Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ALBERTINA PEDROSO | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO REJEIÇÃO SIMULAÇÃO DE CONTRATO DOAÇÃO ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA | ||
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Data do Acordão: | 07/12/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I – O cumprimento pelo recorrente do ónus primário de especificar os concretos pontos de facto que impugna, sendo um fator de delimitação do objeto de recurso, não se basta com a sua inclusão no corpo das alegações, impondo-se a sua especificação nas conclusões recursórias. II – Não havendo neste caso lugar ao convite do aperfeiçoamento das conclusões, a impugnação da matéria de facto deve ser rejeitada, por não estar especificada nas mesmas. III – A declaração da nulidade de doação de imóvel de pai para filho menor, por simulação absoluta, depende da alegação e prova dos requisitos previstos no artigo 240.º, n.º 1, do CC, designadamente, da existência de divergência entre a vontade declarada e a real, com o intuito de enganar terceiros. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 324/22.6T8STR.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Santarém[1] ***** Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:I – RELATÓRIO 1. CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA e BB, pedindo a declaração da «nulidade do contrato de doação celebrado entre os Réus, por simulação absoluta, retornando o imóvel à esfera jurídico-patrimonial do primeiro Réu e ordenando-se o respectivo cancelamento do registo da aquisição». Em fundamento alegou, em síntese, deter sobre o 1.º Réu um crédito vencido em 20.10.2011, mas não pago, no valor atual de € 31.445,95, titulado por livrança avalizada por aquele. Mais invocou que, para cobrança da quantia titulada pela referida livrança, em 23.01.2013, intentou contra os devedores cambiários, incluindo o 1.º Réu, ação executiva, entretanto extinta por falta de bens. Posteriormente – diz – tomou conhecimento de que, por escritura pública outorgada em 30.11.2011, o 1.º Réu doou ao 2.º Réu, seu filho, o prédio urbano melhor identificado nos autos, tendo tal doação sido celebrada em conluio para enganá-la enquanto credora, não correspondendo por isso à vontade dos declarantes, que na verdade nunca a quiseram celebrar. 2. Regularmente citados, os réus contestaram, por impugnação motivada. Atenta a menoridade do 2.º Ré, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 325.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[3], ex vi artigos 1.º, 4.º n.º 1, alínea b), e 10.º da Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, passando o Ministério Público a ter Intervenção acessória nos autos. 3. Finda a fase dos articulados, foi proferido despacho que admitiu os meios de prova e designou data para julgamento. 4. Realizada a audiência final, foi proferida sentença, que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo os Réus do pedido. 5. Inconformada, a Autora apelou, formulando as seguintes conclusões (transcrição): «1. Mediante escritura pública celebrada na data de 30 de Novembro de 2011, o primeiro Réu AA doou ao aqui segundo Réu, BB, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o n.º …/São Vicente do Paúl. 2. Esta doação foi, contudo, absolutamente simulada, não correspondendo a vontade declarada à vontade real dos Réus. 3. Na verdade, o primeiro Réu apenas pretendeu subtrair aquele património da sua esfera jurídico-patrimonial, por forma a furtar-se à acção da credora CGD. 4. Acção essa que estava iminente, o que o Réu bem sabia, uma vez a CGD preencheu a livrança de que era detentora, avalizada pelo mesmo, e interpelou o primeiro Réu para proceder ao respectivo pagamento, sob pena de, não sendo regularizada a situação, avançar com a cobrança judicial. 5. O aviso de receção foi assinado pelo avô do primeiro Réu apenas 20 dias antes da celebração da escritura de doação, tendo, naquele momento, toda a família tomado conhecimento da situação. 6. O prédio doado corresponde a um terreno adjacente à casa de morada de família da mãe e do avô do primeiro Réu, avó e bisavô do segundo, que todos consideram fazer parte da casa, sendo vontade de todos que o terreno não viesse a ser adquirido por estranhos. 7. Além disso, a explicação apresentada pelo primeiro Réu para ter procedido à doação, naquele momento, não é minimamente plausível, sendo o alegado receio do Réu de que o imóvel passasse a ser propriedade da sua namorada legalmente impossível. 8. Acresce que, à data da doação, o segundo Réu tinha apenas um ano, hoje conta apenas doze anos, pelo que não é considerado, por nenhum membro da família, efectivo proprietário do imóvel, não usufruindo do mesmo nem suportando os seus encargos. 