Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
59/15.6GAVVC.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
Data do Acordão: 12/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I -No crime de violência doméstica devem estar em causa atos que, pelo seu carácter violento, sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da “imagem global do facto” para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão.

II - Assim sendo, a intervenção penal deve manter, também aqui, a sua função de proteção de última ratio, não devendo o julgador tentar, através de tal intervenção, modelar e ajustar comportamentos (no âmbito das relações de conjugalidade), punindo criminalmente aquilo que, bem vistas as coisas, é apenas merecedor de censura ético-moral. É que, a não ser assim, poder-se-ia chegar à absurda situação de existir perseguição criminal de comportamentos que, pura e simplesmente, se afastem de determinados padrões de comportamento socialmente dominantes.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


I - RELATÓRIO.
Nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) nº 59/15.6GAVVC, da Comarca de Évora (Vila Viçosa - Instância Local - Secção de Competência Genérica - Juiz 1), em que é arguido A., foi decidido, por sentença datada de 15-06-2016:

“a) Absolver o arguido A., pela prática, em autoria material, sob a forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), nºs 4 e 5, do Código Penal.

b) Condenar o arguido A. pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;

c) Suspender na sua execução, por igual período, a pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, subordinada às seguintes obrigações:

i. Avaliação da necessidade de tratamento para dependência alcoólica; e

ii. Na afirmativa, submissão do arguido a tratamento médico.

d) Condenar o arguido nas custas crime do processo (cfr. artigos 513º e 514º, do Código Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.

e) Julgar totalmente procedente, por provado, o pedido cível deduzido pela demandante “Unidade de Saúde do Norte Alentejano, E.P.E.”, e, em consequência, condenar o arguido/demandado A. a pagar à demandante a quantia de 54,70€ (cinquenta e quatro euros e setenta cêntimos), a que acresce a quantia relativa aos juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização cível e até efetivo e integral pagamento”.
*
Inconformado com a decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª - Na sentença recorrida foi incorretamente considerado e valorado o depoimento da Ofendida R., do qual resulta, antes de mais, evidente que a motivação para a apresentação da queixa contra o Arguido residiu unicamente no facto de pretender “dar um susto” ao Arguido para este ser forçado a fazer um tratamento ao álcool.

2ª - Os factos 22, 23, 24, 25, 26 e 27 dos factos provados foram indevidamente dados como provados, já que, contrariamente ao entendido pela Mmª Juíza a quo, nada há nos autos que permita que os mesmos sejam dados como provados.

3ª - Devem, assim, esses factos ser retirados dos factos provados e incluídos e aditados aos factos dados como não provados.

Sem prescindir,
4ª - O depoimento da Ofendida R., que se encontra gravado, encontrando-se a gravação reproduzida na antecedente alegação e que, por isso, aqui se dá por reproduzida, mostra, sem margem para dúvidas, que esses factos não podem nem devem ser dados como provados, pois não correspondem a comportamentos, sequer a intenções, do Arguido.

5ª - Do depoimento da Ofendida resulta evidente que esta, sobretudo a partir do nascimento da filha de ambos, alterou o seu comportamento e forma de estar na relação matrimonial que a unia ao Arguido.

6ª - Assim, por um lado, a Ofendida R. começou a recursar-se a manter relações sexuais com o Arguido, e, por outro, começou a pretender ter e manter uma vida social independente da do Arguido, o que até então não ocorria, e as respetivas razões não foram dadas a conhecer pela mesma Ofendida ao Arguido.

7ª - O que causou ou, pelo menos, contribuiu fortemente para o deteriorar da relação entre a Ofendida R. e o Arguido, justificando as inúmeras discussões que quer o Arguido quer a Ofendida referiram em tribunal que mantinham nos últimos anos e, bem assim, as dúvidas que o Arguido passou a ter em relação à Ofendida R., designadamente quanto à sua fidelidade sexual.

8ª - A conduta do Arguido, no caso em apreço, não pode ser considerada suscetível de ser classificada como “maus tratos”, pois, para o efeito, seria necessário que estivéssemos perante uma especial gravidade da conduta, com desrespeito pela dignidade da Ofendida R., o que, atenta a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, com especial realce para o depoimento da mesma Ofendida, não acontece.

9ª - A Ofendida R. transmitiu ao Tribunal que, desde o nascimento da sua filha S., atualmente com 4 anos, tinha deixado de ter disposição para ter relações sexuais com o Arguido, o que admitiu não conseguir explicar porquê, e que tal foi causa de conflitos e discussões entre o casal, tendo, inclusivamente, levado o Arguido a desconfiar que ela Ofendida R. teria uma relação com outra pessoa, imputando-lhe amantes.

10ª - A Ofendida R. também transmitiu ao Tribunal que, influenciada por terceiras, a partir do verão de 2015, alterou a sua postura na relação com o Arguido, e começou a pretender e a fazer uma vida social independente do seu companheiro, o Arguido, o que também não foi por este compreendido.

11ª - Do depoimento da Ofendida R., com base no qual a Mmª Juíza a quo assentou a sua fundamentação relativamente aos factos constantes dos pontos 1 a 21 e 32, não resulta, nem pode resultar, a conclusão de que os factos provados integram uma situação de violência doméstica, pois não resultaram provados quaisquer atos violentos que, pela sua imagem global e pela sua gravidade, devam ser tidos como desrespeitadores da pessoa da vítima, ou do desejo de prevalência e de dominação sobre a mesma, e, logo, suscetíveis de serem classificados como maus tratos.

12ª - Os factos dados como provados, designadamente os pontos referenciados na fundamentação da sentença recorrida, não integram maus tratos, e, consequentemente, não podem ser integradores do tipo de crime de violência doméstica.

13ª - Aliás, não podemos correr o risco de considerar qualquer disputa, desacordo ou desentendimento entre um casal, como uma situação de violência doméstica.

14ª - Os factos integradores da violência doméstica têm que ser classificados como maus tratos, sendo que as relações são todas distintas e têm que ser interpretadas na sua conjuntura e na vivência do casal.

15ª - Deste modo, não se verificam os pressupostos ou requisitos da prática, em autoria material, por parte do Arguido, de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo art.º 152º do Cód. Penal.

16ª - Como tal, e para além da alteração da apontada matéria de facto dada como provada, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por Douto Acórdão que absolva o Arguido do crime de que vem condenado”.

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta, concluindo que o recurso não merece provimento.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, entendendo que o arguido deve ser absolvido, nos termos (naquilo que é essencial) alegados na motivação do recurso.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Efetuado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Duas questões, em breve síntese, são suscitadas no recurso interposto pelo arguido, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal:

1ª - Impugnação alargada da matéria de facto.
2ª - Qualificação jurídica dos factos.

2 - A decisão recorrida.

