Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
979/21.9T8SLV-A.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: RENÚNCIA AO MANDATO
SUSPENSÃO DE PRAZO
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - O artigo 47.º do CPC não prevê expressamente a suspensão do prazo em curso a partir da declaração de renúncia, nem da notificação desta ao mandante.
- Constitui hoje jurisprudência consensual que a renúncia ao mandato não tem qualquer repercussão na contagem do prazo processual que esteja em curso, nomeadamente não sendo causa de suspensão desse prazo.
- O regime do artigo 47.º do CPC visa acautelar a produção de efeitos negativos para a parte, quando o patrocínio é obrigatório e a parte não consegue imediatamente constituir novo mandatário. Daí que o advogado renunciante continue ligado ao mandato, durante 20 dias, até o mandante, dentro deste prazo, constituir novo mandatário, extinguindo-se, então, o primeiro mandato.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 979/21.9T8SLV-A.E1
2ª secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

I
AA, BB, CC, DD, EE, vieram deduzir embargos de terceiro por apenso aos autos de execução, contra FF e GG, invocando, entre o mais, serem os proprietários e legítimos possuidores do prédio rústico onde se insere o imóvel cuja entrega, por transação judicial, foi ordenada nos autos principais.

Foi proferido despacho liminar de recebimento dos embargos, o qual, além do mais, determinou a suspensão das diligências executivas que tinham por objeto o prédio visado na execução até à decisão final a proferir no apenso de embargos.

Foram notificados os embargados para, no prazo de 30 dias, a contar da notificação, contestarem, querendo, os autos de embargos com a advertência de que a falta de contestação importaria a confissão dos factos articulados pelo(s) embargante(es).

A então mandatária do Executado/Embargado FF, Sr.ª Dr.ª HH, foi notificada nesses termos por notificação de 06 de Julho de 2022.

Em 29/08/2022 deu entrada um requerimento subscrito pela mesma Ilustre Mandatária a renunciar ao mandato forense que lhe havia sido outorgado por FF. Tendo ainda requerido que fosse o mandante notificado desta renúncia nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 47.º do CPC.

FF foi notificado dessa renúncia em 31/08/2022.

Em 20/09/2022 veio este apresentar procuração forense, a favor da Ilustre Mandatária Dra. II, requerendo a sua admissão bem como “… a cessação da suspensão da presente instância, nos termos da alínea b), n.º 1, artigo 276.º”.

Em 07/10/2022 veio o mesmo embargado juntar contestação e documentos.

Em 31/01/2023 foi proferida a seguinte decisão:

“A Sr.ª Dr.ª HH, primitiva Mandatária do Executado/Embargado, foi notificada para, querendo, contestar a petição inicial de embargos, em 30 dias, por notificação de 06 de Julho, presumindo-se notificada a 11 de Julho de 2022 – artigo 248.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

O prazo para contestar terminou a 26 de Setembro de 2022. E podia ser alargado até 29 de Setembro, mediante o pagamento de multa, nos termos do artigo 139.º, n.º 5, do mesmo diploma.

Entretanto, veio aquela renunciar ao mandato, tendo o Executado/Embargado sido notificado dessa renúncia a 31 de Agosto de 2022.

No dia 20 de Setembro, aquele juntou aos autos requerimento juntando nova procuração forense, desta feita, a favor da Sr.ª Dr.ª II.

Em parte alguma se operou a suspensão dos termos da presente ação declarativa por força da renúncia ao mandato. E como é consabido, o mandatário renunciante mantém-se em funções durante os 20 dias de que o mandante dispõe para outorgar nova procuração forense. No caso, a situação é ainda mais flagrante pois, enquanto tal prazo ainda se encontrava a correr, o Executado/Embargado constituiu nova Mandatária.

Ora, uma contestação apresentada a 07 de Outubro de 2022, não é tempestiva e, por isso, não pode ser admitida.

Por decorrência, não podem ficar nos autos nem o articulado de resposta à contestação de 25 de Outubro, nem a resposta à resposta à contestação de 03 de Novembro.

Pelos fundamentos acima aduzidos, o Tribunal não admite a contestação apresentada pelo Executado/Embargado, nem os requerimentos subsequentes, dela decorrentes, de 25 de Outubro e 03 de Novembro de 2022.

Notifique-se e, após trânsito, desentranhe-se/elimine-se do citius os articulados e requerimentos acima identificados.»

