Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2384/10.3TAFAR.E1
Relator: ANA BACELAR CRUZ
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUISITOS
Data do Acordão: 06/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1. O requerimento de abertura de instrução deve ter a estrutura de uma acusação, devendo ser dirigido contra uma identificada pessoa ou entidade, e conter os elementos objectivos e subjectivos face aos quais se possa concluir que o arguido cometeu um ilícito penal, sob pena de rejeição por inadmissibilidade legal, de harmonia com o disposto no artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO

No processo de inquérito que, com o nº 2384/10.3TAFAR, correu termos pela 2.ª Secção dos Serviços do Ministério Público de Faro, foi proferido despacho que concluiu pelo arquivamento dos autos, por inexistência de crime, relativamente aos factos constantes da queixa apresentada por Johannes, casado, reformado, residente…, em Estói, contra Beryl, casada, doméstica, residente … em Estói.

Não se conformando com tal decisão do Ministério Público, Johannes.., constituído Assistente nos autos, requereu a abertura da instrução.

Remetido o processo à distribuição, a Senhora Juiz de Instrução Criminal rejeitou o requerimento de abertura de instrução.

Inconformado com esta decisão, o Assistente dela interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«A. Face ao exposto, e no que concerne à eventual responsabilidade criminal da Denunciada Beryl, por factos praticados contra a pessoa do Assistente Johannes , sempre se dirá que os mesmos foram convenientemente denunciados por este.

B. Sendo certo que correspondem a factos que consubstanciam a prática de um crime de coacção contra o Assistente.

C. Pelo que não tendo o Ministério Público deduzido a competente acusação é permitida a abertura de instrução, por parte da Assistente, o sentido de tais factos serem levados a julgamento, por meio de pronúncia, e assim, ser aplicada à Denunciada uma pena, devida pela sua prática.

D. Termos em que foi requerida a abertura de instrução.

E. No requerimento de abertura de instrução veio o Assistente “invocar as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, bem como indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo e dos meios de prova não considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar”(Cfr. n.º 2 do Art. 287° do Código de Processo Penal).

F. Incluiu também os elementos exigidos pelo Art. 283° n.º 3 do Código de Processo Penal, nomeadamente a identificação da Denunciada, a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, as circunstância de tempo e espaço em que ocorreram, bem como explicitando a sua motivação, indicando as testemunhas e outras provas.

G. Por lapso manifesto o Assistente não indicou as disposições legais aplicáveis, no entanto tipificou o crime praticado pela Denunciada

H. Bem assim, o Assistente alegou que no seu entendimento todo o documento materializava o ilícito criminal, pelo que ofereceu a sua tradução integral e requereu a respectiva reapreciação

I. Contudo, este facto não deveria ser motivo de rejeição do requerimento de abertura de instrução, sendo que o Recorrente deveria ter sido convidado a apresentar novo requerimento.

J. De acordo com o n.º 3 do Art. 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

K. Como se reconhecerá, o facto do requerimento em análise não conter todos os requisitos legais/formais não integra nenhuma daquelas situações, não podendo ser rejeitado liminarmente por esta razão.

L. Salvo melhor opinião a questão deve ser tratada a luz do disposto no Art. 123° n.º 2 do Código de Processo Penal.

M. Uma vez que o requerimento para abertura de Instrução não contém os requisitos referidos, não delimitando o objecto do processo, enferma de irregularidade que afecta o valor do acto praticado.

N. Assim deve ser ordenada oficiosamente a sua reparação como resulta do Art. 123° n.º 2 do Código de Processo Penal (Neste sentido o Acórdão Relação de Lisboa de 19.03.03, in Colectânea de Jurisprudência TII, 131).

O. Fundamenta-se, para além disso, o despacho de rejeição de abertura de instrução na forma insuficiente da descrição dos factos objectivos que consubstanciam a prática do ilícito e que o mesmo é omisso ao nível doa elementos integradores do dolo, não existindo preenchimento do tipo subjectivo de ilícito.

P. Incumbe ao Assistente alegar os factos que se revelam essenciais para a imputação do crime ao agente.

Q. Sendo de referir que “o dolo enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de aprender-se através de factos (acção ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladoras daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica.” (cfr. Ac. STJ de 08 de Outubro 2010).

R. Logo ao Assistente incumbe unicamente alegar os factos nos quais se consubstancia a denúncia, e dos quais resulta evidente a intenção de os praticar, o que este fez.

S. Ainda que assim se não entendesse, sempre incumbia ao Juiz de Instrução ordenar que fosse completado o requerimento apresentado, uma vez que dispunha de todos os restantes elementos.

T. Sendo evidente pela descrição dos factos alegados pelo Assistente que os mesmos foram cometidos pela Denunciada a título de dolo, até pelas expressões constantes desse mesmo requerimento e do documento a ele anexo que aqui se dão por integralmente reproduzidas e donde resulta que a Denunciada agiu intencionalmente, com plena consciência da ilicitude da sua conduta.

U. Foram alegados factos que consubstanciam a prática de um crime de coacção contra o Assistente, bem como alegados os fundamentos de direito que permitem que a Denunciada, sendo submetida a julgamento, possa defender-se, já que contra ela pendem factos concretos, exaustivamente descrito a e alicerçados em fundamentos de direito, que lhe imputam a prática do crime em causa.

V. Pelo que sempre seria de admitir que fosse deferido o requerimento de abertura de instrução deduzido pelo Assistente.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVE O PRESENTE RECURSO TER PROVIMENTO, DEVENDO O DOUTO DESPACHO DE REJEIÇÃO DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO SER REVOGADO, DETERMINANDO-SE A SUA SUBSTITUIÇÃO POR DESPACHO DE DEFERIMENTO, DECLARANDO-SE, EM CONSEQUÊNCIA ABERTA A INSTRUÇÃO.

ASSIM SE FAZENDO A MAIS RECTA E SÃ JUSTIÇA!»

O Ministério Público respondeu, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

«I) Verifica-se desde logo que o que o assistente, ora recorrente pretende é que a denunciada Beryl venha a ser pronunciada pela prática de um crime de coacção, sem que sequer tenha sido por si indicada a disposição legal incriminatória, como se lhe impunha, descrevendo para o efeito, factos objectivos que no entender do assistente consubstanciam a prática do ilícito, sendo que o faz de forma insuficiente, pois que, o teor do escrito que imputa à denunciada e que em seu entender são ilícitos apenas encontram escritos em língua inglesa.