A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos, provados e não provados, e quanto à motivação da decisão fáctica):

“Factos Provados
1. O arguido, A. e a vítima R., viveram em comunhão de cama, mesa e habitação, desde o ano de 2007 até Dezembro de 2015.

2. Do agregado familiar do arguido e da vítima R. faziam ainda parte as filhas menores da vítima, Ângela, de 14 anos de idade, Valentina, de 13 anos de idade, e a filha menor de ambos, S., de 4 anos de idade.

3. O arguido sempre consumiu bebidas alcoólicas, passando a fazê-lo em excesso desde o ano de 2015.

4. Em datas não concretamente apuradas, mas que se situam no ano de 2015, por mais de uma vez, o arguido dirigiu à vítima R. a seguinte expressão: “tens amantes”, tendo-lhe dirigido, por uma vez, a seguinte expressão “tens relações sexuais com homens mais velhos”.

5. Por mais de uma vez, com o consentimento da vítima R., o arguido tirou o dinheiro que se encontrava na carteira desta.

6. Em data não concretamente apurada, no interior da residência comum do casal sita na Rua…, em Borba, o arguido, na sequência de uma discussão, agarrou o pescoço da vítima R. com uma das mãos.

7. Numa outra ocasião, em dia e hora não concretamente apurada do mês de Junho ou Agosto de 2015, no interior da residência comum do casal sita na Rua ---, em Borba, a vítima R. pediu dinheiro ao arguido para ir à farmácia comprar medicamentos para a dor de dentes, tendo-lhe ele respondido: “com quem andas a foder não te dá o dinheiro para o medicamento?”.

8. No dia 29 de agosto de 2015, cerca das 16 horas e 25 minutos, no interior da residência comum do casal sita na Rua---, em Borba, a vítima R. estava na sala com a filha do casal de 4 anos de idade que dormia no sofá da sala.

9. Na mesma divisão da casa estava o arguido a ver televisão.

10. A vítima R. pediu ao arguido para baixar o som da televisão, ao que o arguido reagiu, dizendo-lhe para levar a filha para o quarto.

11. No meio da discussão, a vítima R., para que o arguido não continuasse com a discussão em frente da sua filha menor, lançou um comando da televisão na direção do arguido atingindo-o na cabeça.

12. De imediato, o arguido empurrou a vítima R., atingindo-a no ombro direito, provocando-lhe, de imediato, dores.

13. A Menor Valentina, ao ver a mãe a ser agredida, acorreu em auxílio da mesma, saltando para cima do arguido e dando-lhe uma chapada na face do arguido que, ato continuo, a empurrou com força, levando-a a embater com o pulso direito numa porta, provocando-lhe dores, de imediato.

14. Da documentação clínica resulta que a vítima Valentina, em consequência da agressão descrita, sofreu traumatismo abdominal à direita e no punho direito, que demandou para a cura 1 dia de doença, sem afetação da capacidade para o trabalho geral e sem afetação da capacidade para o trabalho profissional.

15. Como consequência necessária e direta dos factos descritos em 12. a vítima R. sofreu dor na região supra mamária direita, que determinou para a cura 4 dias de doença, sem afetação da capacidade para o trabalho geral e sem afetação da capacidade para o trabalho profissional.

16. A partir do dia 2 de Novembro de 2015, data em que a filha menor Valentina disse à progenitora que tinha sido abusada sexualmente pelo arguido, a vítima R. deixou de manter relações sexuais com o arguido.

17. A partir dessa data, as discussões entre o arguido e a vítima R. tornaram-se frequentes.

18. No dia 30 de Novembro de 2015, pelas 20 horas e 45 minutos, após ter visto o arguido alcoolizado num café próximo da residência, a vítima R. trancou a porta da residência comum do casal, sita na Rua---, em Borba, tendo o arguido ficado impedido de aceder à habitação.

19. Ao deparar-se com tal situação o arguido tentou forçar a entrada na habitação dizendo para a vítima R.: “queres espetáculo na rua, então vais tê-lo daqui a bocadinho”

20. Nessa noite a vítima R. e as suas filhas menores pernoitaram fora da residência do casal.

21. Os factos, conforme descritos, ocorreram sempre no interior da residência do casal e na presença das menores.

22. Assim, em relação à vítima R., atuou sempre o arguido, nas condutas que supra se deixaram descritas, com o propósito, concretizado, de deixar a vítima em estado de constrangimento, com o intuito de levá-la a ser-lhe submissa e a comportar-se do modo que ele entendia conveniente, controlando os movimentos da mesma e as suas relações, indiferente à relação familiar que os unia e aos deveres que para si advinham quanto à mesma, nomeadamente de respeito e cooperação, relação e deveres de que estava bem ciente.

23. O arguido não se coibiu de agir como descrito, causando sofrimento, humilhação e vergonha a R., molestando-a psicologicamente.

24. Mais pretendeu o arguido, atingir o corpo da vítima R., provocando-lhe mazelas e dor, como o fez e conseguiu ao praticar os factos descritos em 6. e 12.

25. Bem como pretendeu, com as expressões que dirigiu a R., humilhá-la na sua honra e consideração, no interior da residência conjugal e na presença dos filhos menores de ambos.

26. Ao atuar contra a vítima Valentina, agiu o arguido querendo atingir o corpo e saúde da mesma, provocando-lhe mazelas e dor, o que fez e conseguiu.

27. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se por completo pela saúde da vítima R., estado psíquico e pelo seu bem-estar, bem sabendo que tais condutas supra descritas lhe estavam vedadas e eram punidas por lei, e, ainda assim, não se inibiu da sua realização.

28. Sabia que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.

29. Por sentença proferida a 7 de Julho de 2006, já transitada em julgado, no âmbito dos autos que correram termos no extinto Tribunal Judicial da Comarca de Vila Viçosa, sob o nº ---/06.3TBVVC, foi condenado pela prática, a 28 de Junho de 2006, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros).

30. Por sentença proferida a 29 de Março de 2016, já transitada em julgado, no âmbito dos autos que correm termos na Instância Local de Vila Viçosa do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, sob o nº --/16.1GAVVC, foi condenado pela prática, a 19 de Março de 2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena principal de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros).

31. O arguido encontra-se atualmente desempregado há cerca de duas semanas, tendo solicitado junto do ISS a concessão do benefício do RSI.

32. O arguido e R. encontram-se separados até à presente data, não tendo retomado a vivência de comunhão de cama, mesa e habitação.

33. Mercê do referido em 13, a vítima Valentina foi assistida na Unidade de Saúde do Norte Alentejano, E.P.E., cifrando-se os encargos da assistência médica prestada, no montante de no valor de 54,70€, (cinquenta e quatro euros e setenta cêntimos).

