho, aumenta os riscos para a saúde e integridade física do sinistrado e de terceiros.
Relativamente ao recurso interposto pela Apelante “Seguradoras Unidas, S.A.”, em face da nulidade da sentença recorrida, por se mostrar prejudicado, não se procedeu à sua apreciação.
Custas pela parte vencida.
Notifique.
Em 26-05-2021 foi realizado novo exame por junta médica, no qual foi, por maioria dos médicos[2], efetuada a seguinte resposta aos quesitos formulados:
2 a) Não pode cortar árvores com motoserra, pode podar com a mão direita, pode empinar troncos pequenos e grandes com ajuda de outra pessoa, pode executar a limpeza de alguns equipamentos utilizados (excepto motoserra e instrumentos com laminas), pode lavar-se e equipar-se.
2 b) Sim, o uso de motoserra em concreto.
Por decisão proferida em 17-11-2021 foi fixada ao Autor A.B. a pensão provisória no valor de €300,32, a cargo da Ré seguradora.
Realizada a audiência de julgamento de acordo com as formalidades legais, foi proferida sentença em 12-01-2022, com a seguinte decisão:
Por tudo o exposto, decide-se:
1) Fixar ao Sinistrado A.B. uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 4,96%, com restrição de trabalho em altura e limitado ao uso de motosserras pequenas, desde a data da alta (16.02.2017);
2) Condenar o Réu J.H. a pagar ao sinistrado:
i. O capital de remição de uma pensão anual e obrigatoriamente remível de €29,57 (vinte e nove euros e cinquenta e sete cêntimos), devida desde 16.02.2017, acrescida de juros de mora, à taxa legal cível, desde o dia seguinte ao da alta até efetivo e integral pagamento;
ii. A quantia de € 44,11 (quarenta e quatro euros e onze cêntimos) a título de indemnização por 27 dias de ITA, quantia a que acrescem juros de mora à taxa civil desde a presente decisão até efetivo e integral pagamento.
3) Condenar a Ré SEGURADORAS UNIDAS, S.A. a pagar ao sinistrado:
i. O capital de remição de uma pensão anual e obrigatoriamente remível de € 270,75 (duzentos e setenta euros e setenta e cinco cêntimos), devida desde 16.02.2017, acrescida de juros de mora, à taxa legal civil, desde o dia seguinte ao da alta até efetivo e integral pagamento;
ii. A quantia de € 339,71 (trezentos e trinta e nove euros e setenta e um cêntimo), a título de diferencial de indemnização por 27 dias de ITA, quantia a que acrescem juros de mora à taxa civil desde a presente decisão até efetivo e integral pagamento.;
iii. A quantia de €140,00 (cento e quarenta euros) referente a deslocações efetuadas pelo sinistrado em virtude do acidente dos autos, acrescida de juros de mora, à taxa legal civil, desde a data da presente sentença.
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A ação tem o valor do capital de remição, acrescido das indemnizações por IT´s cfr. art.º 120.º, do Código de Processo do Trabalho.
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Custas a cargo das Rés (cfr. art. 527º do Código de Processo Civil).
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Registe e notifique.
Não se conformando com tal sentença, veio a Ré “Generali Seguros, S.A.” interpor recurso de Apelação, apresentando as seguintes conclusões:
A. O tribunal incorreu num lapso na apreciação da prova testemunhal produzida em julgamento uma vez que todas as testemunhas inquiridas (em especial (…) e (…)), bem como o próprio Autor, declararam que, à data do acidente (coincidente com a da contratação), trabalhavam para o Recorrido mais de 4 pessoas.
B. Isto mesmo foi admitido pelo tribunal na sentença recorrida;
C. Ora, provando-se o facto essencial alegado pela Recorrente (que o número de trabalhadores ao serviço do Recorrido era superior ao número por este indicado – 4), era irrelevante provar-se se eram 5, 12 ou mais.
D. Assim, com base na reapreciação dos depoimentos indicados, deverá ser alterada a factualidade constante na al. a) dos factos “não provados”, sendo esta aditada aos factos “provados” com a seguinte redação: “À data em que o 1º Réu transferiu a responsabilidade emergente de acidente de trabalho dos trabalhadores para a 2ª ré e do acidente, na unidade de exploração do 1º Réu, prestavam a sua atividade, por conta e direção do 1.º R., mais de 4 (quatro) trabalhadores.