II) De facto, não se poderá considerar que a remissão que faz para um documento que contém a tradução do escrito, seja adequada e suficiente a suprir a omissão da descrição desses factos.

III) Por outro lado, não consta no requerimento a narração de quaisquer factos que traduzam a consciência pela denunciada, de que ao proceder no modo descrito na acusação, iria atingir o bem jurídico tutelado pela incriminação.

IV) Em face da argumentação do Assistente, temos como certo, que não se encontra preenchido – ainda que no possível ou como base de partida – o quanto vem disposto no art. 287º, n.º 3 do C.P.P., o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado, pois não se projecta como uma acusação alternativa.

V) Por outro lado, recentemente, o STJ, através do Acórdão de 12/05/2005, proferido no processo nº 430/2004 – 3ª Secção, publicado no DR, Série I –A, nº 212, de 4/11/2005, veio uniformizar a jurisprudência no sentido de que «não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2 do C.P.P., quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

VI) Dada a função do requerimento para abertura da instrução por parte do assistente, existe uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, n.º 2, remeta para o artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.

VII) Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal.

VIII) Tal exigência decorre de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada. De resto, a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.

IX) Em face destas considerações, concluiu o Tribunal Constitucional, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação dos fundamentos da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.

Assim, e sem mais desenvolvidas considerações, por supérfulas, o recurso tem inevitavelmente de improceder.
Este é o nosso entendimento,

A justiça
Será de V. Exas !»

Respondeu a denunciada Beryl, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

«1. No âmbito dos presentes autos, o Denunciante imputou à Denunciada a prática de um crime de coacção, previsto e punido nos termos do artigo 154.º do Código Penal. Contudo,

2. E após análise do referido normativo concluímos que comete o crime de coacção “quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante constrange outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade” (Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/05/2009, no qual se conclui que “a coacção constitui o tipo fundamental dos crimes contra a liberdade de decisão e de acção, protegendo todas as possíveis e legitimas manifestações da liberdade pessoal. O tipo objectivo de ilícito da coacção consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado, comportamento praticar uma acção, omitir determinada acção ou suportar uma acção. Os meios de coacção são a violência ou a ameaça com mal importante, traduzindo-se, assim, num crime de execução vinculada ou de processo típico. A violência compreende, sem sombra de dúvidas, a intervenção da força física sobre o sujeito passivo, enquanto que a ameaça com mal importante é o prenúncio, a promessa de um mal futuro, mal este que tem que ser acentuadamente relevante em termos objectivos.”)

3. No caso dos presentes autos, não temos qualquer actuação da Denunciada que permita concluir que esta recorreu a violência ou à ameaça com mal importante, pelo que cai por terra o preenchimento dos elementos objectivos do tipo de crime Imputado a ora Denunciada.

4. O crime de coacção exige a verificação do resultado para a sua consumação, ou seja, exige que a pessoa objecto da acção de coacção tenha efectivamente sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade. (Neste sentido o Professor Américo Taipa de Carvalho In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 358 que a coacção é um crime de resultado exigindo «que a pessoa objecto da acção de coacção tenha, efectivamente, sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade. Para haver consumação, não basta a adequação da acção (isto é, a adequação do meio utilizado: violência ou ameaça com mal importante) e a adopção, por parte do destinatário da coacção, do comportamento conforme à imposição do coactor, mas é ainda necessário que entre este comportamento e aquela acção de coacção haja uma relação de efectiva causalidade».)

5. Quer isto dizer que o Denunciante teria que ter actuado no sentido em que a Denunciada – alegadamente – o condicionou: o que não fez, deixando assim por preencher o tipo objectivo de ilícito de coacção, previsto e punido nos termos do artigo 154.º do Código Penal.

6. Termos em que andou bem o douto Ministério Público ao proferir despacho de arquivamento no âmbito dos presentes autos, já que nenhuns factos que permitam concluir a prática deste ilícito criminal foram alegados.
Acresce que,

7. Veio o Denunciante requerer a abertura de instrução, tendo tal requerimento sido rejeitado, pela Meritíssima Juiz de Instrução, em virtude de não deter as condições mínimas legais para o seu prosseguimento, nomeadamente por elencar de forma Insuficiente dos factos objectivos que no seu entender consubstanciam a prática do crime pela Denunciada; por o documento em que baseia a sua denúncia estar redigido em língua inglesa, e o Denunciante efectuar meras remissões para o mesmo, não o reproduzindo, pelo que o mesmo não pode ser considerado à luz do artigo 92.º do Código de Processo Penal; Não conter a imputação de qualquer factualidade da qual decorra o dolo da Denunciada; Não conter a disposição legal aplicável a factualidade descrita.

8. A este respeito confira-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08/05/2006, que segue no sentido de considerar que “o requerimento para abertura da instrução deve conter os elementos típicos de uma acusação ou seja a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e as disposições legais aplicáveis. Em sentido material, o requerimento em causa é uma verdadeira acusação sendo a partir desse momento que o arguido fica a conhecer a matéria de facto que lhe é imputada, podendo defender-se sem ser surpreendido com factos com que não contava nem tinha que contar, devendo, portanto, em suma, conter uma factualidade circunstanciada que permita a conclusão de que o arguido cometeu um crime sob pena de inexequibilidade da própria instrução”.

9. Daqui resulta, portanto, que não fazendo o Denunciante uma descrição dos factos que imputa a Denunciada, nomeadamente reproduzindo as frases que considera serem constrangedoras para a sua liberdade de actuação, não se
10. No que concerne ao documento utilizado como manifestação da coacção exercida pela Denunciada sobre o Denunciante, sempre se dirá, sem necessidade de grandes delongas, que o mesmo, além de não traduzir qualquer ameaça com mal importante, também não poderá ser considerado, atento o disposto no artigo 92.º do Código de Processo Penal.

11. No que ao dolo concerne, sempre se dirá que “o dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica.” (Cfr. Ac. STJ de 08/10/2008).

12. Aliás, foi fixada jurisprudência no sentido de que nos casos em que “o Ministério Publico se abstivesse de acusar, sempre que o requerimento para abertura de Instrução não contenha a indispensável matéria fáctica, a instrução não é viável por falta de objecto, não prevendo a lei qualquer convite ao assistente para aperfeiçoar o dito requerimento.” (Cfr. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/2005 in Diário da República, 1.ª série-A, de 27 de Maio de 2000).