Factos Não Provados
a) Por mais de uma vez, o arguido tirou o telemóvel à vítima R., para verificar as chamadas e as mensagens que esta recebeu e efetuou.

b) Nas circunstâncias referidas em 6. dos factos provados, o arguido tentou sufocar R., tendo sido impedido por uma das filhas da vítima, menor de idade.

c) A partir da data referida em 17. dos factos provados, de forma diária, o arguido passou a acusar R. de manter relações sexuais com outros homens.

d) Para além dos factos vertidos em 13. dos factos provados, o arguido agarrou Valentina pelos pulsos.

e) No dia 30 de Novembro de 2015, o arguido apropriou-se indevidamente da caderneta da conta bancária em que a vítima R. deposita o proveito do seu trabalho, impedindo-a de movimentar o seu dinheiro.

f) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 18. dos factos provados trancou a porta da residência comum do casal por ter medo de ser agredida física e psicologicamente pelo arguido.

g) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 19. dos factos provados, o arguido disse, ainda: “pois eu já não tenho nada a perder.”

h) O arguido não contribui para as despesas com a habitação e alimentação do agregado familiar, gastando todo o dinheiro que auferia com trabalhos esporádicos na compra de bebidas alcoólicas.

i) O arguido atuou com o propósito, concretizado, de incutir terror permanente a R..

j) O arguido causou medo a R.

k) Com as expressões que dirigiu a R.o arguido pretendeu, também, amedrontar a vítima, o que conseguiu, originando-lhe um medo constante das suas reações, com medo daquilo que o arguido pudesse vir a fazer no futuro, contra a sua integridade física ou a sua vida, e a integridade física ou a vida das suas filhas menores.

l) Agiu o arguido contra a vítima Valentina, indiferente à relação familiar que os unia e aos deveres que, para si, advinham quanto à mesma, nomeadamente de proteção e respeito, relação e deveres de que estava bem ciente, bem como indiferente à idade da menor e à superioridade física e psicológica que exercia sobre a mesma.

m) O arguido desinteressou-se por completo pela saúde da vítima Valentina, estado psíquico e pelo seu bem-estar.

Deixa-se consignado que nada se decide quanto à restante matéria, por ser a mesma irrelevante para a presente decisão.

Motivação

O Tribunal formou a sua convicção conjugando e entrecruzando os vários meios de prova, designadamente, a prova documental junta aos autos (designadamente, o auto de noticia de fls. 4 e 5, o Certificado de Registo Criminal de fls. 321 e 322, certidão de fls. 329 a 338 e X, bem como os documentos de fls. 59 e 60 e de fls. 287), no teor dos Relatórios Periciais juntos a fls. 33 e 34 e 37. e 38 dos autos, nas declarações do arguido – na medida em que as mesmas se revelaram credíveis – o depoimento da ofendida R. e os depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência e julgamento, que depuseram de forma serena, séria e coerente e cujos depoimentos e declarações, por via disso, se afiguraram credíveis.

Todos os elementos de prova supra referidos, à exceção da prova pericial, foram apreciados à luz do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, ou seja, segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, já que o julgador é livre de decidir segundo o bom senso e a experiência de vida, claro está, tendo em mente a capacidade crítica, o distanciamento e ponderação que se impõem.

Assim, a formação da convicção do Tribunal dependeu essencialmente de duas operações: de um lado a atividade cognitiva de filtragem de informações dadas e sua relevância ético-jurídica; de outro lado, elementos racionalmente não explicáveis – ou pelo menos de explicação menos linear – como a credibilidade que se concede a um certo de meio de prova em detrimento de outro, já que não é quantidade de prova produzida que releva, mas antes a qualidade de tal prova.

Com efeito, desde logo quando estejam em causa depoimentos ou declarações, deverá o Tribunal formular um juízo de veracidade e autenticidade do declarado, o qual depende do contacto oral e direto com os declarantes e da forma como estes transmitem a sua versão dos factos – postura e comportamento, características de personalidade reveladas, carácter e probidade.

De salientar ainda que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e uma vez que jamais este pode basear-se na absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade, que permita afastar a situação de dúvida razoável, pelo que a existência de duas versões antagónicas dos factos trazidos para os autos não conduz necessariamente a um estado de incerteza.

Neste conspecto, em causa estará sempre o princípio da livre apreciação da prova, sendo de aplicar o princípio fundamental do in dubio pro reo quando o Tribunal de forma racionalmente objetivável e motivável e portanto capaz de convencer os outros, não tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.

De referir ainda que, se via de regra um depoimento/declarações se revelará ao olhos do julgador totalmente credível ou não credível, a verdade é que tal nem sempre sucederá, desde logo quanto a mesma pessoa, quanto a determinados factos, ocupe uma posição processual que a coloque num lugar de particular constrangimento (por exemplo por aquilo a que se refere contender com a sua própria responsabilidade criminal), sendo pois perfeitamente verosímil e lógico que haja necessidade de se cindir aquilo que é relatado, atentando no particular circunstancialismo que rodeia os concretos factos em causa.

Sinteticamente, podemos dizer que foi deste conjunto de vetores e da essência deste processo – sempre complexo – de apreciação e valoração da prova que resultou ou não comprovada a factualidade descrita em sede de acusação pública.

Concretizando, importa dizer, desde logo, no que à prova dos factos vertidos em 1. a 21. e 32. o Tribunal louvou-se, desde logo, no depoimento da ofendida R. que, de forma impressiva, relatou os factos em apreço nos moldes em que os mesmos resultaram provados, denotando uma constante disponibilidade para responder e esclarecer as todas as questões – mesmo as mais delicadas - que lhe iam sendo colocadas pelo Tribunal, sem qualquer constrangimento.

Com efeito, não obstante a particular natureza dos factos em causa nos autos e o teor das questões que lhe foram colocadas, o depoimento da ofendida pautou-se pela simplicidade e consistência com que a mesma relatou os factos, relato esse muitas vezes acompanhado de gestos e movimentações corporais muito expressivas.

Importa notar que a ofendida não se limitou a aderir “em bloco” aos factos constantes da acusação pública, antes se referindo a eles com maior precisão, relatando alguns dos episódios de forma não absolutamente coincidente com o vertido na acusação pública e não hesitando em afirmar que parte dos factos enunciados não tiveram lugar.

De salientar, também, que o depoimento da ofendida mostra-se corroborado, ainda que parcialmente, pelo depoimento de Valentina que relatou os factos de que tinha conhecimento direto de forma similar ao relato feito pela sua mãe, R. (mostrando-se, de resto, conforme às regras da experiência comum que atenta a idade da Menor e o período de tempo entretanto decorrido, que haja algumas diferenças, sem relevo, quanto aos factos sucedidos a 29 de Agosto de 2015).

