Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
419/21.3JAFAR.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. É errada a ideia de haver uma espécie de paridade aritmética entre o depoimento de uma testemunha (da vítima) e as declarações do arguido, de tal forma que se um diz A e outro diz B, não há prova! Desde logo porque as declarações não se equivalem. Não se encontrando a prova e, processo penal espartilhada em tal aritmética.

II. Desde logo, as testemunhas estão obrigadas a depor e a dizer a verdade (artigo 132.º CPP); mas o arguido, sendo presumivelmente inocente, tem o direito de não declarar e de não responder a quaisquer perguntas, sem que isso o possa desfavorecer (artigos 61.º, § 1.º, al. d) e 343.º CPP e 150.º CPC).

III. O que deveras releva em matéria de processo penal é a apreciação e valoração da prova (de todas as provas) feita livremente pelos membros do tribunal (pelos juízes), segundo as regras da lógica e das máximas da experiência comum (id quod plerumque accidit), como pressupõe o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127.º do CPP.

IV. Este princípio de liberdade de apreciação e valoração das provas (de todas as provas) como meio para a descoberta da verdade, não é coisa bizarra ou excrescente, sendo antes, uma aquisição da civilização ocidental, com a qual se superou a amarra paradigmática da prova legal ou tarifada.

V. Para tanto, como reclama o princípio democrático, o tribunal identificará, detalhará e concretizará, fundadamente, as características das provas a que atendeu e como delas inferiu o juízo que lhe permitiu confirmar ou infirmar determinado quadro factológico.

Decisão Texto Integral: I – Relatório
a) No …º Juízo (1) Central Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum e competência do tribunal coletivo de AA, nascido a … de 1981, com os demais sinais dos autos, a quem se imputou a prática, como autor, de um crime de violação agravada, previsto no artigo 164.º, § 2.º, als. a) e b), com referência ao artigo 177.º, § 1.º, al. b) e § 6.º do Código Penal (CP).

A final, o tribunal coletivo proferiu acórdão, pelo qual condenou o arguido pela prática de um crime de violação agravado, previsto no artigo 164.º, § 2.º, al. a), com referência ao artigo 177.º, § 1.º, al. a) CP, na pena de seis anos de prisão; mais o condenando na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de seis anos (artigo 69.º-B, § 2.º CP); também na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de seis anos (artigo 69.º-C, § 2.º CP); na pena acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais, pelo período de seis anos (artigo 69.º-C, § 3.º CP). E no pagamento à ofendida da quantia de 7 500€, a título de danos não patrimoniais causados, oficiosamente determinada, nos termos previstos no artigo 16.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro e 82.º-A CPP).

b) Inconformado com esta decisão, dela recorre o arguido, rematando a motivação do seu recurso com as seguintes conclusões (transcrição):

«A) Através do presente Recurso vem o Arguido impugnar a decisão recorrida por verificação de erro notório na apreciação da matéria de facto, nos termos do disposto na al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP e pela inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do artigo 127.º do CPP levada a cabo pelo Tribunal a quo;

B) Impugnam-se os factos contantes em 7.º a 24.º e 27.º. a 30.º. da matéria dada como provada no acórdão recorrido;

C) O Tribunal a quo suportou a prova dos factos enunciados supra única e exclusivamente no teor das declarações da menor, mesmo quando estas não vão de encontro às mais elementares regras da experiência comum, ignorando por completo qualquer circunstância factual que pudesse descredibilizar ou colocar em causa a sua versão;

D) Das declarações de toda a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento não se retira qualquer ilação que credibilize as declarações da menor em detrimento das declarações do Arguido – basta atentar, para o efeito, que nenhuma das testemunhas presenciou os alegados factos;

E) Nenhuma da prova documental que o Tribunal considerou para a condenação do arguido prova ou sequer indicia a prática dos factos pelo mesmo;

F) O Tribunal a quo parte de uma premissa que considerou como válida e verdadeira, desprovida de qualquer raciocínio lógico que a sustente: de que a menor está a dizer a verdade. Depois, a partir daí, a partir dessa sua convicção subjetiva, faz florescer toda a restante prova produzida, analisando-a sempre à luz daquilo que foi declarado pela menor;

G) Ao depoimento da menor lhe não podia ter sido dada a credibilidade que mereceu, por concorrerem ao caso diversas circunstâncias - todas elas devidamente enunciadas na presente motivação – que abalam fortemente o seu testemunho;

H) O não uso de regras de experiência comum quando elas se impõem gera o vício de erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP;

I) E o inverso também acontece: i.e., há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá por provada determinada factualidade com base numa regra que não é de experiência comum, mas sim correspondentemente a um convencimento subjetivo do julgador, sem suporte lógico e racional;

J) O Tribunal a quo fez uma interpretação e aplicação do princípio da livre convicção – enquanto corolário da livre apreciação da prova - contrária aos princípios processuais penais consagrados na Constituição da República Portuguesa – nomeadamente, entre muitos outros, à garantia constitucional a um processo justo e equitativo consagrada no artigo 20.º e ao princípio da presunção de inocência consagrado no n.º 2 do artigo 32º, todos da CRP;

K) A análise da prova produzida em audiência de julgamento deverá ocorrer de forma objetiva e racional, e não baseada em subjetivismos psicológicos do julgador sem qualquer apoio empírico;

L) Impõe-se, portanto, a absolvição do Arguido, dada a ausência total de prova que sustente a prática, por este, dos factos pelos quais vem condenado.

M) Sem prescindir do que se disse, e caso assim não se entendesse, o acórdão recorrido sempre seria nulo por ausência de apreciação crítica das provas que serviram para formar a convicção do tribunal;

N) O acórdão recorrido limita-se, sem mais, a aderir à versão apresentada pela menor. Nada dizendo quanto à versão dos factos apresentada pelo Arguido;

O) Impunha-se, em sede de exame crítico das provas, a que se refere a última parte do n.º 2 do artigo 374.º do CPP, que se explicitasse de modo concreto, objetivo, lógico e racional, as razões que levaram o Tribunal a descredibilizar as declarações do Arguido;

P) Assim sendo, e não se aderindo ao acima explicitado, o que só por mero dever de patrocínio se consigna, sempre haveria uma nulidade do acórdão recorrido, por violação do disposto no mencionado artigo 374.º n.º 2 e sentenciado na primeira parte da al. a) do n.º 2 do artigo 379.º, todos do CPP;

Não obstante,

Q) À cautela e por mero dever de patrocínio, pois que claro ficou que não existe qualquer prova cabalmente capaz de consubstanciar um juízo de condenação do Arguido, sempre se diria ser de aplicar uma pena mais reduzida ao Recorrente;

R) Para o efeito, revelarão todas as circunstâncias relativas às condições pessoais do Arguido, melhor descritas nos pontos 33. a 43 dos factos provados;

S) Motivo pela qual o Recorrente, não sendo absolvido por V.Exas., o que, uma vez mais, só por mero dever de patrocínio se consigna, pugna por uma medida concreta da pena mais adequada aos circunstancialismos que o caso concreto reclama, nomeadamente uma pena igual ao limite mínimo legal, sendo suspensa na sua execução.

Nestes temos, e nos demais de Direito que os Venerandos Desembargadores da Relação de Évora suprirão, deverá o presente recurso obter provimento e declarar-se, por clara ausência de prova, não provados os factos contantes em 7.º a 24.º e 27.º. a 30.º. do acórdão recorrido e, em consequência, absolver-se o Arguido da prática do crime pelo qual veio condenado assim como do inerente pedido de indemnização e penas acessórias; assim se conhecendo da inconstitucionalidade que se suscitou e/ou da respetiva nulidade;

Ou, caso assim não se entenda, se considere alterada a medida concreta da pena aplicada ao Recorrente, diminuindos e os limites da mesma e suspendendo-se a sua execução.»

c) Admitido o recurso o Ministério Público respondeu-lhe, pugnando pela sua improcedência, referindo em suma que:

«6. (…) entende o Ministério Público, ao invés do que sustenta o ora recorrente, que o encadeamento da dinâmica dos factos trazido pelos elementos de prova produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento fundamentam de forma segura e inabalável os supra aludidos pontos da matéria de facto dados como assentes.

