Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
170/15.3T8GDL.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: DECISÃO ADMINISTRATIVA
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 06/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - As exigências de fundamentação da decisão da autoridade administrativa (no respeitante às contraordenações) são menos profundas que as relativas às sentenças criminais.

II - Não é inteiramente correto determinar se a decisão da autoridade administrativa satisfaz (ou não) todos os requisitos de uma sentença condenatória criminal (nomeadamente se fundamentou devidamente a decisão sobre a matéria de facto), quando é certo que, essa decisão, existindo impugnação judicial da mesma, não vale, no processo (até ser judicialmente confirmada), como decisão condenatória, mas tão-só como acusação (havendo impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, esta vale como acusação, no momento em que o Ministério Público torna os autos presentes ao juiz - artigo 62º, nº 1, do RGCO -).

III - Havendo impugnação judicial, essencial é que seja submetida à apreciação do julgador uma peça processual que satisfaça os requisitos mínimos duma acusação: identifique o arguido, narre os factos imputados (dessa forma delimitando o objeto do processo), descreva as disposições legais violadas, refira as sanções aplicáveis, e indique as provas.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Por decisão proferida pela ANSR, foi o arguido L. condenado, pela prática da contraordenação p. e p. pelo artigo 27º, nº 1, do Código da Estrada, na coima de € 120 e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 30 dias (suspensa na sua execução pelo período de 180 dias).

O arguido impugnou judicialmente a decisão administrativa, alegando, em síntese, que a decisão da autoridade administrativa é nula, por não conter com suficiência a indicação dos factos imputados.

Distribuído o recurso à Comarca de Setúbal (Grândola - Instância Local - Secção de Competência Genérica - Juiz 1), onde recebeu o nº 170/15.3T8GDL, a Mmª Juíza concedeu provimento ao recurso interposto pelo arguido, decidindo nos seguintes termos: “face ao exposto, julgo o recurso procedente e, em consequência, determino a nulidade da decisão proferida. Remeta os autos à entidade administrativa, a fim de suprir as nulidades invocadas”.
*
Inconformado com esta decisão, dela recorreu o Ministério Público, para este Tribunal de Relação, extraindo da respetiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“1.º - Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público da Douta Sentença de fls. 61 a 63, que determinou a nulidade da decisão administrativa e devolução à ANSR para suprir as nulidades invocadas.

2.º - A decisão administrativa havia aplicado ao arguido a sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motorizados pelo período de 30 dias, suspendendo a execução da mesma por um período de 180 dias, nos termos dos artigos 84.º, n.ºs 1 e 4, 138.º, 145.º, n.º 1, al. n), e 147.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, a título de negligência.

3.º - A Mmª Juiz, ao ter entendido que a decisão administrativa não descrevia o elemento subjetivo da contraordenação pela qual o arguido foi condenado, efetuou uma errada interpretação do artigo 15.º do C.P. e do artigo 58.º, n.º 1, do RGCO.

4.º - Consta da decisão administrativa o elemento subjetivo da infração, quando se refere que na decisão administrativa a fls. 7 e 7-v, ponto 6, “com a conduta descrita revelou desatenção e irrefletida inobservância das normas de direito rodoviário, atuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e que no momento se impunham”, ainda que a localização sistemática se possa considerar como desadequada.

5.º - Acresce que a decisão administrativa contém todos os elementos obrigatórios e previstos no artigo 58.º, n.º 1, do RGCO, contendo a indicação dos arguidos, a descrição dos factos imputados (os elementos objetivos e subjetivos constam da decisão, conforme acima referido), a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão (existem referências aos meios de prova - auto de notícia - e aos aspetos que serviram para dosear a pena - inexistência de antecedentes no RIC) e a sanção acessória (a coima já havia sido paga), pelo que a Douta Sentença, ao ter exigido um nível de fundamentação próximo de uma Sentença Condenatória, efetuou uma errada interpretação do disposto nos artigos 58.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, do RGCO.