Da mesma forma, o depoimento da ofendida encontra suporte nos depoimentos claros e assertivos da testemunha AM – Militar da GNR que foi chamado à então residência do casal no dia 30 de Novembro de 2015 – e das testemunhas CV e MS que, não obstante não terem conhecimento direto de grande parte dos factos em análise, relataram ao Tribunal a relação conturbada do arguido e R., dando conta, igualmente, das queixas desta relativas ao comportamento do arguido.

Diga-se, ainda a propósito do depoimento da ofendida R., que o mesmo encontra, igualmente, suporte (ainda que parcial), no teor da documentação clínica junta a fls. 59 e 60, bem como no teor dos Relatórios Periciais juntos a fls. 33 e 34 e 37. e 38 autos.

No que concerne, por seu turno, às declarações do arguido, este confessou a grande maioria dos factos dados como provados pelo Tribunal, relatando os factos de forma muito similar ao relato feito pela ofendida R..

Com efeito, no que a estes factos respeita, se é certo que o arguido procurou contextualizar os factos, justificando a sua conduta com os comportamentos da assistente, também é certo que o arguido assumiu a prática dos factos dados como provados pelo Tribunal.

No que concerne ao vertido em 22 a 28., valorou-se a factualidade objetiva dada como provada, conjugada com as regras de experiência comum.

Com efeito, atentando na concreta forma de atuar do arguido – e não estando este limitado na sua vontade de querer e entender – naturalmente não poderá o arguido ter deixado de agir com o propósito concretizado de deixar R. Barna em estado de constrangimento, com o intuito de levá-la a ser-lhe submissa e a comportar-se do modo que ele entendia conveniente, controlando os movimentos da mesma e as suas relações, indiferente à relação familiar que os unia e aos deveres que para si advinham quanto à mesma, nomeadamente de respeito e cooperação, relação e deveres de que estava bem ciente, causando sofrimento, humilhação e vergonha a R. e molestando-a psicologicamente; e com o propósito concretizado de atingir o corpo de R., provocando-lhe mazelas e dor, bem como humilha-la na sua honra e consideração, no interior da residência conjugal e na presença dos filhos menores de ambos; e, bem assim, com o propósito concretizado atingir o corpo e saúde de Valentina, provocando-lhe mazelas e dor; atuando o arguido de forma livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se por completo pela saúde das vítimas, estado psíquico e pelo bem-estar de ambas, bem sabendo que tais condutas supra descritas lhe estavam vedadas e eram punidas por lei - conhecimento que existe, de resto, da parte do comum dos cidadãos.

No que tange aos antecedentes criminais do arguido (cfr. factos vertidos em 29 e 30), o Tribunal atendeu ao teor do Certificado de Registo Criminal de fls. 321 e 322 e da certidão de fls. 329 a 338 e informação de fls. 362.

Por seu turno, quanto à situação pessoal e económica (cfr. factos enunciados sob o número 31) relevaram de forma conjugada as declarações do arguido que, porque feitas de forma espontânea e coerente quanto a esta matéria, se afiguraram credíveis.

Para prova, por fim, dos factos enunciados em 33, o Tribunal louvou-se no teor dos documentos de fls. 287, conjugado com o depoimento de R.

Relativamente aos factos não provados, não foi produzida em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram, desde logo mercê de nenhum dos ouvidos ter revelado conhecimento ou o conhecimento revelado se ter limitado ao que resultou provado ou ainda de o descrito ter sido contraditado pela prova produzida (desde logo, pelo depoimento claro e assertivo da ofendida R.); não resultando distinto resultado probatório dos demais elementos juntos aos autos”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da impugnação alargada da matéria de facto.

Alega o recorrente que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento impõe uma decisão diversa sobre a matéria de facto.

Na opinião do recorrente, a factualidade (essencial) dada como provada na sentença revidenda sob os nºs 22 a 27 não deve ser assim considerada, por não resultar do depoimento da ofendida R., ou, sequer, das regras da experiência comum (ou seja: nada permite afirmar que o arguido agiu com o propósito de deixar a R. em estado de constrangimento, ou com o intuito de levá-la a ser-lhe submissa e a comportar-se do modo que ele entendia por conveniente, controlando os movimentos da mesma e as suas relações, ou que o arguido tenha causado sofrimento, humilhação e vergonha à R., ou que a tenha molestado psicologicamente, ou que a tenha agredido fisicamente, de modo propositado, ou, por último, que a tenha humilhado e ofendido, na sua honra e consideração).

Cabe decidir.

Lendo a sentença revidenda, na fundamentação da decisão fáctica, facilmente se conclui que os factos objetivos dados como provados (factos elencados na sentença sob os nºs 1 a 21) tiveram a concordância, praticamente unânime, da ofendida e do arguido (como bem se escreve na fundamentação da decisão fáctica constante da sentença em causa, o arguido assumiu a prática dos factos - objetivos - dados como provados pelo tribunal, isto é, o arguido relatou os factos “de forma muito similar ao relato feito pela ofendida R.”.

O que se questiona (e vem questionado na motivação do recurso) são as conclusões fácticas a que chegou o tribunal a quo, para dar como assentes os factos provados sob os nºs 22 a 27.

Neste ponto, escreve-se na sentença recorrida: “no que concerne ao vertido em 22 a 28, valorou-se a factualidade objetiva dada como provada, conjugada com as regras de experiência comum. Com efeito, atentando na concreta forma de atuar do arguido - e não estando este limitado na sua vontade de querer e entender - naturalmente não poderá o arguido ter deixado de agir com o propósito concretizado de deixar R. em estado de constrangimento, com o intuito de levá-la a ser-lhe submissa e a comportar-se do modo que ele entendia conveniente, controlando os movimentos da mesma e as suas relações, indiferente à relação familiar que os unia e aos deveres que para si advinham quanto à mesma, nomeadamente de respeito e cooperação, relação e deveres de que estava bem ciente, causando sofrimento, humilhação e vergonha a R. e molestando-a psicologicamente; e com o propósito concretizado de atingir o corpo de R., provocando-lhe mazelas e dor, bem como humilhá-la na sua honra e consideração, no interior da residência conjugal e na presença dos filhos menores de ambos; e, bem assim, com o propósito concretizado atingir o corpo e saúde de Valentina, provocando-lhe mazelas e dor; atuando o arguido de forma livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se por completo pela saúde das vítimas, estado psíquico e pelo bem-estar de ambas, bem sabendo que tais condutas supra descritas lhe estavam vedadas e eram punidas por lei - conhecimento que existe, de resto, da parte do comum dos cidadãos”.

Ora, ouvindo o depoimento da ofendida R. (como ouvimos, na íntegra), entendemos que nenhuma razão assiste à Mmª Juíza nestas suas considerações (com o devido respeito pela sua opinião).

Senão vejamos.

- A ofendida R., no decurso do seu longo e pormenorizado depoimento, revela, sempre, em tudo o que relata e afirma, grande segurança e enorme frontalidade, nada tentando escamotear, esconder ou “branquear”.

