Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
84/15.7T8LAG.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
ERRO SOBRE A PROIBIÇÃO
ERRO CENSURÁVEL
Data do Acordão: 05/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Revelando o direito contra-ordenacional condutas mais ou menos axiológicamente relevantes (ou irrelevantes porquanto axiológicamente neutras) e que será, em muitos casos, a proibição a acrescentar-lhe o desvalor ético-social deve encarar-se com normalidade a possibilidade de falta de consciência da ilicitude neste ramo de direito.
A questão central reside no saber se a um cidadão que é “pessoa de rudimentares habilitações literárias” é exigível saber – depois de ter declarado a sua actividade ao Estado e supostamente ter pago os respectivos impostos – que ainda tem que continuar a percorrer a via-sacra administrativa numa outra qualquer entidade.

No caso de uma pessoa colectiva ou de um cidadão razoavelmente informado não temos dúvida em considerar a afirmativa. Sem prejuízo de considerar (em abstracto) que o conceito “razoavelmente informado” no caso de contra-ordenações e entidades administrativas decisoras se pode revelar algo pouco exigente, dadas as características labirínticas de tal ramo de direito.

Mas no caso concreto, provado que o cidadão é pessoa pouco informada e com menor capacidade de informação (“pessoa de rudimentares habilitações literárias que achou que era suficiente o facto de ter-se colectado nas Finanças”) não lhe é censurável o erro.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No recurso de contra-ordenação que correu termos no Tribunal Judicial, AA foi condenado pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve no pagamento da coima de 10.000,00 (dez mil) euros por prática da contra-ordenação de falta de licenciamento da actividade de tratamento de resíduos, prevista e punida pelo nº 2 do artigo 9º, conjugado com os artigos 12º, nº 2, 23º, 24º e 67º, nº 1, alínea d), do Decreto-Lei 178/2006, de 5 de Setembro, pelo artigo 22º, nº 4, alínea a), da Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto, e pelo artigo 18º, nº 3, do DecretoLei nº 433/82, de 27 de Outubro.


*

Inconformado com a decisão proferida pela entidade administrativa impugnou judicialmente a decisão com vista à sua absolvição.

O recurso foi admitido e o tribunal recorrido decidiu julgar improcedente a impugnação judicial.

De novo inconformado com uma tal decisão interpôs o arguido o presente recurso, com as seguintes conclusões (transcritas):

1. Vem o presente recurso, interposto da mui douta Sentença que negou provimento ao recurso interposto pelo Arguido, aqui Recorrente, AA; e que condenou o Arguido, no pagamento da coima de 10.000,00 (dez mil) euros por prática da contra-ordenação de falta de licenciamento da actividade de tratamento de resíduos, prevista e punida pelo n.º 2 do artigo 9.º, conjugado com os artigos 12.º, n.º 2, 23.º, 24.º e 67.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 178/2006, de 5 de Setembro, pelo artigo 22.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, e pelo artigo 18.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro. E ainda nas custas criminais; o qual tem como objecto toda a matéria de direito da douta Sentença proferida nos presentes autos.

2. Deu o Tribunal a quo como provado que o Arguido, ora Recorrente:

“-a- no dia 10 de Fevereiro de 2014, pelas 19.00 horas, nas instalações do Arguido, existia um espaço destinado a armazenamento e separação de resíduos de cobre, resíduos de equipamentos eléctricos e electrónicos, metais ferrosos e alumínio, que depois transportava a outro local, onde fazia a venda,

-b- sem que o Arguido, se mostrasse licenciado para ter em seu poder, armazenar, tratar, separar e transportar aqueles materiais e substâncias.

-c- O Arguido, não indagou, sequer, se precisava de algum tipo de licenciamento para manusear aqueles materiais, porque achou que era suficiente o facto de ter-se colectado nas Finanças.

-d- O Arguido, pessoa de rudimentares habilitações literárias, tem-se dedicado à compra e venda de sucata, vive há dez anos com uma companheira, e dela tem filhos com as idades de 11, 10 e 8 anos.”

3. Pelo que decidiu o Tribunal a quo:

“a) Negar provimento ao recurso interposto pelo Arguido, aqui Recorrente,, ora Recorrente, AA.

b) Condenar o Arguido, AA no pagamento da coima de 10.000,00 (dez mil) euros por prática da contra-ordenação de falta de licenciamento da actividade de tratamento de resíduos, prevista e punida pelo nº 2 do artigo 9º, conjugado com os artigos 12º, nº 2, 23º, 24º e 67º, nº 1, alínea d), do Decreto-Lei 178/2006, de 5 de Setembro, pelo artigo 22º, nº 4, alínea a), da Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto, e pelo artigo 18º, nº 3, do DecretoLei nº 433/82, de 27 de Outubro.

c) Condenar o AA, no pagamento das custas.”

