Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
523/11.6PAOLH.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PROVA PROÍBIDA
DECLARAÇÕES ESCUTADAS POR MEIO DE "ALTA-VOZ"
CULPA
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
1. A prova por depoimento de testemunha que escutou conversação telefónica por intermédio de sistema alta-voz não é, em princípio, prova livre, podendo cair nas proibições de prova; mas uma conclusão definitiva exige o conhecimento e apreciação dos contornos totais do acontecido, que se apresentam como imprescindíveis à decisão sobre a licitude desta prova.

2. A personalidade, como objecto da culpabilidade, não abrange a personalidade tal como é na sua conformação total, mas só enquanto e na medida em que for adquirida voluntariamente. Assim sendo, na medida da culpa não podem deixar de relevar (favoravelmente) as circunstâncias extrínsecas à vontade do agente e que confluíram, também, na formação da sua personalidade desvaliosa.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Processo n.º 523/11.6PAOLH do 1º juízo do Tribunal Judicial de Olhão foi proferido acórdão em que se decidiu condenar o arguido VH pela prática de um crime de violência doméstica do artigo 152°, 1, a) e 4, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão e na pena acessória de 5 (cinco) anos de proibição de quaisquer contactos com LF; pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições do art. 353° do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; em cúmulo jurídico, de tais penas, na pena única de 3 (três) anos de prisão e na pena acessória de 5 (cinco) anos de proibição de quaisquer contactos com LF. Foi ainda julgado parcialmente procedente o pedido cível e o arguido condenado no pagamento de 500€ de indemnização à demandante.

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, concluindo da forma seguinte:

“I – O Tribunal a quo não apreciou correctamente a factualidade probatória trazida à audiência de discussão e julgamento.

II – Efectivamente o Tribunal a quo julgou mal os pontos da matéria de facto que não deveriam ter sido dados como provados ou no sentido em que o foram, o que sucedeu com os factos provados 3, 4, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14 e 15,

III – Tal julgamento erróneo decorre do explicitado do artigo 11 ao 72 da Motivação deste recurso,

IV - Tudo razões pelas quais deverá o Tribunal ad quem aplicar in casu o princípio in dubio pro reo, absolvendo o ora recorrente da prática do crimes por que vem condenado.

V – E alterando-se, consequentemente nesse sentido a decisão do acórdão recorrido com a sua revogação e substituindo-o por outro que absolva o recorrente.

VI – Ou caso assim não se entenda, substituí-la por novo aresto que lhe aplique uma pena de prisão especialmente atenuada, em medida não superior a 1 (um) ano, no respeitante à prática do crime de violência doméstica (artigo 152° nº 1, al. a) e 4 do C. Penal), suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova, e na pena de multa no que respeita à pratica do crime de violação de imposições, proibições ou interdições (art. 353° do C. Penal).

VII- Foram violadas as seguintes normas: artigos 20°, 40° nº 2, 71° e 72° do C. Penal e 20° nº 4, última parte, da Constituição da República Portuguesa.”

Na resposta ao recurso, o M.P. pronunciou-se no sentido da improcedência, limitando-se a dizer que o tribunal decidiu bem quanto à matéria de facto e quanto à pena.

Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência, por considerar que o recorrente pretende impugnar a formação da convicção do julgador e não a matéria de facto.

O recorrente reiterou as razões do seu recurso.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na decisão recorrida consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. O arguido VH casou com LF em 14 de Dezembro de 2001, tendo-se divorciado em 2006.

2. O casal tem um filho em comum, de nome I, cuja guarda ficou confiada a à progenitora.

3. No dia 13 de Setembro de 2010, pelas 14h30m, o arguido VH efectuou uma chamada telefónica para o telefone fixo instalado na casa da mãe de LF, onde esta última se encontrava.

4. Nesse telefonema, contactou LF, que se encontrava nessa habitação, dizendo-lhe «Se apresentares mais alguma queixa ou fores a tribunal, eu não tenho nada a perder, acabo contigo.».

5. Por sentença transitada em julgado em 15 de Novembro de 2010, o arguido VH foi condenado nas seguintes penas, no processo nº ---/08.2PAOLH, do 1° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Olhão da Restauração, pela prática de um crime de violência doméstica, tendo por vítima LF:

5.1. dois anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova que incluía, além do mais, a proibição de contactar, por qualquer forma, ou de se aproximar, de LF; e

5.2. na pena acessória de proibição de todo e qualquer contacto com LF, pelo período de cinco anos.

6. Porém, também após essa condenação, o arguido tem contactado telefonicamente diversas vezes LF, tendo um desses contactos ocorrido no dia 14 de Dezembro de 2010, pelas 20h55m: o arguido ligou do seu telemóvel, novamente, para o telefone fixo acima mencionado, tendo a chamada sido atendida por LF.

7. Nesse telefonema, o arguido começou por dizer «És tu?», ao que LF retorquiu, dizendo que iria já para a esquadra, desligando de seguida.

8. Após aquela condenação, o arguido também tem seguido algumas vezes LF, de carro ou apeado, tanto na cidade de Olhão, como fora dela, o que tem produzido, nesta, medo, ansiedade e desgaste psicológico, por temer aquele.

9. LF sente-se vigiada a todo o tempo pelo arguido, em clara e ostensiva violação da regra de conduta e da pena acessória de proibição de qualquer tipo de contactos com a queixosa, em que foi condenado no processo comum nº 823/08.2 P A O LH.

10. Próximo da meia-noite do dia 24 de Junho de 2011, quando passou de carro na Rua Diogo Cristina, em Olhão, sentado no lugar do pendura, encontrando-se algo alcoolizado, o arguido VH gritou, dirigindo-se a LF, «Agora a puta está loira! Puta do caralho, vaca, ordinária!».