13. No caso concreto não só falta a alegação de que a Denunciada terá agido com dolo, mas faltam igualmente os suportes fácticos à manifestação desse dolo, motivo em que, ao invés do que alega o Denunciante, não lhe pode ser admitida a possibilidade de efectuar um aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução, que, dados os erros manifestos na sua elaboração, sempre implicariam que lhe estaria a ser dada a oportunidade de o refazer, e não de meramente o completar.

14. Por último e o próprio Denunciante que reconhece no âmbito do seu recurso que “por lapso não indicou as disposições legais aplicáveis no seu articulado.”

15. Pelo que, como se verifica, o Denunciante apresentou um requerimento de abertura de instrução de tal forma incompleto, que não preenche os requisitos legais básicos para que exista sequer a possibilidade do seu aperfeiçoamento. (Confira-se a este respeito o Ac. de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 7/2005 que defende que “o juiz deve mandar completar o requerimento se nele faltarem algum ou alguns elementos que deviam constar. Não é esse o caso se o requerimento do assistente for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”)

16. Pelo que no caso concreto, não assiste razão ao Recorrente, motivo pelo qual deverá ser mantida a douta decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução, quer por inexistirem factos que se possam subsumir ao tipo de crime imputado à Denunciada, quer porque o requerimento de abertura de instrução deduzido pelo Denunciante não apresenta os requisitos básicos para a sua admissão.

NESTES TERMOS e nos demais de direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá ser mantido o douto despacho de indeferimento do requerimento de abertura de instrução.

Assim Decidindo farão V. Exas., como sempre, JUSTIÇA!»
v
Admitido o recurso, a Senhora Juiz de Instrução Criminal manteve a decisão recorrida, não aduzindo quaisquer outras razões para além daquelas que da mesma constam.

Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, revelando divergir da posição expressa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 2005, entende que «Caberá a esta instância (…) proferir decisão que a acompanhe (…) ou, ao invés, se não a sufragar, “fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada” (Código de Processo Penal, artigo 445º, n.º 3).»

v
Observou-se o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Da resposta apresentada por Beryl resulta que mantém a posição anteriormente assumida nos autos.

Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995[1], o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Posto isto, o objecto do recurso reconduz-se ao conhecimento do cumprimento, no requerimento de abertura da instrução, das exigências contidas no artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no n.º 2 do artigo 287º do mesmo diploma legal.

E, concluindo-se que não foram respeitadas tais exigências, cumpre, ainda, decidir se ocorre irregularidade, a sanar nos termos do n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal, ou se deveria o Recorrente ter sido convidado a aperfeiçoar o seu requerimento para a abertura da instrução.

O requerimento para abertura da instrução tem o seguinte teor:

«I. INTRÓITO

1. Nos termos do Art. 286.º n.º 1 do Código de Processo Penal a instrução visa a comprovação judicial da decisão de, no presente caso, deduzir acusação em ordem à submissão da causa a julgamento.

2. Recorre o Assistente à instrução uma vez que o Ministério Público, nos termos do despacho exarado de fls. 120 a fls. 125 dos doutos autos arquivou a denúncia efectuada pelo Denunciante/Assistente, na qual este denuncia a Denunciada pela violação da sua liberdade pessoal, pelo constrangimento e intimidação que esta pratica sobre a sua pessoa.

3. No caso vertente o Ministério Público não considera estarem reunidos indícios suficientes da prática dos factos descritos na Denúncia, pelo que conclui pelo arquivamento dos autos nos termos do nº do do Art. 277º do Código de Processo Penal.

4. Na realidade existem indícios suficientes nos doutos autos, nomeadamente na prova documental indicada, da prática do crime denunciado pela Arguida.

II. PRELIMINARMENTE

1. O Assistente e a Denunciada são casados entre si, embora estejam separados de facto e esteja a correr o respectivo processo de divórcio litigioso no 2º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Faro sob o nº ---/07.9TMFAR.

2. Em simultâneo, existem diversos procedimentos criminais em curso entre o Assistente e a Denunciada todos apensados no Processo ---/07.9TAFAR.

III. OS FACTOS

1. No processo de divórcio litigioso que corre termos no 2º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Faro, desde 24 se Setembro de 2007, sob o n.º ---/07.9TMFAR. ate à presente data foram realizadas 5 sessões de julgamento, a saber nos dias 10 e 12 de Novembro de 2009, 2 de Fevereiro de 2010, 6 e 10 de Maio de 2010.

2. No âmbito/decurso do processo de divórcio litigioso acima referido, entre as sessões de julgamento ocorridas em 2 de Fevereiro de 2010 e 6 de Maio de 2010, a Denunciada enviou ao Assistente correspondência electrónica (vulgo email).

3. Denunciada fê-lo no dia 17 de Abril de 2010.

4. A correspondência electrónica é composta por um email anexando um documento em PDF, que se junta e dá integralmente por reproduzido (cfr. does. 1 e 2 juntos com a Denúncia.

5. Ao email designado por “Update” (Actualização) encontra-se anexado um documento em suporte digital PDF designado por “Divorce Trial Status Update” (Actualização do Estado do Processo de Divórcio) (cfr. docs. 1 e 2 juntos com a Denúncia).

6. Ao longo das 13 páginas escritas em língua inglesa que compõem o documento “Divorce Trial Status Update” (Actualização do Estado do Processo de Divórcio) a Denunciada intimida e constrange o Assistente a assumir um comportamento a fim de prosseguir os fins que ela própria ambiciona e determina.

7. A pressão e o constrangimento exercido sobre o Assistente são patentes em todo o longo texto.

8. Na denúncia, o Assistente enunciou a título meramente exemplificativo alguns excertos do documento “Divorce Trial Status Update” (Actualização do Estado do Processo de Divórcio).

9. O teor do referido documento tem de ser levado em conta no seu todo e não apenas os excertos que o Assistente enunciou a título exemplificativo.

10. No entanto, o Assistente aqui reproduz os excertos constantes da Denúncia:

“It could, depending on agreements and courts, take until 2020 for this case to be resolved through the courts.”
(…)
“Potentially the cases could take until 2020 to complete. In 2020 the plaintiff will be 78 years old, and will have lost 10 years of his life ...”
(…)
“And worked yet more intensively to know as much about you as possible. No expense spared.