Inconformado com o decidido veio o embargado apresentar alegações de recurso, nas quais conclui:

I - O Exmo. Senhor Dr. Juiz do Tribunal a quo no seu Despacho, datado de 30 de janeiro de 2023, decidiu considerar intempestiva a Contestação apresentada pelo ora recorrente, em 7 de outubro de 2022 e ordenar o seu desentranhamento.

II - O Exmo. Senhor Dr. Juiz do Tribunal a quo no seu Despacho, datado de 30 de janeiro de 2023, ordenou o desentranhamento das peças processuais, datadas de 25 de outubro de 2022 e 3 de novembro de 2022..

III - A Senhora Mandatária do ora recorrente, Dra. HH foi citada, em 6 de julho de 2022, para deduzir Contestação, no prazo de 30 dias, nos autos a quo.

IV - O prazo judicial para a apresentação da Contestação esteve a correr de 7 de julho de 2022 a 15 de julho de 2022 (9 dias).

V - O prazo judicial para a apresentação da Contestação esteve suspenso a partir de 16 de julho de 2022 a 31 de agosto de 2022, por férias judiciais.

VI - A Senhora Mandatária Dra. HH, em 30 de agosto de 2022, apresentou requerimento de renúncia ao mandato que o ora recorrente lhe havia conferido.

VII - A renúncia ao mandato foi notificada ao ora recorrente, em 31 de agosto de 2022.

VIII - A partir de 31 de agosto de 2022, a Senhora Mandatária Dra. HH, deixou de representar o recorrente nos autos a quo.

IX - O recorrente, em 31 de agosto de 2022 foi notificado para constituir novo Mandatário, em 20 dias.

X - A Senhora Mandatária Dra. HH, a partir de 31 de agosto de 2022, ficou impossibilidade de exercício de mandato do recorrente.

XI - O prazo judicial para apresentação de Contestação pelo recorrente, continuou suspenso a partir de 1 de setembro de 2022.

XII - O ora recorrente, no prazo de 20 dias, contados de 1 de setembro de 2022, constituiu novo Mandatário.

XIII - O ora recorrente, no requerimento de 20 de setembro de 2022, notificou os Mandatários das partes da constituição do seu Mandatário..

XIV - O prazo judicial para apresentação de Contestação pelo recorrente, continuou suspenso de 1 a 20 de setembro de 2022.

XV - O prazo judicial que faltava (21 dias) para apresentação de Contestação pelo recorrente, retomou a sua contagem em 21 de setembro de 2022.

XVI - A Contestação dos Embargos de Terceiros, dada a entrada em 7 de outubro de 2022, é tempestiva.

XVII- O Exmo. Juiz a quo, também mal andou ao ter decidido no seu Despacho, datado de 9 de julho de 2020, pelo desentranhamento dos documentos juntos com a Contestação do ora recorrente.

XVIII - O ora recorrente alegou a Ilegitimidade Ativa dos embargantes nos autos de 1ª instância e juntou prova nesse sentido.

XIX - O conhecimento da exceção dilatória de Ilegitimidade Ativa dos embargantes nos autos de 1ª instância, é de conhecimento oficioso.

XX - A prova documental apresentada pelo ora recorrente na sua Contestação datada de 7 de outubro de 2022 é indispensável para o conhecimento da exceção de Ilegitimidade Ativa.

XXI - Mal andou o Exmo. Senhor Dr. Juiz a quo, ao ter despachado no sentido em que o fez, em 30 de janeiro de 2023.

XXII - O Exmo. Senhor Dr. Juiz a quo ao ter despachado no sentido em que o fez, em 30 de janeiro de 2023, violou os n.ºs 1, 2, artigo 47.º; alínea b), n.º 1, artigo 269.º; n.º 2, artigo 275.º; alínea b), n.º 1, artigo 276.º, todos do C.P.C.

A final requer seja anulado o Despacho recorrido.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O objeto do recurso questiona se a renúncia ao mandato tem repercussão na contagem do prazo que esteja em curso para determinado ato processual, nomeadamente se suspende esse prazo.

Ou se, no caso concreto, a apresentação de renúncia pelo mandatário judicial tem efeito suspensivo do prazo para apresentação da contestação que estava em curso no momento em que a renúncia foi formalizada.

Cumpre apreciar e decidir.

A factualidade a considerar consta do relatório supra.

