Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1089/16.6T8TMR.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A união de facto, nomeadamente para efeitos de atribuição de prestação de morte ao membro sobrevivo da união, pressupõe a existência entre os membros da união de um projecto de vida em comum, análogos à vivência marital, que deve ser concretizado por uma comunhão plena de vida, nomeadamente por uma comunhão de mesa, leito e habitação que deve perdurar, em termos de estabilidade, por um período temporal superior a dois anos, comportando-se os membros dessa união, no fundo, como se de marido e mulher se tratassem.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 1089/16.6T8TMR.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

Caixa Geral de Aposentações, I.P. veio propor a presente acção declarativa de simples apreciação, nos termos do disposto no art. 6° da Lei 7/2001, de 11/5, contra (…), pedindo a declaração de existência ou inexistência de união de facto.
Para tanto alegou, em resumo, que a R. requereu ao A. a atribuição de pensão de sobrevivência e reembolso de despesas de funeral por óbito de (…), alegando que viveu em união de facto com aquele. Sucede que, (…), filho do falecido e requerente da pensão de sobrevivência e pensão por morte, veio apresentar requerimento indicando que o progenitor não vivia em situação de união de facto com a R. A morada desta diverge da morada do falecido, constante dos registos da Caixa Geral de Aposentações. Ao pronunciar-se sobre a proposta de indeferimento do requerido pela R., esta veio apresentar prova da vigência da união de facto, sendo que prova da inexistência de tal situação foi igualmente apresentada por … (filho do falecido). As prestações sociais solicitadas pela R. foram indeferidas por despacho de 15/09/2015, já que o A. entende que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, por contraditoriedade das informações prestadas pelos interessados, pelo que importa apreciar judicialmente a existência/inexistência da referida situação.
Devidamente citada para o efeito veio a R. apresentar a sua contestação, na qual, em suma, vem alegar factos tendentes a caracterizar e demonstrar a situação de união de facto existente entre si e o falecido (…), união de facto essa que deverá ser declarada judicialmente na presente acção.
Foi proferido despacho a dispensar a realização de audiência prévia, elaborou-se o saneador, com fixação do valor da causa, delimitou-se o objecto do litígio e fixaram-se os temas de prova.
Posteriormente foi realizada a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença que julgou a presente acção improcedente, por não provada e, em consequência, não declarou verificada a situação de união de facto entre a R. e o (…).

Inconformada com tal decisão dela apelou a R., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
a) Entende a Recorrente que o Tribunal a quo não apreciou devidamente a prova produzida em audiência de julgamento e que a mesma devidamente apreciada e julgada impunha decisão contrária, pelo que dela recorre, com base no seguinte;
b) O tribunal a quo deu como não provados os factos constantes das alíneas 2.1, 24, 2.5, 2.6 e 2.13;
c) O que, no nosso entendimento, foi claramente provado;
d) E a prova destes pontos, só por si, impõe decisão diversa;
e) Quanto ao 2.1, resultou como não demonstrado o vertido fundamentando o Tribunal a quo que "das provas colhidas, não é possível, porém, com segurança, concluir que a R. alguma vez tenha pernoitado naquela residência ou que aí encetasse qualquer outra actividade, designadamente fazendo as refeições ou a lide doméstica, já que nenhuma testemunha atestou tal facto. Aliás, as testemunhas por si indicadas não revelam qualquer conhecimento ou conhecimento presencial desta situação que permita contrariar o que defini dos depoimentos ora indicados".
f) Contudo, e da análise da prova produzida em sede de julgamento, não se pode retirar tal conclusão, analisando o testemunho de (…), sessão de audiência de 5 de Maio de 2017, de (…), sessão de audiência de 5 de Maio de 2017, de (…), na sessão de audiência de julgamento de 31 de Março de 2017.
g) O tribunal a quo dá como provado que a R. e (…) faziam deslocações à residência deste, sita nas (…) e da prova supra mencionada na letra supra, resulta que em tais deslocações a R. confeccionava as refeições para ambos, passar a ferro e fazer as lides domésticas.
h) Consta também dos factos não provados no ponto 2.4., deveria ser dado como provado caso o Tribunal a quo tivesse atendido às declarações da testemunha (…), da testemunha (…) e da testemunha (…).