4. O Tribunal a quo reconhece que o Arguido, ora Recorrente, é pessoa com poucos conhecimentos; possui parcas habilitações literárias: -d- dos factos provados.

5. Tanto mais que refere não ter repugna em aceitar a posição da autoridade administrativa: erro censurável sobre a ilicitude; admitindo que o Arguido, ora Recorrente, tenha dificuldade em dominar juridicamente a complexa legislação ambiental;

6. Contudo, pelo facto dado como provado em –d-, pois que se considera, s.m.o. que se prova ter o Arguido, aqui Recorrente, agido sem culpa, pois actuava sem consciência da ilicitude do facto. Pelo que, se entende que o erro lhe não é censurável.

7. O Arguido, aqui Recorrente, estava convicto que se encontrava legalmente autorizado a realizar operações de armazenagem, tratamento e triagem de resíduos sem mais.

8. Estamos assim, perante um erro sobre a ilicitude do facto.

9. A falta de consciência da ilicitude não é censurável sempre que o engano ou erro de consciência ética que se exprime no facto não se fundamente em qualidade desvaliosa e juridicamente censurável da personalidade do Arguido.

10. Refere o Artigo 9.º, n.º 1 do R.G.C.O., sob a epígrafe erro sobre a ilicitude que age sem culpa quem actua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.

11. Assim, não lhe era exigível o conhecimento de uma licença a qual condicional, quando, a nível fiscal tinha como actividade aquela.

12. S.m.o., este erro intelectual não é censurável ao ora Recorrente.

13. Face ao que, deve o Arguido, ser absolvido da prática da contra ordenação de que vem acusado.

14. A sentença em recurso violou-se assim o art. 9.º, n.º 1 do R.G.C.O.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, a douta sentença ora recorrida ser revogada com as legais consequências.


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A Digna Procuradora Adjunta respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência.

Nesta Relação a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso por se não verificarem factos que suportem a verificação do vertido nos artigos 8º, n. 2 e 9º do RGCOC.

Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.


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B.1 - Fundamentação:

B.1.1 – Estão provados os seguintes factos:

a) - No dia 10 de Fevereiro de 2014, pelas 19.00 horas, nas instalações do arguido, existia um espaço destinado a armazenamento e separação de resíduos de cobre, resíduos de equipamentos eléctricos e electrónicos, metais ferrosos e alumínio, que depois transportava a outro local, onde fazia a venda,

b) - Sem que o arguido se mostrasse licenciado para ter em seu poder, armazenar, tratar, separar e transportar aqueles materiais e substâncias.

c) - O arguido não indagou, sequer, se precisava de algum tipo de licenciamento para manusear aqueles materiais, porque achou que era suficiente o facto de ter-se colectado nas Finanças.

d) - O arguido, pessoa de rudimentares habilitações literárias, tem-se dedicado à compra e venda de sucata, vive há dez anos com uma companheira, e dela tem filhos com as idades de 11, 10 e 8 anos.


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B.1.2 – Não existem factos não provados.

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B.1.3 – Foram apresentadas, pela entidade Administrativa, as seguintes razões na fundamentação factual:

«Os factos foram verificados pela testemunha BB, agente da GNR que levantou o auto de folhas 5/6, e que em audiência confirmou os factos verificados, designadamente a falta de licença do local que servia de estabelecimento; o arguido veio declarar que sempre foi sucateiro de profissão, que se colectou nas Finanças e que não achou que fosse preciso mais do que isso, razão pela qual nada perguntou a ninguém, e em Serviço algum, a esse respeito».


***

Cumpre decidir.

B.2 - O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal - de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95, aplicável ao processo contra-ordenacional. Por outro lado, nos termos do art. 75º nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10, nos processos de contra-ordenação a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.

Os factos apurados revelam alguma secura, designadamente quanto ao enquadramento da actividade do arguido e às suas condições de laboração, assim como quanto aos seus proventos e outros factos que permitissem dosear a pena a aplicar.

Essa suficiência só existe na perspectiva de que a evidente anormalidade do mínimo da coima aplicável, cuja subsistência constitucional tem sido assegurada no respectivo órgão, tornar irrelevante esse apuramento por impossibilidade de aplicação de coima ajustável ao caso concreto pois que o mínimo, exorbitante, é sempre aplicável.