7. Desde logo, o apuramento da factualidade descrita nos aludidos pontos da matéria de facto dada como provada resultou da análise crítica e conjugada dos diversos elementos probatórios, os quais foram considerados pelo Tribunal a quo de forma correta, em função das regras da experiência comum, assumindo grande relevância para o apuramento da verdade material.

8. Com efeito, o Tribunal a quo valorou, assertivamente, as declarações da ofendida BB, sendo as mesmas consentâneas com as regras da experiência comum face à sua assertividade ao nível da exata sucessão de factos ocorridos (sic) e com os depoimentos prestados pelas testemunhas CC e DD, sendo esta a amiga a quem aquela logo telefonou após a ocorrência dos factos.

9. Para esse efeito, o Tribunal a quo fundamentou, exaustiva e assertivamente, a sua convicção, com recurso às características intrínsecas das declarações da ofendida BB, que se revelaram, por recurso à oralidade e imediação, como pormenorizadas, emocionadas, objetivas e sem qualquer discrepância ou pormenor que indicasse a existência de fabulação.

10. Por seu turno, o Tribunal a quo igualmente valorou, assertivamente, os vários elementos documentais constantes dos autos, designadamente conjugando com o teor dos registos clínicos respeitantes à deslocação da ofendida BB à pediatria do Hospital de …, em que foi atendida no próprio dia dos factos, resultando do relatório as lesões que apresentava na região vulvar tendo sido observada horas após os factos – fls. 195 a 198 – o relatório da perícia de natureza sexual de fls. 384 a 387, onde se conclui que: “Foram apresentados vestígios de agressão física compatíveis com agressão sexual”, em face das lesões e dos locais onde as mesmas se encontravam - a saber: na região vulvar uma equimose roxa interessando a face interna do grande lábio esquerdo; laceração superficial linear na fossa vestibular, à esquerda da fúrcula posterior (no mesmo lado da equimose, na parte inferior interna onde se unem os grandes lábios) e na fúrcula posterior e respectiva fossa vestibular edema ruboriza -, e pelo teor do relatório pericial biológica de fls. 329 a 330, do qual resulta nomeadamente que foi positivo o teste para identificação de sémen efectuado a uma mancha existente na colcha da cama, é idêntico ao do DNA extraído da zaragatoa bucal colhida ao arguido (sendo compatível com a descrição dos factos feita pela BB) – máxime fls. 105 do relatório de exame pericial de fls. 95 a 106. É possível aventar explicações alternativas para a existência de sémen na colcha da cama, mas já assim não é quando aquela existência é conjugada com o relatado pela menor e as lesões por esta apresentadas, pois que a existência do sémen é ali verificado em contexto coerente com o referido relato e lesões (sic).

11. Assim, o Tribunal a quo, conjugando e valorando esses elementos probatórios, em função das regras da experiência comum, concluiu, com verosimilhança e segurança inabalável, que ora recorrente perpetrou a factualidade constante dos pontos 7º a 24º e 27º a 30º do aresto em crise.

12. Por conseguinte, o Tribunal a quo, ao valorar assertivamente os elementos de prova constantes dos autos e bem assim aqueloutros produzidos no decurso da audiência de discussão e julgamento, fixou, naturalmente, a factualidade que ora é colocada em crise pelo ora recorrente, fundamentando a sua convicção de forma exaustiva, objetiva e consentânea com as mais elementares regras da experiência comum.

13. Em suma, pugna-se pela inexistência de qualquer erro na apreciação e na valoração da prova pelo Tribunal a quo, não havendo qualquer reparo a fazer nessa matéria, sendo igualmente certo que foram realizadas todas as diligências necessárias para a cabal descoberta da verdade material.

14. Por conseguinte, o Tribunal a quo não merece qualquer reparo nessa matéria (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 30 de Maio de 2012, relatado pelo Ex.º Juiz Desembargador, Dr.º Orlando Gonçalves, publicado na internet em www.dgsi.pt).

15. Em sede de determinação concreta da pena, o aresto em crise considerou, assertivamente, as consequências da conduta do ora recorrente e evidenciou, fundamentadamente, as especiais exigências de prevenção geral e especial.

16. Para tanto, o Tribunal a quo ainda atendeu, acertadamente, à necessidade de consciencialização do ora recorrente da gravidade da sua conduta e às naturais consequências que essa mesma conduta provocou à ofendida.

18. Por conseguinte, Tribunal a quo aplicou uma pena ajustada face aos comandos consagrados nos artigos 40º e 71º do Código Penal.

Por conseguinte, o recurso interposto não deverá de merecer provimento e, consequentemente, ser mantido o douto Acórdão nos seus precisos termos.»

d) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância secundou, reforçando, a posição já assumida na resposta ao recurso elaborada junto do tribunal recorrido.

e) Cumprido o disposto no artigo 417.º, § 2.º CPP, o recorrente nada acrescentou.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1.Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recursos é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2). As questões a examinar, pela ordem racionalmente pressuposta na lei a adjetiva, são as seguintes:

i Nulidade do acórdão por preterição do exame crítico das provas; ii. Erro de julgamento da questão de facto; ii. a) Interpretação inconstitucional do artigo 127.º CPP (livre apreciação da prova); iii. Vício da decisão recorrida (erro notório na apreciação da prova); iv. Erro de julgamento de direito – medida da pena

2. No acórdão recorrido o tribunal a quo deu como provado e não provado o seguinte acervo factológico, que se motivaram do modo seguinte:

«1. O arguido AA viveu com CC, como se de marido e mulher se tratassem, desde data não concretamente apurada dos anos de 2014 ou 2015 até ao final de dezembro de 2021, residindo na residência sita em …, em …, ….

2. O arguido e CC são pais de EE, nascida em … de 2019.

3. Com o arguido e CC residiam BB, nascida em … de 2005, e FF, nascido em … de 2008, filhos de CC.

4. Durante o período mencionado em 1., o arguido tratava BB como filha e esta tratava-o como pai.

5. No dia 27 de dezembro de 2021, cerca das 22 horas, BB encontrava-se deitada na cama do quarto do arguido AA e de CC, com a sua irmã EE, a ver televisão, enquanto o irmão FF estava no seu quarto.

6. A hora não concretamente apurada, após as 22 horas e 40 minutos, quando CC havia saído para o trabalho, o arguido dirigiu-se ao quarto onde se encontrava BB e EE e deitou-se na cama, ficando EE à sua esquerda e BB imediatamente a seguir a EE que, entretanto, adormecera.

7. O arguido e BB viram pelo menos um episódio da série “…”, quando a dado passo, a hora não concretamente apurada, mas já após as 00 horas do dia 28 de dezembro de 2021, o arguido levantou-se da cama, saiu do quarto, tendo regressado em seguida ao mesmo e fechado à chave a porta atrás de si.

8. O arguido voltou a deitar-se na cama, na mesma posição acima descrita em 6. e, agarrou, com força, na mão de BB e colocou-a no interior dos seus boxers, em contacto com o seu pénis.

9. BB tentou retirar a mão do interior dos boxers mas o arguido segurou-a.

10. Após o arguido introduziu a mão direita dentro das cuecas de BB e tocou-lhe na vulva.

11. Durante o descrito em 10. BB pediu ao arguido para que este parasse.

12. A dado passo, o arguido levantou-se da cama e BB levantou-se também, para sair do quarto.

13. Nessa altura o arguido agarrou-a e atirou-a para cima da cama, ficando a mesma deitada de barriga para baixo.

14. Nessa sequência o arguido despiu-se e retirou as calças e as cuecas de BB, puxando o corpo daquela mais para baixo e agarrando-a nos braços, pouco acima dos pulsos, fazendo força.

15. Após, o arguido introduziu o pénis ereto na vagina de BB, realizando movimentos de vai e vem, friccionando, por várias vezes, provocando dor a esta última, por tempo não concretamente apurado.

16. Nas circunstâncias em 14. e 15. BB pediu ao arguido para parar.

17. De seguida, quando o arguido se levantou, BB ergueu-se visando sair do quarto, mas foi agarrada pelo arguido que a colocou de barriga para cima na cama.