Think about my tools:
· Private investigators in Portugal.
· Private investigators in Oman.
· Private investigators in the USA.
· International financial tracing investigation company.
· Contacts throughout the oilfield.
· Contacts throughout the expat communities in Oman and Dubai.”

(…)
“Whatever you do with her and for her, it will be a matter of time before we confirm your actions. And I wilI have no compunction about naming her and calling her as a witness. It should be interesting when Imelda, Tetyana and your new lady learn of each others’ existence.”
(…)
“Additionally, the court will learn:

You sent threatening letters from your lawyer full of lies about the requirement to move
out of Casa Nova

You secretly registered Casa Nova solely in your name in order to cheat me out of my
Home.”
(…)
“Rest assured you will be exposed to the court - and then to the resto of the world
(…)
I strongly suggest you take all of the above into account before you dismiss any idea of settling out of court. If you are interested in settling out of court, your lawyer can contact my lawyer.

Note: there will be no discussions after the trial resumes on 6th May. After that day, I will fight to the bitter end with this, even if it takes 10 years … or more.”
(…)
“Whith this in mind I have ensured I can protect myself, our daughter, my pets and my property against you and any future actions you may consider taking against me – be they physical, mental or legal actions.”
(…)
“If, at any time, I believe that you are planning, considering or acting on any threatening, malicious or vindictive action, I will use the information I have gained with proof.
· Every company in the otlfield will know you are a 10% man.
· Every company ln the oilfield will know who you have cheated and when.
· Every one of your personal contacts, both business and social, will be made aware af yaur lying and how you have cheated campanies out of their profits.
· Every one of your friends and family will receive copies of the judgements and the transcripts of the divorce and criminal cases.
· All your various mistresses will be informed of the others.
· The Dutch and German and UK govemments will be provided with proof that you have been claiming pension while you have been earning.

They will also be told that you do not actually live in Portugal.

And, last but not least, as a resident of Portugal (on paper) you are required to file tax returns
Annually, and to declare all income, and pay tax on it regardless of where in the world it was earned.

If you do anything to avoid giving me whatever the court awards, or you ever do anything malicious harmful or threatening to me or my daughter, my friends or my pets, I will report all your earnings to the Portuguese Tax department.

Trust me on this. I have learned to protect myself. I will have no compunction about it.”

11. As partes transcritas em língua inglesa corporizam cópia fiel do texto enviado pela Denunciada ao Assistente e têm a respectiva tradução em língua portuguesa, reiterando-se que todo o documento que se encontra traduzido para a língua portuguesa (cfr. doc. 2 junto com a Denúncia).

12. Foi a Denunciada que produziu o texto em questão, conforme se apura pelo “print screen” do documento “Divorce Tnal Status Update” (doc. 3 junto com a Denúncia).

13. De acordo com as propriedades do documento “Divorce Trial Status Update” a Denunciada é a autora de do texto (cfr doc. 3 junto com a Denúncia).

14. Contrariamente à realidade e disponibilidade manifestada pelo Assistente no decurso do processo de divórcio, a Denunciada vem a coberto de uma pretensa proposta e “actualização” do prosseguimento da lide forçar a que o Assistente assuma a posição processual que a Denunciada pretende.

15. A Denunciada através do seu comportamento, vertido parcialmente no texto do documento “Divorce Trial Status Update” (Actualização do Estado do Processo de Divórcio), provoca inquietação no Assistente, acossando nos actos do seu quotidiano, pressionando-o, constrangendo-o a agir conforme a própria Denunciada pretende ou a não agir de conforme o livre entendimento do Assistente.

16. O texto anexo ao email materializa todo ele a atitude intimidadora e constrangedora perpetrada pela Denunciada no que à pessoa do Assistente diz respeito.

17. A Denunciada viola a liberdade pessoal do Assistente para agir conforme for sua vontade inquietando-o, constrangendo-o a suportar o comportamento da Denunciada e a tomar determinadas decisões contra a sua vontade.

18. O Assistente actualmente tem 68 anos de idade indo completar no próximo dia 22 de Março os 69 anos, ou seja, dentro de menos de 2 meses, encontra-se aposentado, intranquilo e ameaçado devido ao comportamento persecutório, ameaçador e constrangedor da Denunciada, nomeadamente, mas não só, pela a vigilância dos seus actos do dia a dia por investigadores/detectives privados em Portugal, em Omã e E.U.A de entre todos os outros meios que a Denunciada faz constar do documento ora junto, bem assim da exposição da sua vida privada junto de familiares, amigos e antigos contactos profissionais.

19. O Assistente é uma pessoa estimada e respeitada, quer junto da família e amigos quer no meio profissional em que laborou e que se sentiu e sente ameaçado, perseguido, intranquilo e ofendido com o comportamento supra descrito da Denunciada.

20. O Ministério Público no douto despacho de arquivamento considerou não existirem indícios da prática de crime.

21. A fls. 121, o Ministério Publico considera que “O teor do email em causa, bastante longo, resume-se a dissertar sobre as delongas dos litígios e dos processos judiciais, em geral, bem como as despesas inerentes, no entanto com abertura para chegar a acordo processual; e a fazer considerações de vária ordem sobre os fundamentos do pedido de divórcio e a prova existente, sendo que sob o título “O caso da Defesa”, a denunciante refere que tem como armas investigadores provados em Portugal, Omã e E.U.A.; empresa internacional de investigação de rastreamento financeiro, contactos com o campo petrolífero e contactos com a comunidade emigrante em Omã e Dubai (cfr. fls. 44 a 86)” (sublinhado nosso).

22. O Assistente discorda que o teor do email demonstre abertura por parte da Denunciada para chegar a acordo no processo de divórcio litigioso.

23. O Assistente no âmbito do processo de divórcio litigioso, ainda em momento anterior ao início da acção judicial, em sede de separação de facto sempre esteve disponível para chegar a acordo com Denunciada, tendo-lhe apresentado várias propostas, todas recusadas pela Denunciada.

24. Ao contrário, a Denunciada quer, por força, que a sua proposta seja aceite pelo ora Assistente.

25. Por outro lado, algumas das declarações da Denunciada vertidas no auto de inquirição de fls.117 a 118 são contraditórias com o teor do documento “Divorce Trial Status Update” (Actualização do Estado do Processo de Divórcio).