11. Receando o arguido, LF refugiou-se na casa de uma vizinha, MC, sita na Rua -----,em Olhão.

12. Pouco tempo depois, pela 1h30m, o arguido ligou para o telefone fixo da residência onde se encontrava a sua ex-mulher LF, vociferando «L, já não tenho nada a perder, eu vou preso, mas tu vais para Quelfes, vou-te espremer toda!»

13. Foi aplicada ao arguido, em 10 de Agosto de 2011, a monitorização da pena acessória, por meio de vigilância electrónica.

14. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, no intuito de perturbar constantemente a vida da sua ex-mulher, o que sucedeu, pelo menos, desde 13 de Setembro de 2010, e estando ainda ciente de, após 15 de Novembro de 2010, ter contactado a mesma de forma reiterada e violando a regra de conduta e a pena acessória a que estava sujeito, revelando não possuir respeito pela sua ex-cônjuge, nem pela decisão judicial, bem sabendo, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

15. No período temporal atrás assinalado, LF temeu pela sua vida e integridade física, sentindo-se constantemente vigiada e perturbada e em ocasionalmente desgastada e debilitada.

16. O arguido nasceu em França, tendo os seus pais regressado a Portugal quando o mesmo tinha dois anos de idade.

17. É o segundo filho, de uma fratria de dois.

18. Após ter sido operado a uma omoplata em 1994, o arguido teve uma crise álgica e foi reoperado em 8 de Fevereiro de 2005 e 29 de Setembro do mesmo ano, na Alemanha, para reparação da cicatriz.

19. A dor crónica no ombro produziu alterações da sua personalidade e do seu carácter, fruto, também, dos seus estados depressivos.

20. No entanto, estas alterações não diminuem, ou suprimem a sua consciência e valoração dos seus próprios actos.

21. O arguido tem uma personalidade dismatura, tipo borderline, mas responsável pelos seus actos, tendo ainda apresentado uma situação de depressão com ansiedade generalizada e deixado de ser seguido por um psiquiatra há cerca de um ano

22. O mesmo encontra-se reformado por invalidez desde 2007, auferindo urna pensão mensal no valor aproximado a trezentos euros.

23. Vive com a sua mãe, com quem divide as despesas domésticas.

24. Como habilitações literárias, apenas concluiu o 10° ano de escolaridade.

25. Por sentença datada de 8 de Maio de 2009, proferida no processo comum nº --/08.4PAOLH, do 2° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Olhão da Restauração, o arguido foi condenado na pena de 14 meses de prisão, suspensa na execução pelo mesmo período, pela prática, em 3 de Janeiro de 2008, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo disposto nos arts. 143°, 1, 145°, 1, a) e 2, com referência o artigo. 132°, 2, al. i), todos do Código Penal.

26. O arguido encontra-se, nesta data, recluso.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP (AFJ de 19.10.95) – que, no caso, não se detectam – as questões a apreciar são as seguintes:

- Impugnação da matéria de facto

- Medida da pena

A impugnação da matéria de facto pressupõe o cumprimento do disposto no art. 412º, nº3 do CPP. Estabelece esta norma que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas, fazendo-se, essa especificação, por referência ao consignado na acta devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP).

O recurso da matéria de facto apresentado pelo recorrente padece de deficiências formais à beira de potenciar a rejeição. Desde logo porque as suas conclusões se apresentam imperceptíveis quando lidas autonomamente (desacompanhadas da motivação), não fazendo qualquer indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.

Ora, na disciplina do art. 412º, nº1 do CPP, “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”. E se as razões do pedido têm de constar, todas elas, do corpo da motivação – o que ainda acontece, no caso – as conclusões têm de expressar (resumidamente) as razões do pedido – o que não se cumpre. Elas servem precisamente para resumir as razões do pedido e “têm que reflectir a matéria desenvolvida no corpo da motivação” (Simas Santos, Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 2007, pp 101 e 102).

No entanto, do corpo da motivação – que constitui “o desenvolvimento dos fundamentos da impugnação” e “as razões pelas quais se discorda da decisão posta em crise” (loc. cit.) – é ainda perceptível a pretensão do recorrente, aceitando-se por isso que satisfez as exigências legais mínimas de impugnação e passa a conhecer-se do recuso da matéria de facto de acordo com o enunciado apresentado.

Assim, o arguido fundamenta a sua discordância argumentando da forma seguinte:

- Os factos descritos nos pontos 10. a 12. ocorreram quando o recorrente se encontrava alcoolizado, o que devia ter sido consignado no acórdão pois o recorrente narra-o, a testemunha PN, órgão de polícia criminal, confirma-o (“O recorrente estava bastante alterado quando chegamos lá”) e a testemunha BZ, também o diz (“O arguido não estava em condições de guiar, tinha bebido um copo ou outro a mais, e fui eu quem conduziu o veículo levando-o a casa”);

- As chamadas efectuadas não se encontram documentalmente provadas, pelo que não está demonstrado que tivessem sido feitas;

- A prova dos factos assentou essencialmente no depoimento da assistente, que foi parcial, exagerado e distorcido;

- Os encontros entre o arguido e a assistente não foram intencionais mas ocorreram por acaso, pois o recorrente e a assistente estão “condenados a encontrar-se” dado a localização próxima (cerca de 300m) da casa do recorrente e da casa da mãe da assistente; No relatório da equipa de vigilância electrónica de Loulé diz-se não ser possível aferir se estes comportamentos do arguido são ou não intencionais e premeditados; inexiste prova de que os encontros sejam intencionais e não casuais;

- Devia, por tudo, ter o recorrente beneficiado do princípio do in dúbio pro reo;

- Por último, a testemunha JC, médico psiquiatra, referiu que o arguido padece de depressão crónica com somatização e ansiedade, com traços obsessivo-compulsivos; e que, embora não tendo uma personalidade patológica, como o sociopata ou o psicopata, tem traços de personalidade não adaptativa, depoimento que não foi devidamente atendido pelo tribunal.