E. Ora, com base nesta factualidade, a que acrescem as declarações quanto à regularidade do uso de motosserras pelos dos trabalhadores (matéria dada como provada), verifica-se que o Recorrido prestou declarações inexatas aquando da contratação do seguro, violando o dever de declaração inicial de risco previsto no art. 24.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril.
F. O que fez certamente a título doloso, de má-fé, para evitar o necessário agravamento do prémio.
G. Nessa medida, deverá ser eliminado do elenco dos factos “não provados” a sua al. b), sendo o mesmo aditado aos factos “provados”.
H. E como à Recorrente apenas se impunha a prova de que o Recorrido prestou declarações inexatas e, bem assim, a prova de que estas influíram na celebração do contrato de seguro e respetivas condições para ver declarada a invalidade do contrato - o que, manifestamente, logrou fazer;
I. Pois que as circunstâncias acima descritas levaram a Recorrente à fixação de um prémio inferior àquele que era devido na realidade;
J. Deverá a douta sentença recorrida ser alterada, sendo o contrato declarado nulo, nos termos previstos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril.
Nestes termos, e sempre com o douto suprimento de V.Exas., deverá a presente Apelação ser julgada procedente, sendo a sentença reformulada nos termos supra referidos, assim se fazendo a costumada Justiça!
O Autor A.B., representado pelo Ministério Público, veio apresentar contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões:
1. Nas conclusões das suas alegações, a recorrente não cumpre o previsto no art. 640º, nº1, al. b) e nº2 e nº2, al. a) do CPC, ao não elencar os concretos meios probatórios, de registo ou gravação que, eventualmente, imponham decisão diversa.
2. Por tal omissão, deve o recurso ser rejeitado.
3. Na perspectiva do sinistrado, a factualidade dada como provada permite concluir pela validade do contrato de seguro, aceitando-se, nesse âmbito a sentença proferida.
4. No entanto, caso se conclua pela invalidade do contrato de seguro, sempre o empregador deverá responder pelas indemnizações e pensões e demais direitos patrimoniais devidos ao sinistrado.
Assim se fazendo JUSTIÇA
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo (em virtude do pagamento de uma caução).
Após ter sido recebido o recurso neste Tribunal nos seus exatos termos e terem sido dispensados os vistos legais por acordo, cumpre agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Impugnação da matéria de facto; e
2) Nulidade do contrato de seguro.
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria factual:
1) O Autor nasceu a 24/10/1974.
2) O 1º Réu Entidade Patronal celebrou com a 2ª Ré Seguradora um contrato de seguro, titulado pela apólice nº 0004311030 para transferência da responsabilidade civil emergente de acidentes laborais dos trabalhadores, na modalidade “fixo sem nomes”, abrangendo um número determinado de trabalhadores e competindo ao 1.º R a indicação do número de trabalhadores abrangidos, para efeitos de cobertura do seguro e determinação do capital seguro e cálculo do prémio.
3) O referido contrato, com efeitos a 10.01.2017 e termo a 08.02.2017, abrangia 4 (quatro) trabalhadores agrícolas; a cobertura do seguro abrangia o capital seguro referente aos salários de 4 trabalhadores (557,00€ x 14 meses x 4 trabalhadores = 31.192,00 €), e abrangia a atividade de trabalhos agrícolas com indicação de utilização pontual a motosserra.
4) Os serviços clínicos da 2ª Ré não trataram o autor e deram-lhe alta administrativa a 10/3/2017.
5) A 2ª ré pagou ao Autor 64,08€ a título de indemnização por incapacidade temporária.
6) Procedeu-se a Tentativa de Conciliação no dia 15/1/2018, a qual se veio a frustrar.
7) O Autor não concordou com a IPP e reclamou o pagamento de pensão anual e vitalícia, com início no dia seguinte ao da alta definitiva, resultante da incapacidade permanente que lhe for fixada na Junta Médica; reclamou a quantia de 383,81€, a título de diferencial de ITA; reclamou a quantia de 120€, a título de despesas de deslocação ao médico da seguradora e o valor de 20,00€ referente a despesas de transportes para vinda ao Tribunal.