26. No auto de inquirição a Denunciada declara que “a sua intenção ao enviar-lhe a correspondência electrónica foi a de efectivamente tentar chegar a um entendimento com o seu marido, basicamente atenta a morosidade dos processo e uma vez que a situação já se vinha prolongando. Foi uma tentativa de se entenderem fora dos tribunais”.

27. Na versão escrita pela Denunciada em língua inglesa o último parágrafo da primeira página (que se transcreve integralmente), o qual por lapso não se encontra traduzido, é revelador de que a mesma não pretende chegar a qualquer entendimento depois de dia 6 de Maio de 2010, mercê da advertência feita ao Assistente:

“Please note: there will be no settlement discussion after the trial resumes on 6 May 2010.”

28. No documento “Divorce Trial Status Update” (Actualização do Estado do Processo de Divórcio) a Denunciada declara por diversas vezes, estar preparada para continuar em tribunal, e embora declare também querer chegar a acordo, é claro para o Assistente que o possível acordo será somente aquele no qual apenas a Denunciada dite os seus termos.

29. Para fazer valer os seus intentos, a Denunciada pressiona e constrange o Assistente desde o início até ao fim dor referido documento.

30. No auto de inquirição a Denunciada também declara que existe um processo-crime a decorrer no Tribunal Judicial de Faro sob o n.º ---/07.9TAFAR no qual o ora Assistente é Arguido, e que “pensa que o seu marido tem prolongado este processo de divórcio por existirem acusações criminais contra si”.

31. A Denunciada esqueceu-se certamente que ela própria também é Arguida no mesmo processo-crime.

32. No auto de inquirição a Denunciada esclarece que o seu marido tem muito dinheiro e que ela não tem.

33. Ora no documento “Divorce Trial Status Update” (Actualização do Estado do Processo de Divórcio) e sob o título “The Defense Case” a Denunciada declara que:

“And worked yet more intensively to know as much about you as
Possible. No expense spared.

Think about my tools:
· Private investigators in Portugal.
· Private investigators in Oman.
· Private investigators in the USA.
· International financial tracing investigation company.
· International throughout the oilfield.
· Contacts throughout the expat communities in Oman and Dubai.”

34. O Assistente não compreende como é que a Denunciada declara que contrata Investigadores privados em vários países sem olhar a despesas, declare do mesmo modo que não tem dinheiro.

35. O Assistente gostaria de sublinhar a sua estranheza quanto ao arquivamento pelo douto Ministério Público da Denúncia por si deduzida.

36. Já que o douto Ministério Publico conclui que a Denunciada “alegar que poderá usar essas informações de forma que pode prejudicar o denunciante, caso não cheguem a acordo extra-judicial, alertando-o dos inconvenientes de que daí possam surgir, não poderá consubstanciar a prática do crime, uma vez que não se concretiza qualquer acção, omissão ou tolerância de actividade de cuja verificação esteja dependente o uso de tais informações.

Já assim não seria (ou seja, já se poderia considerar que consubstanciava a prática do crime) se a denunciada, por exemplo, exigisse que o denunciante lhe pagasse determinada quantia a troco do seu silêncio, ou lhe exigisse determinada divisão de bens de modo a que ficasse beneficiada, como preço do seu silêncio”.

37. Como o Assistente já referiu anteriormente, a Denunciada, no âmbito do processo de divórcio litigioso recusa todas as propostas de acordo por si apresentadas.

38. E, recusa-as por um motivo: a Denunciada no âmbito do processo de divórcio litigioso exige determinada divisão de bens ficando desse modo beneficiada na partilha de bens.

39. Mais acresce que o douto Ministério Publico não teve em conta, nem valorou a título de prova, o requerimento constante de fls. 108 a 114 que materializa os actos da Denúncia apresentada pelo Assistente.

40. Todo o documento “Divorce Trial Status Update” (Actualização do Estado do Processo de Divórcio) configura uma ameaça ao Assistente de um mal importante, não tenta apenas abrir uma possibilidade de acordo extra-judicial como a Denunciada pretende fazer crer.

41. Acresce ainda que o douto Ministério Público não teve em conta, nem valorou a título de prova o requerimento constante de fls. 108 a 114 que materializa os factos da Denúncia apresentada pelo Assistente.

42. Com o teor do referido documento o Assistente sentiu-se e sente-se ameaçado, intranquilo, perseguido e muito preocupado.

43. Ainda que não se entenda a prática do crime por falta de concretização de qualquer acção, omissão, ou tolerância de actividade de cuja verificação esteja dependente o uso das informações contidas no email, entende-se com certeza, pelo menos, a tentativa aí patente.

44. O Assistente não entende o procedimento nem os fundamentos do douto Ministério Público ao determinar o arquivamento.

45. Pelo exposto toma-se indubitável que a Denunciada cometeu os factos integradores do tipo penal do crime de coacção contra o Assistente.

IV. ACTOS DE INSTRUÇÃO REQUERIDOS
O Assistente requer que sejam levadas a cabo as seguintes diligências:
1. Reapreciação da prova documental já junta aos autos.
2. Inquirição:
2.1. Do Assistente;
2.2. Da Denunciada;
2.3. Da testemunha:
2.3.1. Gerrit , casado, residente em …, Países Baixos.

V. EM CONCLUSÃO
1. Através dos actos instrutórios requeridos pretende o Assistente provar que a Denunciada praticou os factos que lhe são imputados pelo Assistente:

1.1. Que coagiu e continua a coagir o Assistente à prática de determinados factos, que este não pretende.

2. Face ao exposto, serve o presente para requerer a V. Exa. se digne proceder aos actos de instrução requeridos, proferindo a final despacho de pronúncia.»

A decisão recorrida tem o seguinte teor:

«Dispõe o art.º 286º, n.º1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, sendo que o assistente a pode requerer, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art.º 287º, n.º1, al.a) do Código de Processo Penal)

Nos termos do n.º2 do art. 287º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, sendo-lhe ainda aplicáveis as als. b) e c) do n.º3 do art. 283º.

No caso, tendo o Ministério Público ordenado o arquivamento do inquérito e tendo sido o Assistente quem requereu a abertura de instrução com vista à pronúncia do arguido, tinha este, por força do disposto nas als. b) e c) do n.º3 do art. 283.º daquele código, aplicável ex vi n.º2, parte final, do art. 287.º daquele diploma legal, indicar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como as disposições legais aplicáveis, devendo indicar, se possível, o lugar, tempo e motivação da sua prática e o grau de participação do agente.