No entanto, o destino a dar aos autos em função do fundamentado infra torna inútil o apurar de mais factos relativos ao tipo de ilícito e às condições económicas e profissionais do arguido. Aliás, o fundamentado infra também torna inútil o apurar de factos relativos à invocação, pelo arguido, de ter agido em erro sobre a proibição na medida em que os já apurados se revelam – não obstante a míngua – sofrivelmente aceitáveis para a decisão.

Também não deixaremos de afirmar que ao arguido teria sido mais vantajosa – ao invés de razões abstractas - a alegação de factos que suportassem de forma mais clara a sua situação profissional, âmbito de actividade, anos de laboração, local de laboração, tipo e quantidade de materiais utilizados, proventos obtidos, o que fosse, a bem da sua defesa.

Mas também haverá que reconhecer que, em primeira linha tal obrigação incumbia à entidade autuante e à entidade administrativa decisora que, obtido o mínimo necessário à condenação, se não revelaram excessivamente preocupadas com tal suficiência.

Resta, pois, uma questão para conhecer: da existência do invocado erro sobre a proibição.


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B.3 – Para tanto vem arguir o recorrente com os factos que ficaram provados em c) e d):

c) - O arguido não indagou, sequer, se precisava de algum tipo de licenciamento para manusear aqueles materiais, porque achou que era suficiente o facto de ter-se colectado nas Finanças.

d) - O arguido, pessoa de rudimentares habilitações literárias, tem-se dedicado à compra e venda de sucata…».

Nesse desiderato invoca o recorrente o artigo 9º, nº 1 do RGCO que estipula no seu nº 1 que “age sem culpa quem actua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável”.

A percepção de que algo havia a fazer teve-a o recorrente ao declarar ao “fisco” a sua actividade, já ciente de que tinha que revelar a necessária voluntariedade à actividade fiscal. Isto é, deu conhecimento da sua actividade ao Estado na perspectiva que lhe era mais desfavorável.

Mas o Estado, múltiplo nas suas sedes de controlo que se desconhecem e não comunicam, deixa ao cidadão obrigado a imposição de todas percorrer com conduta veneranda e agradecida.

A questão central reside, pois, no saber se a um cidadão que é “pessoa de rudimentares habilitações literárias” é exigível saber – depois de ter declarado a sua actividade ao Estado e supostamente ter pago os respectivos impostos (pois que nem isso se apurou) – que ainda tem que continuar a percorrer a via-sacra administrativa numa outra qualquer entidade.

No caso de uma pessoa colectiva ou de um cidadão razoavelmente informado não temos dúvida em considerar a afirmativa. Sem prejuízo de considerar (em abstracto) que o conceito “razoavelmente informado” no caso de contra-ordenações e entidades administrativas decisoras se pode revelar algo pouco exigente, dadas as características labirínticas de tal ramo de direito.

Mas no caso concreto o provado em d) revela um arguido pouco informado e com menor capacidade de informação, o que nos leva a concluir não lhe ser censurável o erro.

Mas mais.

É sabido que o direito contra-ordenacional revela condutas mais ou menos axiológicamente relevantes (ou irrelevantes porquanto axiológicamente neutras) e que será, em muitos casos, a proibição a acrescentar-lhe o desvalor ético-social (v.g. o Prof. Fig. Dias a propósito da distenção material entre ilícito penal e contra-ordenacional, in “Direito Penal, Parte Geral - I”, 2004, 7º Cap. § 9, pag. 150), razão que leva alguns a encarar com normalidade a possibilidade de falta de consciência da ilicitude neste ramo de direito.

Ora, no caso não revelam os factos que a conduta seja axiologicamente relevante, não só pela natureza do evidenciado, também pela falta de factos que revelem qualquer valoração negativa evidente. Ou seja, é a proibição que torna a conduta axiológicamente relevante.

Outro aspecto se impõe notar.

Ninguém se preocupou em apurar se o arguido já tinha sido condenado por facto idêntico, pelo que se impõe considerar a negativa.

E se o arguido era primário e revelava as condições pessoais provadas (“rudimentares habilitações literárias) não cairiam os parentes na lama se o mesmo, tratando-se do primeiro ilícito, fosse avisado da proibição legal e lhe fosse concedido prazo para a regularização da actividade.

Por tudo o que vai exposto se considera existir relevante e não censurável erro sobre a proibição.

Razões pelas quais se afirma a procedência do recurso.


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C - Dispositivo:

Face ao que precede, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, em consequência, absolvem o arguido da contra-ordenação imputada.

Sem tributação.

Évora, 10 de Maio de 2016

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

António Condesso