18. Nessa posição, o arguido colocou a sua boca na vulva e a língua na vagina de BB.

19. Após, o arguido sentou BB na cama, agarrou na sua cabeça e introduziu o seu pénis na boca daquela, forçando a cabeça de BB em movimentos para cima e para baixo, durante cerca de 2 a 5 minutos, até ejacular.

20. Depois o arguido limpou o pénis com uma toalhita, vestiu-se e saiu do quarto.

21. Por via do descrito BB sentiu dores e apresentava na região vulvar uma equimose roxa interessando a face interna do grande lábio esquerdo, laceração superficial linear na fossa vestibular, à esquerda da fúrcula posterior (no mesmo lado da equimose, na parte inferior interna onde se unem os grandes lábios) e na fúrcula posterior e respetiva fossa vestibular edema ruborizado.

22. Ao agir da forma descrita, o arguido atuou deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de, com recurso à força física, constranger BB a sofrer, contra a sua vontade, introdução da língua e do pénis daquele na boca e na vagina, o que previu e quis.

23. O arguido sabia e quis praticar os factos na cama onde, naquele momento, se encontrava a dormir a sua filha de dois anos de idade EE, realizando toda a conduta supra descrita na presença desta.

24. Atuou o arguido sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei, mas ainda assim não se coibiu de a praticar.

25. Na madrugada e manhã do dia 28 de Dezembro de 2021 BB estava nervosa e transtornada.

26. BB era considerada por aqueles que com ela privavam como pessoa calma e reservada.

27. Até à data não tinha mantido relações sexuais.

28. Depois dos factos tornou-se ainda mais reservada.

29. Ficou revoltada com o sucedido, o que se mantém.

30. Culpabiliza a mãe por não ter acreditado logo após ter tomado conhecimento dos factos.

31. BB, no 2.º e 3.º períodos do ano lectivo 2021/2022, com excepção da classificação da disciplina de Física e Química A cuja notação manteve, baixou as notas.

32. Está atualmente a estudar no ….

Das condições pessoais do arguido

33. O núcleo familiar, descrito em 3., residia em habitação arrendada, de tipologia T3, inserida em meio rural e com condições de habitabilidade. Atualmente, o arguido integra o agregado familiar da mãe, onde também vive um sobrinho, de 12 anos de idade.

34. O arguido desempenhava funções de …, de 2.ª a 6.ª feira, numa residência de 3.ª idade, auferindo mensalmente cerca de 710€. A companheira desempenhava as mesmas funções, na mesma instituição, mas por turnos e folgas rotativas, o que lhe proporcionava uma melhoria salarial.

35. Os rendimentos do agregado eram provenientes do salário do arguido e da companheira, que totalizava um valor na ordem dos 1500€. Pagavam como contrapartida mensal da casa em que habitavam 400€.

36. O processo de crescimento/desenvolvimento do arguido decorreu no agregado familiar de origem, do qual faziam parte os progenitores e sete irmãos germanos, tendo este mais cinco irmãos consanguíneos de um anterior relacionamento do progenitor. A dinâmica familiar era caracterizada pela coesão e entreajuda. A manutenção económica do núcleo familiar não apresentava constrangimentos significativos, dado que o progenitor do arguido era empresário da restauração/café, e a progenitora desempenhava funções em conjunto com o progenitor.

37. O arguido iniciou a atividade escolar em idade convencionada, sendo o seu percurso avaliado como normativo até à conclusão do 9.º ano de escolaridade, período em que começou a registar algum desinteresse pelas atividades escolares, culminando no abandono escolar com cerca de 17 anos de idade, por opção própria. Após o abandono escolar, integrou o mercado laboral, obtendo colocação na área da refrigeração, onde se manteve até incorporar as Forças Armadas. Enquanto militar realizou missões em vários países, como …,, durante seis anos.

38. Com cerca de 20 anos de idade, o arguido iniciou um relacionamento que manteve durante seis anos e do qual tem dois filhos, atualmente com 18 e 20 anos de idade, com os quais mantêm um relacionamento próximo e contribui para o sustento dos mesmos, pagando mensalmente cerca de 150€ a título de pensão de alimentos.

39. Após a passagem à disponibilidade, o arguido viria a reintegrar profissionalmente a atividade na área de …, desempenhando funções em vários países e tendo emigrado para a …. Durante este período o arguido iniciou a relação com a companheira CC, o que motivou o seu regresso a Portugal, vindo a integrar o núcleo familiar da mesma, constituído por esta e dois filhos da mesma (BB e FF), com quem tem uma filha. A rutura desta relação ocorreu na sequência da instauração do presente processo.

40. No âmbito da medida de coação em curso, iniciada em 17 de janeiro de 2022, tem cumprido na globalidade.

41. O arguido em abstrato reconhece a noção da ilicitude dos factos pelos quais vem acusado, reconhecendo a existência de vítimas, bem como os danos e prejuízos para as mesmas. Vivencia o presente contacto com o sistema da administração da justiça penal com elevada ansiedade e inquietação, mantendo uma postura autocentrada e temendo pelos efeitos no caso de vir a ser condenado.

42. Ao nível familiar denota-se o suporte e solidariedade prestados ao arguido, quer progenitora, mas também por outros elementos da sua família alargada.

Dos antecedentes criminais do arguido

43. Não tem antecedentes criminais.

2. Factos não provados

Não se logrou provar que:

a. Para além do descrito nos pontos 8. e 9. dos factos provados, o arguido realizasse movimentos de massagem, forçando a mão de BB;

b. O arguido colocasse os seus dedos na vagina, massajando a zona do clitóris e de seguida, introduzisse os seus dedos no interior da vagina de BB, provocando-lhe dor;

c. O descrito em 16. durasse cerca de 20 a 30 minutos;

d. Na sequência do descrito em 15., o arguido voltasse a introduzir os dedos no interior da vagina de BB.

3. Motivação da decisão de facto

A convicção do tribunal formou-se com base na apreciação crítica de toda a prova produzida em audiência de julgamento, analisada de acordo as regras normais e lógicas da experiência comum relacionadas com o tipo de factos em causa nos autos, consideradas estas no âmbito do princípio da livre apreciação da prova estabelecido no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

É sabido a prática do ilícito ou ilícitos contra a autodeterminação e liberdade sexual, são cometidos longe da presença de terceiros. Sobre a matéria irá socorrer-se a signatária das considerações expendidas pelo Juiz Desembargador Cruz Bucho, produzidas no âmbito do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12 de Abril de 2010 (disponível da para consulta em www.dgsi.pt) uma vez que de forma absolutamente cristalina afirma: “I - Em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais. II- A experiência científica nesta área ensina que as vítimas de crimes sexuais tendem a não verbalizar o sucedido remetendo-se a um penoso silêncio, recatando a traumática experiência e quando a revelam fazem-no de forma sentida e muitas das vezes com retalhos de memória seletivos.”.

Na verdade, minimizar a validade das declarações prestadas por vítimas conduziria à impunidade de muitos ilícitos que, em regra, são perpetrados de forma clandestina e secreta.

Donde, em função destas especialidades, quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, opostas, em maior ou menor medida, ao do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.

Aliás, como sublinha Cruz Bucho “um único testemunho, ainda que da vítima e inclusivamente de uma criança, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram as seguintes notas: a) ausência de incredibilidade subjetiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade ; b) verosimilhança: o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objetivo que o dotem de aptidão probatória e c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (cfr. v.g. Antonio Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, págs.181-187, J.J. Bégué Lezaún, Delitos Contra la Libertad e Indemnidad Sexuales, Barcelona, 1999, pág. 246 e seguintes, Miguel Angel Montañes Pardo, La Presunción de Inocencia-Análisis Doctrinal e Jurisprudencial, Pamplona, 1999, pág.180-182 e José Manuel Alcaide González, Guia Prática de la Prueba en el Processo Penal, Valencia, 1999, pág.133-136).”

Posto isto.

O arguido referiu que viveu, até ter sido detido, com CC, durante 7 anos, como se de marido e mulher se tratassem, esclarecendo a relação com os filhos da companheira. Deu conta que BB era uma menina reservada, razão pela qual manteve uma relação de maior distanciamento daquela que tinha com o irmão dela. Tais declarações são concordantes no essencial com as prestadas por CC, no que concerne aos pontos 1., 3. e 4.