Como refere o Prof. Germano Marques da Silva no Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 161, “O objecto do despacho de pronúncia há-de ser substancialmente o mesmo da acusação formal ou implícita no requerimento de instrução.”.

No mesmo sentido, Maia Gonçalves, no Código de Processo Penal Anotado, 9.ª edição, pág. 541, segundo o qual, “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do n.º1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e elaboração da decisão instrutória”.

Ou seja, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e contraditório, resulta que o requerimento de abertura de instrução, quando requerida pelo Assistente, porque é consequência de um despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado ao arguido.

No que concerne ao princípio do acusatório, e assumindo este especial relevância, cumpre atender ao estatuído no n.º 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, que determina que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório”.

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada ( 3ª Edição, pág. 205-206) “O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 205-206)”.

Assim, e tal como refere Germano Marques da Silva, em obra citada supra, pág. 144, “ o Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto de acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento ou à acusação deduzida elo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”.

Tendo o requerimento de abertura de instrução por parte do Assistente de configurar uma acusação, é esta que condicionará a actividade de investigação do Juiz e a decisão instrutória, tal como flúi, claramente, do disposto nos artigos 303º, n.º3 e 309º, n.º1 do Código de Processo Penal, sendo que a decisão instrutória que viesse a pronunciar o arguido por factos não constantes daquele requerimento, estaria ferida de nulidade.

Ora, no requerimento de abertura de instrução, com vista à pronúncia da denunciada pela prática de um crime de coacção – sem que sequer seja indicada a disposição legal incriminatória, como se lhe impunha -, o Assistente descreve factos objectivos que em seu entender consubstanciam a prática do ilícito, sendo que o faz de forma insuficiente pois que, o teor do escrito que imputa à denunciada e que em seu entender são ilícitos apenas se encontram escritos em língua inglesa. Assim, olvida o assistente, o disposto no art.º 92º, n.º1 do Código de Processo Penal bem como a cominação, aí prevista, de nulidade, sendo que, manifestamente não se poderá considerar que a remissão que faz para um documento que contém a tradução do escrito, seja adequada e suficiente a suprir a omissão da descrição desses factos, essenciais a que pudéssemos entender que estamos perante uma acusação.

Por outro lado, e não olvidando que não pudemos conhecer do teor do requerimento no segmento redigido em língua inglesa, é evidente que o requerimento não contém a imputação de qualquer factualidade que traduza o dolo do agente, pois que sendo este ilícito um crime doloso, e ainda que sendo este admitido em qualquer uma das suas modalidades e prescindindo-se até da existência de um dolo específico, em nenhum momento do requerimento se faz menção da sua existência.

Assim, perante estes dois elementos que completam a tipo de ilícito, elemento objectivo e elemento subjectivo, temos sempre que atentar a descrição fáctica constante de uma acusação tem que conter os elementos objectivos do tipo incriminador, constituídos, nomeadamente, pelo agente, pelo comportamento, pela conduta (ou comportamento humano voluntário) e pelo bem jurídico, este último como «sinónimo do valor objectivado que o tipo traz consigo, sinónimo do substrato concreto, do suporte objectivo imediato de um valor» (cfr. Figueiredo Dias, «Direito Penal», Sumários das Lições à 2ª turma do 2º ano da Faculdade de Direito, Coimbra, 1975, págs. 139/144). Já ao nível do tipo subjectivo haverá que considerar, e fazer traduzir na matéria de facto, que este constitui a representação da situação objectiva na mente do agente. Para se afirmar a verificação do tipo legal de crime, exige-se, pois, que o agente saiba e tenha consciência e conhecimento da situação objectiva, tal como ela se verifica.

Não se poderá olvidar que nos crimes dolosos, como o de coacção, a verificação do tipo subjectivo de ilícito pressupõe o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente, ou seja, pressupõe que estejam presentes o elemento intelectual, o elemento volitivo, e o chamado elemento emocional.

Não se esgotando o dolo no conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, é ainda necessário que àqueles acresça um elemento emocional na caracterização da atitude pessoal do agente, exigida pelo tipo-de-culpa doloso. Por outras palavras: à afirmação do dolo não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, sendo preciso, igualmente, que esteja presente o conhecimento e a consciência, por parte do agente, do carácter ilícito da sua conduta.

Assim, o elemento intelectual do dolo «só poderá ser afirmado quando o agente actue com todo o conhecimento indispensável para que a sua consciência ética se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do seu comportamento», isto é, quando o agente actue com conhecimento da factualidade típica. Já o elemento volitivo traduz a «vontade do agente dirigida à realização do tipo» legal de crime. Finalmente, o elemento emocional representa o «conhecimento ou consciência do carácter ilícito» da conduta, estando ligado, pois, ao chamado tipo de culpa doloso.
Nestes termos “o dolo só existirá quando o agente actue com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito e com conhecimento ou consciência da ilicitude da sua actuação, ou seja, «sempre que o ilícito típico seja fundamentado por uma censurável posição da consciência-ética do agente perante o desvalor do facto, pressuposto que aquela se encontrava correcta e suficientemente orientada para esta» (cfr. Figueiredo Dias, op. cit., págs. 199/204, e «Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa», in «Jornadas de Direito Criminal», «O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar», edição do Centro de Estudos Judiciários, págs. 72/73).

Ora, perante estes considerandos teóricos, e atentando nos factos descritos no requerimento de abertura de instrução do Assistente, é manifesto que nesse libelo apenas se descreveram, de forma bastante insuficiente, elementos objectivos, sendo a mesma totalmente omissa ao nível de qualquer um dos elementos integradores do dolo, seja ele intelectual, volitivo ou emocional.

E, perante uma mera descrição de condutas e comportamentos imputados ao agente, nada mais se acrescentando susceptível de integrar aquelas figuras essenciais ao preenchimento do tipo subjectivo do ilícito, é manifesto que não se poderá demonstrar ou considerar indiciada uma actuação dolosa por parte da denunciada, implicando que a conduta desta, nos termos descritos pelo Assistente, seja inócua.

Tal como salientado por Figueiredo Dias (in “O Ónus de Alegar e de Provar em Processo Penal”, RLJ, 105, n.º3473, 1972), o facto do dolo poder ser provado e, portanto, inferir-se, com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da experiência comum, não pode significar que fica dispensada a alegação dos pertinentes factos que o integram (neste sentido, também com relevância, cfr. Ac. do TRP 11/10/06, in www.dgsi.pt).