8) A Ré Entidade Patronal reconheceu o acidente sofrido pelo sinistrado como acidente trabalho. Aceitou o nexo de causalidade entre tal acidente de trabalho e as lesões sofridas pelo sinistrado. Reconheceu que a vítima auferia na data do acidente a retribuição de salário base – 557€ x 14m; subsídio de alimentação – 3,52€ x22d x11m, na totalidade anual de 8.649,84€.
9) Concordou com a ITA e com a IPP de 4,96% que foi atribuída ao sinistrado. Considerou que transferiu integralmente a sua responsabilidade para a companhia seguradora, pelo montante salarial total auferido pelo sinistrado, admitindo a possibilidade do subsídio de alimentação poder não estar transferido. Nestas circunstâncias, e com a indicada exceção, não aceitou qualquer obrigação patrimonial para com o sinistrado, por virtude do acidente dos autos.
10) A Ré Seguradora não reconheceu o acidente sofrido pelo sinistrado como acidente trabalho. Não aceitou o nexo de causalidade entre tal acidente de trabalho e as lesões sofridas pelo sinistrado. Não aceitou que a responsabilidade por acidentes de trabalho em relação ao sinistrado nos autos estava para si transferida com referência ao montante de salário base - 557€x14m; subsídio de alimentação – 3,52€x22dx11m, na totalidade anual de 8 649,84€. Não concordou com a ITA que foi fixada ao sinistrado. Não concordou com a IPP de 4,96% que foi atribuída ao sinistrado e não se reconheceu devedora de qualquer quantia ao sinistrado.
11) O 1º Réu dedica-se à agricultura.
12) Em 2017 o Autor trabalhava sob as ordens e direção do 1º Réu, exercendo as funções de trabalhador agrícola.
13) O Autor auferia a retribuição base no valor de 557€ x 14m, acrescido de subsídio de alimentação no valor de 3,52€ x 22d x11m.
14) No dia 21 de janeiro de 2017, pelas 10.45 horas, em Serpa, no exercício das suas funções por ordem do 1º Réu, o Autor foi atingido na mão esquerda por uma motosserra, com a qual estava a trabalhar.
15) O Autor foi assistido no SU de Serpa e de Beja.
16) O Autor despendeu 120€ em seis deslocações de Serpa a Beja, para consulta no médico da seguradora, em Beja.
17) O Autor despendeu com a ida à diligência obrigatória de Tentativa de Conciliação e para a qual foi convocado a importância de 20€.
18) O sinistrado foi contratado pelo 1ª réu para a campanha de limpeza das árvores, cuja função se realizaria com recurso contínuo e necessário à motosserra.
19) Na sequência do acidente o sinistrado sofreu uma ferida da mão esquerda (passiva) na face palmar com lesão tendinosa (tendão extensor) e apresenta rigidez da interfalangica proximal do segundo dedo e amputação da falange distal do 3º dedo (menos de 50%) da mão esquerda (passivo), tendo-lhe sido atribuída uma IPP de 4,96% desde a data da alta fixada pelo perito médico legal em 16.02.2017 no apenso de fixação da incapacidade.
20) O autor padeceu de incapacidade parcial absoluta para o trabalho no período de 21.01.2017 a 16.02.2017.
21) O sinistrado pode efetuar limpeza de árvores de pequeno porte e utilizar para o efeito machados e motosserras pequenas sem colocar em risco a sua integridade física e a de terceiros.
E deu como não provados:
a) À data em que o 1º Réu transferiu a responsabilidade emergente de acidente de trabalho dos trabalhadores para a 2ª ré e do acidente, na unidade de exploração do 1º Réu, prestavam a sua atividade, por conta e direção do 1.º R., 12 (doze) trabalhadores agrícolas.
b) O 1º réu sabia, no momento em que transferiu a responsabilidade emergente de acidente de trabalho dos trabalhadores para a 2ª ré, que o número real de trabalhadores ao seu serviço era superior a 4 e omitiu tal informação com o objetivo de pagar um prémio de seguro inferior.
c) O sinistrado não voltou a trabalhar, por não conseguir agarrar os objetos com a mão esquerda.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) o tribunal a quo erro na apreciação da matéria de facto; e (ii) o contrato de seguro é nulo.
