Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
150/18.7T8GDL.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
AUDIÊNCIA DE PARTES
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 01/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I.- Não constando do preceito que permite a dispensa da audiência prévia (art.º 593.º do CPC) a situação a que alude o artigo 591.º/1, b), 2ª parte (quando o juiz tencione conhecer imediatamente do mérito da causa), isso significa que não pode neste caso ser dispensada a audiência prévia.
II.- A audiência prévia só pode ser dispensada nas ações que devam prosseguir e em que a diligência só tiver por finalidade proferir despacho saneador, despacho de simplificação ou a agilização processual, de identificação do objeto do litígio ou de enunciação dos temas da prova, como dispõe o art.º 593.º do CPC.
III.- Se a audiência prévia é obrigatória e não foi realizada, tal constitui nulidade processual e nulidade da sentença, nos termos dos artigos 195.º e 615.º/ 1, d), do CPC.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Procº 150/18.7T8GDL.E1

Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


Recorrentes: (…) e mulher (…), (…) e (…).

Recorrido: Ministério Público.
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No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Local Cível de Grândola, o Ministério Público propôs ação declarativa de anulação sob a forma comum, contra os ora recorrentes, pedindo que:
a) Seja anulado o acto de divisão e fracionamento do prédio rústico com o artigo matricial n.º (…), sito na Freguesia de Grândola e Santa Margarida da Serra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob aquele número, anteriormente descrito sob o número (…), a fls. (…) do livro (…), inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), tem a área total de 11,175 ha (onze vírgula cento e setenta e cinco hectares), sendo constituído, na sua maioria, por cultura arvense (CA) desenvolvida em terrenos de sequeiro, resultante das “Escrituras de Justificação” de 07.08.2015, outorgada pelos 1.º Réu, (…), no Cartório Notarial de Elisa Maria das Neves Saraiva, sito em Rua do Eng. António Gentil Soares Branco, n.° 24, Lojas 3 e 4, em Alcácer do Sal.
b) Seja anulado o acto de divisão e fraccionamento do prédio rústico com o artigo matricial n.º (…), sito na Freguesia de Grândola e Santa Margarida da Serra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob aquele número, anteriormente descrito sob o número (…), a fls. (…) do livro (…), inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), tem a área total de 11,175 ha (onze vírgula cento e setenta e cinco hectares), sendo constituído, na sua maioria, por cultura arvense (CA) desenvolvida em terrenos de sequeiro, resultante das “Escrituras de Justificação” de 07.08.2015, outorgada pela 3ª Ré, (…), no Cartório Notarial de Elisa Maria das Neves Saraiva, sito em Rua do Eng. António Gentil Soares Branco, n.° 24, Lojas 3 e 4, em Alcácer do Sal.
c) Seja anulado o acto de divisão e fraccionamento do prédio rústico com o artigo matricial n.º (…), sito na Freguesia de Grândola e Santa Margarida da Serra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob aquele número, anteriormente descrito sob o número (…), a fls. (…) do livro (…), inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), tem a área total de 11,175 ha (onze vírgula cento e setenta e cinco hectares), sendo constituído, na sua maioria, por cultura arvense (CA) desenvolvida em terrenos de sequeiro, resultante das “Escrituras de Justificação” de 07.08.2015, outorgada pela 2.ª Ré, (…), no Cartório Notarial de Elisa Maria das Neves Saraiva, sito em Rua do Eng. António Gentil Soares Branco, n.° 24, Lojas 3 e 4, em Alcácer do Sal.
d) Sejam cancelados os registos de aquisição por usucapião a favor de (…) e de (…) e de (…), lavrados com base nas mencionadas “Escrituras de Justificação” e com as apresentações:
- (…) de 2016/03/22 11:32:52 UTC, do prédio descrito sob o número …/20160322;
- (…) de 2016/03/22 11:34:32 UTC do prédio descrito sob o número …/20150318;
- (…) de 2016/03/22 11:30:44 UTC, do prédio descrito sob o número …/20160322, todos da freguesia de Grândola.
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Os RR contestaram, alegando, em síntese, que reafirmam as declarações exaradas na escritura, porquanto são herdeiros de (…) e (…) que também usava (…) e que após o óbito desta, procederam a partilha verbal que, por vicissitudes de ordem registral e matricial, não reduziram a escritura pública, sendo que desde então cada um deles exerce uma posse pública, pacífica, de boa-fé e sem oposição de ninguém que lhes permita adquirir o direito de propriedade por usucapião.