Assim, não se pode considerar que os factos alegados no requerimento para abertura de instrução apresentado pela Assistente sejam susceptíveis de levar à aplicação de qualquer pena ou medida de segurança à denunciada, pois que lhe falta um elemento essencial e insuprível.

Como já referimos supra, não é possível ao Juiz substituir-se ao Assistente, colocando, por iniciativa própria, os factos em falta e que se revelam essenciais para a imputação do crime ao agente, sob pena de estarmos perante uma alteração substancial de factos.

Tal como se decidiu no Ac. da Rel de Lisboa de 20/05/97 (in CJ, Vol. III, pág. 143) “não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois, então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor” .

Repetindo-nos, qualquer arguido só pode ser pronunciado pelos factos constantes do requerimento do Assistente, pois não há lugar a uma nova acusação, nem o Juiz se pode substituir ao assistente na tarefa de carrear factos para a pronúncia, pois a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução. Só assim se respeita, formal e materialmente, a acusatoriedade do processo, só assim o arguido sabe quais os factos que lhe são imputados, podendo exercer, com eficácia e segurança, o contraditório, e só desta forma se pode delimitar o objecto do processo e vincular-se tematicamente o tribunal, impedindo-se um alargamento arbitrário desse objecto.

Nos termos do n.º3 do art. 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal.

No caso, entendemos que estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal, quer atenta a nulidade plasmada no art.º 283º, n.º3 quer atenta a falta de objecto, sendo que esta causa de rejeição é de conhecimento oficioso (cfr., entre muitos outros, Ac. do STJ de 27/02/02 e 26/06/02, ambos publicados em www.dgsi.pt).

Na verdade, a realização da instrução constituiria um acto inútil, na medida em que, finda a mesma, atenta a ausência de factos integradores dos elementos subjectivos e até mesmo perante a insuficiência de factos objectivos (pois que se atentarmos nos factos descritos no requerimento de abertura de instrução e redigidos em língua portuguesa, pouco mais se vislumbra do que conclusões e não factos objectivos e concretos), qualquer decisão que viesse a ser proferida e que considerasse factos não alegados na instrução seria nula, pois que sempre haveria falta de objecto do processo (neste sentido, cfr. Ac. Trib. da Rel. de Lisboa de 9/02/00, in CJ, T.I, pág.153; Ac. Trib. Rel. do Porto de 5/05/93, in CJ, T. III, pág. 243, e Ac. Trib. da Rel. de Évora de 14/04/95, in CJ, T.I, pág. 280).

Também e desde já que referimos que, perfilhamos do entendimento seguido pela jurisprudência maioritária, ou mesmo unânime, dos Tribunais superiores que não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado pelo Assistente (vide, neste sentido, Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, in DR I Série-A, de 4/11/05 e também Ac. do Trib. da Rel. do Porto de 31/05/06 e de 1/03/06, publicados em texto integral em www.dgsi.pt), pois que, a existir, este convite colocaria em causa o carácter peremptório do prazo referido no art.º 287, n.º1 do Código de Processo Penal e a apresentação de novo requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, para além daquele prazo, violaria as garantias de defesa do arguido (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 27/2001 de 31/01/01, DR 2ª série de 23/03/01).

Também o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria, tendo decidido que “ A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerente a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução. Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n.º3 do art.º 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (…) de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória” (vide Acórdão n.º358/04, de 19/05, Proc. 807/03, publicado no DR 2ª série de 28/06/04).

Face a tudo supra exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Assistente, Johannes por o mesmo ser legalmente inadmissível, atento o preceituado no art.º 287º, n.º3 do Código de Processo Penal.»
v
Cumprimento, no requerimento de abertura da instrução, das exigências contidas no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no n.º 2 do artigo 287.º do mesmo diploma legal

De forma muito simples, pode dizer-se que o processo penal estabelece um conjunto de regras e de procedimentos que visam a aplicação do direito penal, sendo este considerado como o complexo de normas jurídicas que, em cada momento histórico, enuncia, de forma geral e abstracta, os factos ou comportamentos humanos susceptíveis de pôr em causa os valores ou interesses jurídicos tidos por essenciais numa comunidade, e estabelece as sanções que lhes correspondem.

O processo penal comporta diversas fases – a do inquérito, a da instrução e a do julgamento.

Interessa-nos a fase da instrução, a fase intermédia entre o inquérito e o julgamento.

Que tem carácter facultativo e compete a um Juiz de Instrução, visando a comprovação judicial da decisão [do Ministério Público] de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artigos 286.º, n.º 1 e n.º 2, e 288.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.

Em conformidade com o disposto no artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, o assistente tem a possibilidade de requerer a instrução em crimes de natureza pública ou semi-pública, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

Nos termos do n.º 2 do preceito legal acabado de mencionar, o requerimento de abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º.»

Este artigo 283.º reporta-se à acusação formulada pelo Ministério Público.

E do seu n.º 3 consta, na parte que importa, que
«A acusação contém, sob pena de nulidade:
(...)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
c) A indicação das disposições legais aplicáveis.
(...)»

De regresso ao artigo 287.º do Código de Processo Penal, importa, ainda, o disposto no seu n.º 3, de onde resulta que o requerimento de abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Aqui chegados, interessa-nos, apenas a hipótese de inadmissibilidade legal da instrução, que se configura quando, por exemplo, esta visa factos que não foram objecto de inquérito por parte do Ministério Público e quando o requerimento de abertura da instrução não respeita o disposto no artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Tratando-se de questão controvertida, a verdade é que muita doutrina[2] e a maior parte da jurisprudência entendem integrar o conceito de inadmissibilidade legal as situações em que o requerimento de abertura da instrução não respeita o disposto no n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal.

E assim se tem entendido porque a descrição dos factos que integram o tipo legal de crime imputado, quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo, é fundamental dada a circunstância de vigorar entre nós, em pleno, o princípio da legalidade.

Portanto, quando o requerimento de abertura de instrução seja omisso em elementos essenciais a consequência será a de rejeição por inadmissibilidade legal.

Tenha-se presente que o Juiz não se pode substituir ao assistente e colocar, por sua própria iniciativa, os factos em falta, essenciais para a imputação de crime. Se assim procedesse não só violaria os princípios da igualdade, imparcialidade e independência, mas também extravasaria os seus poderes de cognição, limitados pelo conteúdo do requerimento de abertura de instrução[3].