i) De onde resulta que o Tribunal a quo devia ter dado como provado que a R. juntamente com (…), iam buscar a filha daquele ao aeroporto de Lisboa, quando esta se encontrava a frequentar o programa Erasmus na Republica Checa, ou seja, o ponto 2.4 deveria ser dado como facto provado.
j) No que se refere ao ponto 2.6 dos factos não provados tal foi fundamentado nas declarações da testemunha (…), na sessão de audiência de julgamento de 31 de Março de 2017.
k) Porém, a fundamentação não reflecte a veracidade das declarações da testemunha.
l) Alias, deste resulta o oposto, isto é, que a Recorrente e (…) tomavam todas as decisões conjuntas.
m) Que a gestão da casa era feita em conjunto.
n) E mais sempre que um não tinha dinheiro o outro ajudava.
o) Faziam as compras em conjunto, o que também decorre do depoimento da testemunha, (…), de (…) e de (…).
p) Não se concebe o parco valor que o Tribunal a quo deu ao apreciar o testemunho de (…), uma vez que este foi claro, conciso e de extrema importância.
q) Este diz claramente que já tinha sido ele a fazer o baptizado de uma filha da R. e que no ano de 2014 fez o baptizado da neta da R., filha de (…), que é filha da R.
r) E mais quem organizou e pagou tal baptizado foi conjuntamente a R. e o (…).
s) Também não deu o Tribunal a quo como provado o ponto 2.13 por entender que da consideração dos depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…), pessoas das relações de (…) que nenhuma impressão tinham quanto à maior consistência do relacionamento da R. com (…).
t) De facto, de acordo com a prova produzida era pouco provável que as testemunhas acima referenciadas encontrassem a Recorrente e o seu companheiro (…), diariamente, na localidade de (…).
u) Pois, o centro de vida em comum da Recorrente e de (…) era em Tomar.
v) O falecido (…) dirigia-se ao lugar de (…) apenas para visitar a mãe e cuidar da horta e da vinha, na sua casa, o que aliás foi corroborado por (…), (…) e por (…).
w) Aliás, o testemunho destes permitiu precisar momentos concretos da permanência do (…) no Lugar de (…) e não actos de vida quotidiana e corrente.
x) Pelo que entende a Recorrente que nenhumas das declarações destas testemunhas permitem fundamentar e dar como não provado o facto de a R. e (…) serem reconhecidos como marido e mulher e assim tratados por todos com quem se relacionavam e no meio em que residiam.
y) Mais, a testemunha (…) refere claramente que os via como namorados, desconhecendo se aqueles viviam maritalmente.
z) Jamais o Tribunal a quo deveria dizer que a testemunha, (…), "espontaneamente não deixa de dizer que os via como namorados, desconhecendo se aqueles vivem maritalmente", uma vez que em bom rigor, a testemunha diz que não viviam maritalmente porque não eram casados, não havia o vínculo. Mas que, e não sendo casados, considerava-os como um casal.
aa) Por outro lado, dividiam o seu tempo em conjunto entre várias (quatro) residências e até aos últimos dias de vida do falecido (…), passaram a residir a maioria dos dias, em Tomar.
bb) O que, aliás, é corroborado pela testemunha (…).
cc) Do que antecede, entende a Recorrente que a apreciação do Tribunal a quo foi no mínimo insuficiente, senão mesmo deficitária, uma vez que deu relevância a parte de declarações de uma testemunha, sem a valorizar na totalidade, nem valorizar as restantes testemunhas.
dd) Na verdade e ao contrário do facto dado como não provado, resulta da prova produzida que a R. e (…) eram reconhecidos como marido e mulher e assim tratados por todos com quem se relacionavam e no meio em que residiam.
ee) Em bom rigor, todas as testemunhas ouvidas vêm reconhecer a R. e (…) como marido e mulher e referem-no de forma isenta.
ff) Aliás, a própria testemunha (…) não deixa de salientar que considera que eram namorados, na altura de 2010/2011, bem como refere que a R. preparou uma festa de aniversário e que a R. estava presente nas vindimas.
gg) Diversas incongruências relevam nos depoimentos das testemunhas da A., nomeadamente, como (…) que diz que viu a R., pela primeira vez, no Verão de 2015, quando (…) faleceu em 09 Março de 2015.