9. Pelo que deve ser considerado provado que o primeiro Réu recebeu e teve conhecimento do teor da carta enviada pela CGD, 10. Bem como que a vontade declarada na escritura de doação não corresponde à vontade declarada pelo primeiro Réu, cuja única intenção foi a de se furtar à acção da credora. 11. Tendo o negócio de doação sido absolutamente simulado.» 6. O Ministério Público apresentou contra-alegações, invocando que «as conclusões apresentadas não cumprem os requisitos de forma exigidos pelo artigo 638.º do NCPC porquanto não identificam a matéria de facto que pretendem, em concreto, ver alterada, nem indicam as disposições violadas, o sentido em que foram interpretadas e aquele em que o deveriam ter sido», e pugnando pela confirmação da sentença recorrida. 7. Observados os vistos, cumpre apreciar e decidir. ***** II. O objeto do recurso. Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Assim, as questões colocadas para apreciação no presente recurso, consistem em saber se é de modificar a matéria de facto impugnada nos termos pretendidos pela Apelante; e, em caso afirmativo, se deve ser revogada a sentença recorrida, e os Réus serem condenados no pedido. ***** III – FundamentosIII.1. – De facto Na sentença recorrida foram julgados provados os seguintes factos: «1. Por escrito denominado «Contrato de Utilização do Cartão de Crédito CAIXAWORKS», ao qual foi atribuído o n.º …, a Autora declarou comprometer-se a emitir a favor da sociedade comercial com a firma “MEDISEGURANÇA, LDA.” um cartão de crédito, válido no âmbito do sistema VISA, ficando aquela titular autorizada a utilizar o mencionado cartão para aquisição de bens e serviços em estabelecimentos aderentes. 2. Em contrapartida, a Autora ficou autorizada a lançar e debitar na conta indicada para o efeito as quantias devidas pela “MEDISEGURANÇA, LDA.”, resultantes de operações de aquisição de bens ou serviços e de adiantamento de dinheiro, liquidadas pela Autora, bem como quaisquer outras quantias, designadamente, a título de anuidades, despesas de expediente, taxas, impostos, juros e comissões, permitidas por lei ou pelo contrato. 3. Em garantia das obrigações emergentes do acordo supramencionado, a “MEDISEGURANÇA, LDA.” e o 1.º Réu entregaram à Autora uma livrança em branco, devidamente datada e subscrita por aquela sociedade e avalizada pelo 1.º Réu, tendo estes autorizado a Autora a preencher a referida livrança quando tal se mostrasse necessário, a juízo da Autora, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte: a) a data de vencimento seria fixada pela Autora quando, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, a Autora decidisse preencher a livrança; (b) a importância da livrança corresponderia ao total das responsabilidades decorrentes da utilização do cartão, nomeadamente, em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e quaisquer encargos, incluindo os fiscais relativos à própria livrança; e (c) a Autora poderia inserir cláusula sem protesto e definir o local de pagamento. 4. Por carta registada com aviso de receção, datada de 03.11.2011 e recebida em 08.11.2011, a Autora solicitou ao 1.º Réu o pagamento, no prazo máximo de 8 dias, da quantia de € 19.378,51, acrescida de juros moratórios e imposto do selo de 4%, emergente da utilização pela “MEDISEGURANÇA, LDA.” Do cartão de crédito descrito em 1. 5. Ante a falta de pagamento de tal quantia, a Autora procedeu ao preenchimento da livrança que lhe havia sido entregue em branco nos termos referidos em 3, tendo nela inscrito o valor de € 19.475,89 e a data de vencimento 20.10.2011, sendo que no verso desta livrança consta a assinatura do 1.º Réu sob os dizeres: «Dou o meu aval à firma subscritora». 6. Apesar de vencida, aquela livrança não foi paga, total ou parcialmente, até à presente data. 7. Em 23.01.2013, a Autora intentou ação executiva, para pagamento de quantia certa, contra a “MEDISEGURANÇA, LDA.” e o 1.º Réu, com base na livrança supramencionada, ação essa que correu termos no Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão – Juiz 1, com o processo n.º 209/13.7TJVNF, ascendendo então a quantia exequenda ao montante global de € 20.2551,64. 8. Esta ação executiva foi extinta com fundamento em insuficiência de bens penhoráveis por decisão do Sr. Agente de Execução datada de 22.06.2017. 9. Por escritura pública outorgada em 30.11.2011, no Cartório Notarial do Sr. Notário …, sito na Rua …, em Vila Nova de Famalicão, o 1.º Réu, representado por procuradora, declarou doar ao seu filho BB, aqui 2.º Réu, por conta da quota disponível, o prédio urbano correspondente a terreno para construção, com uma área de 900 m2, sito em …, freguesia de São Vicente de Paúl, concelho de Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém com o n.