São estes os concretos pontos de facto e as concretas provas que conseguimos retirar da motivação, e que fundamentam a discordância do recorrente quanto ao sentido da decisão de facto.

Na impugnação da decisão de direito, refere encontrar-se o arguido na fronteira entre a imputabilidade e a inimputabilidade devendo ser absolvido ou a pena especialmente atenuada.

Vejamos como o tribunal motivou a decisão de facto:

Apenas foi considerada a prova produzida na audiência de julgamento, analisada com objectividade, segundo as regras da experiência, beneficiando do princípio da imediação da prova.

A decisão condenatória aludida no ponto 5 dos tactos provados encontra-se nos autos através da certidão constante de folhas 48 a 71.

A evolução das condições pessoais do arguido (factos provados 16 a 24) encontra-se documentada no relatório social elaborado pela Direcção-Geral de Reinserção Social, documentado a folhas 403 a 407 dos autos.

A decisão condenatória aludida no ponto 25 dos factos provados encontra-se nos autos através da certidão constante a folhas 26 a 46.

Os factos provados 1 e 2 resultam da conjugação das declarações do arguido e da demandante, que confirmaram o seu casamento e divórcio, bem como a identidade do seu filho, com a prova documental junta a folhas 50.

Os telefonemas e demais comportamentos referidos nos factos provados 3, 4, 6 a 14 foram confirmados e explicados em julgamento pela ora demandante, LF (o arguido também admitiu ter sido possível o facto provado número 10, alegando, contudo, amnésia parcial em relação ao sucedido nesse instante, declarando apenas se recordar do sucedido imediatamente antes e a seguir, o que não é verosímil, tendo em conta os pormenores descritos nas suas declarações), tendo descrito o sucedido de um modo notoriamente genuíno e sincero, revelando factos por si percecionados.

Das suas declarações e dos depoimentos das testemunhas MC e AB também resultaram provadas as consequências identificadas no ponto 15.

O arguido encontrava-se algo alcoolizado no episódio referente ao facto provado 10, tendo em contas as declarações do próprio arguido e o depoimento do agente policial PN, que o encontrou nesse estado logo a seguir à ocorrência.

Esse episódio (facto provado 10) também foi apurado com base nos depoimentos das testemunhas MC e AB, que presenciaram o sucedido e o relataram de forma clara em julgamento. A circunstância considerada não provada em relação a esse episódio, vertida na nota de rodapé 2, não foi presenciada por qualquer testemunha, nem foi referido pelas declarações da demandante.

A chamada telefónica identificada no facto 12 também foi confirmada pelo depoimento da testemunha MO, que ouviu o seu teor, confirmando-o em julgamento.

O facto provado 25 foi confirmado em julgamento pelo arguido, encontrando-se a razão de ser da sua reclusão (prisão preventiva) documentada nos presentes autos a folhas 341 a 364 e 392. Os factos considerados não provados, mencionados nas notas de rodapé 1 e 4, tiveram essa valoração pela circunstância de, a respeito destes, não ter sido produzido qualquer meio concreto de prova de um modo minimamente consistente, que permitisse apurar a sua veracidade.

O arguido negou ter efetuado telefonema provado em 12., alegando ainda que se encontrava alcoolizado e sob a influência de medicamentos, apesar de também afirmar que tinha urna amnésia em relação ao sucedido nessa noite. Porém, as suas declarações foram inconsistentes a este respeito, na medida em que essa amnésia também não lhe permitiria recordar-se de não ter feito essa chamada telefónica, nem aquilo que sucedeu imediatamente antes e após a altura em que esse telefonema sucedeu. Porém, nas suas declarações em julgamento, o arguido referiu tais factos sucedidos pouco antes e depois do telefonema, retirando credibilidade àquela negação.

O facto provado em 21. resulta do depoimento da testemunha Dr. JC, que foi psiquiatra do arguido e depôs referindo tê-lo visto pela última vez em consulta há cerca de um ano e explicando as características psicológicas do arguido.”

Começando pelo primeiro ponto de facto, o de que se encontrava alcoolizado quando praticou os factos descritos em 10., o sentido da impugnação não é claro e só o compreendemos como referido ao grau de alcoolemia, já que foi dado como provado, nesse mesmo ponto, que o arguido estava “algo alcoolizado”.

Ora, explicita-se no exame crítico que “o arguido encontrava-se algo alcoolizado no episódio referente ao facto provado 10, tendo em contas as declarações do próprio arguido e o depoimento do agente policial PN, que o encontrou nesse estado logo a seguir à ocorrência”, que são precisamente as mesmas provas que agora o recorrente utiliza como supostamente conducentes a resultado diferente. Mas da audição destas nada mais se retira, sendo apenas legítimo concluir da forma como o tribunal o fez, tanto mais que o recorrente revelou recordar-se em grande parte do episódio ocorrido nessa noite (conforme ainda explicitação da prova feita no acórdão na nota 3. de fls. 4), o que será inteiramente conciliável com a versão dos factos considerados provados pelo tribunal.

Passando ao segundo ponto de facto, a ocorrência de uma chamada telefónica não se prova apenas documentalmente.

Do sistema da prova livre, por contraposição a um sistema de prova tarifada, resulta que este facto se pode provar por qualquer meio idóneo, designadamente, por prova pessoal, como foi o caso. Esta prova (pessoal) consistiu essencialmente no depoimento da testemunha-vítima, mas não exclusivamente. A esta questão voltaremos.

É certo que, na tipologia das provas, o documento (da operadora telefónica, relativo à informação de dados de tráfego) apresentar-se-ia como o meio ideal de comprovação do facto em causa. Mas a questão, agora é já, apenas, a de apreciar da suficiência das provas produzidas.