hh) De uma forma geral, dado os seus depoimentos não literais, as testemunhas da A. afirmam que a Recorrente e (…) eram conhecidos como marido e mulher e assim por todos tratados com quem se relacionavam e no meio em que residiam, (…), (…), (…).
ii) Das declarações das testemunha resulta, em nosso entender, uma perfeita descrição da relação da Recorrente e do (…), nomeadamente foram juntos para excursões, pernoitando juntos.
jj) As testemunhas que visitaram o (…), já no seu período de doença, sempre foram a casa da Recorrente.
kk) A R. e (…) eram ainda reconhecidos como casal no meio em que residiam, o que afirma a testemunha (…).
ll) A Recorrente apresentava sempre o (…) como seu companheiro, como nesse sentido afirmam as testemunhas (…), (…).
mm) Entende, também, a Recorrente ser de apreciar e valorizar, as declarações de (…), pessoa isenta e com um depoimento claro e preciso.
nn) O (…) falava da R. como sua companheira e a Recorrente do (…) como companheiro.
oo) No entendimento da Recorrente não deu como provado factos que resultam provados e que devidamente analisados e ponderados impunham claramente decisão em sentido oposto.
pp) De acordo com os testemunhos supra descritos, demonstrada se encontra a regularidade da partilha de quarto e cama, bem como regularidade das refeições tomadas em conjunto, e a data desde que passaram juntos os dias festivos, nomeadamente Páscoa, Natal e fim de ano acompanhadas das respetiva família.
qq) A este propósito, vejam-se as declarações de (…) e de (…).
rr) Da prova produzida resulta claramente e sem qualquer dúvida que o Tribunal a quo deveria ter dado como provada tal regularidade, pelo menos desde o ano de 2012.
ss) Finalmente e quanto ao não ter dado como provada a regularidade das refeições em conjunto, não andou mais uma vez, bem o Tribunal a quo.
tt) A própria testemunha (…) afirma que desde 2012 a Recorrente e o (…) estavam juntos e que passavam a maioria dos dias numa casa sita em Tomar, até ao falecimento deste.
uu) O que é corroborado por (…).
vv) Devia ainda, e de acordo com estas mesmas declarações, ter dado como provada que pelo menos desde 2012 que passam juntos os dias festivos, nomeadamente o Natal e a Páscoa acompanhados das respectivas famílias.
ww) Ora, decisão contrária se impunha analisada e escalpelizada a prova produzida.
xx) A Recorrente e o (…) viviam em condições análogas aos dos cônjuges, ou seja, a Recorrente e o (…) juntaram-se e passaram a viver em comunhão de leito, mesa e habitação, partilhando todos os momentos de vida, seja os dias festivos Natal, Páscoa como infra se demonstrou, como os dias de doença, como o corrente do dia-a-dia, refeições, despesas, entre outras.
yy) Dúvidas não restam que tinham um projecto de vida em comum, uma comunhão de plena vida.
zz) E que viviam regular e permanentemente juntos.
aaa) Nos termos do disposto do artigo 1º, nº 2, da Lei nº 7/2001, de 11/05, na redacção dada pela Lei nº 23/2010, de 30/08, define-se a união de facto como "a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos".
bbb) Deste modo, a união de facto nomeadamente para efeitos de atribuição de prestação de morte ao membro sobrevivo da união, pressupõe a existência entre os membros da união de um projeto de vida em comum, análogos à vivência marital, que deve ser concretizado por uma comunhão plena de vida, nomeadamente por uma comunhão de mesa, leito e habitação que deve perdurar, em termos de estabilidade, por um período temporal superior a dois anos, comportando-se os membros dessa união, no fundo, como se efetivamente de marido e mulher se tratassem.
ccc) Pelo que entende a Recorrente, após tudo quanto supra se expõe que a decisão da matéria de facto deverá ser alterada e consequentemente ser alterada a decisão, declarando a existência de uma união de facto entre a Recorrente e o (…), desde 2012 e, consequentemente, seja atribuída à Recorrente a respectiva pensão de sobrevivência pela morte de (…).
ddd) Nestes termos e nos melhores de Direito, devem as alegações proceder e, por via disso, deve o recurso obter provimento e ser revogada a decisão recorrida, com as legais consequências, assim se fazendo a costumada Justiça.
Pela A. não foram apresentadas contra alegações de recurso.
Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela R., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova (testemunhal) carreada para os autos, devendo, por isso, ser alterada a factualidade dada como não provada;
2º) Saber se se verificava a existência de uma situação de união de facto entre a R. e o falecido (…), cuja vigência se reportava, pelo menos, desde o ano de 2010.

Antes de nos pronunciarmos sobre as questões supra referidas importa ter presente qual a factualidade que foi dada como provada no tribunal “a quo” e que, de imediato, passamos a transcrever:
1.1. (…) faleceu em 9 de Março de 2015, com última residência habitual em Rua (…), n.º 14, (…), Tomar.
1.2. Em 14 de Abril de 2015, (…) dirigiu à Caixa Geral de Aposentações o requerimento de fis. 10 e ss., solicitando a atribuição de pensão de sobrevivência e reembolso de despesas de funeral por óbito de (…), indicando como sua morada o Beco da (…), (…), Praia do Ribatejo – arts. 1º e 5º da petição inicial.
1.3. No requerimento referido em 1.2., a R. alegou a situação de união e facto com (…) – art. 6º da petição inicial.
1.4. Para o referido em 1.2. e 1.3. a R. juntou a declaração que consta de fis. 14 – art. 3 ° da petição inicial.
1.5. Em 29 de Maio de 2015, (…) apresentou na Caixa Geral de Aposentações o escrito de fis. 15 e 16 e requereu a atribuição de pensão de sobrevivência e subsídio por morte, na qualidade de filho de (…) – art. 4° da petição inicial.
1.6. Em 5 de Junho de 2015, a A. remeteu à R. o ofício de fis. 39 – art. 8° da petição inicial.
1.7. Em resposta ao ofício aludido em 1.6., a R. remeteu à A. o escrito de fis. 40 e ss. – art. 9° da petição inicial.
1.8. Em 27 de Julho de 2015, a A. enviou à R. o ofício com o teor de fis. 7 – art. 10° da petição inicial.
1.9. Em resposta ao ofício aludido em 1.8., a R. remeteu à A. o escrito de fis. 45 e ss. – art. 10º da petição inicial.
1.10. (…) remeteu à A. o escrito de fis. 79 – art. 11° da petição inicial.
1.11. Por despacho de 15/09/2015 a Direcção da Caixa Geral de Aposentações decidiu indeferir a atribuição das prestações sociais por morte de (…), requeridas pela R., nos termos e com os fundamentos constantes de fis. 94 a 97 – art. 16º da petição inicial.
1.12. A R. e (…), desde data não concretamente apurada, mas não posterior a 2010, até à data do falecimento deste, com regularidade não concretamente apurada, passaram a partilhar as residências que a R. mantinha, como casal, sendo que (…) passava também períodos na sua residência sita em (…) sem a R. – arts. 14° e 15° da contestação.
1.13. A R. e (…) não tinham a mesma morada oficial e dividiam em parte, o seu tempo conjunto entre as residências sitas em Tomar e (…), pertencentes à R., sendo que a partir de data não concretamente apurada e até ao falecimento de (…) passavam a maioria dos dias numa casa sita em Tomar – arts. 8° e 26° da contestação.
1.14. No período referido em 1.12. a R. e o (…) partilhavam o mesmo quarto e cama, com regularidade não concretamente apurada, relacionando-se afectivamente – art. 16° da contestação.
1.15. Tomavam refeições em conjunto com regularidade não concretamente apurada – art. 17º da contestação.
1.16. Passeavam e saíam juntos – art. 18° da contestação.
1.17. Faziam deslocações à residência de (…) sita nas (…), com regularidade não concretamente apurada – art. 26º da petição inicial.
1.18. A R. e (…) iam levar e buscar o filho deste, (…), às Caldas da Rainha, onde aquele se encontrava a tirar o curso de artes plásticas – art. 35° da contestação.
1.19. (…) esteve presente aquando do nascimento da neta da R., em Lisboa, tendo aquele e a R. se deslocado vários fins-de-semana a Lisboa, onde pernoitaram juntos, após o nascimento da neta, de modo a apoiar a filha da R. – art. 40° da contestação.
1.20. A R. e (…) partilhavam o mesmo círculo de amigos – art. 19° da contestação.
1.21. A R. e (…) iam juntos a vários convívios de amigos, nomeadamente convívios da Universidade Sénior, que frequentavam, e onde eram vistos por todos como um casal; faziam a vindima na casa sita nas (…), sendo que era a R. que confeccionava as refeições para os amigos – art. 31 ° da contestação.