1) Impugnação da matéria de facto
Considera a Apelante que as als. a) e b) dos factos não provados devem ser incluídas no acervo dos factos provados, com uma ligeira alteração na al. a), em face da declaração de parte do Autor e dos depoimentos das testemunhas (…) e (…).
Dispõe o art. 640.º do Código de Processo Civil que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Relativamente à interpretação das obrigações que impendem sobre a Apelante, nos termos do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, cita-se, entre muitos, o acórdão do STJ, proferido em 03-03-2016, no âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III – O ónus a cargo do Recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado.
IV – Nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação, e que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, máxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte Recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica.

Relativamente à apreciação da matéria de facto em sede de recurso, importa acentuar que o disposto no art. 640.º do Código de Processo Civil consagra atualmente um duplo grau de jurisdição, persistindo, porém, em vigor o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz da 1.ª instância, previsto no art. 607.º, n.º 5, do mesmo Diploma Legal.
No entanto, tal princípio da livre apreciação da prova mostra-se condicionado por uma “prudente convicção”, competindo, assim, ao Tribunal da Relação aferir da razoabilidade dessa convicção, em face das regras da experiência comum e da normalidade da vida, da ciência e da lógica.
Veja-se sobre esta matéria o sumário do acórdão do STJ, proferido em 31-05-2016, no âmbito do processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
I - O tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.
II - Desde que o recorrente cumpra as determinações ínsitas no art. 640.º, o tribunal da Relação não poderá deixar de fazer a reapreciação da matéria de facto impugnada, podendo alterar o circunstancialismo dado como assente na 1.ª instância.

Cita-se ainda o sumário do acórdão do TRG, proferido em 04-02-2016, no âmbito do processo n.º 283/08.8TBCHV-A.G1, consultável em www.dgsi.pt:
I- Para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.

E, a ser assim, o Tribunal da Relação, aquando da reapreciação da matéria de facto, deve, não só recorrer a todos os meios probatórios que estejam à sua disposição e usar de presunções judiciais para, desse modo, obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, como também, sem incorrer em excesso de pronúncia, ao alterar a decisão de determinados pontos da matéria de facto, retirar dessa alteração as consequências lógicas inevitáveis que se repercutem noutros pontos concretos da matéria de facto, independentemente de tais pontos terem ou não sido objeto de impugnação nas alegações de recurso.
Cita-se a este propósito, o sumário do acórdão do STJ, proferido em 13-01-2015, no âmbito do processo n.º 219/11.9TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
XIII - Não ocorre excesso de pronúncia da decisão, se a Relação, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retira dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso.

Por fim, importa ainda esclarecer que o Tribunal da Relação, na sua reapreciação da prova, terá sempre que atender à análise crítica de toda a prova e não apenas aos fragmentos de depoimentos que, por vezes, são indicados, e que retirados do seu contexto, podem dar uma ideia bem distinta daquilo que a testemunha efetivamente mencionou, bem como daquilo que resultou da globalidade do julgamento.
Consigna-se que se procedeu à audição de todo o julgamento.
Cumpre decidir.
Uma vez que a Apelante deu integral cumprimento ao disposto no art. 640.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil, apenas nos resta admitir o recurso sobre a indicada matéria de facto.
Factos não provados a) e b)
Conta dos factos não provados a) e b) que:
a) À data em que o 1º Réu transferiu a responsabilidade emergente de acidente de trabalho dos trabalhadores para a 2ª ré e do acidente, na unidade de exploração do 1º Réu, prestavam a sua atividade, por conta e direção do 1.º R., 12 (doze) trabalhadores agrícolas.
b) O 1º réu sabia, no momento em que transferiu a responsabilidade emergente de acidente de trabalho dos trabalhadores para a 2ª ré, que o número real de trabalhadores ao seu serviço era superior a 4 e omitiu tal informação com o objetivo de pagar um prémio de seguro inferior.

Pretende a Apelante que o facto não provado a) passe a provado com a seguinte redação:
À data em que o 1º Réu transferiu a responsabilidade emergente de acidente de trabalho dos trabalhadores para a 2ª ré e do acidente, na unidade de exploração do 1º Réu, prestavam a sua atividade, por conta e direção do 1.º R., mais de 4 (quatro) trabalhadores.