- Os episódios narrados (e dados como assentes na sentença revidenda sob os nºs 1 a 21) são descritos de forma clara, pormenorizada, assertiva e totalmente convincente.

- Apesar disso, e desde logo, a ofendida R. afirma, sem rodeios ou hesitações, que o arguido “nunca lhe bateu” e que “não tinha medo dele”.

- O depoimento da ofendida, após ser questionada, em audiência de discussão e julgamento, sobre se tinha medo do arguido, é, quanto a nós, totalmente impressivo, claro e convincente: “não, ele nunca me bateu, nunca fez mal, para dizer assim …foi mais estas brigas. Eu acusei ele, foi porque ele dizia que eu tinha outros. Nunca me bateu, nunca me fez mal, sempre me deu apoio, ajudou-me bastante, ajuda-me a criar as outras minhas duas filhas que não são dele, nunca vi fazer diferença nenhuma entre as minhas filhas e aquela que tenho junto com ele. Mas levou-me a denunciar porque quis mostrar que nunca tive nada a ver com ninguém e queria que ele parasse de beber. Eu disse assim alguém o vai parar”.

- Questionada sobre quando é que o arguido a acusou de ter amantes, disse a ofendida: “algumas vezes antes do verão do ano passado, numas discussões nossas. Achei sempre que eram umas discussões normais entre qualquer casal. É verdade que eu mudei, eu mudei muito, mesmo na nossa relação sexual. Depois de ter a pequenina, eu já nunca tive aquela vontade como tinha antes. Eu já não liguei muito a isso. Para mim se era ou não era já era o mesmo, eu não tinha vontade. Eu disse para ele, eu vou fazer uma consulta para ver o que está a acontecer comigo porque nunca tinha vontade. E ele achava estranho, ele chegou a dizer que eu tinha amantes por causa disto, porque não queria nada com ele. E isto a mim doía-me porque sabendo que não era verdade. Eu dizia para ele, não, não tenho ninguém, pode ser que eu tenha um problema (…)”.

- A Exmª Juíza, tentando esclarecer o aspeto em causa, questionou a ofendida, tendo-se travado entre ambas o seguinte diálogo:

“Exmª Juíza: a senhora, quando falou agora, espontaneamente, que desde o nascimento da sua filha deixou de ter vontade. Deixou de ter vontade de quê?

Ofendida: para ter relação sexuais.

Exmª Juíza: foi depois do nascimento da sua filha, e, pelo que estou a perceber, foi a partir desse momento que começam então aquelas imputação, que a senhora teria amantes? É a partir deste momento?

Ofendida: sim.
Exmª Juíza: e relativamente àquela questão de a senhora ter andado com homens mais velhos antes de os senhores estarem juntos. Isto foi dito antes do nascimento da sua filha ou foi no início da relação?

Ofendida: foi mais agora, no ano passado. Quando discutíamos mais.

Exmª Juíza: mas, do que estou a perceber, isto começou depois do nascimento da S?
Ofendida: sim.

Exmª Juíza: mas isto era uma coisa diária. Era todos os dias?
Ofendida: não, era de vez em quando”.

- Quanto à questão de o arguido tentar controlar os movimentos da ofendida, disse a mesma, perentoriamente, que o arguido “nunca a proibiu de nada”, que não pedia ao arguido “autorização para sair à rua”, sozinha ou acompanhada com as suas filhas, e que o arguido nunca lhe “mexeu” no telemóvel.

- Do depoimento da ofendida R. decorre ainda, nitidamente, que muitos dos factos que o tribunal a quo deu como não provados, não assentam na mera dúvida (sobre a prova) relativamente a tais factos, mas, isso sim, na existência de prova (clara e inequívoca) do contrário daquilo que vinha afirmado nesses factos (constantes da acusação e tidos como não provados).

Ora, esta constatação, bem vistas as coisas, não é inócua ou despicienda, porquanto a prova desse “contrário” dá-nos uma visão global do comportamento do arguido, que, a nosso ver, é incompatível com a factualidade tida como assente na sentença em análise sob os nºs 22 a 27.

Há que concretizar.

1º - Na alínea a) dos factos não provados, deu-se como não provado que o arguido, por mais de uma vez, “tirou o telemóvel à vítima R., para verificar as chamadas e as mensagens que esta recebeu e efetuou”. Ora, nesta matéria, resultou algo mais do que isso: a ofendida esclareceu, convincentemente, que o arguido nunca lhe “mexeu” no telemóvel, nunca andou a ver as chamadas ou as mensagens que recebia ou efetuava, ou seja, o arguido nunca revelou, aqui, qualquer propósito de “controlar” a ofendida - o arguido nunca agiu, pois, neste ponto, relativamente à ofendida, “com o intuito de levá-la a ser-lhe submissa e a comportar-se do modo que ele entendia conveniente, controlando os movimentos da mesma e as suas relações”.

2º - Na alínea b) dos factos não provados deu-se como não provado que “nas circunstâncias referidas em 6 dos factos provados, o arguido tentou sufocar R., tendo sido impedido por uma das filhas da vítima, menor de idade”. Ora, o que se passou não se cingiu a isso: a ofendida relatou, de forma clara e inquestionável, não apenas que o arguido não a tentou sufocar, como também, e significativamente, que o arguido, tão só, “lhe pôs a mão no pescoço, mas tirou-a logo, sem nunca ter apertado…” e que este facto ocorreu no decurso de uma discussão entre ambos, e imediatamente após a ofendida ter chamado “um nome, prontos…, que incluía a mãe dele”.

3º - Na alínea c) dos factos não provados deu-se como não provado que “a partir da data referida em 17 dos factos provados, de forma diária, o arguido passou a acusar R. de manter relações sexuais com outros homens”. Ora, esta questão, ouvindo as declarações da ofendida, é mais ampla e significativa (como acima já deixámos enunciado, reproduzindo o depoimento da ofendida nesta matéria): as vezes em que o arguido acusou a ofendida de ter “amantes”, de ter “relações sexuais” com outros homens, não surgiram do nada, por mero intuito agressivo ou vilipendiador, mas sim em clima de discussão entre os membros do casal, sendo tais acusações resultantes, diretamente, da circunstância (repetida) de a ofendida não manter relações sexuais com o arguido (por não ter “vontade” disso).

4º - Na alínea h) dos factos não provados deu-se como não provado que “o arguido não contribui para as despesas com a habitação e alimentação do agregado familiar, gastando todo o dinheiro que auferia com trabalhos esporádicos na compra de bebidas alcoólicas”. Ora, mais do que isso: a ofendida relatou, com detalhe e convição, que o arguido sempre a ajudou (nomeadamente, “a criar as outras minhas duas filhas que não são dele, nunca vi fazer diferença nenhuma entre as minhas filhas e aquela que tenho junto com ele”), que o arguido sempre contribuiu para as despesas da casa, e que tal continuou a ocorrer mesmo depois de se terem separado.