1.22. A R. e (…) contribuíam com os respectivos rendimentos para a aquisição de géneros alimentícios – art. 20° da contestação.
1.23. A R. sempre apoiou (…) na doença, tendo-o acompanhado nas intervenções cirúrgicas e exames médicos a que foi submetido – arts. 43° e 46° da contestação.
1.24. Pouco antes de falecer, (…) foi internado no Hospital da Luz, tendo a R. e aquele sido conduzidos àquele hospital de táxi – art. 47º da contestação.
1.25. Foi a R. que acompanhou (…) nos últimos dias de vida, ficando no hospital de manhã à noite – art. 48° da contestação.
1.26. A R. e (…) auxiliavam-se mutuamente – art. 24° da contestação.
1.27. Desde data não concretamente apurada, a R. e (…) passavam juntos os dias festivos, nomeadamente Páscoa, Natal e final de ano, acompanhados das respectivas famílias – art. 37º da contestação.
1.28. Em data não concretamente apurada, a R. organizou uma festa de aniversário-surpresa para (…) – art. 34° da contestação.
1.29. Aquando do referido em 1.1., a R. tratou do funeral de (…) – art. 50° da contestação.

Não obstante a R. ter suscitado como primeira questão recursiva o de saber se foi incorrectamente valorada pelo tribunal “a quo” a prova carreada para os autos (sustentando, por via disso, a alteração dos pontos 2.1, 2.4, 2.6 e 2.13 dos factos dados como não provados), entendemos que será de apreciar, desde já, a segunda questão recursiva levantada pela R. – saber se se verificava a existência de uma situação de união de facto entre a R. e o falecido (…), cuja vigência se reportava, pelo menos, desde o ano de 2010 – uma vez que, se tal questão vier a ser julgada procedente, ficará prejudicado, inexoravelmente, o conhecimento da primeira questão recursiva acima identificada.
Posto isto, temos que a questão colocada consiste em saber, afinal, se a R. tem ou não direito às pensões sociais por morte do beneficiário, com quem viveu em situação de união de facto.
Com efeito, a união de facto dissolve-se com o falecimento de um dos seus membros e a definição das condições de atribuição das prestações sociais afere-se por referência à data da morte do beneficiário.
Porém, se é certo que o momento do óbito tem a relevância referida, não passa, no entanto, de elemento de facto despoletador do direito à atribuição da pensão de sobrevivência e subsídio por morte, não sendo elemento constitutivo desse direito.
Ora, tal questão foi equacionada à luz do regime instituído pelo D.L. 322/90, de 18/10, D. Reg. 1/94, de 18/1 e Lei 7/2001, de 11/5, na redacção que lhe foi dada pela Lei 23/2010, de 30/8.
E, interpretando os mencionados diplomas, vinha-se decidindo maioritariamente, que, para que o membro sobrevivo de uma relação de união de facto tivesse direito às prestações sociais do regime geral de segurança social, decorrente do óbito do companheiro(a) beneficiário(a), tinha de provar, cumulativamente, os seguintes requisitos, tidos como elementos constitutivos do direito:
- que vivia com o beneficiário falecido há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges;
- que o beneficiário falecido era pessoa não casada, ou, sendo casada, se encontrava separada judicialmente de pessoas e bens;
- que o companheiro sobrevivo carece de alimentos e;
- que os não podia obter de nenhuma das pessoas referidos nas alíneas a) a d) do art. 2009º do Cód. Civil, nem da herança do falecido companheiro, quer porque não existiam bens, quer porque a existirem serem insuficientes.
Todavia, a Lei 23/2010, de 30/8, veio introduzir importantes alterações na Lei 7/2001, de 11/5, designadamente, mantendo o direito de acesso às prestações sociais em causa, estabeleceu que o membro sobrevivo da união de facto, tem direito à prestação por morte segundo o regime geral ou especial da segurança social, independentemente da necessidade de alimentos.