E que o facto não provado b) passe a provado na sua exata redação.
Isto em face das declarações de parte do Autor e do depoimento das testemunhas (…) e (…).
Vejamos.
Na realidade, o que resultou provado, sem margens para dúvidas, da audição das declarações do Autor A.B. e do depoimento das testemunhas (…), (…) e (…) é que estas quatro pessoas se encontravam a trabalhar para a entidade empregadora, o Réu J.H., em simultâneo, no mês de janeiro de 2017, em trabalhos referentes à limpeza de árvores.
Já relativamente aos dois filhos do Réu J.H., apesar de estes, às vezes, também lá se encontrarem a trabalhar (conforme depoimentos das testemunhas (…) e (…)), desconhece-se a frequência em que o faziam, bem como a que título o faziam.
De igual modo, se dirá do mencionado (…) (referido no depoimento da testemunha (…)), condutor esporádico de um camião que transportava lenha, uma vez que se desconhece a que título era efetuada tal atividade (como trabalhador por conta de outrem ou por conta própria).
Por fim, quanto à mencionada (…), que trabalhava para o Réu J.H., na sua propriedade, designadamente na horta dessa propriedade (conforme depoimento das testemunhas (…) e (…)), e não nas atividades agrícolas que este desenvolvia para terceiros (ou seja, que não efetuava as mesmas funções que o Autor e as testemunhas (…), (…) e (…)), desconhece-se que tipo de contrato esta possuía com o referido Réu e se existia qualquer outro tipo de seguro para proteção da atividade desenvolvida por tal trabalhadora, a qual trabalharia para tal Réu há bastante mais tempo.
Atente-se que este seguro foi contratado apenas por um mês (entre 10-01-2017 e 08-02-2017) e nele estava incluída a atividade de trabalhos agrícolas com a indicação de utilização pontual a motosserra, não tendo resultado que a referida (…) exercesse qualquer trabalho, pontual ou não, com motosserra, sendo que o Autor e as testemunhas (…), (…) e (…) tinham sido efetivamente contratados pelo Réu J.H. em data bastante próxima da data referente à celebração do mencionado contrato de seguro.
Deste modo, para além dos referidos quatro trabalhadores (o Autor e as testemunhas (…), (…) e (…)) não foi efetuada prova suficiente da existência de mais trabalhadores a efetuar atividade agrícola nas mesmas condições e em simultâneo para o Réu J.H., sendo que tal prova, nos termos do n.º 2 do art. 342.º do Código Civil, competia à Apelante[3].
E, a ser assim, apenas resultou provado que se encontravam contratados pelo Réu J.H. para exercer atividade idêntica à do Autor e em simultâneo mais três trabalhadores, ou seja, quatro trabalhadores no total, pelo que improcede, na íntegra, a alteração fáctica quanto aos factos não provados a) e b).

2) Nulidade do contrato de seguro
No entender da Apelante, o Réu J.H. prestou declarações inexatas aquando da contratação do seguro, quer quanto ao número de trabalhadores que trabalhavam para si, quer quanto à regularidade do uso de motosserras pelos seus trabalhadores, violando, desse modo, o dever de declaração inicial de risco, previsto no art. 24.º do DL n.º 72/2008, de 16-04, tendo a Apelante conseguido provar que as declarações prestadas eram inexatas e que influíram na celebração do contrato de seguro e respetivas condições, pelo que o contrato deve ser declarado nulo, nos termos do art. 25.º do mesmo Diploma Legal.
Dispõe o art. 24.º do DL n.º 72/2008, de 16-04, que:
1 - O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.
2 - O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.
3 - O segurador que tenha aceitado o contrato, salvo havendo dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, não pode prevalecer-se:
a) Da omissão de resposta a pergunta do questionário;
b) De resposta imprecisa a questão formulada em termos demasiado genéricos;
c) De incoerência ou contradição evidentes nas respostas ao questionário;
d) De facto que o seu representante, aquando da celebração do contrato, saiba ser inexacto ou, tendo sido omitido, conheça;
e) De circunstâncias conhecidas do segurador, em especial quando são públicas e notórias.