º …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, com o valor patrimonial de € 6.732,34, que então estava registado definitivamente a favor do 1.º Réu pela AP. …, de 23.10.2003. 10. Pela AP. …de 09.12.2011, mostra-se registada a aquisição, por doação, a favor do 2.º Réu do prédio urbano acima identificado. 11. O 2.º Réu nasceu em …/…/2010.». E foram julgados não provados os seguintes factos: «A) Que o 2.º Réu era conhecedor da posição de devedor que o 1.º Réu, seu pai, mantinha para com a aqui Autora; B) Que o 2.º Réu, em conluio com o 1.º Réu, celebrou a escritura de doação supramencionada, bem sabendo que com tal ato punham em causa o direito da ora Autora ao ressarcimento do seu crédito; C) Que o 2.º Réu sabia que na esfera patrimonial do 1.º Réu inexistia qualquer outro bem livre de ónus e encargos que pudesse garantir a satisfação do crédito da Autora; D) Que a escritura pública aludida em 9 não corresponde à efetiva e real vontade do(s) declarante(s), tendo a mesma sido outorgada com o objetivo de impedir a cobrança coerciva do crédito da Autora à custa do prédio doado; e E) Que o 1.º Réu nunca recebeu a comunicação mencionada em 4.». ***** III.2. – O mérito do recursoIII.2.1. – Da impugnação da matéria de facto No corpo das suas alegações, a Recorrente invocou que «os factos que constam no rol de factos não provados sob as alíneas D) e E) devem da mesma ser retirados, passando a constar da lista de factos provados, por terem sido demonstrados em juízo. Consequentemente, deve a presente acção ser julgada totalmente procedente, por provada, declarando-se a nulidade do negócio de doação por ter sido absolutamente simulado, nos termos do disposto no art. 240.º do CC». Observou o Ministério Público que as conclusões apresentadas não identificam a matéria de facto que a Apelante pretende, em concreto, ver alterada, nem indicam as disposições violadas, o sentido em que foram interpretadas e aquele em que o deveriam ter sido. E tem razão. Como é sabido, quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC. De tal preceito decorre que a lei exige o cumprimento pelo Recorrente dos seguintes requisitos cumulativos: i) a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; ii) a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados; iii) a indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto; iv) a indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. Na verdade, conforme consta exemplarmente sintetizado no Acórdão de 29.10.2015[4], frequentemente citado pelos tribunais superiores, nestes requisitos cumulativos, a jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal tem vindo a distinguir dois tipos de ónus, a saber: i) “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes”; e ii) “um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes”. Conforme mais recentemente se sumariou no Acórdão STJ de 02.02.2022[5], citando no mesmo sentido vários arestos que após aquele têm vindo a sedimentar esta que se considera ser a melhor interpretação do preceito, estribada também nos ensinamentos da mais recente doutrina: “I. Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto. II. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões”. Sublinha ABRANTES GERALDES[6], que a verificação do cumprimento destas exigências deve ser feita à “luz de um critério de rigor”, porquanto “trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”, enfatizando que tais exigências devem ser o “contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento de realização de justiça”. Na verdade, e conforme mais desenvolvidamente se explica na fundamentação do citado aresto, “o ónus primário refere-se à exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, conforme previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do citado artigo 640.º, visa fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e tem por função delimitar o objeto do recurso. (…) Relativamente ao ónus primário, nem sequer é possível recorrer às alegações para suprir deficiências das conclusões, uma vez que são estas que enumeram as questões a decidir e delimitam o objeto do recurso, devendo, quanto à impugnação da decisão de facto, identificar os concretos pontos de facto impugnados e a decisão pretendida sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal decisão. Daí que, quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deva ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos”. O critério de rigor que deve ser seguido na apreciação da verificação dos requisitos formais previstos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º, acima indicados nos pontos i) a iii), é facilmente compreensível se tivermos presente que estes requisitos impostos pelo preceito para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto, têm em vista, no essencial, garantir uma adequada delimitação do objeto do recurso, não apenas para circunscrever o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso, mas também para que a outra parte tenha a possibilidade de exercer o contraditório com o âmbito previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 640.