E o resultado, positivo, a que o tribunal chegou fundou-se essencialmente no depoimento da vítima. O que não é de estranhar, nem no tipo de crime em causa, nem na forma como se materializa o facto probando em apreciação – uma chamada telefónica acontece entre dois colocutores (no caso, arguido e assistente), que podem ser assim as suas duas únicas “testemunhas”.

Vejamos, então, como se demonstraram os factos relativos à chamadas telefónicas efectuadas pela arguido e dirigidas a LF.

De acordo com o exame crítico de prova “os telefonemas e demais comportamentos referidos nos factos provados 3, 4, 6 a 14 foram confirmados e explicados em julgamento pela ora demandante, LF tendo descrito o sucedido de um modo notoriamente genuíno e sincero, revelando factos por si percepcionados.”

Na verdade, a ofendida, em declarações a cuja audição integral procedemos, tudo narrou e confirmou, justificando-se o juízo de credibilidade que o tribunal lhes deu.

A prova por declarações da assistente é livremente valorável (e valorada) em conjunto ou no confronto com a prova por declarações de arguido. No caso, a versão da ofendida não se encontra totalmente desacompanhada, como defende o recorrente, tendo sido suportada por outra prova, como se verá. Também não se mostra infirmada por prova verdadeiramente ou totalmente de sinal contrário, para além das declarações do arguido (de negação de muitos dos factos típicos, mas não de todos eles).

As declarações de arguido não são, em abstracto, menos credíveis do que as da vítima. As declarações de arguido, meio de defesa mais do que meio de prova, são corolário do direito a ser ouvido, do direito a falar e/ou a não falar, não podendo existir qualquer penalização mesmo indirecta decorrente do exercício de um direito. E mesmo aceitando-se que o arguido tenha um interesse no desenrolar do processo e no seu desfecho, esse interesse também se verifica por parte da assistente.

Seria, pois, juridicamente errado explicar o menor peso probatório das declarações de arguido com a ausência de juramento ou com o seu interesse no processo. É juridicamente errado retirar daí qualquer dedução contra o arguido. Mas o exame crítico da prova não revela que o tribunal tenha formado o seu juízo de convicção com deformação das regras e princípios da prova.

O in dubio pro reo impõe a valoração do non liqued, em questão de prova, no sentido favorável ao arguido. Só que, no caso, não se está em presença de um non liqued pois as provas dos factos ora impugnados convenceram (e convencem) no sentido da condenação.

O tribunal justificou porque razão a negação do arguido não convenceu.

Veja-se, por exemplo, o excerto: “O arguido negou ter efectuado telefonema provado em 12., alegando ainda que se encontrava alcoolizado e sob a influência de medicamentos, apesar de também afirmar que tinha urna amnésia em relação ao sucedido nessa noite. Porém, as suas declarações foram inconsistentes a este respeito, na medida em que essa amnésia também não lhe permitiria recordar-se de não ter feito essa chamada telefónica, nem aquilo que sucedeu imediatamente antes e após a altura em que esse telefonema sucedeu. Porém, nas suas declarações em julgamento, o arguido referiu tais factos sucedidos pouco antes e depois do telefonema, retirando credibilidade àquela negação.”

Dissemos que a prova por declarações da ofendida se encontra acompanhada de depoimento complementar ou corroborante de outras testemunhas, que embora nem sempre presenciais dos factos principais, revelaram conhecer factos circunstanciais, indiciantes da verdade da versão da ofendida. E se destes depoimentos, isoladamente, pouco se retiraria, eles constituem indício para convencimento da verdade da versão da ofendida.

Há, porém, um testemunho corroborante que merece especial destaque, dado colocar dúvidas de legalidade de prova.

A questão não foi, até agora, sinalizada no processo. Não a trata o acórdão, nem tão pouco a suscitam o arguido no recurso ou o Ministério Público na resposta. Trata-se, porém, de matéria de conhecimento oficioso, já que se envolve na temática das proibições de prova.

Referimo-nos ao seguinte segmento da motivação da decisão de facto: “A chamada telefónica identificada no facto 12 também foi confirmada pelo depoimento da testemunha MF, que ouviu o seu teor, confirmando-o em julgamento.”

MF é filha da ofendida e enteada do arguido. Ela depôs, efectivamente, de forma a confirmar os factos descritos no ponto 12., que são estes: “o arguido ligou para o telefone fixo da residência onde se encontrava a sua ex-mulher LF, vociferando «L, já não tenho nada a perder, eu vou preso, mas tu vais para Quelfes, vou-te espremer toda!»”.

O acórdão não o diz, mas do registo da prova de julgamento (gravação do depoimento da Madeleine Faísca) resulta que a testemunha acedeu às palavras do arguido por via do sistema “alta-voz”, embora nada tenha sido dito (ou perguntado) sobre como ou sobre quem accionou o sistema, se a testemunha se a assistente.

Sob a epígrafe de “legalidade da prova”, o art. 125º do C.P.P. consagra o princípio da atipicidade da prova em processo penal, sendo admissíveis todas as provas que não forem expressamente proibidas por lei.

No caso, trata-se de meio de prova livre e lícito – prova testemunhal – tanto mais que a pessoa em causa não se encontra na situação prevista no art. 134º do C.P.P., dispensando quaisquer outras formalidades para além das previstas no art. 91º do C.P.P., que foram cumpridas.

Assim, em princípio, a validade da produção (da prova) justifica a legalidade da apreciação (da mesma prova), ou seja, a uma regularidade formal corresponde por regra uma validade material do depoimento.

Mas, nem tudo o que é dito por testemunha que depõe formalmente conforme ao direito pode ser sem mais e sempre (livremente) valorado pelo julgador. Assim acontece, por exemplo, na situação prevista no art. 129º do C.P.P..