4 - O segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro ou o segurado acerca do dever referido no n.º 1, bem como do regime do seu incumprimento, sob pena de incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais.

Estipula, por sua vez, o art. 25.º do DL n.º 72/2008, de 16-04, que:
1 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.
2 - Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento.
3 - O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.
4 - O segurador tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no n.º 2, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante.
5 - Em caso de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do contrato.

Regulamenta ainda o art. 26.º do DL n.º 72/2008, de 16-04, que:
1 - Em caso de incumprimento com negligência do dever referido no n.º 1 do artigo 24.º, o segurador pode, mediante declaração a enviar ao tomador do seguro, no prazo de três meses a contar do seu conhecimento:
a) Propor uma alteração do contrato, fixando um prazo, não inferior a 14 dias, para o envio da aceitação ou, caso a admita, da contraproposta; ~
b) Fazer cessar o contrato, demonstrando que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente.
2 - O contrato cessa os seus efeitos 30 dias após o envio da declaração de cessação ou 20 dias após a recepção pelo tomador do seguro da proposta de alteração, caso este nada responda ou a rejeite.
3 - No caso referido no número anterior, o prémio é devolvido pro rata temporis atendendo à cobertura havida.
4 - Se, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes:
a) O segurador cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente;
b) O segurador, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio.

Do confronto dos artigos citados resulta que:
(i) o tomador do seguro[4] se mostra obrigado, antes da celebração do contrato de seguro, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador;
(ii) o segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro acerca desse dever, bem como do regime do seu incumprimento;
(iii) em caso de incumprimento doloso do dever que incumbe ao tomador do seguro, o contrato é anulável, mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro, não se encontrando o segurador obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso;
(IV) em caso de incumprimento com negligência do dever que incumbe ao tomador do seguro, o segurador pode propor uma alteração do contrato ou fazer cessar o contrato, desde que demonstre que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexatamente; e
(V) se antes da cessação ou alteração do contrato ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões negligentes, o segurador cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente; ou o segurador, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio.
De tudo o que ficou exposto, resta-nos concluir, por um lado, que, nesta matéria, recaem deveres quer sobre o tomador do seguro quer sobre o segurador, e, por outro, que em caso de omissões ou inexatidões de declarações relevantes para a apreciação do risco o regime jurídico a aplicar é diverso quer estejamos perante comportamento doloso ou negligente, sendo que no primeiro caso o contrato é anulável e no segundo caso o contrato é alterado ou cessado.
Acresce que compete à Ré entidade empregadora fazer a prova da transferência do risco dos trabalhadores que tem a seu cargo (art. 342.º, n.º 1, do Código Civil) e à Ré seguradora fazer a prova da existência de omissões ou inexatidões nas informações prestadas pelo tomador do seguro, à data da celebração do contrato de seguro; que essas omissões ou inexatidões foram prestadas com dolo ou negligência; sendo que, neste último caso, para poder fazer cessar o referido contrato de seguro e não cobrir qualquer parcela do sinistro[5] terá de fazer também a prova de que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexatamente, pelo que, se tivesse tido conhecimento do facto omitido ou declarado inexatamente, em caso algum, teria celebrado aquele contrato (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil).
Apreciemos, então, o caso concreto.
Resultou provado que:
- o Réu J.H. celebrou com a Ré Seguradora um contrato de seguro, titulado pela apólice nº 0004311030 para transferência da responsabilidade civil emergente de acidentes laborais dos trabalhadores, na modalidade “fixo sem nomes”, abrangendo um número determinado de trabalhadores e competindo ao Réu J.H. a indicação do número de trabalhadores abrangidos, para efeitos de cobertura do seguro e determinação do capital seguro e cálculo do prémio (facto provado 2);
- O referido contrato, com efeitos a 10-01-2017 e termo a 08-02-2017, abrangia quatro trabalhadores agrícolas; a cobertura do seguro abrangia o capital seguro referente aos salários de 4 trabalhadores e abrangia a atividade de trabalhos agrícolas com indicação de utilização pontual a motosserra (facto provado 3);
- o Réu J.H. dedica-se à agricultura (facto provado 11);
- em 2017, o Autor trabalhava sob as ordens e direção do Réu J.H., exercendo as funções de trabalhador agrícola (facto provado 12), tendo sido contratado pelo Réu J.H. para a campanha de limpeza das árvores, cuja função se realizaria com recurso contínuo e necessário à motosserra (facto provado 18); e
- No dia 21-01-2017, pelas 10h45m, em Serpa, no exercício das suas funções, por ordem do Réu J.H., o Autor foi atingido na mão esquerda por uma motosserra, com a qual estava a trabalhar (facto provado 14).