Referiu que no dia em questão depois da mulher ter saído para trabalhar, ele e a BB viram um episódio e meio de uma série, no seu quarto (posicionados como se encontra vertido no ponto 6), pois era o único local na residência onde existia o acesso ao serviço de streaming NETFLIX) e depois ele foi fumar e ela foi para o quarto. De madrugada, a mulher telefonou-lhe a dizer que a BB dizia que ele a tinha violado. De seguida, ele tentou falar a BB, mas esta não abriu a porta do quarto, apesar dos pedidos dele e da mãe, através do telemóvel.

Negou de forma veemente a prática dos factos.

*

Para convicção do decidido nos factos descritos de 4., 5. e 6. a 20. o tribunal funda-se essencialmente nas declarações circunstanciadas, claras e impressivas de BB (as quais se encontram também em suporte audiovisual), que descreveu os factos que consigo se passaram, explicando como a sequência dos mesmos, desde que a mãe saiu para trabalhar, tendo deposto de forma que se afigurou sincera, obviamente tendo presente que a forma como depôs e as suas próprias perceções e memórias estavam necessariamente influenciadas pelo abalo que os factos lhe causaram, até tendo presente a sua idade (o que notório na perceção que tem do tempo de duração da cópula – razão pela qual se considerou tal factualidade como não provada).

A menor foi assertiva ao nível da exata sucessão de factos ocorridos.

Note-se que a credibilidade do seu depoimento foi abalizada pelos depoimentos da mãe CC e da testemunha DD, amiga a quem aquela telefonou imediatamente após a ocorrência dos factos. A forma como a testemunha BB reagiu, fechando-se no quarto, telefonando à amiga, DD, a quem contou ter sido violada, falando com o pai daquela (o qual ela julgava ser polícia) e depois seguindo as recomendações por aquele fornecidas (telefonando para o número 112, cumprindo a orientação de se manter fechada à chave, o que fez, mesmo após insistência do arguido e quando através do telefone a mãe lhe pediu para abrir).

Ademais e para além do já referido o depoimento de BB mostra-se credibilizado pelo teor dos registos clínicos respeitantes à sua deslocação à pediatria do Hospital de …, no mesmo dia tendo sido examinada – entrada nos serviços de urgência pelas 6 horas e 14 minutos - resultando do relatório as lesões que apresentava na região vulvar tendo sido observada horas após os factos – fls. 195 a 198 – o relatório da perícia de natureza sexual de fls. 384 a 387, onde se conclui que: “Foram apresentados vestígios de agressão física compatíveis com agressão sexual”, em face das lesões e dos locais onde as mesmas se encontravam - a saber: na região vulvar uma equimose roxa interessando a face interna do grande lábio esquerdo; laceração superficial linear na fossa vestibular, à esquerda da fúrcula posterior (no mesmo lado da equimose, na parte inferior interna onde se unem os grandes lábios) e na fúrcula posterior e respetiva fossa vestibular edema ruboriza -, e pelo teor do relatório pericial biológica de fls. 329 a 330, do qual resulta nomeadamente que foi positivo o teste para identificação de sémen efetuado a uma mancha existente na colcha da cama, é idêntico ao do DNA extraído da zaragatoa bucal colhida ao arguido (sendo compatível com a descrição dos factos feita pela Iara Ruivinho) – máxime fls. 105 do relatório de exame pericial de fls. 95 a 106. É possível aventar explicações alternativas para a existência de sémen na colcha da cama, mas já assim não é quando aquela existência é conjugada com o relatado pela menor e as lesões por esta apresentadas, pois que a existência do sémen é ali verificado em contexto coerente com o referido relato e lesões.

O relatório sustenta o descrito em 21.

Donde, assim analisadas as declarações da BB tendo em conta as lesões que a menor apresentava, à luz dos depoimentos de sua mãe e da testemunha referida, foi possível concluir pela veracidade do mesmo no essencial (descontando alguns pormenores cuja perceção estava naturalmente – por força do abalo que a menor sofreu – amplificada pela forma como a memória da vítima fixou os factos, no que tange, por exemplo quanto à duração), permitindo o apuramento da descrição dos factos que ficaram a constar da matéria de facto e da forma que aí ficaram a constar, e nomeadamente no que tange à sequência factual, não demonstrando qualquer sombra de dúvida em todas as questões que lhe foram sendo colocadas para se aferir da veracidade ou não dessa mesma certeza.

Por outro lado, os sentimentos de incredulidade da mãe e da amiga são perfeitamente compreensíveis, num primeiro momento.

No caso da mãe, CC, e como a mesma explicou, por lhe ser difícil acreditar que a pessoa com quem vivia há anos podia ter praticado tais factos (basta atentar no sofrimento que nela perpassa, quando ao lado da filha, aquela faz o relato dos factos em sede de declarações de memória futura, para alcançar a ambivalência de sentimentos que necessariamente uma situação como a descrita provoca). Por um lado, a filha e a proteção que a mesma merece, por outro o companheiro, pai de outra filha, numa relação que se vê do registo das mensagens telefónicas, é cúmplice.

No caso da amiga, por estarmos a falar de uma pessoa que ela vê como tímida, sem contactos sociais, não sendo, pois, crível que tivesse sido violada.

Note-se que são os depoimentos da mãe e da amiga que servem para alicerçar a convicção quanto à forma como a BB era vista, o que mudou, de resto, em linha com as regras da experiência comum, pois que é sabido que as experiências desta ordem causam múltiplos traumas, sendo frequente sinais e sintomas quer a nível físico, emocional, cognitivo e comportamental (sobre a questão Rute Agulhas, in “Grande Livro sobre a Violência Sexual – Compreensão, Prevenção, avaliação e intervenção”, págs. 339 a 340).

De resto, o “(…) questionamento resulta da incredulidade e do choque resultante da crença de que o abuso sexual é um acontecimento raro que só acontece em determinadas casas, com determinadas crianças (…) (in “Grande Livro sobre a Violência Sexual… ob. cit, pág. 108).

Ademais a própria perceção que o militar da Guarda Nacional Republicana, GG, que se desloca ao local, sobre o estado de nervosismo da BB, atestado horas depois, pela manhã pela Inspetora da Polícia Judiciária, HH, são de molde a corroborar o relato da menor e se encontra vertido no ponto 25.

Relativamente aos pontos 26. (nesta parte também é confirmado pelo arguido) a 30. e 32. o vertido resulta do depoimento de CC.

No que tange à evolução da avaliação da BB o tribunal considerou a informação prestada pela Escola Secundária …, em …, a fls. 498 a 500.

No que concerne ao ponto 27. resulta do depoimento da BB, que se afigurou isento, claro e verdadeiro, também nesta parte.

Considerou-se o auto de notícia de fls. 30 e 31 (no que tange à data e hora da comunicação) e que permitiram tendo presente o tempo que demoraram a chegar ao local, atestado pela testemunha militar, a circunstância da menor ter falado com a amiga, com o pai dela, com a polícia e depois a mãe e tendo presente que viram pelo menos um episódio da série que os factos tiveram de ocorrer já depois da meia noite.

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Considerou-se o assento de nascimento de fls. 131 no que tange à filiação e data de nascimento da EE.

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No que tange aos factos constantes dos pontos 22. a 24. na consideração da concreta forma de atuação do arguido assim apurada e das circunstâncias que a envolveram, à luz das regras de normalidade e experiência, e de presunção judicial daí resultante, no âmbito do aludido princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal juntamente com o facto de ter resultado dos supra referidos elementos de prova respeitantes a tal atuação do arguido e da própria postura deste em audiência de julgamento, que o mesmo é imputável e tem consciência dos atos que pratica.

Sendo de salientar que - porque ligado ao referido princípio e não a uma qualquer presunção de jure ou iuris tantum, inadmissível em direito penal - é perfeitamente aceitável recorrer às denominadas “presunções naturais” ligadas ao “princípio da normalidade ou da regra geral” e às “chamadas máximas da vida e regras da experiência” (cfr. Figueiredo Dias, cit. por Lourenço Martins, in Droga e Direito, 1994, pág. 111).