E deve ter-se também presente que semelhante requerimento de abertura de instrução [que peque por défice enunciativo de factos susceptíveis de conduzir à pronúncia] não poderá, nunca, conduzir à pronúncia, por omissão de elementos essenciais à sua prolação, conduzindo a uma instrução ilegal, se for aberta, por incorporar actos inúteis. Por outro lado, a inclusão na pronúncia de factos não constantes do requerimento de abertura da instrução pode traduzir alteração substancial que conduz à nulidade prevista no artigo 309.º do Código de Processo Penal.

Pode, pois, concluir-se que o requerimento de abertura de instrução deve ter a estrutura de uma acusação, devendo ser dirigido contra uma identificada pessoa ou entidade, e conter os elementos objectivos e subjectivos face aos quais se possa concluir que o arguido cometeu um ilícito penal, sob pena de rejeição por inadmissibilidade legal, de harmonia com o disposto no artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Importa, agora, regressar ao processo.

O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo Assistente padece de todas as deficiências que lhe foram apontadas na decisão recorrida.

Dele decorrem as razões pelas quais o Assistente se não conforma com a decisão de arquivamento do inquérito proferida pelo Ministério Público – o Assistente entende que os factos que denunciou se encontram demonstrados por via documental e face ao teor contraditório das declarações prestadas pela Denunciada.

Mas revelada semelhante discordância, do requerimento para a abertura da instrução não decorrem os factos que integram o crime que o Assistente considera indiciado nos autos.

Efectivamente, o teor do escrito imputado à denunciada, e que se entende consubstanciar a prática do crime de coacção, encontra-se em língua inglesa.

Resulta do disposto no n.º 1 do artigo 92.º do Código de Processo Penal que nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade.
Diz o Recorrente, no ponto 11 do requerimento para a abertura da instrução que “as partes transcritas em língua inglesa (…) têm a respectiva tradução em língua portuguesa, reiterando-se que todo o documento se encontra traduzido para a língua portuguesa”.

Esta afirmação, nos termos em que se encontra feita, não vale como remissão para o documento de tradução.

Mas ainda que assim se não entendesse, temos como segura a inadmissibilidade da descrição factual por remissão – por ausência de suporte legal para tanto.

Por outro lado, as partes transcritas em língua inglesa, no requerimento para a abertura da instrução, são excertos enunciados a título exemplificativo de texto que foi traduzido – pontos 9 e 10 do requerimento de abertura da instrução. Pelo que não pode ser feita a correspondência directa das mesmas no documento de tradução.

Ao que acresce ser o próprio Recorrente a afirmar que usa transcrição do documento que lhe foi enviado pela Denunciada que não foi objecto de tradução – ponto 27 do requerimento para a abertura da instrução.

Neste circunstancialismo, não podemos deixar de concluir como na decisão recorrida – o requerimento para a abertura da instrução não contém a imputação de qualquer factualidade integradora da prática de um crime.

Pelo que se torna até inútil assinalar, ainda, no requerimento para a abertura da instrução em causa, a ausência de factualidade integradora do elemento subjectivo de qualquer crime ou da disposição legal que lhe corresponde.

Assim sendo, não resta senão concluir que o Recorrente não observou, no requerimento de abertura da instrução, as exigências contidas no artigo 283.º, n.º 2, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no n.º 2 do artigo 287.º do mesmo diploma legal.

Previsão do n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal ou possibilidade de convite ao aperfeiçoamento do requerimento para a abertura da instrução

A imperfeição do acto processual pode apresentar cambiantes diversas consoante a gravidade do vício que lhe está na génese e que se poderá situar entre a irregularidade e a inexistência.

Entre estes dois extremos, encontram-se os vícios que dão lugar à nulidade, que se subdivide em nulidade insanável e nulidade dependente de arguição.

O Código de Processo Penal trata as irregularidades como uma subespécie das nulidades. Mais do que a figura dogmática das irregularidades, que não afectam a validade nem a eficácia dos actos processuais praticados, este regime revela uma figura distinta do género das nulidades das quais se distingue do ponto de vista penal e, principalmente, processual. No plano substancial, correspondem-lhe vício de menor gravidade. No plano formal, as irregularidades denotam mecanismos de arguição muito limitados quer em termos temporais, quer em termos pessoais. O seu poder destrutivo acaba por ser drasticamente reduzido.

Em muitas situações, apesar do termo utilizado pelo legislador, estamos perante outra forma de funcionamento da invalidade que não se confunde com as nulidades insanáveis, nem com as nulidades dependentes de arguição nem, ainda, com a figura dogmática da irregularidade.

O n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal consagra a possibilidade de se ordenar oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.

O propósito de correcção da imperfeição do acto processual aqui contemplado tem natureza subsidiária ou residual. A sua utilização depende da necessidade de correcção e da possibilidade de o fazer – isto é, da inexistência de qualquer outra cominação para o acto imperfeito.

Resulta do que acima se deixou dito que a imperfeição do requerimento para a abertura da instrução – por inobservância das exigências contidas no artigo 283.º, n.º 2, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal – conduz à não inadmissibilidade legal dessa fase processual, através da rejeição do respectivo requerimento.

Tendo a lei consequência prevista para semelhante “imperfeição”, não vemos como pretender a correcção dela ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal.
No que concerne à possibilidade de convite ao aperfeiçoamento do requerimento para a abertura da instrução, importa a jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 7/2005, de 12 de Maio [publicado no Diário da República – I Série A, n.º 212, de 4 de Novembro de 2005]:

«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Que resolve a questão em análise, sem necessidade de qualquer outra consideração.

E conduz à improcedência do recurso.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter na íntegra, a decisão recorrida.

Custas a cargo do Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC – artigos 513º, nº 1, 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, e artigo 8º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais [Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro].
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Évora, 21 de Junho de 2011-07-06
(processado em computador e revisto pela primeira signatária)

(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)

(Edgar Gouveia Valente)

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[1] . Publicado no Diário da República de 28 de Dezembro de 1995, na 1ª Série A.

[2] Cfr., entre outros, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, páginas 138 e 142 e seguintes.

[3] Cfr., entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 14 de Abril de 1995 [Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, Tomo 2, página 280] e de 16 de Dezembro de 1997 [Boletim do Ministério da Justiça n.º 472, página 58].