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O Tribunal a quo, proferiu despacho dispensando a realização da audiência prévia, seguindo-se saneador-sentença, onde se decidiu o seguinte:
Em face do exposto, julgo a presente acção procedente por provada e, em consequência:
a) Declaro nula a Escrituras de Justificação de 07.08.2015, outorgada pelos 1.º Réu, (…), no Cartório Notarial de Elisa Maria das Neves Saraiva, sito em Rua do Eng. António Gentil Soares Branco, n.º 24, Lojas 3 e 4, em Alcácer do Sal da qual resultou o acto de divisão e fraccionamento do prédio rústico com o artigo matricial n.º (…), sito na Freguesia de Grândola e Santa Margarida da Serra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob aquele número, anteriormente descrito sob o número (…), a fls. (…) do livro (…), inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), tem a área total de 11,175 ha (onze vírgula cento e setenta e cinco hectares),
b) Declaro nula a Escrituras de Justificação de 07.08.2015, outorgada pela 3ª Ré, (…), no Cartório Notarial de Elisa Maria das Neves Saraiva, sito em Rua do Eng. António Gentil Soares Branco, n.º 24, Lojas 3 e 4, em Alcácer do Sal da qual resultou o acto de divisão e fraccionamento do prédio rústico com o artigo matricial n.º (…), sito na Freguesia de Grândola e Santa Margarida da Serra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob aquele número, anteriormente descrito sob o número (…), a fls. (…) do livro (…), inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), tem a área total de 11,175 ha (onze vírgula cento e setenta e cinco hectares).
c) Declaro nula a escritura de justificação de 07.08.2015, outorgada pela 2.ª Ré, (…), no Cartório Notarial de Elisa Maria das Neves Saraiva, sito em Rua do Eng. António Gentil Soares Branco, n.º 24, Lojas 3 e 4, em Alcácer do Sal da qual resultou o acto de divisão e fraccionamento do prédio rústico com o artigo matricial n.º (…), sito na Freguesia de Grândola e Santa Margarida da Serra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob aquele número, anteriormente descrito sob o número (…), a fls. (…) do livro (…), inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), tem a área total de 11,175 ha (onze vírgula cento e setenta e cinco hectares).
d) Determino que sejam cancelados os registos de aquisição por usucapião a favor de (…) e de (…) e de (…), lavrados com base nas mencionadas Escrituras de Justificação e com as apresentações:
- (…) de 2016/03/22 11:32:52 UTC, do prédio descrito sob o número …/20160322;
- (…) de 2016/03/22 11:34:32 UTC do prédio descrito sob o número …/20150318;
- (…) de 2016/03/22 11:30:44 UTC, do prédio descrito sob o número …/20160322todos da freguesia de Grândola.
Custas a suportar pelos Réus que sucumbiram na acção,
Registe e notifique.
Após trânsito: Comunique à Conservatória do Registo predial para efeitos de Registo da decisão.

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Não se conformando com o decidido, os RR recorreram da sentença, formulando as seguintes conclusões, que delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, artigos 608.º/2, 609.º, 635.º/4, 639.º e 663.º/2, do CPC:

1 - O Ministério Público intentou a presente ação declarativa de anulação contra os RR, ora recorrentes peticionando que seja anulado o acto de divisão e fracionamento do prédio rústico com o artigo matricial n.º (…), sito na Freguesia de Grândola e Santa Margarida da Serra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob aquele número, anteriormente descrito sob o número (…), a fls. (…) do livro (…), inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…), tem a área total de 11,175 ha (onze vírgula cento e setenta e cinco hectares), sendo constituído, na sua maioria, por cultura arvense (CA) desenvolvida em terrenos de sequeiro, resultante das 3 (três) “Escrituras de Justificação” de 07.08.2015, outorgadas no Cartório Notarial de Elisa Maria das Neves Saraiva, sito em Rua do Eng. António Gentil Soares Branco, n.º 24, Lojas 3 e 4, em Alcácer do Sal, cada uma respectivamente pelos 1.º Réu, (…), pela 3ª Ré, (…) e pela 2.ª Ré, (…) e em consequência sejam cancelados os registos de aquisição por usucapião a favor de (…) e de (…) e de (…), lavrados com base nas mencionadas “Escrituras de Justificação”, por entender que as supra referidas escrituras foram efetuadas com violação da unidade mínima de cultura fixada para a região.