Assim também se pronunciou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/4/86, B.M.J. 356, pág. 122, onde se refere que “as ilações que as instâncias extraem dos factos constituem uma forma correta de avaliação de conduta dos réus, na medida em que sejam meras consequências ou prolongamentos daqueles factos”.

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Relativamente à situação pessoal do arguido ancorou-se o tribunal no teor do relatório social de fls. 465 a 468 e nas declarações por ele prestadas que, nesta parte, se afiguraram credíveis.

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No que tange à ausência de antecedentes criminais considerou o Tribunal o certificado de registo criminal junto aos autos.

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No que respeita aos factos não provados, tal deveu-se:

- quanto às alíneas a), b) e d), a ter resultado provado antes e apenas contrário o que ficou a constar da matéria de facto provada, da forma que aí ficou a constar, tendo em conta o que resultou das declarações prestada pela BB;

- no que toca à alínea c), a não se ter produzido prova suficiente e segura face ao que já se exarou quanto à perceção do tempo.»

3.1 Da nulidade do acórdão

Alega o recorrente que o acórdão recorrido é nulo por «ausência de apreciação crítica das provas que serviram para formar a convicção do tribunal»!

Na sua resposta, sobre este aspeto, o Ministério Público pronunciou-se de modo diametralmente oposto, dizendo: «o apuramento da factualidade descrita nos aludidos pontos da matéria de facto dada como provada resultou da análise crítica e conjugada dos diversos elementos probatórios, os quais foram considerados pelo tribunal a quo de forma correta, em função das regras da experiência comum, assumindo grande relevância para o apuramento da verdade material.»

Lembremos que a respeito dos requisitos da sentença se dispõe no § 2.º do artigo 374.º CPP que ao relatório se segue a fundamentação, a qual é constituída pela «enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»

A preterição da fundamentação com análise crítica das provas constitui nulidade, em conformidade com o que prevê o artigo 379.º, § 1.º, al. a) CPP. Esta consequência jurídica encontra esteio no dever geral de fundamentação das decisões judiciais a que se refere a Lei Fundamental no seu artigo 205.º, § 1. Tal dever é também integrante do princípio do processo equitativo, a que se reporta o § 4.º do artigo 20.º da Constituição, o 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia - todos inspirados no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Com efeito, «a exigência da fundamentação é, simultaneamente, um ato de transparência democrática do exercício da função jurisdicional, que a legitima, e das diversas garantias constitucionais da motivação decisória, com destaque para os direito da defesa, de forma a aferir-se da sua razoabilidade e a obstar a decisões arbitrárias.» (3) No que especificamente concerne ao exame crítico das provas na sentença (4), exige-se não apenas que se indiquem os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido, ou que se valorassem de determinada forma os diversos meios de prova produzidos ou apresentados em audiência.

O cumprimento deste dever legal com o esteio referido pressupõe que se motive, de modo sucinto embora, mas claro, o modo como o tribunal formou a sua convicção, de molde a permitir «ao arguido, aos demais intervenientes processuais e à comunidade em geral, uma completa compreensão das razões que motivaram a decisão proferida, das razões pelas quais só aquela decisão e não outra poderia ter sido tomada, para que demonstre, em suma, que a decisão não foi tomada de forma arbitrária» (5).

Compulsando as páginas do acórdão recorrido, designadamente nos trechos supra extratados (da motivação da decisão de facto), nele se evidencia uma fundamentação do decidido, que se não cinge à mera referência das bases probatórias, colocando em evidência a racionalidade como se conjugaram os meios de prova e porque se atribuiu mais credibilidade às declarações (da ofendida) que às do arguido, explicitando-se com meridiana clareza os juízos que permitiram, com base nas provas expressamente referidas, a seleção factológica (provada e não provada) efetuada.

É certo que é sempre possível fazer uma interpretação e uma avaliação das provas declaratórias diversa da que foi realizada pelo tribunal recorrido, sobretudo se se valorarem como boas as declarações prestadas pelo arguido (e consequentemente como falsas as declarações prestadas pela ofendida). O que se não pode é, com seriedade, dizer que o tribunal não fundamentou a sua convicção, explicando as razões pelas quais no escrutínio das provas produzidas se convenceu da verificação dos factos que considerou provados e não provados.

Termos em que este fundamento de recurso se mostra improcedente.

3.2 Erro de julgamento da questão de facto e livre apreciação da prova

Sustenta o recorrente que a conjugação das provas produzidas em audiência - mormente das declarações de BB, de sua mãe CC e do arguido - não permite julgar provados os factos dos pontos 7. a 24. e 27. a 30. dos factos julgados provados no acórdão recorrido.

O Ministério Público manifestou a sua discordância face a esta conclusão, aduzindo que, ao contrário do sustentado pelo recorrente, o sentido das provas é todo (e sempre) no sentido de corroboração das declarações de BB, as quais se mostram consentâneas com as regras da experiência comum, dada a sua assertividade com a sequência factológica narrada pela ofendida e sua conjugação com os depoimentos das testemunhas CC e DD. Estando estes por seu turno conexionados, sem contradição, com os registos clínicos do serviço de pediatria do Hospital de … (do próprio dia dos factos), o relatório da perícia sexual e sua conclusão («foram apresentados vestígios de agressão física compatíveis com agressão sexual»), o teor do relatório pericial de biologia forense, que confirma o sémen existente na colcha da cama.

Vejamos, então.

O recorrente começa por afirmar que o tribunal a quo sustentou a prova da prática dos factos pelo recorrente «única e exclusivamente nas declarações da menor, mesmo quando estas não vão de encontro às mais elementares regras da experiência comum»!

Esta afirmação não tem nenhuma aderência á realidade, sendo na verdade desmentida pela simples leitura da motivação da decisão de facto.

Contrariamente ao que também afirma o recorrente, as provas em que se estriba o acórdão recorrido, às quais se faz expressa referência na respetiva motivação da decisão de facto (supra extratada), existem mesmo e conjugam-se com normalidade, sem nenhum sobressalto lógico.

E elas são matricialmente: os depoimentos testemunhais de BB, de CC, de DD, de GG e de HH; os telefonemas realizados por BB para DD, por BB para a sua mãe e para o 112; as constatações clínicas registadas pelo serviço de pediatria do Hospital de … - no próprio dia dos factos (compatíveis com a agressão sexual denunciada) e as conclusões do relatório da perícia sexual (compatível com a agressão sexual denunciada); e o teor do relatório pericial de biologia forense relativamente à presença de sémen existente na colcha da cama onde segundo o relato da menor ocorreu a agressão sexual.

Foi da conjugação destas provas que se inferiram os factos dados como provados 7. a 24. (impugnados no presente recurso).

Está claro que todas as provas enunciadas têm um referente, que são as declarações da ofendida sobre os acontecimentos desenvolvidos na noite fatídica a que se reporta o objeto do processo. Não há como contornar essa realidade.

Certo é, como já referido, que todas as provas se conjugam, com inteira normalidade e sem qualquer sobressalto lógico, no sentido de confirmarem a sequência de acontecimentos narrados pela ofendida. A surpresa manifestada pela testemunha DD quando recebeu o telefonema da ofendida, com a notícia da agressão sexual, é uma das reações possíveis (razoável e contextualmente expectáveis). E as desconfianças iniciais da mãe da ofendida, testemunha CC, relativamente ao relato da sua filha, estão explicadas por ela própria, no seu depoimento. Ela lá foi processando tudo e a seu tempo não teve dúvidas, como com inteira clareza declarou. Tais depoimentos consentem, pois, as ilações tiradas pelo tribunal a quo, sendo convincentes os raciocínios expendidos e, contrariamente ao que refere o recorrente, não contradizem qualquer regra da experiência comum. E sobretudo não há nenhuma razão para descredibilizar o depoimento da ofendida (6), seja porque não há nele nada que suscite reserva, como nada do que afirmou é contrário às condições objetivas do local e às circunstâncias singulares daquele momento. As circunstâncias objetivas são as que são: a ofendida é uma adolescente; a televisão da casa estava no quarto do arguido; e era por hábito ali que os adultos e as crianças assistiam às «séries» que gostavam de ver. Umas vezes juntos. Outras vezes participando apenas alguns. A irmã da ofendida com apenas 2 anos de idade dormia e não acordou com os protestos daquela a pedir ao arguido que parasse. E o irmão dela, de 13 anos de idade, estava noutro quarto, não tendo dado conta do que sucedia. Mas que há de estranho nisso? O sono das crianças daquela idade pode ser assim mesmo. E tendo a ofendida referido no seu depoimento que se opôs à agressão do arguido («gritei para parar»… «continuei a dizer para parar»…), essas manifestações não tinham necessariamente de corresponder a uma gritaria de acordar o prédio inteiro! Não há um padrão para tais circunstâncias. Nem tem de haver.