No caso sub judice, MF narra factos de que revelou ter conhecimento directo por os ter presenciado – o evento “chamada telefónica”, a sua recepção pela assistente, o dia e hora em que ocorreu, a reacção da assistente … Nesta parte, a prova é livre e, como tal, valorável sem restrição.

Mas, também reproduz as locuções ouvidas através do telefone, proferidas por interlocutor ausente.

Ou seja, a testemunha escutou palavras transmitidas em chamada telefónica que não lhe era dirigida. E escutou-as por via do accionamento de meio técnico (sistema alta-voz) não conhecido nem consentido pelo dono da voz escutada.

Não era, pois, incontroverso que tal depoimento fosse sem mais, nesta parte, prova permitida e livremente valorável.

Os direitos à palavra e à privacidade beneficiam de consagração constitucional (art. 26º, nº1 da CRP).

No caso, não tendo havido gravação das palavras proferidas pelo arguido, mas mera audição directa por terceiro (de palavras proferidas em chamada telefónica sem o conhecimento de quem as proferiu), a questão deve colocar-se não tanto ao nível da protecção da palavra, mas da tutela do sigilo das comunicações e da privacidade.

O art. 194º do Código Penal pune aquele que, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicações ou dele tomar conhecimento.

Protege a privacidade das comunicações telefónicas, a confiança comunitária no sigilo das comunicações telefónicas, a confiança colectiva em que estas se estabeleçam e desenrolem sem perturbações ou devassas indevidas (assim, Costa Andrade, Comentário Conimbricense, I, pp. 725s).

O art. 32º da CRP declara nulas as provas obtidas mediante intromissão nas telecomunicações.

O art. 126º do Código de Processo Penal proíbe o aproveitamento das provas obtidas mediante intromissão nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.

As comunicações telefónicas pressupõem a intervenção simultânea de duas pessoas, ambas portadoras do bem jurídico e com iguais direitos e igual poder de domínio sobre a comunicação. É-lhes reconhecido – a ambas – o direito, constitucionalmente garantido, de que seja vedado o acesso de terceiros às suas conversas privadas – mesmo quando, ou sobretudo quando, essas conversas se desenrolam à distância e por intermédio de um canal de comunicação, o telefone.

Será, pois, em princípio, ilícito o acesso – a intromissão – de terceiros nestas conversas, sem o conhecimento e o consentimento dos interlocutores.

É, aliás, essa a conduta tipicamente ilícita (art. 194º do Código Penal).

A prova assim obtida, escutada por intermédio de qualquer sistema de captação ou de acesso ao som (da palavra), desde logo porque eventualmente obtida através da prática de crime, é em princípio prova proibida (sobre a ausência de unanimidade no tratamento da questão, quando estão em causa provas obtida por privados e não pelo poder público, como é o caso, ver Costa Andrade, Das Proibições de Prova em Processo Penal, 1992. pp 40s).

Pode, no entanto, ocorrer causa de justificação, consistente numa legítima defesa – obter testemunho do crime praticado pelo arguido para o enfrentar e obstar a que prossiga na agressão – ou num direito de necessidade (probatório) – agir para obter prova para o perseguir criminalmente.

Tudo depende dos contornos totais do acontecido, que, num caso de prova como a presente devem ser aprofundados e apurados, sob pena de rejeição. O que não sucedeu no caso presente.

Por outro lado, da justificação (licitude penal) do comportamento, por si só, poderá não resultar a viabilidade (aproveitamento) da prova em processo penal (embora tal leitura pareça resultar do art. 167º do C.P.P.). A lei penal substantiva é fonte do direito das proibições de prova, mas não esgota a problemática da licitude da prova em processo penal (assim, Costa Andrade, loc. cit).

Cumpriria, por último, equacionar da relevância do consentimento de um dos interlocutores telefónicos, isoladamente por si e no desconhecimento do outro, no acesso de terceiro à conversa.

Aqui não seria ainda indiferente o saber se a expressão em causa, atribuída ao arguido, se integrou num diálogo (inter-comunicacional), numa conversa (o que inclui a discussão verbal), ou se consistiu apenas na prolação de expressão unívoca, sem mais. Ou seja, se consistiu numa simples proposição unilateral e só com um sentido, destinada ao receptor a quem foi entregue (embora não pessoalmente cara-a-cara).

Importaria também saber quem accionou o alta-voz (a testemunha ou a ofendida?), para que efeito (utilização como prova do crime ou utilização pessoalmente contra o arguido?), se o sistema alta-voz era conhecido do arguido, se previu e aceitou que as suas palavras fossem escutadas.

Os contornos totais do acontecido apresentam-se como imprescindíveis à decisão sobre a licitude desta prova (na parte que respeita à expressão ouvida em alta-voz)

Esta decisão tem merecido tratamento jurisprudencial divergente.

Assim, no acórdão do TRC de 28-10-2008 (Vasques Osório) decidiu-se que “o depoimento prestado por uma testemunha, sobre factos jurídico-penalmente relevantes e obtidos através da função de “alta voz”, quando efectuado sem o conhecimento e o consentimento do emissor de voz, é uma intromissão em telecomunicações e deve ser taxado como prova nula”. E no acórdão TRP 26-05-2004 (Borges Martins) considerou-se que “a prova testemunhal que se limita a reproduzir a conversa telefónica havida entre o arguido e a ofendida, com o consentimento desta, não é nula por não constituir uma intromissão nas telecomunicações”.

O Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no acórdão de 07-02-2001 (rel. Leonardo Dias, sumariado em www.pgdl.pt ) no sentido de que “o acesso ao conteúdo de uma comunicação telefónica com recurso a um meio técnico de audição, como é o alta-voz, integra o conceito jurídico-penal de intromissão (objectiva) em telecomunicações do art. 194.º, n.º 2, do CP. Logo, é seguro que preenche o referido tipo legal de crime a conduta de quem se intromete voluntária e intencionalmente no conteúdo de comunicações telefónicas, mediante recurso a um alta-voz, com tomada de conhecimento, do mesmo modo voluntária e intencionalmente, desse conteúdo. Ao abrigo das disposições contidas nos arts. 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º, n.º 3, do CPP, os depoimentos prestados, na qualidade de testemunha, por quem se intromete, na referida forma, no conteúdo de comunicações telefónicas, na parte em que se reportam a esse mesmo conteúdo, são provas nulas”. Esta decisão contou com o voto de vencido de Leal-Henriques, no sentido de que, no caso concreto, “não se reuniam os requisitos de aplicação do art. 194º, nº2 do Código Penal e 126º, nº 3 do Código de Processo Penal”, para o que considerou relevante “a compreensão e apreensão das condições e do circunstancialismo que rodearam os factos concretos” que fundamentam a conclusão expressa no voto no sentido da licitude do aproveitamento da prova em causa.

Este voto de vencido mostra a importância da definição prévia dos contornos totais factuais da prova em crise, para a decisão definitiva sobre a sua legalidade.

Por tudo, concluímos que a prova em causa não é, sem mais, prova livre; que também não é necessariamente, sempre e sem excepção, prova proibida; que uma decisão definitiva sobre a sua admissibilidade pressupõe o conhecimento dos factos que rodearam o acesso à conversação telefónica.

Estes factos instrumentais desconhecem-se no caso, como se disse.

E não contendo os autos a informação indispensável à correcta decisão sobre a licitude do testemunho (na parte em crise), não era possível incluí-lo no conjunto das provas livremente valoráveis, como se fez no acórdão em crise.

Acontece que o depoimento da testemunha não se apresentou nesta parte – na parte de duvidosa admissibilidade – como indispensável à decisão da causa, na leitura que fazemos da fundamentação da decisão de facto.

Dissemos já, de acordo com o que também resulta do exame crítico da prova, que a demonstração do facto probando resultou das declarações da assistente, que o confirmou, corroboradas ainda pelo depoimento da testemunha MF, considerado agora apenas na parte valorável. Ou seja, aproveitando-o agora apenas na parte respeitante à ocorrência do telefonema (não ao seu conteúdo) e às reacções da assistente, presencialmente observados pela testemunha, nada de essencial se altera quanto à força global das provas, na leitura que delas foi feita pelo tribunal de julgamento.

Não se afigura, assim, imprescindível ao juízo de “provado” a que o tribunal de julgamento chegou que esta testemunha tivesse confirmado ainda o teor exacto da expressão oral escutada em alta-voz.

Por tudo se conclui que se justifica o juízo de “provado” relativamente a todos os factos (integrantes da ilicitude objectiva) como tal considerados no acórdão, embora expurgado agora, o exame crítico, deste segmento da prova.

Fica igualmente esvaziada de conteúdo a afirmação do recorrente de que “os encontros entre o arguido e a assistente não foram intencionais mas ocorreram por acaso, pois o recorrente e a assistente estão “condenados a encontrar-se” dado a localização próxima (cerca de 300m) da casa do recorrente e da casa da mãe da assistente”, feita agora por referência ao relatório da equipa de vigilância electrónica de Loulé onde se diz “ não ser possível aferir se estes comportamentos do arguido são ou não intencionais e premeditados; inexiste prova de que os encontros sejam intencionais e não casuais”.

Uma coisa é o que as equipas de vigilância não apuraram e outra é aquilo que se provou nos autos: ficou claro que, no caso sub judice, não se tratou de nenhum encontro acidental, em que o arguido acidentalmente se cruzasse com a assistente, nada dizendo ou nada fazendo contra ela.

No recurso da matéria de facto impugnam-se, por último, os factos relativos à imputabilidade.

Reservámo-los para final, não só pela ordem de alegação, mas por se ligarem mais directamente com a matéria de direito.

Defende o arguido que o depoimento da testemunha JC, médico psiquiatra, não foi devidamente atendido pelo tribunal, já que relatou situação do foro psíquico que deveria ter conduzido à atenuação especial da pena ou mesmo à absolvição.

Se bem entendemos a alegação (que, também aqui, não é clara), pretende-se a sindicância do juízo dos factos relativos à culpabilidade, efectuado no acórdão. O recorrente não requereu perícia psiquiátrica (art.159º, nº7 do C.P.P.), o que no entanto não dispensaria o tribunal de a ordenar oficiosamente, ou a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico do arguido no caso de dúvida sobre a imputabilidade (351º do C.P.P.). Não foi o caso, uma vez que a questão da inimputabilidade (nº1 do art. 353º) ou da imputabilidade diminuída (nº2 do art. 351º) não se colocou ao tribunal.

Vejamos, então, a concreta prova indicada quanto a este concreto facto.

Trata-se do depoimento da testemunha JC, médico psiquiatra que tem vindo a acompanhar clinicamente o recorrente, oferecido como testemunha pelo próprio.

Em depoimento a cuja audição procedemos, referiu, em síntese e no essencial, que o arguido padece de depressão crónica com somatização e ansiedade, tem traços obsessivo-compulsivos e que, embora não tenha uma personalidade patológica, como o sociopata ou o psicopata, revela traços de personalidade não adaptativa, dismatura, tipo borderline.

Em momento nenhum do depoimento é dito ou sequer sugerido que o arguido não consiga avaliar a reprovabilidade dos seus actos, que não tenha consciência deles ou que esteja impedido de proceder a essa avaliação, nem que esteja impossibilitado de agir de acordo com um comportamento social adequado e normal. A todas as questões colocadas pelo Senhor Juiz Presidente a testemunha respondeu em sentido não excludente dessa capacidade de avaliação e de adequação do comportamento.