5º - Nas alíneas i) e j) dos factos não provados teve-se como não provado que “o arguido atuou com o propósito, concretizado, de incutir terror permanente a R.”, e que “o arguido causou medo a R.”. Ouvindo o depoimento da ofendida, a mesma afirma, por várias vezes, impressivamente, que nunca teve medo do arguido, e, mais do que isso, que o arguido “nunca a proibiu de nada”. Afirmou, isso sim, mais do que uma vez, que se sentia incomodada e irritada com as suspeitas de infidelidade que o arguido sobre si lançava (conforme acima dito), e que, na sequência dessa verbalização do arguido sobre a existência de “amantes”, havia sempre discussões.

6º - Na alínea k) dos factos não provados deu-se como não provado que, “com as expressões que dirigiu a R., o arguido pretendeu, também, amedrontar a vítima, o que conseguiu, originando-lhe um medo constante das suas reações, com medo daquilo que o arguido pudesse vir a fazer no futuro, contra a sua integridade física ou a sua vida, e a integridade física ou a vida das suas filhas menores”. Ora, do depoimento da ofendida, e como já aflorámos, resultou provado exatamente o oposto.

Em suma: toda a factualidade tida como assente sob os nºs 22 a 27 da sentença revidenda, e naquilo que é primacial para o preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica pelo qual o arguido vem condenado em primeira instância (questão que, mais adiante, analisaremos), não decorre do depoimento da ofendida - antes pelo contrário -, nem resulta também de qualquer “regra da experiência comum” (aliás, nesta matéria, na análise das relações entre os membros de um concreto casal, é necessário ser muito cuidadoso e prudente naquilo que se deve considerar a “experiência comum”, e mais ainda naquilo que se deve entender por “regras”).

É que, as “regras da experiência comum”, como se nos afigura evidente, divergem, demasiado, de uns casais para outros, sendo que, nalguns deles, quer as “divergências de opinião” mais acaloradas, quer as “discussões” e os “conflitos verbais”, apenas significam, muitas vezes, que existe espaço de autonomia para cada membro do casal, pois que, desse modo, e desde logo, cada um dos membros do casal reconhece o outro membro como idóneo para entrar nessa “discussão” (aliás, e em bom rigor, só há discussão, com argumento e contra-argumento, com afirmação e subsequente resposta, entre iguais, não podendo existir, assim, por princípio, repetindo-se as discussões ao longo do tempo, doentio ascendente de um contendor sobre o outro, com submissão, anulação, controlo, humilhação e achincalhamento de um qualquer deles).

As “regras da experiência comum” não são, pois, nestes assuntos, abstratas e imutáveis, não podendo traduzir qualidades e circunstâncias desligadas das realidades presentes em cada situação, e, sobretudo, não sendo apreensíveis a partir do contexto e da realidade vivencial do observador (no caso, o julgador).

Nesta ordem de ideias, e olhando, de novo, ao caso destes autos, verificamos que a ofendida (aliás, corroborando a versão do arguido) esclareceu que “gritavam um com o outro”, “discutiam sempre”, às vezes também “por culpa sua” (dela, ofendida), e, nessas discussões, o arguido, por vezes, dizia que “ela tinha amantes”, que muitas dessas discussões decorriam da sua recusa no relacionamento sexual com o arguido (e, por isso, a acusação do arguido da existência dos referidos “amantes”), que o arguido, muitas vezes também, chegava a casa embriagado (numa das vezes, a ofendida, tendo avistado o arguido “bêbado num café”, trancou a porta de casa, impedindo-o de entrar, e ficando o arguido “a dormir no carro…”), enfim, e em resumo, neste contexto, em que ambos discutiam, e em que havia uma assumida questão de recusa da ofendida ter relações sexuais com o arguido, dizer-lhe o arguido que ela tinha amantes, é, à luz da natureza humana e dos “normais” comportamentos humanos, entendível.

É natural que a ofendida (como afirma, sem hesitações), ao ouvir tais palavras e tais imputações, se sentisse incomodada, irritada e até magoada, já que estava a ser posta em causa, injustamente, a sua fidelidade (e mesmo o seu amor-próprio).

Porém, nunca, no seu depoimento, a ofendida vai além isso, revelando, claramente, nunca se ter sentido, sequer, ultrajada, aviltada ou menosprezada.

Ouvindo (como ouvimos, na íntegra) o depoimento da ofendida, dele decorre, manifestamente, que a ofendida também nunca se sentiu amedrontada (esclarecendo a ofendida, repete-se, que o “arguido nunca lhe bateu” e que “não tinha medo dele”, e verbalizando ainda, em tom quase de desabafo, que o arguido “nunca me fez mal”), que discutia, de igual para igual, com o arguido, e que, por exemplo no episódio em que o arguido lhe pôs a mão no pescoço, tinha acabado de dirigir ao arguido palavras claramente ofensivas (chamando ao arguido “um nome … que incluía a mãe dele”, ou seja, implicitamente reconhecendo que apelidou o arguido de “filho da puta”).

Daqui não se conclui que o arguido tenha agido sempre corretamente para com a ofendida. O que não pode é concluir-se, sem mais, que o relacionamento entre o arguido e a ofendida não fosse de igual para igual (mesmo que em medida diversa), ou que, de alguma forma, tenha existido uma ação do arguido tentando constranger, submeter, dominar, controlar, molestar psicologicamente, ou sequer amesquinhar, a ofendida.

Mais: a própria ofendida reconhece, expressamente, que a circunstância de, a partir de certa altura, ter perdido a vontade de manter relações sexuais com o arguido coincidiu com as desconfianças deste relativamente à sua fidelidade (isto é, coincidiu com as imputações, que o arguido lhe fez, de possuir “amantes”).

A ofendida reconhece ainda, significativamente, que, quando começou a sair sozinha para estar com as suas amigas, o arguido nunca tentou impedi-la disso.

Diz ainda a ofendida, em jeito de síntese conclusiva, que “tudo isto afetou-nos aos dois”.

Em face do que vem de dizer-se, não se nos afigura que o comportamento do arguido, analisado no contexto global da sua atuação para com a ofendida, e vistas as atitudes e as reações desta perante esse comportamento, implique o propósito (ou a concreta verificação) de constrangimento da ofendida, de submissão e de controlo desta, de achincalhamento, sofrimento, humilhação e vergonha da mesma, ou, sequer, de um qualquer atentado, relevantemente maltratante, à dignidade da ofendida.