Longe vai o tempo em que a «mulher forçada», para prova da malfeitoria que lhe houveram feito, tinha de se humilhar para provar que tinha sido «forçada»: se fora em povoado «devia fazer a sua querela em alta voz dizendo uedes que me fazem e nomeando o forçador pelo nome, Ao mesmo tempo, tinha de percorrer pelo menos três ruas da localidade. Se assim fizesse as justiças deviam considerar valida a querela. Se a violação ocorresse em lugar deserto, a querela tinha de ser feita de acordo com os cinco sinais previstos na lei: a mulher devia dar grandes brados imediatamente após a violação, nomeando o forçador pelo nome; devia apresentar-se perante as pessoas, toda carpida; devia queixar-se à primeira, segunda e terceira pessoa que encontrasse; devia sem tardamento nenhum, encaminhar-se para a vila mais próxima; e por fim, devia dirigir-se de imediato às justiças, não entrando antes em nenhuma casa. Se algum destes requisitos faltasse, a querela não era válida, não podendo, em consequência, o juiz recebê-la.» (7)

«Fundando-se também no costume, fez D. Pedro I outra lei sobre a querela apresentada por mulheres forçadas. Sem dispor contra o regime do seu antecessor, apenas reforçou a ideia de que a mulher forçada devia fugir imediatamente do lugar onde sofrera a violação, bradando pelas ruas que fora violada e nomeando o forçador pelo nome.» (8)

O circulo fecha-se com o exame realizado no serviço de pediatria do Hospital de …, no próprio dia dos factos, o qual evidenciou «vestígios de agressão física compatíveis com agressão sexual».

Nesse mesmo sentido veio a concluir a perícia sexual, cujo relatório refere haver «vestígios de agressão física compatíveis com agressão sexual».

Segue-se-lhe o teor do relatório pericial de biologia forense, que confirma a existência de sémen do arguido na colcha da cama, local onde a vítima referiu ter havido emissio seminis. Este, é certo, não pode ser decisivo para incriminar o arguido (e não foi) - dado ter sido colhido no local onde manteria relações sexuais com a sua mulher. Mas não pode ser considerado elemento irrelevante, na medida em que tal vestígio surge no local apontado pela ofendida como sendo aquele onde ocorreu a agressão denunciada e a ejaculação por ela descrita.

Daí que a racionalidade exposta na motivação do acórdão recorrido, sustentadora do juízo realizado pelo tribunal recorrido, evidencie uma solidez inquebrantável, contrastante com a tese do arguido sustentada no recurso.

Está claro que o recorrente tem direito a sustentar uma versão diferente dos acontecimentos. Foi isso que já fez na 1.ª instância, insistindo agora em recurso na mesma versão dos acontecimentos.

No essencial nega que tenha assaltado a intimidade da ofendida e que as relações sexuais denunciadas pela sua enteada tenham ocorrido. Mas não há nas provas o mínimo sinal ou razão que dê consistência a tal tese - de «invenção» de uma estória.

Mas porquê? Inimizade ou incompatibilidade anterior? Desejo de vingança por causa de algo?

Não só das provas nada emerge, como nada a tal propósito se alegou - sequer se esboçou!

Importa aclarar que ao contrário do que se sustenta no recurso, não há entre o depoimento da vítima e as declarações do arguido nenhuma espécie de paridade. O pressuposto em que assenta tal ideia é a aritmética: como ela diz A e ele diz B, então, não há prova!

Esta ideia está errada.

Desde logo porque as declarações não se equivalem em abstrato, isto é, não há nenhuma paridade ou equivalência entre o depoimento de uma testemunha (a ofendida) e as declarações do arguido, porque a prova em processo penal não se encontra espartilhada em tal aritmética.

Decorre da lei processual que as testemunhas estão obrigadas a depor e a dizer a verdade (artigo 132.º CPP); já o arguido, sendo presumivelmente inocente, tem o direito de não declarar e de não responder a quaisquer perguntas, sem que isso o possa desfavorecer (artigos 61.º, § 1.º, al. d) e 343.º CPP).

Mas o que deveras releva em matéria de processo penal é a apreciação e valoração da prova (de todas as provas) feita livremente pelos membros do tribunal (pelos juízes), segundo as regras da lógica e das máximas da experiência comum (id quod plerumque accidit), como pressupõe o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127.º do CPP.

E como ensina Figueiredo Dias «só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso (…)» (9)

Sendo o ato de julgar exclusivo do tribunal, órgão jurisdicional impregnado das características de independência, de imparcialidade e da necessária preparação técnica. E não de qualquer outra entidade: seja ele acusado ou acusador.

A ser como preconiza o recorrente «estaríamos perante uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.» (10)

Ora, o princípio em que assenta a valoração das provas é, como já referido, o princípio da livre apreciação pelo tribunal competente, que pressupõe a liberdade de apreciação das provas (de todas as provas) como meio para a descoberta da verdade. Não sendo coisa bizarra nem excrescente, sendo antes, uma aquisição da civilização ocidental, com a qual se superou a amarra paradigmática da prova legal ou tarifada, em que o valor das provas estava fixado a priori (11).

Emergiu na França revolucionária com a instituição do sistema de júri e logo tornado operacional em 1791. E a partir de 1801 passou a integrar o Code D’Instruction Criminelle (que só veio a ser promulgado a 16 de novembro de 1808), vigorando nesse compêndio até 1958, altura em que passou para o Code de Procédure Pénale (artigo 427.º).

Surgiu em Portugal (et pour cause) na sequência da revolução liberal, sendo integrado normativamente nas reformas judiciárias da primeira metade do séc. XIX (1832, 1836 e 1841). E tem atualmente assento no já referido artigo 127.º CPP.

Nada tem de arbitrário, de «mecânico» ou de «aritmético». Pelo contrário. Constitui um processo intelectual, racional, assente na lógica e limitado por certas regras imperativas concernentes a proibições de prova – artigo 126.º CPP; pelo especial valor da prova pericial – artigo 163.º CPP; pelas limitações impostas ao depoimento indireto, sobre vozes públicas ou convicções pessoais – artigos 129.º e 130.º CPP; pelo especial valor probatório de documentos autênticos e autenticados – artigo 169.º CPP; e pela proibição de valoração de provas não produzidas na audiência – artigo 355.º CPP). Sendo a decisão necessariamente (obrigatoriamente) motivada, e por isso passível de controlo (artigo 374.º, § 2.º CPP) - como é mister numa sociedade democrática.

O princípio da livre apreciação das provas impõe que a análise e valoração destas não constitua uma operação puramente subjetiva, emocional, impulsiva e logo imotivável; mas antes seja o culminar de um percurso racional, criticamente arrazoado, assente nas regras da lógica, nos conhecimentos científicos e sem contrariar as regras da experiência comum, permitindo ao julgador objetivar a apreciação que fez dos factos. (12) Estando também, naturalmente, sujeita ao parâmetro constitucional da presunção de inocência, nomeadamente na dimensão in dubio pro reo. Daqui decorrendo que não sendo possível formar-se uma convicção firme, segura, sobre os factos relevantes para a decisão, criando-se sobre a sua existência ou certeza uma «dúvida razoável» (um non liquet), então tais factos não poderão considerar-se como provados.