º, designadamente indicando os meios de prova que, a seu ver, infirmem as conclusões do recorrente. Por isso que não possam deixar de subscrever-se as conclusões exaradas no mais recente aresto citado, quanto ao não cumprimento dos aludidos ónus primários, no sentido de que esse incumprimento “acarreta a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, de acordo com o estatuído no citado art.º 640.º, nºs 1 e 2, não havendo, nestes casos, lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento. É o que resulta do disposto naquele preceito e no art.º 652.º, n.º 1, al. a), do CPC, que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º”, o qual não contempla a inobservância dos mencionados ónus”. Para além do mais recente aresto que vimos seguindo, este entendimento foi cristalinamente sumariado no Acórdão STJ de 24-05-2018[7], no qual se realçou que «a interpretação da expressão “sob pena de rejeição” consagrada no art. 640.º, n.º 1, do CPC, relacionada com a circunstância de o recorrente beneficiar já de um prazo suplementar de 10 dias, acrescido ao prazo normal do recurso de 30 dias, no caso de impugnar a decisão da matéria de facto com base na prova gravada (art. 638.º, n.ºs 1 e 7, do CPC), inculca a ideia que o desrespeito do cumprimento do respectivo ónus é sancionado com imediata rejeição do recurso, não havendo, neste particular, espaço para qualquer convite intercalar ao aperfeiçoamento». De facto, para modificar a decisão da 1.ª instância, por enfermar de erro de julgamento, necessário se torna, sob pena de rejeição, que se indiquem os concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados e a decisão que se entende deveria ter sido proferida, e, bem assim, se especifiquem os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, alegando o porquê da discordância, explicando em que é que os depoimentos contrariam a conclusão factual do tribunal recorrido, designadamente afastando os demais meios de prova em que o julgador firmou a sua convicção, ou seja, necessário se torna que o Recorrente delimite efetivamente o objeto do recurso, e fundamente as razões da respetiva discordância. Reitera-se que esta exigência legal não visa apenas que o Tribunal de recurso avalie concretamente o pretendido pelo recorrente, sendo também imposta pelo princípio do contraditório que enforma todo o processo civil, ou seja, pela necessidade que a parte contrária tem de conhecer os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, designadamente para os poder contrariar, salientando outros meios de prova em sentido diverso do indicado que infirmem as conclusões do recorrente, tudo como previsto no n.º 2, alínea b), do citado artigo. Na verdade, com o disposto no supra citado preceito legal, o que se visa é circunscrever a reapreciação do julgamento efetuado a pontos concretos da matéria controvertida, isto porque, os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto, não visam a realização de um segundo julgamento de toda a matéria de facto, nem a reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos, devendo consequentemente recusar-se a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto[8]. Revertendo o que vimos de referir ao caso em presença, e analisadas as conclusões das alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, verificamos que não existe um suficiente cumprimento pela mesma dos ónus previstos no n.º 1 alíneas a) e c) do preceito, desde logo e designadamente do ónus de se reportar aos concretos pontos de facto que entende terem sido incorretamente julgados e da decisão que, a seu ver, deveria ter sido proferida, nos termos definidos nessa parte do referido artigo 640.º. In casu, bastaria que a Apelante tivesse levado às conclusões do recurso, que delimitam o seu objeto, o teor do penúltimo parágrafo do corpo das suas alegações, e estariam suficientemente cumpridos os ónus que sobre si impendem para que, em princípio[9], fosse caso de proceder à requerida reapreciação da prova. Porém, a Apelante não levou essa pretensão às conclusões recursivas, das quais não consta sequer a indicação de quais os factos que impugna, por referência à sua identificação na sentença. Assim, tratando-se de ónus cumulativos, devemos concluir que, em face do incumprimento pela Recorrente dos indicados ónus primários, e desde logo daquele que mais essencialmente delimita o âmbito do recurso, de obrigatoriamente especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, impõe-se