Não faz, por isso, sentido suspeitar da inimputabilidade nem de uma imputabilidade diminuída.

O recorrente é imputável relativamente aos factos por ele cometidos neste processo.

Mas ficou provado que “A dor crónica no ombro produziu alterações da sua personalidade e do seu carácter, fruto, também, dos seus estados depressivos. No entanto, estas alterações não diminuem, ou suprimem a sua consciência e valoração dos seus próprios actos. O arguido tem uma personalidade dismatura, tipo borderline, mas responsável pelos seus actos, tendo ainda apresentado uma situação de depressão com ansiedade generalizada e deixado de ser seguido por um psiquiatra há cerca de um ano.

O mesmo encontra-se reformado por invalidez desde 2007, auferindo urna pensão mensal no valor aproximado a trezentos euros”.

E estes traços não adaptativos da personalidade do recorrente, bem como a depressão crónica e a ansiedade, que são uma doença de que o arguido padece, não podem deixar de relevar em certa medida, na pena, pois diminuem ligeiramente a culpa do agente.

E entramos no recurso da matéria de direito (pena).

O arguido não manifesta incapacidade de compreensão do ilícito do facto nem incapacidade de controlo da acção, como se disse, pelo que se apresenta totalmente passível de culpa.

Mas o seu quadro pessoal psíquico, que recomendará um acompanhamento médico, coloca o arguido numa posição de desfavor relativamente ao cidadão médio e à normal capacidade de adequação do comportamento deste ao Direito.

Vejamos como releva, na medida da pena.

Partindo do quadro legal de referência e sufragando-se a construção dogmática de Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005), acompanhado por Anabela Rodrigues (A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995), a pena prossegue finalidades exclusivamente preventivas.

Figueiredo Dias resume o seu pensamento da forma seguinte: “toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais” (Direito Penal Português, Parte Geral I, Coimbra Editora, 2004, p.81).

A prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, não podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, tendo a culpa como limite.

À culpa fica, pois, reservado o papel de “incontestável limite de medida da pena assim encontrada” (Anabela Rodrigues, A determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 570-576).

Vejamos como o tribunal justificou a pena:

“O crime de violação de imposições, proibições ou interdições p, e p, pelo disposto no art, 353º do Código Penal é punível com uma pena de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias; Importa, ora, analisar, no seguimento da orientação inserta no art. 70° do Código Penal, se a pena de multa deverá ser preferida, in casu, em detrimento da pena de prisão. O critério legal a seguir é simplesmente este: o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa (de multa) sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição. (…)

Para a determinação da espécie de pena a aplicar, importa ter presente os seguintes factores de ponderação: a) Os antecedentes criminais importantes do arguido, em que existe coincidência de vítima em relação ao crime de violência doméstica; b) A evolução da sua conduta pessoal, indiferente, inclusivamente, à pena acessória de proibição de contactos a que estava sujeito. Tais fatores exigem acentuadas e indiscutíveis preocupações de prevenção especial.

Pelo exposto, opta-se pela pena de prisão, por esta se afigurar como a única susceptível de assegurar as finalidades de prevenção especial e de protecção dos bens jurídicas. Depois de ter sido concretizada a espécie da pena, importa, ora, concretizar (…). Neste domínio, cumpre considerar, em especial, o seguinte, quanto aos crimes em

• a intensidade dolosa manifestada em todos os crimes (dolo directo) constitui factor de agravação da pena de carácter geral, dotado de reduzida eficácia (art. 71 ° 2 b) d o Código Penal)

• as exigências de prevenção especial fazem-se notar pela existência das condenações penais anteriores, constituindo estas duas agravantes de carácter geral dotados de média eficácia em relação às penas a aplicar;
• a duração temporal já significativa do crime de violência doméstica, reveladora de persistência na conduta criminosa, integra uma circunstância agravante dotada de média/elevada eficácia na ponderação da pena por tal crime;

• a reiteração da violação da proibição de cantatas revela também uma persistência na conduta criminosa, integrando circunstância agravante dotada de média/elevada eficácia na ponderação da pena por esse crime;

• a personalidade dismatura, tipo borderline, mas responsável pelos seus atos, tendo ainda apresentado uma situação de depressão com ansiedade generalizada, integram circunstâncias atenuantes de média eficácia, compreendendo-se esta mitigação no âmbito da medida da culpa do arguido;

• o grau reduzido de violência utilizado pelo arguido na prática do crime de violência doméstica integra uma circunstância atenuante de elevada eficácia para a determinação da pena respeitante a este crime;

A pena acessória terá de ser fixada no seu máximo legal, tendo em conta a história pessoal do arguido, que evidencia propensão flagrante de reincidir na prática de crime de violência doméstica, tendo por vítima a sua ex-mulher.

Analisando-se com atenção tais critérios de determinação da pena e tendo em especial atenção a limitação da pena pelo grau de culpa do agente do crime, considera-se ajustadas as seguintes penas:

a) 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão e uma pena acessória de 5 anos de proibição de quaisquer contatos com LF, para punir o crime de violência doméstica;

b) 1 (um) ano de prisão, para o crime de violação de proibições ou interdições,

Encontrando-se os crimes cometidos pelo arguido numa situação de concurso real ou efectivo de infracções penais, praticadas antes de transitar em julgado a condenação por qualquer delas, impõe-se a sua condenação numa única pena, «ex vi» do art. 77° do Código Penal.

(…) Ponderando-se, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, manifestados na fattispecie apurada em audiência, que já foram valorados na aplicação das penas acima decididas e salientando, em especial, a diversidade de bens jurídicos violados pelo arguido nos dois crimes, bem como o grau mediano da ilicitude e da culpa revelados na sua prática, considera-se ajustada a pena de 3 (três) anos de prisão, à qual acresce a pena acessória de 5 anos de proibição de quaisquer contatos com LF.