O Direito:

Dispõe o artigo 47.º do CPC, (redação da Lei n.º 41/2013, de 26/06) sob a epígrafe «Revogação e renúncia do mandato» que:

«1 - A revogação e a renúncia do mandato devem ter lugar no próprio processo e são notificadas tanto ao mandatário ou ao mandante, como à parte contrária.

2 - Os efeitos da revogação e da renúncia produzem-se a partir da notificação, sem prejuízo do disposto nos números seguintes; a renúncia é pessoalmente notificada ao mandante, com a advertência dos efeitos previstos no número seguinte.

3 - Nos casos em que seja obrigatória a constituição de advogado, se a parte, depois de notificada da renúncia, não constituir novo mandatário no prazo de 20 dias:

a) Suspende-se a instância, se a falta for do autor ou do exequente;

b) O processo segue os seus termos, se a falta for do réu, do executado ou do requerido, aproveitando-se os atos anteriormente praticados;

c) Extingue-se o procedimento ou o incidente inserido na tramitação de qualquer ação, se a falta for do requerente, opoente ou embargante.

4 - Sendo o patrocínio obrigatório, se o réu, o reconvindo, o executado ou o requerido não puderem ser notificados, é nomeado oficiosamente mandatário, nos termos do n.º 3 do artigo 51.º.

5 - O advogado nomeado nos termos do número anterior tem direito a exame do processo, pelo prazo de 10 dias.

6 - Se o réu tiver deduzido reconvenção, esta fica sem efeito quando for dele a falta a que se refere o n.º 3; sendo a falta do autor, segue só o pedido reconvencional, decorridos que sejam 10 dias sobre a suspensão da ação.»

A primitiva Mandatária do Executado/Embargado, foi notificada para, querendo, contestar a petição inicial de embargos em 30 dias, por notificação de 06/07/2022, presumindo-se notificada a 11/07/2022, conforme o artigo 248.º, n.º 1, do CPC.

Assim, a partir de tal data iniciou o prazo de 30 dias para contestar os embargos, o qual terminaria em 26/09/2022 ou, mediante o pagamento da multa prevista no artigo 139.º, n.º 5, do CPC em 29/09/2022.

Sucede que, em 31/08/2022 aquela Ilustre mandatária veio renunciar ao mandato, tendo o executado mandante sido notificado da renúncia em 31/08/2022.

Podia este aproveitar dessa renúncia e do prazo de 20 dias que a notificação recebida em 31/08/2022 lhe concedia para constituir novo mandatário, suspendendo o prazo judicial em curso para contestar os embargos?

Podemos questionar se o artigo 47.º, n.º 3, do CPC permite a interpretação de que a renúncia produz efeitos desde logo com a notificação pessoal, ou seja, se cessa o mandato com a notificação pessoal, desse modo suspendendo-se o prazo processual por 20 dias desde logo e a partir daí ou, se o prazo de vinte dias está estabelecido apenas para o mandante constituir novo mandatário, sendo que nesse período de 20 dias se mantém “ativo” o mandato inicial em crise.

O artigo 47.º do CPC não prevê expressamente a suspensão do prazo em curso a partir da declaração de renúncia, nem da notificação desta ao mandante.

Constitui hoje jurisprudência maioritária que a renúncia ao mandato não tem qualquer repercussão na contagem do prazo que esteja em curso, nomeadamente não sendo causa de suspensão desse prazo.

Nesse sentido, entre outros o Ac. do TRC de 23/02/2021, P. 5403/18.1T8VIS.C1 (Jorge Arcanjo) in www.dgsi.pt, assim sumariado:

«a) O artigo 47.º, n.º 3, do CPC deve ser interpretado no sentido de que, nas ações em que é obrigatório o patrocínio, havendo o mandatário renunciado ao mandato sem que a parte, notificada pessoalmente, tenha constituído entretanto advogado, a renúncia ao mandato só produz efeitos após o decurso do prazo de vinte dias legalmente estabelecido para o mandante constituir novo mandatário, significando que durante esse período se mantém o mandato inicial.

b) O prazo de 20 dias, legalmente fixado, não suspende ou interrompe o prazo processual em curso.

c) A norma do artigo 47.º, n.º 3, do CPC, assim interpretada, não é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 20.º da CRP.»