2 - Os RR, contestaram, reafirmando as declarações exaradas nas escrituras supra referidas, porquanto são herdeiros de (…) e (…) que também usava (…) e que após o óbito desta, procederam a partilha verbal que por vicissitudes de ordem registral e matricial não reduziram a escritura pública, sendo que desde então cada um deles exerce uma posse pública, pacífica, de boa-fé e sem oposição de ninguém que lhes permita adquirir o direito de propriedade por usucapião, indicando provas e fundamentando de direito esta sua posição.

3 - Veio o Tribunal a quo, proferir despacho dispensando a realização da audiência prévia, seguindo-se a sentença, considerando procedente a ação, onde na sua fundamentação o Tribunal considerou que as escrituras de justificação em causa são contrárias à lei e entendendo que se tratam de atos praticados com manifesta intenção de fraude à lei, o que tem como consequência a sua nulidade nos termos do artigo 280.º do Código Civil, nulidade que é de conhecimento oficioso e a todo o tempo – cfr. artigo 286.º do Código Civil, resumidamente por entender que a escritura de justificação não pode ser utilizada, para dar uma nova configuração ao direito inscrito e alcançar fins proibidos por lei, como seja o fracionamento, o que se verifica no caso vertente.

4 - Assim, decidindo desta forma, verifica-se que o Tribunal decidiu diversamente da causa de pedir alegada pelo Ministério Publico e não deu aos RR a oportunidade de exercerem convenientemente o deu direito ao contraditório, os quais pretendiam em julgamento provar a factualidade em que assentou a outorga das referidas escrituras de justificação, ou seja provar em juízo que adquiriram os prédios em causa por usucapião.

5 - O Tribunal a quo, violou o disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, o direito ao contraditório, no plano dos mais elementares princípios legais, proferindo sentença sem produzir prova – saneador-sentença.

6 - Verificamos que a causa de pedir no caso difere da decisão proferida baseando-se esta numa nulidade que não está invocada, consubstanciando a prática de uma nulidade processual, que influi no exame ou decisão da causa, cfr. art.º 195.º do CPC, uma decisão surpresa.

7 - Além do mais, neste caso, deveria o Tribunal a quo, se pretendia conhecer, como conheceu, imediatamente do mérito da causa, facultar às partes a discussão de facto e de direito de acordo com o previsto no art.º 591.º, n.º 1, al. b), do CPC, salvo o previsto no art.º 547.º do CPC, ouvindo previamente as partes para o efeito, de acordo com o preceituado no art.º 6.º do CPC., o que não aconteceu.

8 - O tribunal a quo, no caso em apreço, não possibilitou às partes discutirem oralmente a causa de facto e de direito antes da prolação da decisão, não respeitando o previsto no art.º 591.º, n.º 1, al. b), do CPC, e ainda no art.º 604.º, n.º 3, al. e), do CPC, violou tais dispositivos legais.

9 - Assim, neste caso dispensando o Tribunal a realização da audiência prévia, verifica-se uma nulidade processual inominada suscetível de influenciar o exame e a decisão da causa (cfr. art. 195.º, n.º 1, do CPC), sujeita ao regime geral das nulidades processuais.

10 - Vêm os RR, ora recorrentes ao interpor o presente recurso arguir a nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d), considerando que não tiveram anteriormente qualquer possibilidade de arguir a agora invocada nulidade processual emergente da omissão do ato.

11 - Pelo exposto, deverá a decisão que dispensou a realização da audiência prévia ser anulada, bem como a subsequente despacho saneador-sentença, devendo ser substituída por outra onde seja designada audiência prévia com a finalidade prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 591.º do CPC, prosseguindo os autos os ulteriores trâmites processuais, determinados pelo Tribunal de 1.ª instância.