6.º - De facto, resulta da interpretação conjugada dos referidos normativos, previstos nos artigos 58.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, do RGCO, um “regime menos rigoroso” da decisão condenatória da entidade administrativa, quando comparado com as exigências que a lei prescreve para a sentença penal. Havendo impugnação judicial, essencial é que seja submetida à apreciação do julgador uma peça processual que satisfaça os requisitos mínimos duma acusação: identifique o arguido; narre os factos imputados (dessa forma delimitando o objeto do processo); e indique as disposições legais violadas, as sanções aplicáveis e as provas - cfr. art.º 283º, nº 3, do CPP” - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.11.2014, processo 720/13.0TBFLG.G1.

7.º - Pelo exposto, ao decidir como decidiu a Douta Sentença recorrida violou o disposto nos artigos 58.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, do RGCO, artigos 84.º, n.ºs 1 e 4, 138.º, 145.º, n.º 1, al. n), e 147.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, e 15.º, alíneas a) e b), do CP.

8.º - Acresce referir que foram garantidos os direitos de defesa do arguido, tendo sido notificado da infração no próprio dia dos factos (cfr. fls. 4, onde pagou o valor da coima pelo mínimo), e foi regularmente notificado da decisão condenatória.

9.º - Nesta medida, deve ser revogada a Douta Sentença na parte em que julgou nula a decisão administrativa e, em consequência, ser substituída por Douto Acórdão que pressuponha que a decisão condenatória da entidade administrativa não padece das nulidades que lhe foram detetadas naquela sentença recorrida, nem das demais nulidades invocadas na impugnação judicial, e que mantenha a condenação sofrida”.

Notificado o arguido do recurso interposto, não apresentou qualquer resposta.

A Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.
Atendendo ao disposto no nº 1 do artigo 75º do D.L. nº 433/82, de 27/10, que aprovou o Regime Geral das Contraordenações (doravante designado por RGCO), em sede contraordenacional, e em princípio, o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, sem prejuízo do conhecimento de certos vícios ou nulidades de apreciação oficiosa, designadamente os indicados no artigo 410º, nºs 2 e 3, do C. P. Penal.

Por outro lado, e como é jurisprudência pacífica, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respetiva motivação (artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal).

Assim sendo, a única questão a apreciar por este tribunal é a de saber se a decisão da autoridade administrativa padece de nulidade.

2 - A decisão recorrida.
É do seguinte teor a decisão revidenda:

“O tribunal é competente.
O requerimento de interposição de recurso foi interposto tempestivamente.
O requerimento observa as exigências formais legalmente exigíveis.
Admito o presente recurso de contraordenação.
No presente recurso, veio L. impugnar judicialmente a decisão proferida pela ANSR que condenou o recorrente no pagamento de uma coima de € 120 e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 30 dias, pela prática de uma contraordenação ao disposto no artigo 27º, nº 1, do Código da Estrada.
Inconformado com aquela decisão, o recorrente apresentou impugnação judicial, pugnando pela nulidade da decisão administrativa.
Questão prévia - da nulidade da decisão administrativa:
Nos termos do artigo 58º, nº 1, do RGCO, a decisão que aplique a coima e as sanções acessórias deve conter:
a) A indicação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.
Embora de forma menos intensa, o conteúdo da decisão sancionatória da autoridade administrativa no processo de contraordenação aproxima-se da matriz da decisão condenatória em processo penal, nomeadamente no que respeita à enunciação dos factos provados, com indicação das provas obtidas.
A função dos elementos da decisão no procedimento por contraordenação consiste, tal como na sentença penal, em permitir, tanto a apreensão externa dos fundamentos, como possibilitar, intraprocessualmente, o controlo da decisão por via de recurso.
A fundamentação da decisão constitui um pressuposto essencial para verificação, simultaneamente, da pertinência e adequação do processo argumentativo e racional que esteve na base da decisão, e uma garantia fundamental dos respetivos destinatários.
Por isso, a decisão que não contenha os elementos nos termos e pelo modo que a lei determina não é prestável para a função processual a que está vinculada - a definição do direito do caso, e consequentemente, é um ato que não suporta todos os elementos necessários à sua validade.
A consequência, no âmbito do processo penal, vem cominada no artigo 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP): a nulidade da sentença que não contenha a enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.
Dada a natureza (sancionatória) do processo por contraordenação, os fundamentos da decisão que implicam uma coima (ou outra sanção prevista na lei por uma contraordenação) aproximam-na de uma decisão condenatória, mais do que a uma decisão da administração que contenha um ato administrativo. Por isso, a fundamentação deve participar das exigências da fundamentação de uma decisão penal – na especificação dos factos, na enunciação das provas que os suportam e na indicação precisa das normas violadas.
A fundamentação da decisão deve exercer, também aqui, uma função de legitimação-interna, para permitir aos interessados conhecer, mais do que reconstituir, os motivos da decisão e do procedimento lógico que determinou a decisão, em vista da formulação pelos interessados de um juízo sobre a oportunidade e a viabilidade e os motivos para uma eventual impugnação; e externa, para possibilitar o controlo, para quem nisso tiver interesse, sobre as razões da decisão.
Elementos essenciais da fundamentação de uma decisão sancionatória - a um tempo base e pressuposto de toda a fundamentação e da possibilidade de controlo da própria decisão - são os factos que forem considerados provados e que constituem a base sine qua non da aplicação das normas chamadas a intervir.
A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58º, nº 1, do RGCO, constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determine.
A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão - sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta, quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41º do RGCO sobre “direito subsidiário”, que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.
Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista na lei por uma contraordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 379º, nº 1, al. a), do CPP, para as decisões condenatórias.
Na verdade, analisada a decisão administrativa constante dos presentes autos, em momento algum é dado como facto provado ou facto não provado o elemento subjetivo da contraordenação imputada ao recorrente.
Limita-se assim a entidade administrativa, em sede de medida da coima, em concluir pela desatenção, irrefletida inobservância e manifesta falta de cuidado e de prudência do arguido.
E fá-lo por exclusão de uma atuação dolosa.
A responsabilidade estradal não pode resultar de uma exclusão de partes, nem da análise dos elementos objetivos. Na verdade não existe nenhum ato de inquérito, nenhum ato de instrução, que pudesse dele inferir-se que o recorrente agiu com dolo ou negligência. Os únicos factos provados são os constantes do auto de notícia, por fazer fé, os elementos subjetivos extraem-se daqueles e na decisão pondera-se um registo individual de condutor que não constitui matéria de facto provada, para dele dar uma aparência de observância do disposto no artigo 139º do Código da Estrada.
No caso, a decisão administrativa recorrida é omissa quanto a factos absolutamente essenciais, concretamente aqueles que, alegadamente, estabelecem o elemento subjetivo (negligência), na medida em que remete exclusivamente para os factos indicados no auto de contraordenação e dele nada consta que esteja, direta ou indiretamente, relacionado com a eventual desatenção, irrefletida inobservância e manifesta falta de cuidado e de prudência do recorrente, na condução.
Dessa omissão decorre que a referência a uma alegada atuação negligente consubstancia uma mera conclusão, baseada em presunção que a lei não permite.
A ausência de tais factos impede assim a ponderação dos mesmos na medida da coima a aplicar, não se percebendo, por isso, por que motivo foi aplicada tal coima ou sanção acessória.
Não existe, assim, suporte de facto na decisão da entidade administrativa, que permita aplicar aquela coima em concreto.
A sanção para o incumprimento das alíneas b) e c) do nº 1 do referido artigo 58º do RGCO é a nulidade da decisão impugnada, nos termos dos artigos 283º, nº 3, 374º, nº 2, e 379º, nº 1, alínea a), do CPP, aplicável subsidiariamente.
Decisão:
Face ao exposto, julgo o recurso procedente e, em consequência, determino a nulidade da decisão proferida.
Remeta os autos à entidade administrativa, a fim de suprir as nulidades invocadas.
Sem custas.