a imediata rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, não sendo consequentemente de reapreciar a decisão proferida sobre os pontos de facto a que aludiu no corpo das suas alegações. Especificamente a este respeito da problemática de saber se tais requisitos do ónus impugnativo a cargo do recorrente devem constar, formalmente, das conclusões recursórias ou bastará incluí-los no corpo alegatório, é claro o Acórdão do STJ, de 19.02.2015[10] quando evidencia que a resposta a dar a esta questão depende da função que está subjacente a cada um dos referidos ónus. Deste modo, «constituindo a especificação dos pontos concretos de facto um fator de delimitação do objeto de recurso, nessa parte, pelo menos a sua especificação deverá constar das conclusões recursórias (…), por força do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugadamente com o art. 640º, nº 1, alínea a), aplicando-se, subsidiariamente, o preceituado no nº 1 do art. 639º, todos do CPC». (o itálico é nosso). Acresce que, como já vimos, o preceito em referência, ao contrário do n.º 3 do artigo 639.º do CPC, não prevê a possibilidade de o relator convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações de recurso quanto ao cumprimento dos ónus impostos a quem impugne a decisão relativa à matéria de facto[11], só constituindo o relator na obrigação de emitir despacho de convite ao aperfeiçoamento quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o n.º 2 do mesmo preceito[12], o que não é o caso dos autos. Pelo exposto, atento o incumprimento pela Recorrente desde logo do ónus primário a que alude o artigo 640.º, n.º 1, alínea a) do CPC, rejeitamos o recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto. ***** III.2.2. – Da simulação absolutaPressupondo a Apelação a alteração da matéria de facto julgada provada, a única menção feita nas alegações de recurso, à questão de direito, é a acima transcrita quanto ao artigo 240.º do Código Civil[13], que estatui: «1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. 2. O negócio simulado é nulo». A apelante apenas refere que em consequência da pretendida alteração para provados dos factos julgados não provados sob as alíneas D) e E) da matéria de facto, ficando provado que «a vontade declarada na escritura de doação não corresponde à vontade declarada pelo primeiro Réu, cuja única intenção foi a de se furtar à acção da credora», «deve a presente acção ser julgada totalmente procedente, por provada, declarando-se a nulidade do negócio de doação por ter sido absolutamente simulado, nos termos do disposto no art. 240.º do CC». Verificamos, pois, que a Apelante não imputa qualquer erro na vertente de direito da decisão recorrida, impetrando a sua alteração apenas como consequência da pretendida alteração no julgamento de facto. Mantendo-se incólume a decisão proferida a respeito da matéria de facto provada e não provada, resta confirmar a bem fundamentada decisão recorrida, onde, com respaldo na mais autorizada doutrina, se afirmou que: «A simulação diz-se absoluta sempre que as partes finjam celebrar um negócio jurídico, mas na realidade não querem qualquer negócio. Como expressivamente refere MOTA PINTO (in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição Atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, pág. 473): «Há apenas o negócio simulado e, por detrás dele, nada mais (colorem habet, substantiam vero nullam)». São, pois, três os elementos que integram a figura da simulação absoluta, a saber: a) a divergência, intencional, entre a declaração negocial e a vontade; b) o acordo simulatório entre declarante e declaratário; e, por último, c) o intuito de enganar terceiros. A simulação será inocente se existir intuito de enganar terceiros, mas sem os prejudicar (animus decipiende); será, porém, fraudulenta se as partes tiverem atuado com intenção de enganar terceiros ilicitamente ou de contornar uma norma legal (animus nocendi). (…) Pese embora a simulação se ache desenhada para os contratos, a verdade é que a mesma também pode ocorrer em negócios jurídicos unilaterais e em simples atos jurídicos (cfr. arts. 295.º e 2200.º do Cód. Civil). Neste sentido, veja-se, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição Revista e Atualizada (Reimpressão), Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pág. 227, bem como MANUEL PITA, AAVV, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 295. (…) Por último, considerando a natureza do negócio in casu alegadamente simulado, bem como a idade do 2.º Réu (donatário) à data da doação, impõe-se tecer algumas considerações adicionais a respeito da doação. O art. 940º, n.