Assim, de acordo com a nova redacção do art. 6º da Lei 7/2001 (introduzida pelo art. 1º da Lei 23/2010), para a atribuição da pensão de sobrevivência, basta provar a união de facto há mais de 2 anos à data da morte do beneficiário, sendo que o art. 1º, nº 2, da referida Lei 7/2001 (também na sua nova redacção introduzida pela Lei 23/2010) veio definir o que se deve entender por “união de facto”. Por isso, o direito às referidas prestações sociais deixou de estar condicionado à prova da necessidade de alimentos.
Vejamos:
Art.1.º
Objecto
1 - A presente lei adopta medidas de protecção das uniões de facto.
2 - A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.
Art. 6º
Regime de acesso às prestações por morte
1 - O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, independentemente da necessidade de alimentos.
2 - A entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.º, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação.
Ora, sendo as prestações sociais devidas independentemente da necessidade de alimentos, também não há que exigir a prova de que não podem ser obtidas, quer dos familiares referidos no art. 2009º do Cód. Civil, quer da herança do falecido beneficiário, até porque as normas que no D.L. 332/90 – art. 8º – e na Lei 7/2001 (redacção primitiva) – art. 6º – remetiam para o art. 2020º do Cód. Civil foram alteradas pela Lei 23/2010, deixando de conter tal remissão.
Artigo 2ºA
Prova da união de facto
1 – Na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível.
(...)
4 – No caso de morte de um dos membros da união de facto, a declaração emitida pela junta de freguesia atesta que o interessado residia há mais de dois anos com o falecido, à data do falecimento, e deve ser acompanhada de declaração do interessado, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos, à mesma data, de certidão de cópia integral do registo de nascimento do interessado e de certidão do óbito do falecido.
5 – As falsas declarações são punidas nos termos da lei penal.
Por sua vez, no art. 8.º encontram-se enumerados as causas de dissolução da união de facto a saber:
1 - A união de facto dissolve-se:
a) Com o falecimento de um dos membros;
b) Por vontade de um dos seus membros;
c) Com o casamento de um dos membros.
No caso vertente, a dissolução da união de facto terá ocorrido por morte de (…), sendo que a R./apelante pretende ter direito às prestações sociais que o Estado consagra para situações como a dela.

Ora, como refere Pereira Coelho, a união de facto é um estado de facto (entre duas pessoas) que corresponde a uma situação de comunhão de leito, mesa e habitação – Direito da Família, Vol. I, 4ª ed., pág. 52.
“In casu”, da factualidade apurada nos autos, resulta claro, quanto a nós, que a R. e o falecido (…) viviam há mais de 2 anos em união de facto, ou seja em situação análoga à dos cônjuges, nomeadamente em comunhão de leito, mesa e habitação.
Na verdade, foi dado como provado que a R. e o dito (…), desde data nâo posterior a 2010, até à data do falecimento deste – 9/3/2015 – passaram a partilhar as residências que a R. mantinha, como casal, nomeadamente o mesmo quarto e cama, relacionando-se afectivamente, sendo que (…) passava também períodos na sua residência sita em (…) sem a R. Além disso, a R. e o falecido (…) dividiam, em parte, o seu tempo conjunto entre as residências sitas em Tomar e (…), pertencentes à R., sendo que a partir de data não concretamente apurada e até ao falecimento de (…) passavam a maioria dos dias numa casa sita em Tomar. Mais se apurou que tomavam refeições em conjunto e passeavam e saiam juntos, fazendo deslocações à residência de (…) sita nas (…). Por outro lado, a R. e (…) iam levar e buscar o filho deste, (…), às Caldas da Rainha, onde aquele se encontrava a tirar o curso de artes plásticas, sendo que o (…) esteve presente aquando do nascimento da neta da R., em Lisboa, tendo aquele e a R. se deslocado vários fins-de-semana a Lisboa, onde pernoitaram juntos, após o nascimento da neta, de modo a apoiar a filha da R. Acresce que a R. e o dito (…) partilhavam o mesmo círculo de amigos, indo juntos a vários convívios de amigos, nomeadamente convívios da Universidade Sénior, que frequentavam, e onde eram vistos por todos como um casal; faziam a vindima na casa sita nas (…), sendo que era a R. que confeccionava as refeições para os amigos. Além disso, a R. e o (…) contribuíam com os respectivos rendimentos para a aquisição de géneros alimentícios, sendo que a R. sempre apoiou o (…) na doença, tendo-o acompanhado nas intervenções cirúrgicas e exames médicos a que foi submetido. E, pouco tempo antes de ele falecer, foi internado no Hospital da Luz, tendo a R. e aquele sido conduzidos juntos àquele hospital de táxi, sendo a R. que acompanhou o (…) nos últimos dias de vida, ficando no hospital de manhã à noite. Acresce ainda que a R. e o (…) se auxiliavam mutuamente, passando juntos os dias festivos, nomeadamente Páscoa, Natal e final de ano, acompanhados das respectivas famílias. Por último, ainda se apurou que, quando da morte do (…), foi a R. que tratou do seu funeral – cfr. pontos 1.12 a 1.27. e 1.29 dos factos provados.