No essencial: com ressalva das exceções referidas, não há regras fixas a definir o valor probatório a atribuir ou a não atribuir aos meios de prova disponíveis. O que em verdade se giza com a livre apreciação da prova expressa-o a máxima da tradição anglo-saxónica proof beyond any resonable doubt. Isto é, assegurar que a condenação de alguém ocorre quando se mostre a certeza da sua culpabilidade. Para tanto se reclamando ao tribunal, que identifique, detalhe e concretize, fundadamente, as características das provas a que atendeu e como delas inferiu o juízo que lhe permite confirmar ou infirmar determinado quadro factológico. (13)

Volvamos agora às circunstâncias próprias do caso, começando por clarificar que os recursos não constituem um novo julgamento (agora sem imediação e a oralidade) ou uma nova oportunidade para obter decisão diversa. Sendo antes, e apenas, remédios jurídicos vocacionados para corrigir erros de julgamento (por violação de normas de direito substantivo) ou de procedimento (por violação de normas de direito processual).

Importando para isso que o recorrente indique os factos concretos que entende erradamente julgados e as provas concretas que «impõem» decisão diversa (artigo 412.º, § 3.º, al. b) do CPP).

O que o recorrente trouxe ao presente recurso foi apenas uma versão alternativa dos acontecimentos - a sua. Pretendendo que a mesma se mostra compatível com as hesitações iniciais da mãe da ofendida (testemunha CC), uma vez que esta começou por não acreditar na denúncia da ofendida sua filha e acrescentando a insuficiência probatória contextual do vestígio de sémen colhido na colcha da cama do seu quarto.

A fragilidade desta argumentação logo se evidencia pela circunstância de nada do que se alega abala a solidez já assinalada ao sentido conjugado de todas as provas (com exceção das declarações do arguido).

Acrescendo que as apontadas hesitações iniciais da testemunha CC (mãe da ofendida) se mostram credivelmente esclarecidas pela própria, no mesmo depoimento. No dia em que prestou depoimento essa dúvida já não existia no seu espírito, explicando a mesma, convincentemente, as razões pelas quais teve a hesitação inicial e por que razão deixou de ter.

A reclamação em seu abono daquela reação inicial da referida testemunha mostra-se inconsistente. De resto o recorrente questiona a credibilidade das declarações que essa testemunha prestou na audiência!

E quanto ao vestígio de sémen já supra dissemos tudo o que de relevante se deveria. Essa prova não é decisiva da culpa do arguido. Mas não pode ser considerada irrelevante, na medida em que tal vestígio surge no local apontado pela ofendida como sendo aquele onde ocorreu a agressão denunciada e a ejaculação por ela descrita.

No especialmente concernente aos pontos 27. a 32. da factualidade provada, a sua demonstração assenta na credibilidade conferida aos depoimentos das testemunhas BB e CC (ofendida e sua mãe), não se vislumbrando nenhuma razão que macule essa credibilidade.

Não resulta da motivação do acórdão que o tribunal a quo se tivesse confrontado com qualquer dúvida sobre os factos em referência, nem se vislumbrando, em face do conjunto da prova produzida e respetiva apreciação crítica, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, existirem razões objetivas para que uma tal dúvida pudesse surgir no espírito dos julgadores. Daí que inexista também, contextualmente, o pressuposto da mobilização do princípio in dubio pro reo.

Anota-se, finalmente, o despropósito (por nenhuma conexão se evidenciar com qualquer dos factos impugnados) de o recorrente pretender deixar a ideia de que a ofendida terá ido, entretanto, viver para a cidade do … – para casa de uma tia -, por o arguido se encontrar nessa cidade a cumprir a medida de coação de obrigação de permanência na habitação! Até porque nas conclusões (14) do recurso nada se refere sobre este temário - pelo que nada há para este tribunal apreciar!

Termos em que consideramos nada haver a alterar à factualidade julgada provada na 1.º instância.

3.3 «Interpretação inconstitucional do artigo 127.º CPP»

Suscita o recorrente a questão da «inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do artigo 127.º do CPP realizada pelo tribunal recorrido»! Mas não se vislumbra que o tribunal recorrido tenha feito mais que a interpretação precetiva, comummente sufragada na doutrina e na jurisprudência!

E pese embora refira que dessa interpretação houve violação dos princípios do processo equitativo e da presunção de inocência, a verdade é que também se não indica de que modo a livre valoração das provas pelo tribunal recorrido vulnerou tais princípios constitucionais, que são ademais também de direitos humanos!

Diremos apenas que, contrariamente ao que parece vir pressuposto pelo recorrente, o Tribunal Constitucional já manifestou o entendimento de a norma contida no artigo 127.º CPP não violar o disposto no artigo 32.º, § 1.º da Constituição. (15) Pelo contrário, aquele mesmo Tribunal já sublinhou que o princípio da livre apreciação da prova se «concretiza numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permitirá ao julgador objetivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão. Trata-se, assim, de um princípio de liberdade para a objetividade, e não para o arbítrio.» (16)

Sobre a matéria da motivação da formação da convicção, ensina Germano Marques da Silva (17), que: «a fundamentação dos atos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da validade do ato, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, atuando por isso como meio de autocontrolo.»

Sublinhando por sua vez Maria de Fátima Matamouros (18), em idêntico registo, que «é a motivação que confere um fundamento e uma justificação específica à legitimidade do poder judicial e à validade das suas decisões, a qual não reside nem no valor político do órgão judicial nem no valor intrínseco da justiça das suas decisões, mas na verdade que se contém na decisão», para além de ser mera consequência «do direito a um processo equitativo…»

Ora, não se encontra na motivação da decisão de facto feita pelo tribunal recorrido mácula suscetível de vulnerar a presunção de inocência do arguido/recorrente.

Por seu turno, o princípio do processo equitativo, que se enuncia no § 4.º do artigo 20. da Constituição da República, dispondo que: «todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo», traduz-se em três dimensões essenciais:

i) informação ao acusado, de modo detalhado, acerca da natureza e dos motivos da acusação, para que dela se possa defender;

ii) procedimento leal, sem influências externas na formação do juízo;

iii) e um juiz imparcial, que exerça a função em posição de terciaridade relativamente aos interesses objeto do processo e não dê a alguma das partes tratamento de favor ou de desfavor.

Neste mesmo âmbito preceitua o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, estatuindo no seu § 1.º que: «qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.»

Tendo o arguido sido julgado por um tribunal independente e imparcial, com todas as garantias de defesa, nomeadamente de audiência, de contraditório e de recurso, estando a decisão condenatória recorrida devidamente motivada, sem se lhe apontar (ou encontrar) atropelo de regras procedimentais, na qual se expressa com preclaras razões o sentido da decisão relativamente a cada facto, indicando as provas e sua conexão objetiva e racional com cada um deles, sem falhas de lógica e sem contrariar as máximas da experiência comum, não se vê como tal poderá vulnerar o aludido princípio!

Pelo que consideramos não haver qualquer violação dos princípios da presunção de inocência e do processo equitativo.

3.4 Erro notório na apreciação da prova

O recorrente refere haver erro notório na apreciação da prova, fazendo referência a este vício da decisão (artigo 410.º, § 2.º CPP) nas conclusões A), H) e I), sem precisar as razões porque tal considera! Do texto motivador extrai-se que o recorrente entende haver razões para não acreditar na palavra da ofendida, porquanto entende implausível que a sua irmã de 8 anos, que dormia na cama onde os factos se passaram, não tenha dado por nada. E, parece considerar, que isso constitui uma regra de normalidade reveladora da falsidade da denúncia da ofendida contra o arguido. Os vícios da decisão recorrida não se confundem com a impugnação de factos concretos. Tais vícios, são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei, sendo anomalias decisórias ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respetivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.

No concernente ao erro notório na apreciação da prova, o erro tem de resultar do texto da sentença recorrida, sendo de conhecimento oficioso. E no caso do erro notório na apreciação da prova exige-se: a notoriedade do erro, que este resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. Notório é o erro indiscutível, facilmente percetível pelo comum dos observadores, que é facilmente cognoscível pela generalidade das pessoas, de tal modo que não haja motivo para duvidar da sua ocorrência. (19) Havendo erro notório «... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida». (20) O episódio a que parece aludir o recorrente não tem tradução nos factos provados, pois quando ocorreram os factos o menor FF estava noutro quarto (no seu quarto). No quarto do arguido, onde estava a televisão, encontrava-se a ofendida e sua irmã EE, com apenas dois anos de idade, que não acordou. Como é que isso é impossível, ilógico, contraditório, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum? Não é. Pelo contrário, é plausível.