Fundamenta o citado acórdão, na defesa desta interpretação, que:

«O primeiro argumento é de natureza literal, visto que a norma refere expressamente que os efeitos “produzem-se a partir da notificação, sem prejuízo do disposto nos números seguintes (…)”, o que significa que a eficácia extintiva não se dá de imediato com a notificação. O “sem prejuízo” revela que a lei defere os efeitos da renúncia ao mandato para o termo do prazo de vinte dias.

A evolução histórica aponta também neste sentido. Na redação do artigo 39.º do CPC, anterior ao DL n.º 329-A/95, previa-se expressamente que, sendo obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato apenas produzia efeito depois de constituído novo mandatário. Mas como a lei não fixava prazo, o mandatário renunciante teria que o requerer e só decorrido o mesmo é que se considerava extinto o mandato.»

No plano jurisprudencial importa também atender à interpretação defendida pelo Tribunal Constitucional quer no âmbito do regime anterior (artigo 39.º do CPC), tendo o Acórdão n.º 188/2010 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos) chamado a apreciar a constitucionalidade do artigo 39.º n.ºs 2 e 3, do CPC, julgado:

[n]ão desconforme à Lei Fundamental a interpretação segundo a qual aqueles preceitos não atribuem à apresentação de renúncia pelo mandatário judicial efeito suspensivo do prazo para apresentação das alegações de recurso, que estava em curso no momento em que a renúncia foi formalizada.

Quer no âmbito do regime atual (artigo 47.º do CPC), tendo o Acórdão n.º 671/2017, de 13/10/2017, Processo n.º 929/16, 3.ª Secção (mesmo site), chamado a pronunciar-se sobre questão idêntica, decidido:

“[n]ão julgar inconstitucional a interpretação do artigo 47.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (na redação introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), segundo a qual, sendo obrigatória a constituição de advogado, a renúncia ao mandato não produz efeitos enquanto não decorrer o prazo de 20 dias, concedido ao mandante para constituir mandatário.”

Lê-se neste que:

“[a] renúncia ao mandato por parte de advogado constituído não tem como consequência a imediata extinção da relação de mandato e a consequente cessação das obrigações do mandatário para com o seu cliente, mantendo-se o dever do mandatário renunciante de prestar assistência ao mandante, o qual, de resto, tem de ser pontual e escrupulosamente cumprido, como impunha o artigo 83.º do Estatuto da Ordem dos Advogados e o atual artigo 88.º (Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro), que reproduz o seu teor.

De facto, na confrontação dos interesses aqui em presença, interesses do mandante e o desiderato de boa administração da justiça, distinta conclusão hermenêutica redundaria, necessariamente, num expediente dilatório, que atentaria contra o dever de administração célere da justiça.

(…)

O regime do artigo 47.º do CPC visa justamente acautelar a produção de efeitos negativos para a parte, quando o patrocínio é obrigatório e a parte não consegue imediatamente constituir novo mandatário. Daí que o advogado renunciante continue ligado ao mandato, durante 20 dias, até, dentro deste prazo de dimensão perfeitamente razoável o mandante constituir novo mandatário, extinguindo-se, então, o primeiro mandato.”

Assim, por força da lei, a Ilustre mandatária renunciante estava ligada ao mandato constituído por FF, durante 20 dias após a notificação do mandante para, querendo constituir novo mandatário.

Tendo essa constituição ocorrido em 20/09/2022 tinha a nova Mandatária que deduzir a contestação no prazo sobrante para contestar, ou seja, até 29/09/2022 (prazo alargado com pagamento de multa).

Apenas o fez em 07/10/2022, juntando contestação e documentos, o que se afigura manifestamente intempestivo.

Pelo que improcede tal questão do recurso.

Pretende também o apelante que, tendo na contestação invocado a exceção de ilegitimidade passiva e visando os documentos juntos comprovar tal exceção não deveria o tribunal ter ordenado o seu desentranhamento.

A exceção de ilegitimidade é uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso e implica a absolvição da instância (artigos 288.º, n.º 1, d), 493.º, n.º 2, 494.º, e), 495.º e 660.º, n.º 1, do CPC), pelo que, independentemente da sua arguição o Tribunal pode dela conhecer, enquanto não a apreciar em concreto. Logo, caberá à 1ª instância a decisão quanto à necessidade dos documentos em causa para tal aferição, apreciação que não precludiu com tal despacho.

Síntese conclusiva:

(…)


II

Termos em que, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Évora, 30/03/2023

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Mário João Canelas Brás (1º Adjunto)

Jaime Pestana (2º Adjunto)