º 1 do Cód. Civil define «doação» como «o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberdade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente». Assim, por regra, a doação consubstancia um contrato bilateral, em que intervêm o doador e o donatário. Mas existem exceções. Destarte, a lei dispensa a aceitação da doação por parte do donatário quando este seja incapaz (designadamente, em razão da idade), desde que dela não resulte a imposição de quaisquer encargos ao donatário (cfr. art. 951.º, n.º 2 do Cód. Civil). Tal doação pura feita a favor de incapaz produz, pois, os seus efeitos independentemente da aceitação em tudo o que aproveite ao donatário. Este tipo de doação configura um negócio jurídico unilateral (cfr. RUTE TEIXEIRA PEDRO, AAVV, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 1176). Feito o enquadramento jurídico que antecede, analisemos doravante a situação sub judice. Ficou provado que, por escritura pública outorgada em 30.11.2011, o 1.º Réu, representado por procuradora, declarou doar ao seu filho BB, aqui 2.º Réu, por conta da quota disponível, o prédio urbano melhor identificado no ponto 9 dos factos provados. Uma vez que à data o 2.º Réu era menor de idade, tal doação não exigia a intervenção deste. Assim, produziu efeitos independentemente da aceitação do 2.º Réu. Perante isto, competia à Autora demonstrar que a declaração então emitida pelo 1.º Réu na escritura pública divergia da sua vontade real e, ademais, que o fez com o objetivo de enganar terceiros, nomeadamente, a Autora, para assim impedir que o prédio doado não respondesse pela sua dívida. No entanto, quanto a isto nada se apurou. Por conseguinte, sem necessidade de adicionais considerações, forçosamente se conclui que a ação improcede in totum». Subscrevemos na íntegra a ponderação efetuada, sublinhando com o Ministério Público, que para que a ação procedesse nos termos em que a desenha, impunha-se que a Autora, ora Apelante, tivesse atempadamente feito uso da ação de impugnação pauliana prevista nos artigos 610.º e ss. do CC, por forma a obter a ineficácia do ato relativamente a si e na medida do seu crédito. Porém, tendo decorrido mais de 5 anos (artigo 618.º do CC), contados da data do ato impugnável, ou seja, tendo a doação ocorrido em 30.11.2011 e a presente ação dado entrada em 02.02.2022, a Autora não arriscou que lhe fosse oposta a caducidade daquela ação, invocando antes a simulação absoluta da doação efetuada pelo 1.º Réu ao seu filho, então com um ano de idade. Incumbia-lhe, pois, a prova de todos os seus requisitos, designadamente, a existência de divergência entre a vontade declarada e a real com o objetivo de impedir a cobrança coerciva do crédito da Autora à custa do prédio doado, prova que não foi feita, atento o facto julgado como não provado na alínea E). Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, a apelação improcede, sendo de confirmar a sentença recorrida. ***** IV - Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida. Custas pela Recorrente - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC. ***** Évora, 12 de julho de 2023 Albertina Pedroso [14] Francisco Xavier Maria João Sousa e Faro __________________________________________________ [1] Juízo Local Cível de Santarém – Juiz 1. [2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Francisco Xavier; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro. [3] Doravante abreviadamente designado CPC. [4] Proferido no processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [5] Proferido no processo n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [6] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, 2018, pág. 169. [7] Proferido no processo n.º 4386/07.8TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [8] Cfr. neste sentido ABRANTES GERALDES, ob. e loc. cit., pág. 309, e Ac. STJ de 09-02-2012, proferido no processo n.º 1858/06.5TBMFR.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [9] Dizemos, em princípio, porque casos existem, em que, ainda assim, não é igualmente de proceder à impetrada reapreciação, atenta a sua inutilidade para o desfecho da pretensão recursiva. [10] Proferido no processo n.º 99/05.6TBMGD.P2.S1. [11] Cfr. neste sentido o Ac. STJ de 12-01-2012, proferido na revista n.º 11/1999.L1.S1, (in Sumários de Acórdãos, disponíveis em www.stj.pt), relatado pelo Cons. João Bernardo que inclusivamente considera ser a redação introduzida no preceito interpretativa, em face das divergências jurisprudenciais anteriores, interpretação que mantém atualidade no novo regime, e que, como vimos, tem vindo a ser acolhida. [12] Cfr. Ac. STJ de 08-09-2021, proferido na revista n.º 51/17.6T8PVZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [13] Doravante abreviadamente designado CC. [14] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos juízes desembargadores que compõem esta conferência. |