3 - Apreciação do mérito do recurso.
Há que analisar se a decisão da autoridade administrativa enferma da nulidade apontada pela Exmª Juíza do tribunal a quo (ou de qualquer outra nulidade).

Cumpre salientar, desde logo, como bem se escreve no Ac. da R.P. de 20-10-1999, (proferido no recurso nº 10619, e citado por Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contraordenações - Anotações ao Regime Geral”, 4ª ed., 2007, anotação ao artigo 58º, pág. 427), que “as exigências de fundamentação da decisão da autoridade administrativa - no respeitante às contraordenações - hão de ser menos profundas que as relativas aos processos criminais; não se podem transformar as decisões das autoridades administrativas em verdadeiras sentenças criminais”.

Depois, cabe ainda assinalar que, como é óbvio (e tal não contraria o referido aresto), as decisões das autoridades administrativas devem conter os factos que fundamentam a aplicação das coimas aos arguidos.

Ora, feitos estes considerandos iniciais, e analisada a decisão da autoridade administrativa em causa nestes autos, constatamos, sem dificuldade, que nada há a apontar à validade de tal decisão, estando nela, por um lado, inequivocamente narrados os factos imputados ao arguido (que integram os elementos objetivos e subjetivos da infração cometida), e sendo certo, por outro lado, que os factos, na sua integralidade (os atinentes à atuação dolosa ou negligente do arguido), não têm de constar do auto de notícia (mas apenas, isso sim, da própria decisão administrativa) - o auto de notícia não corresponde, no procedimento por contraordenação, a qualquer acusação -.

Acresce que, a nosso ver, não foi postergado qualquer direito de defesa do arguido (tal direito não é exercido, sem mais, perante o mero auto de notícia), nem está deficientemente fundamentada (em qualquer vertente que seja) a decisão administrativa em questão.

Senão vejamos.
O artigo 8º, nº 1, do RGCO, estabelece, para o direito de mera ordenação social, um princípio da culpa, em termos idênticos aos previstos no artigo 13º, nº 1, do Código Penal, para o direito criminal, segundo o qual um facto só é punível quando praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.

Os conceitos de dolo e de negligência, válidos para o direito das contraordenações, são os definidos pelos artigos 14º e 15º do Código Penal, por força do disposto no artigo 32º do RGCO, que manda aplicar, subsidiariamente, as normas desse mesmo diploma legal na definição do regime substantivo daquelas infrações.

Dispõe o artigo 15º do Código Penal:
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou

b) Não chegar sequer a representar a possibilidade da realização do facto”.

A infração pela qual o arguido foi condenado estabelece a punibilidade a título de negligência.

A decisão da autoridade administrativa sancionou o arguido com base na moldura cominada à contraordenação em causa, quando praticada com negligência.

A peça processual que, no procedimento por contraordenação, se encontra vocacionada para, em termos práticos, exercer a função de uma acusação, é a decisão administrativa condenatória, caso o processo deva chegar à fase judicial, conforme decorre, claramente, do disposto no artigo 62º, nº 1, do RGCO.

Analisados os elementos dos autos, verificamos, em primeiro lugar, que decisão da autoridade administrativa descreve, com rigor e pormenor, a conduta naturalística imputada ao arguido, tipifica a concreta infração ao direito de mera ordenação social praticada, descreve as sanções que lhe são abstratamente cominadas e explicita o respetivo fundamento normativo.

Em segundo lugar, quanto ao elemento subjetivo da infração cometida (pedra de toque da decisão proferida pelo tribunal a quo), a decisão da autoridade administrativa diz o seguinte: “com a conduta descrita, o arguido revelou desatenção e irrefletida inobservância das normas de direito rodoviário, atuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e que no momento se impunham (…), bem sabendo que a conduta descrita nos autos é proibida e sancionada pela lei contraordenacional”.

Por último, a decisão da autoridade administrativa, expressamente, conclui, após a enunciação dos referidos factos, que “a infração foi praticada a título de negligência (…), porquanto o arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado”.

Assim sendo, e a nosso ver, a imputação da contraordenação, pela qual foi condenado o arguido, não se mostra inquinada da nulidade encontrada na decisão revidenda.