A lei penal permite, à partida, a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido, atento o seu quantum (artigo 50°, n.º 1, do Código Penal):

Para que tal deva suceder, a lei concretiza os seguintes requisitos: (…) A possibilidade de suspensão da execução da pena apenas poderia ser posta em causa, in casu, pela existência de antecedente criminal.

Porém, tendo em conta os crimes cometidos pelo arguido e a natureza e conteúdo dos antecedentes criminais, em especial por crime de violência doméstica, tendo por ofendida a mesma vítima e tendo o arguido desperdiçado, claramente, as oportunidades emergentes da suspensão da execução das penas anteriormente aplicadas, entende-se que o arguido não poderá beneficiar, novamente, da suspensão da execução da pena, uma vez que tal iria, certamente, resultar numa nova frustração das finalidades da punição, in casu, a proteção dos bens jurídicos. Pelo exposto, a pena de prisão não poderá deixar de ser efetiva.”

As razões plasmadas no acórdão reflectem as exigências de prevenção geral, acertadamente destacadas, e as exigências de prevenção especial diagnosticadas no caso. Justifica-se, também, adequadamente, a opção pela pena de prisão (no caso do crime de violação de proibições e imposições, que prevê pena alternativa).

Considera-se, no entanto que as penas proferidas ultrapassaram o limite da culpa.

Culpa é “a censurabilidade do comportamento humano, por o culpado ter actuado contra o dever quando podia ter actuado «de outra maneira», isto é, de acordo com o dever” (Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa e Direito Penal, 1995, p. 244).

O agente deve ser censurado pela sua personalidade revelada no facto, pelos aspectos desvaliosos da sua personalidade e contrários ao direito revelados no facto – culpa na formação da personalidade.

“Mas a personalidade, como objecto da culpabilidade, não abrange a personalidade tal como é na sua conformação total, mas só enquanto e na medida em que for adquirida voluntariamente. É o modo voluntário de aquisição da personalidade que importa sobremaneira à delimitação da culpa referida à personalidade” (Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, 2010, II, p.12).

Assim sendo, não podem deixar de relevar as circunstâncias extrínsecas à vontade do agente e que confluíram, também, na formação da sua personalidade desvaliosa.

No caso, provou-se que o arguido tem uma personalidade dismatura tipo border-line e que padece de doença psiquiátrica, com depressão e ansiedade, problema que teve origem em dor crónica – “Após ter sido operado a uma omoplata em 1994, o arguido teve uma crise álgica e foi reoperado em 8 de Fevereiro de 2005 e 29 de Setembro do mesmo ano, na Alemanha, para reparação da cicatriz. A dor crónica no ombro produziu alterações da sua personalidade e do seu carácter, fruto, também, dos seus estados depressivos.”

A sua capacidade de controlo de acção não estará exactamente ao mesmo nível da capacidade do homem médio, pelo que a sua capacidade de culpa se encontrará também algo diminuída (v. JJescheck, Weigend, Tratado de Derecho Penal, 2002, p. 475). Mas trata-se de uma diminuição ligeira e não acentuada, comum à generalidade dos quadros depressivos e de ansiedade.

Não há, por isso, sequer lugar à atenuação especial de pena, aplicável apenas em situações de excepção, em que a moldura abstracta prevista para o crime se apresenta como manifestamente desproporcionada e exagerada face ao caso concreto. Não é o caso.

A(s) medida(s) abstracta(s) consentem a determinação da pena justa.

Não se justificando o funcionamento do art. 72º do C.P., já que inexiste acentuada, diminuição da culpa, tal diminuição (ligeira) terá então de relevar como atenuante geral.

O limite da culpa situa-se aquém do ponto fixado em primeira instância. Pelo que as penas deverão ser reduzidas em conformidade com a medida da culpa.

Reduz-se a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão (crime de violência doméstica do art. 152°, 1, a) e 4 do C.P.) para 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão e a pena de 1 (um) ano de prisão (crime de violação de imposições, proibições ou interdições do art. 353° do C.P.) para 8 (oito) meses de prisão. Fixa-se a pena única em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão. Mantém-se a pena acessória de 5 (cinco) anos de proibição de quaisquer contactos com LF.

Consigna-se, por último, que permanecem acertadas as considerações expendidas quanto às exigências de prevenção especial, que impõem a aplicação de pena efectiva de prisão. Aqui, o “desvalor do facto é valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização” do agente (Anabela Rodrigues, loc. cit.), que demandam a efectividade da pena.

O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 15 de Novembro de 2010, pela prática de um crime de violência doméstica, tendo por vítima LF na pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova que incluía, além do mais, a proibição de contactar, por qualquer forma, ou de se aproximar, de LF; e na pena acessória de proibição de todo e qualquer contacto com LF, pelo período de cinco anos; e por sentença de 8 de Maio de 2009, foi condenado na pena de 14 meses de prisão, suspensa na execução pelo mesmo período, pela prática, em 3 de Janeiro de 2008, de um crime de ofensa à integridade física qualificada.”

As condenações anteriores, bem como a desadequação/ineficácia das penas de prisão suspensas na execução, comprometem novo juízo de prognose favorável a uma ressocialização em liberdade, não se apresentando o arguido em condições de beneficiar da suspensão da execução da pena (art. 50º do C.P.).

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar parcialmente procedente o recurso, reduzindo-se as penas em que o arguido foi condenado para 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão (crime do art. 152°, 1, a) e 4 do C.P.) e 8 (oito meses) de prisão (crime do art. 353° do C.P.), fixando-se a pena única em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, mantendo-se o acórdão recorrido na parte restante.

Sem custas.

Évora, 12.06.2012

(Ana Maria Barata de Brito)

(António João Latas)