12 – Nesta medida foram violados os art.ºs n.º 3 do artigo 3.º, art.º 6.º, 195.º, n.º 1, art.º 604.º, n.º 3, al. e), e 615.º, n.º 1, al. d), todos do Código de Processo Civil.


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Foram colhidos os vistos por via eletrónica.

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As questões que importa decidir são saber se:
1.- A dispensa da audiência prévia constitui uma nulidade processual inominada, suscetível de influenciar o exame e a decisão da causa.
2.- Foi garantido o princípio do contraditório.
3.- A decisão é nula por omissão de pronúncia.
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Conhecendo.
1.- A dispensa da audiência prévia constitui uma nulidade processual inominada, suscetível de influenciar o exame e a decisão da causa?
O tribunal a quo, logo a seguir aos articulados, proferiu a seguinte decisão, a que se seguiu saneador-sentença que conheceu do mérito da causa:
Porque o estado dos autos permite que se conheça desde já do pedido, uma vez que o processo contém já todos os elementos necessários à prolação da decisão que não depende da prova a produzir, passar-se-á a proferir sentença.
A dispensa da audiência preliminar está legalmente prevista no art.º 593.º do CPC.
Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Volume 2, 3ª Edição, 2018, pág. 650 “O código atual (…) alterou substancialmente o regime da dispensa da audiência prévia, fortalecendo o poder discricionário do juiz, na medida em que, diversamente do anterior, não baliza esse poder com conceitos indeterminados. Por outro lado, (…) a dispensa pressupõe agora que a audiência prévia se destinasse apenas ao proferimento de despacho saneador (…), à adequação formal ou gestão processual (…), ou ao proferimento do despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (…).
Fora destes casos, o juiz não pode dispensar a audiência prévia, nomeadamente quando se verifiquem os requisitos da alínea b) ou da 2.ª parte da alínea c) do art. 591-1. (…)
Mesmo quando a questão tenha sido debatida nos articulados, a decisão de dispensa deve ser precedida da consulta das partes, ao abrigo do art. 3-3, “assim se garantindo, não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa” (Ac. do TRP de 12.11.15, Filipe Caroço, Procº 4507/13).”

Como se verifica numa interpretação meridiana destes dispositivos legais, não constando do preceito que permite a dispensa da audiência prévia (artº 593º) a situação a que alude o artigo 591º/1 b) 2ª parte (quando o juiz tencione conhecer imediatamente do mérito da causa) isso significa que não pode neste caso ser dispensada a audiência prévia.
A audiência prévia é dispensada nas ações não contestadas ou quando seja procedente exceção dilatória que termine formalmente a causa (artº 592º), mas não é este o caso dos autos.
O que implica estarmos perante a prática de um ato que a lei não permite – dispensa da audiência prévia –, ou seja, de uma nulidade processual que tem influência na decisão da causa e configura, igualmente, a nulidade da sentença nos termos dos artigos 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, e 195º, ambos do CPC.
De onde se conclui que procedem as conclusões dos recorrentes nesta parte, devendo declarar-se nula a decisão em crise, substituindo-se por outra onde se designe data para audiência prévia, devendo o despacho que a designar indicar os fins a que se destina.

No mesmo sentido tem decidido a jurisprudência maioritária, indicando-se a título de exemplo o Ac. TRE de 10-05-2018, Mata Ribeiro, Procº 2239/15.5T8ENT-A.E1:
1 - Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, impõe-se a convocação de audiência prévia para o fim previsto no artigo 591.º, n.º 1, b), do Código de Processo Civil.
2 - A preterição da aludida formalidade processual que se reputa de essencial, gera para além de nulidade processual a nulidade do saneador-sentença e atenta a influência sobre esta decisão, implica a anulação do processado a fim da tramitação processual regressar ao momento anterior ao despacho que dispensou a realização da audiência prévia, de forma a possibilitar a efetiva audição das partes em sede de audiência de prévia, devendo no despacho que a designar esclarecer, em concreto, os fins a que se destina.