Assim sendo, da factualidade acima exposta, forçoso é concluir que a R. e o (…) tinham um projecto de vida em comunhão, ou seja uma comunhão de plena vida, pois viviam em condições análogas às dos cônjuges, ou seja, em data não posterior a 2010 e até ao falecimento deste (em Março de 2015), passaram a viver juntos, em comunhão de leito, mesa e habitação, nomeadamente com economia doméstica, auxiliando-se mutuamente, tendo a R. sempre apoiado o (…) na doença (operações, internamentos e exames médicos), partilhando todos os momentos de vida, designadamente os dias festivos (Natal, Páscoa e final do ano), sendo vistos no seu círculo de amigos e nos convívios que frequentavam como um verdadeiro casal.
Ora, como já acima foi referido, o art. 1º, nº 2, da Lei 7/2001, de 11/5, na redacção dada pela Lei 23/2010, de 30/8, define a união de facto como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.
Deste modo, a união de facto, nomeadamente para efeitos de atribuição de prestação de morte ao membro sobrevivo da união, pressupõe a existência entre os membros da união de um projeto de vida em comum, análogos à vivência marital, que deve ser concretizado por uma comunhão plena de vida, nomeadamente por uma comunhão de mesa, leito e habitação que deve perdurar, em termos de estabilidade, por um período temporal superior a dois anos, comportando-se os membros dessa união, no fundo, como se de marido e mulher se tratassem.
E, como vimos supra, decorre da matéria de facto apurada que a R. e o falecido (…) viviam em condições análogas à vivência marital, nomeadamente com uma comunhão de mesa, leito e habitação, a qual perdurou em termos de estabilidade por um período superior a dois anos, ou seja, pelo menos desde o ano de 2010 até à morte daquele, ocorrida em Março de 2015.
Nestes termos, atentas as razões e fundamentos acima explanados, resulta por demais evidente que a sentença recorrida não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade e, em consequência, declara-se a existência de uma união de facto entre a R. e o (…) e, por via disso, deverá ser atribuída à R. (por parte da A.) a respectiva pensão de sobrevivência pela morte do dito (…).
Face à procedência desta segunda questão recursiva levantada pela R. fica definitivamente prejudicada a apreciação da primeira questão por ela suscitada (relativa à impugnação da matéria de facto dada como não provada no tribunal “a quo”).
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Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
- O art. 1º, nº 2, da Lei 7/2001, de 11/5, na redacção dada pela Lei 23/2010, de 30/8, define a união de facto como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.
- A união de facto, nomeadamente para efeitos de atribuição de prestação de morte ao membro sobrevivo da união, pressupõe a existência entre os membros da união de um projecto de vida em comum, análogos à vivência marital, que deve ser concretizado por uma comunhão plena de vida, nomeadamente por uma comunhão de mesa, leito e habitação que deve perdurar, em termos de estabilidade, por um período temporal superior a dois anos, comportando-se os membros dessa união, no fundo, como se de marido e mulher se tratassem.
- No caso dos presentes autos, decorre da matéria de facto apurada que a R. e o falecido (…) viviam em condições análogas à vivência marital, nomeadamente com uma comunhão de mesa, leito e habitação, a qual perdurou em termos de estabilidade por um período superior a dois anos – ou seja, pelo menos desde o ano de 2010 até à morte daquele, ocorrida em Março de 2015 – pelo que aqui se declara a existência de uma união de facto entre a R. e o dito (…), devendo ser atribuída aquela (por parte da C.G.A.) a respectiva pensão de sobrevivência pela morte do referido (…).

Decisão:
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto pela R. e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida nos exactos e precisos termos acima explanados.
Sem custas.
Évora, 10 de Maio de 2018
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás
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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).