Ora, relativamente ao número de trabalhadores agrícolas que trabalhavam para o Réu J.H., à data da celebração do contrato, bem como à data do acidente de trabalho, a Ré seguradora (e Apelante) não efetuou qualquer prova de que efetivamente fossem superior a cinco, pelo que relativamente a esta fundamentação não conseguiu provar sequer que tenha havido por parte do Réu J.H. uma declaração inexata.
Diferentemente ocorre, porém, quanto à regularidade do uso de motosserras pelos trabalhadores agrícolas que se encontravam a trabalhar para o Réu J.H., visto que decorre da matéria factual dada como assente que o Autor, enquanto trabalhador agrícola contratado pelo Réu J.H., tinha por função, por ter sido contratado especificamente para isso, proceder à limpeza das árvores, realizando a sua atividade com recurso contínuo e necessário à motosserra. E, assim, pelo menos quanto às funções desempenhadas pelo Autor, o trabalho agrícola para o qual foi contratado implicava uma utilização contínua e necessária à motosserra e não uma utilização pontual desta.
Porém, não resulta da matéria dada como provada desde quando e até quando o Autor tinha sido contratado pelo Réu para exercer tais trabalhos com recurso contínuo e necessário à motosserra, visto que, estando em causa um seguro na modalidade “fixo sem nomes”, abrangendo quatro trabalhadores agrícolas, durante o período de 10-01-2017 a 08-02-2017, ainda que em 21-01-2017, data do acidente de trabalho de que o Autor foi vítima, este se encontrasse efetivamente a trabalhar por ordem do Réu J.H., com recurso contínuo e necessário à motosserra, tal não implica que se encontrasse a exercer tal serviço desde 10-01-2017 e que o exercesse até 08-02-2017, podendo o seguro ter abrangido e vir a abranger outro trabalhador que não recorresse sequer ao serviço da motosserra. Ou seja, a utilização pontual da motosserra pode inclusive ser avaliada por apenas nalguns, mas poucos, dias da duração mensal do contrato de seguro haver recurso à motosserra, ainda que nesses dias tal recurso seja contínuo, desde que nos outros dias, que continuam a ser a maioria, tal recurso à motosserra não ocorra.
De qualquer modo, mesmo que se admitisse que tal declaração sobre o uso da motosserra nos trabalhos agrícolas desempenhados pelos trabalhadores do Réu J.H. fosse inexata, a Apelante sempre teria de ter feito prova, que não fez, se o Réu J.H., ao prestar tal declaração, agiu com dolo ou negligência, designadamente por ter pretendido enganar a Apelante, de forma a pagar um seguro menos elevado ou por não ter agido, ao preencher tal declaração, com o cuidado que, naquelas circunstâncias, lhe era exigível. Na realidade, nada consta da matéria de facto provada relativo às condições em que o contrato de seguro foi celebrado, de forma a ser possível inferir, por parte do Réu J.H., qualquer comportamento negligente.
De igual modo, a Apelante não fez prova de que se tivesse sabido que o uso da motosserra era contínuo, tal informação poderia tê-la influenciado na própria decisão de aceitar tal seguro.
Pelo exposto, improcede também nesta parte a pretensão da Apelante.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela Apelante (art. 527.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 9 de junho de 2022
Emília Ramos Costa (relatora)
Moisés Silva
Mário Branco Coelho

__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Moisés Silva; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho.
[2] Pelo médico nomeado pelo tribunal e pelo médico indicado pelo sinistrado.
[3] Veja-se o acórdão do TRP, proferido em 27-01-2015, no âmbito do processo n.º 184/12.5TBVFR.P1, consultável em www.dgsi.pt.
[4] Ou segurado.
[5] Ainda que tenha sempre de proceder à devolução do prémio.