E o Ac. TRL de 30-05-2019, Isoleta Almeida Costa, Procº 4952/17.3T8LSB.L1-8:
I - No caso de ser proferido saneador sentença que conheça do mérito da causa não pode ser dispensada a audiência prévia ao abrigo do disposto nos artigos 591º nº 1, 593 nº 1 d) e) e f) e 595 nº 1 a) e b) todos do CPC, mesmo, quando foi dada ao autor oportunidade de discutir as excepções e demais questões pertinentes ao mérito, nos articulados.
II - Só nas acções que hajam de prosseguir a lei processual autoriza o juiz a dispensar a audiência prévia que só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º
III - Isto é assim, seja pelo que dispõem os artigos 592.º e 593.º, seja pela não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º, seja pela expressa ressalva constante do artigo 592º nº 1 b).
IV - A omissão da audiência prévia no caso em que é obrigatória, constitui nulidade processual e simultaneamente nulidade da sentença nos termos conjugados dos artigos 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, e 195º, ambos do CPC.

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Acrescenta-se ainda que o desenvolvimento da argumentação do tribunal a quo, em sede de apreciação de direito, cinge-se aos efeitos do registo predial; dos documentos constantes dos autos concluiu que o trato sucessivo relativo aos prédios em questão não foi interrompido, pelo que a aquisição que foi feita constar na escritura de justificação só pode integrar o conceito de fraude à lei.
Contudo, quando se trata de matéria de registo, ao contrário de outras jurisdições, no nosso ordenamento o registo predial não é constitutivo de direitos, tem unicamente a finalidade de dar publicidade à situação das coisas que integram a esfera patrimonial das pessoas jurídicas, visando a segurança do comércio jurídico imobiliário. – O. Ascensão, Direito Civil, Reais, 4ª Ed. 1987, Cap. VI – Publicidade, Adenda, pág. 7.
Apesar de reconhecer tal regime, o tribunal a quo parece querer retirar, apenas da consulta dos documentos juntos aos autos, consequências que levariam a considerar o registo como constitutivo de direitos, e, no caso concreto, impeditivo da constituição de novos direitos.
A ser assim, seria impossível a aquisição por usucapião de um prédio que constasse no registo predial inscrito em nome de determinado proprietário.
Mas não é assim como sabemos, em virtude de o registo constituir apenas uma presunção de que o prédio pertence ao titular inscrito (artº 7º CRP), presunção ilidível mediante a produção de prova em contrário.
E é precisamente esta prova que os recorrentes pretendem produzir em sede de julgamento.
Com o devido respeito por opinião contrária, olvidou-se o que dispõe o artº 1287º do C. Civil: A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.
O possuidor que aqui se refere pode, como é evidente, possuir um prédio registado em nome de terceiro, uma vez que a posse se constitui a diversos títulos.
Ora, no caso dos autos, os RR defenderam-se por exceção ao arguirem a aquisição da propriedade por usucapião; aquisição originária sem trato sucessivo (artº 1316º CC) que, a verificar-se, confirmaria as declarações prestadas em sede de escritura de justificação notarial.
Repare-se o A não nega na sua petição inicial que os RR são possuidores dos prédios em causa nos autos, o que defende é que esta posse não tem a virtualidade de permitir a aquisição por usucapião.
Os RR têm a posição exatamente oposta, pelo que a matéria a decidir está controvertida, o que implica dever ser discutida em sede de julgamento, não dispondo ainda os autos, no saneador, de matéria probatória suficiente para se poder decidir em consciência, segundo as várias soluções de direito possíveis.
O que equivale a dizer que não foi garantido o princípio do contraditório, trave mestra de todo o direito processual, previsto no artº 3º do CPC
Em face do decidido, procede a apelação, resultado prejudicado o conhecimento das restantes questões.
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Sumário:

(…)


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DECISÃO.

Em face do exposto, a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora julga a apelação procedente e declara a nulidade do saneador-sentença, com a consequente anulação do despacho que dispensou a audiência prévia e atos subsequentes, que deverá ser substituído por outro que designe dia e hora para a realização da audiência prévia, devendo o despacho que a designar indicar os fins a que se destina.

Sem custas.

Notifique.

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Évora, 16-01-2020

José Manuel Barata (relator)

Conceição Ferreira

Rui Machado e Moura