Numa relação pontuada por frequentes discussões, ao longo de vários anos (cerca de nove anos), na qual a ofendida tinha assumidas (e declaradas na audiência de discussão e julgamento) dificuldades na intimidade sexual com o arguido (recusando-se, inúmeras vezes, a manter com o mesmo relacionamento sexual), dizer o arguido, à ofendida, que ela tinha amantes (ou fazer imputações desta mesma natureza - sempre desta natureza e não de outro qualquer jaez -), e sem mais de efetivamente maltratante, confere todo um outro significado à atuação do arguido, que não aquele que lhe foi atribuído na sentença revidenda (sob os nºs 22 a 27 dos factos aí tidos como provados).

Dito de outro modo: concluir, neste segmento, como concluiu o tribunal a quo, e com o devido respeito por essa conclusão, constituiria, a nosso ver, uma ponderação de provas e de factos feita contra reo, ponderação que, como é evidente, nos é vedado fazer.

Por isso, a prova produzida, designadamente o depoimento da ofendida, impõe (e não apenas permite ou aconselha) “decisão diversa da recorrida” (cfr. o disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal), e, consequentemente, o recurso do arguido merece provimento em toda esta primeira vertente, sendo de considerar como não provados os factos elencados na sentença revidenda sob os nºs 22, 23, 24, 25, 26 e 27.

b) Da qualificação jurídica dos factos.
Alega o recorrente que a sua conduta, no caso em apreço, não integra a prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º do Código Penal, uma vez que, quer pela sua imagem global, quer pela gravidade dos seus específicos atos, não é desrespeitadora da pessoa da vítima, nem traduz qualquer desejo de prevalência e de dominação sobre a mesma, sob pena de, caso se entenda o contrário, corrermos o risco, inaceitável, de considerar qualquer disputa, desacordo ou desentendimento entre um casal, como uma situação de violência doméstica.

Cumpre apreciar e decidir.

Sob a epígrafe “violência doméstica”, dispõe o artigo 152º, nºs 1 a 3, do Código Penal:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;

b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos”.

Quanto ao bem jurídico protegido por esta incriminação, e como bem escreve o Prof. Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Coimbra Editora, Tomo I, pág. 332), trata-se de “bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que (…) afetem a dignidade pessoal do cônjuge”.

Mais esclarece o mesmo ilustre Professor (ob. e local citados), que a ratio do tipo legal de crime previsto no artigo 152º do Código Penal não está, pois, “na proteção da comunidade familiar, conjugal (...), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”.

No dizer de Plácido Conde Fernandes (in “Violência Doméstica - Novo Quadro Penal e Processual Penal”, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre de 2008, pág. 305), “o bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos”.

A nosso ver, preenche este tipo legal de crime a prática de qualquer ato de violência que afete a saúde - física, psíquica ou emocional - da vítima (no caso, o cônjuge ou aquele que vive em condições análogas às dos cônjuges), diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal.

O crime pode, pois, realizar-se através de uma pluralidade de atos, ou através de um único ato, que atinja a saúde física, psíquica ou moral do cônjuge e afete a sua dignidade pessoal.

Porém, é exigível, sempre, que os atos praticados (plúrimos ou isolados, reiterados ou não), apreciados à luz da vida em comum, possam, de modo relevante, colocar em risco a saúde do cônjuge, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade.

À luz do exposto, e conforme bem salienta Nuno Brandão (in “A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica”, Revista Julgar, nº 12, pág. 19), no crime de violência doméstica “devem estar em causa atos que, pelo seu carácter violento, sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima”, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da “imagem global do facto” para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão.

Assim sendo, a intervenção penal deve manter, também aqui, a sua função de proteção de última ratio, não devendo o julgador tentar, através de tal intervenção, modelar e ajustar comportamentos (no âmbito das relações de conjugalidade), punindo criminalmente aquilo que, bem vistas as coisas, é apenas merecedor de censura ético-moral.

É que, a não ser assim, poder-se-ia chegar à absurda situação de existir perseguição criminal de comportamentos que, pura e simplesmente, se afastem de determinados padrões de comportamento socialmente dominantes.

Ora, em conformidade com o que vem de dizer-se, os factos dados como provados nestes autos são insuficientes para o preenchimento dos elementos do crime de violência doméstica (pelo qual o arguido foi condenado em primeira instância).

A nosso ver, e muito embora se possa considerar que esses factos se situam perto da fronteira da punibilidade, eles não atingem a intensidade exigida pelo referido tipo legal de crime, não sendo, por isso, materialmente ilícitos.

Na verdade, a conduta do arguido, considerada individualmente (ato a ato praticado) e também na sua globalidade complexiva, não configura uma efetiva e relevante situação de expressão de um abuso de poder na relação afetiva com a ofendida, situação que seja suscetível de atingir a integridade pessoal da ofendida nessa relação.

Os episódios de vida em apreciação são, tão só, reveladores de um quadro de relacionamento deteriorado, que se foi degradando ao longo do tempo, sobretudo a partir do momento em que a ofendida (com ou sem culpa sua, é irrelevante) passou a ter muitas dificuldades em manter relações sexuais com o arguido, e em que este, além do consumo excessivo de álcool, passou a imputar à ofendida o facto de a mesma ter amantes.

Apesar dessa degradação, das constantes discussões, da recusa da ofendida no relacionamento sexual com o arguido, dos episódios de embriaguez do arguido, e das repetidas vezes em que este disse à ofendida que ela tinha amantes, ambos se foram mantendo na relação, de comum acordo, com interajuda, sem violência física (na expressão da ofendida, o arguido “nunca lhe bateu”), sem injúrias ou violência verbal (para além, é óbvio, da referida imputação sobre a existência de amantes por parte da ofendida), sem ameaças, sem agressões psicológicas (pequenas ou grandes), e, sobretudo, não sendo visível aqui, minimamente, qualquer relação de dominância ou de prepotência do arguido sobre a ofendida.

Mais: arguido e ofendida foram-se relacionando entre si e foram interagindo um com o outro, sempre, em condições de relativa paridade e/ou igualdade conjugal (de que é sintomático, entre outros, o episódio em que a ofendida, vendo o arguido embriagado num estabelecimento de café, lhe fecha a porta da habitação, não o deixando entrar em casa e obrigando-o a dormir no carro).

Considerando a “situação ambiente”, analisando a “imagem global do facto”, e vistos os concretos atos cometidos pelo arguido, entendemos, pois, não estar preenchido o tipo legal de crime em questão.

Como muito bem se escreve no Ac. deste T.R.E. de 30-06-2015 (relatora Ana Maria Barata de Brito, in www.dgsi.pt), a imagem global do facto e a apreensão/perceção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efetiva de um bem jurídico (digno de proteção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside na proteção da família, mas na proteção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afetiva. Ocorrendo os factos provados num quadro de relacionamento conjugal deteriorado, mas em que, apesar dessa degradação, os cônjuges se foram mantendo livremente no casamento, sem posições de dominância de um sobre o outro, interagindo sempre em condições de paridade e igualdade conjugal, uma agressão isolada e pouco intensa, que atingiu a integridade física da assistente, e outras ofensas pontuais ao seu bom nome, embora merecedoras de censura penal, não encontram tutela à luz do artigo 152º do Código Penal”.