Aliás, e com o devido respeito, na decisão sub judice é feita uma interpretação incorreta (ou, pelo menos, incompleta) da norma prevista no artigo 58º, nº 1, do RGCO.

É que, conforme decorre do disposto no acima citado artigo 62º, nº 1, do RGCO, havendo impugnação judicial da decisão administrativa, esta vale como acusação, no momento em que o Ministério Público torna os autos presentes ao juiz.

Ou seja, não é inteiramente correto determinar se a decisão da autoridade administrativa satisfaz (ou não) todos os requisitos de uma sentença condenatória (nomeadamente se fundamentou devidamente a decisão sobre a matéria de facto), quando é certo que, essa decisão, existindo impugnação judicial da mesma (como sucede in casu), não vale, no processo (até ser judicialmente confirmada), como decisão condenatória, mas tão-só como acusação.

Daí o acima aludido (quando iniciámos a apreciação do mérito do recurso e citámos o acórdão da R.P. de 20-10-1999) regime menos rigoroso e menos exigente da decisão condenatória da autoridade administrativa, quando comparado com os requisitos que a lei prescreve para a sentença condenatória penal.

Como bem se escreve na motivação do recurso (cfr. conclusão 6ª extraída da motivação), “resulta da interpretação conjugada dos referidos normativos, previstos nos artigos 58º, nº 1, e 62º, nº 1, do RGCO, um regime menos rigoroso da decisão condenatória da entidade administrativa, quando comparado com as exigências que a lei prescreve para a sentença penal. Havendo impugnação judicial, essencial é que seja submetida à apreciação do julgador uma peça processual que satisfaça os requisitos mínimos duma acusação: identifique o arguido; narre os factos imputados (dessa forma delimitando o objeto do processo); e indique as disposições legais violadas, as sanções aplicáveis e as provas - cfr. art.º 283º, nº 3, do CPP - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.11.2014, processo 720/13.0TBFLG.G1”.

Lida (e relida) a decisão administrativa proferida no âmbito destes autos, verifica-se que todos os pressupostos previstos no artigo 58º, nº 1, do RGCO, dela constam, com inteira suficiência.

Nomeadamente, na descrição dos factos imputados estão bem descritos os elementos subjetivos da infração cometida pelo arguido (integradores duma sua atuação negligente) - como acima se deixou assinalado -, estão indicadas as normas segundo as quais se pune (referenciando-se expressamente as normas que punem a infração praticada por negligência), bem como, por outro lado, a decisão está devidamente fundamentada, existindo referência clara aos meios de prova e aos aspetos que serviram para determinar a medida concreta da sanção aplicada (o auto de notícia, o Registo Individual do Condutor respeitante ao arguido, e o pagamento da coima respetiva na data dos factos).

Acresce que foram garantidos os direitos de defesa do arguido, ao longo de todo o processo, pois que o arguido foi notificado da infração no próprio dia dos factos, pagou o valor da coima pelo mínimo, e foi regularmente notificado da decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa (decisão que, aliás, impugnou judicialmente, impugnação que foi admitida pelo tribunal de primeira instância).

Em suma: a decisão da autoridade administrativa não padece de qualquer nulidade, nomeadamente da nulidade que lhe vem assacada na decisão revidenda.

Por conseguinte, o recurso interposto pelo Ministério Público é totalmente de proceder, sendo de revogar a decisão da primeira instância e sendo de manter a decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa.

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a decisão do tribunal a quo e mantendo-se, nos seus precisos termos, a decisão proferida pela ANSR (o arguido L. fica condenado, pela prática da contraordenação aí mencionada, na coima de € 120 e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 30 dias - suspensa na sua execução pelo período de 180 dias -), julgando-se, assim, totalmente improcedente a impugnação judicial de tal decisão administrativa levada a cabo pelo arguido.

Sem tributação.
*
Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 21 de junho de 2016

João Manuel Monteiro Amaro

Maria Filomena de Paula Soares