Não se verifica, pois, qualquer erro notório na apreciação da prova ou qualquer outro vício da decisão recorrida.

3.4 Medida da pena

Sustenta o recorrente que a pena (o recurso nesta parte cinge-se à pena principal) que lhe foi aplicada é excessiva, propugnando por uma pena igual ao limite mínimo legal, devendo ser suspensa na sua execução. O Ministério Público, por seu turno, considerou que a medida da pena aplicada está ajustada às exigências de prevenção geral e às necessidades de prevenção especial.

O que mais avulta é a circunstância de o recorrente não apontar à medida da pena um único erro no processo de determinação concreta da pena, com violação de algum dos seus princípios ou regras!

A sua não conformação assenta na afirmação de que a pena aplicada é exagerada.

Este fundamento não se integra nem cumpre minimamente o ónus que impende sobre a recorrente (artigo 412.º, § 2.º CPP), de indicar as normas jurídicas violadas, o sentido em que o tribunal recorrido as deveria ter interpretado ou as que o tribunal preteriu na escolha e medida da pena aplicada! Recorda-se o já afirmado supra de que o paradigma dos recursos penais é o de serem remédios jurídicos, vocacionados para corrigir erros de julgamento, despistando ou corrigindo, cirurgicamente, eventuais erros in judicando (por violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (por violação de normas de direito processual), paradigma esse que abrange o iter decisório sobre a pena. (21) Isto é, o tribunal ad quem não julga de novo, não escolhendo e determinando concretamente a pena como se inexistisse uma decisão de primeira instância que já se pronunciou sobre o tema. A reapreciação pelo tribunal superior deve assentar nos fundamentos do recorrente e tem em vista o respeito e consideração pelo tribunal recorrido dos princípios constitucionais e legais, das regras e vetores relevantes para escolha e determinação da medida da pena. Mas tal reapreciação não abrange «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada». (22)

A finalidade das penas é a de proteger bens jurídicos e reintegrar o agente na sociedade, não podendo a pena concreta exceder a medida da culpa do infrator (artigo 40.º, § 1.º e 2.º CP).

Assentando a determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, na culpa do agente e nas exigências de prevenção (artigo 71.º do CP).

O arguido/recorrente cometeu um crime de violação agravado, previsto no artigo 164.º, § 2.º, al. a), com referência ao artigo 177.º, § 1.º, al. a) CP, na pena de seis anos de prisão.

A moldura abstrata deste ilícito agravado vai de 4 anos de prisão a 13 anos e 4 meses de prisão, tendo o tribunal recorrido fixado a pena concreta em 6 anos de prisão. Para o quantum concreto da pena concorrem para a medida da culpa e as exigências de prevenção geral e de prevenção especial, nos termos previstos nos artigos 40.º e 71.º, § 1.º CP.

O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta das exigências de prevenção geral - segundo as quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor. O limite superior da pena é traçado pela medida da culpa, (23) já que a sua verdadeira função no sistema punitivo reside na incondicional proibição de excesso. Constitui uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.

E a medida exata da pena é a que resulta das razões de prevenção especial. Traduzindo-se estas na medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade. Dirige-se ao próprio condenado, gizando afastá-lo da delinquência e integrá-lo nos princípios e regras dominantes na comunidade. (24)

O acórdão recorrido revela, como meridiana clareza, uma correta compreensão do quadro legal relativo à medida da pena. Evidenciando terem sido ponderadas todas as circunstâncias pertinentes. Mostrando-se a penas principal proporcionada ao quadro da medida da culpa e às necessidades de prevenção (geral e especial). E, como assim, nada há que justifique qualquer alteração.

Termos em que o recurso não é merecedor de provimento.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente o acórdão recorrido.

b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.

Évora, 18 de abril de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

3 Joaquim Correia Gomes, A motivação judicial em processo penal e as suas garantias constitucionais, revista JULGAR, n.º 6, 2008.

4 Por todos, Ac. Supremo Tribunal de Justiça, proc. 733/17.2JAPRT.G1.S1.

5 Cf. Ac. Tribunal Constitucional n.º 47/2005, de 26jan2005, Cons. Fernanda Palma.

6 Os depoimentos das testemunhas e declarações do arguido só se mostram parcialmente extratadas na motivação do recurso, tendo sido por referência às mesmas (e à respetiva audição) que este tribunal escrutinou a prova indicada, se bem que as mesmas deveriam integrar-se igualmente nas conclusões (artigos 412.º, § 1.º, 3.º e 4.º e 417.º, § 3.º CPP).

7 Ordenações Afonsinas, Título VI, do livro V, título 6, § 1.º, cit. por José Eduardo Marques dos Santos, O processo penal português no período medieval, Edições ECOPY, 2012, pp. 222/223.

8 Ordenações Afonsinas, Título VI, do livro V, título 6, § 2.º, cit. por José Eduardo Marques dos Santos, O processo penal português no período medieval, Edições ECOPY, 2012, pp. 223.

9 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, Coimbra Editora, pp. 233/234.

10 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24mar 2004, Cons. Rui Moura Ramos, disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos

11 Sobre as consequências que decorriam desse sistema, no âmbito anglo-saxónico, cf. José Mouraz Lopes, A fundamentação da sentença no sistema penal português, 2011, Coimbra Editora, p. 233.

12 Neste sentido, Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 1165/96, de 19nov1996, proferido no Processo n.º 142/96, Cons. Tavares da Costa, disponível em www.dgsi.pt

13 Neste sentido acórdão do TRÉvora, de 25out2022, proc. 52/18.7GBSLV.E1, Des. Gomes de Sousa. 14 O âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente (como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, § 2.º CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito) - acórdão STJ de 28abril99 - CJ/STJ, 1999, pp. 96, e acórdão STJ para fixação de jurisprudência de 19out1995, DR I-A Série de 28dez1995; e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2020 (3.ª reimpressão), p. 74.

15 Cf. acórdão n.º 391/2015, proc. 526/2015, Cons. Cura Mariano, publicado no DR, II, de 16nov2015.

16 Cf. acórdão n.º 391/2015, proc. 526/2015, Cons. Cura Mariano, publicado no DR, II, de 16nov2015.

17 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1994, Verbo, vol. III, p. 290.

18 Maria de Fátima Matamouros, A fundamentação da decisão como discurso legitimador do Poder Judicial – Boletim Informação e Debate – IV.ª Série, n.º 2, dezembro de 2003, ASJP, p. 109.

19 Cf. acórdão do STJ, 6abr1994, CJ XIX, t. II, 185.

20 Acórdão do STJ, 4out.2001 (CJ/AcSTJ, IX, T. III, 182).

21 Neste sentido Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 295; Sérgio Gonçalves Poças, Revista Julgar, n.º 10, 2010, pp. 22; e na jurisp. (por todos) Ac. TRÉvora, de 16jun2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1 Des. Clemente Lima; Ac. TRCoimbra, de 5abr2017, proc. 47/5.2IDLRA.C1, Des. Olga Maurício; DSum. TRE, 20/2/2019, proc. 1862/17.8PAPTM.E1, Des. Ana Brito; Ac. TRLisboa, de 12jan2021, proc. 2127/19.6PBLSB.L1-5, Des. Paulo Barreto, todos disponíveis em www.dgsi.pt

22 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pp. 197.

23 Sobre a defesa da conceção dialética dos fins das penas, cfr. Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Civitas, pp. Sobre a defesa da conceção dialética dos fins das penas, cfr. Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Civitas, pp. 89; tb. Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, 2002, 5.ª ed., Comares Editorial, pp. 231 e 947; no mesmo sentido Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2019, 3.ª ed., Gestlegal, pp. 94.

24 «Por reforço dos standards de comportamento e de interação na vida comunitária (condução da vida “de forma socialmente responsável”)» - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 74, 110 e 238 ss., Aequitas – Editorial Notícias, 1993. Também Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2020, pp. 42 e ss.