Ou, resumidamente, e como é dito no Ac. deste T.R.E. de 03-07-2012 (relator Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt), a pedra de toque da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida”.

Ora, quer a apontada dominância do arguido sobre a ofendida, quer a aludida existência de um qualquer atentado, relevante, à dignidade pessoal da ofendida, não se verificam in casu.

Basta, para assim considerar, ouvir o relato da ofendida, onde esta descreve, com pormenor e desassombro, os atos praticados pelo arguido, as motivações dos mesmos e as suas reações perante eles.

Neste ponto, e como muito bem refere o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu parecer (a fls. 442 e 443 dos autos), “é certo que a ofendida deu conta do desconforto e, mesmo, da vergonha, que algumas vezes sentiu quando o arguido lhe atribuía infidelidades que não eram verdadeiras. Não obstante, nunca do seu depoimento transparece mais do que isso. Pelo contrário, ouvindo o seu depoimento, dele decorre uma personalidade que nunca se sentiu amedrontada, que discutia de igual para igual com o arguido, e que, inclusivamente, reconheceu ter atirado a este com o comando de uma televisão, tendo-o atingido na cabeça, e que, na cena em que o arguido lhe pôs a mão no pescoço, antes lhe dirigira palavras que, implicitamente o reconhece, seriam ofensivas para aquele, posto que convocando o nome de sua mãe (….). É ainda a ofendida R. que reconhece que o facto de, a partir de certa altura, ter perdido a vontade de manter relações sexuais com o arguido, coincidiu com as desconfianças deste relativamente à sua conduta”.

É evidente que, quanto à analisada integração jurídica dos factos provados, é importante

a decisão acima proferida sobre a impugnação da matéria de facto (considerando-se como não provados os factos nºs 22 a 27 da sentença recorrida, onde se tinham dado como assentes, em relação à ofendida, e em resumo, os apontados constrangimentos, submissões, controlos, sofrimentos e humilhações).

Contudo, independentemente de tal alteração fáctica, os factos (objetivos) dados como provados sob os nºs 3 a 21 da sentença revidenda, e numa ótica da eventual suficiência para a realização do tipo legal de crime de violência doméstica (numa apreciação da ilicitude material), não bastam.

Na verdade, e repetindo o acima já dito, tais factos, quer individualmente considerados, quer relacionados entre si, quer olhados na sua globalidade, não traduzem, a nosso ver, um modo de agir do arguido suficientemente grave, para que se possam, justificadamente, qualificar as atitudes do arguido como condutas maltratantes, seja ao nível físico, seja ao nível psíquico - e tendo-se em devida conta que, como se refere no acima citado Ac. deste T.R.E. de 30-06-2015 (relatora Ana Maria Barata de Brito), “uma conduta deve ser qualificada como maltratante na medida em que seja de tal forma desvaliosa que vá para além da afetação apenas da integridade física ou psicológica e emocional, ou da honra da ofendida, porquanto assume um carácter de maior perfídia, de maior lesão, ao atentar contra o núcleo central da personalidade humana, ou seja, a sua própria dignidade”.

Não é, pois, do mero facto de o arguido consumir bebidas alcoólicas, ou de tomar uma ou outra atitude incorreta para com a ofendida (por exemplo, ir “tirar dinheiro” da carteira desta), ou de, numa ocasião, após um insulto da ofendida, ter agarrado o pescoço desta com uma mão, ou de, perante a recusa sexual repetida (e assumida) da ofendida, o arguido pensar, e verbalizar, que a mesma tinha amantes, ou de, após ter sido atingido com um comando de televisão, na cabeça, arremessado pela ofendida, o arguido a ter empurrado, ou, por último, de existirem frequentes discussões no seio do casal, que podemos concluir pela existência de um maltrato da vítima, no sentido tipificado no preceito incriminador da violência doméstica.

Conforme se assinala no aludido Ac. deste T.R.E. de 30-06-2015 (relatora Ana Maria Barata de Brito), as condutas, para configurarem o crime de violência doméstica, devem “revelar ainda um “plus” de danosidade”, ou seja, tem de poder concluir-se “pela sua adequação a afetar a dignidade pessoal do outro elemento do casal”.

Mais se escreve em tal acórdão, pertinentemente: “é precisamente este elemento que permite destrinçar este tipo penal de todos os outros que se encontram previstos no Código Penal e que tutelam bens jurídicos que acabam por também ser aqui tutelados. É que, o crime de violência doméstica não é um tipo de crime correspondente a uma espécie de somatório de crimes contra as pessoas desde que cometidos numa relação afetiva. O crime de violência doméstica não é um conjunto de crimes de injúria e/ou de ofensas à integridade física, etc. Não basta uma pluralidade de crimes, apenas unificados pelo facto de terem sido cometidos no âmbito de uma relação afetiva, para que, sem que algo mais se comprove, automaticamente se integrar tal conduta como maltratante e, portanto, como um único crime, mas de violência doméstica (….). A diferença assenta (…) no específico bem jurídico e na necessidade da adequação da conduta global a atingir o referido bem jurídico, revelando uma significação bem mais abrangente e mais censurável que a soma das várias condutas criminosas e, por isso, se revela como muito mais grave que a mera conjunção desses crimes parcelares”.

Em síntese: os factos tidos como provados na sentença revidenda, e operada a alteração de tal factualidade (nos termos acima decididos), não são adequados a revelar uma conduta maltratante do arguido (relativamente à pessoa da ofendida), de tal modo que, materialmente, se possa considerar a atuação do arguido como integradora da prática de um crime de violência doméstica, ou seja, tais factos não preenchem os elementos objetivos desse mesmo tipo legal de crime.

Por conseguinte, o arguido tem de ser absolvido, sendo o recurso de proceder.

III - DECISÃO.

Pelo exposto, julgando-se procedente o recurso, e revogando-se o decidido na sentença revidenda:

- Tem-se como não provada a factualidade dada por assente na sentença sub judice sob os nºs 22, 23, 24, 25, 26 e 27.

- Julga-se a acusação improcedente, por não provada, e, em consequência, absolve-se o arguido da autoria do crime de violência doméstica, pelo qual foi condenado em primeira instância.

- Julga-se improcedente o pedido de indemnização civil formulado nos autos pela “Unidade de Saúde do Norte Alentejano, E.P.E.”, dele absolvendo o arguido.

Sem tributação.

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 06 de dezembro de 2016

João Manuel Monteiro Amaro

Maria Filomena de Paula Soares