Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
91/14.7T8OLH-A.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: APENSAÇÃO DE PROCESSOS
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Se a acção que se pretende apensar à insolvência é posterior a essa declaração e nada foi requerido pelo administrador da insolvência, então não está verificada situação determinante de apensação ao abrigo do artigo 85º do CIRE.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 91/14.7T8OLH-A.E1-2ª (2017)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)


ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Na presente acção de processo comum que «(…) House, SA» intentou contra a «Massa Insolvente de “… – … Hotel, SA”», na Secção de Comércio da Instância Central de Olhão da Comarca de Faro, em que vem formulado pedido de simples apreciação de inexistência de direito de crédito (da «… – … Hotel, SA» sobre a «… House, SA», no montante de 1.949.999,98 €), e com vista à apensação deste processo declarativo ao processo de insolvência que ali corre termos em relação a essa empresa, entretanto declarada insolvente, ao abrigo do artº 85º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3, foi pelo tribunal de 1ª instância proferida decisão liminar (cfr. fls. 356-358), que declarou a incompetência material do tribunal em questão, com fundamento na não verificação dos pressupostos de aplicação do artº 85º do CIRE e na aplicação combinada dos artos 128º, a contrario, e 117º, nº 1, al. a), da actual Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ – Lei nº 62/2013, de 26/8), de que decorreu a consequente absolvição da instância da R..

Nesse despacho liminar argumentou-se que a apensação de acções ao processo de insolvência prevista pelo artº 85º do CIRE pressupõe que a mesma apenas possa ser requerida pelo administrador da insolvência a faculdade de a requerer (e só depois de ponderar as vantagens dessa apensação, do ponto de vista dos fins do processo), pelo que a mesma não poderá ser determinada oficiosamente, nem requerida pelo autor na acção – o que implicará que a acção não poderá ser instaurada ab initio por apenso ao processo de insolvência, antes devendo ser instaurada no tribunal competente (que será a secção cível da instância central, atento o valor da acção, conforme o disposto no artº 117º, nº 1, al. a), da LOSJ) e aí citada a massa insolvente na pessoa do administrador da insolvência, seguindo-se os demais termos.

É desse despacho liminar de declaração de incompetência material, com absolvição da instância da R., que vem interposto pela A. o presente recurso de apelação, cujas alegações culminam com as seguintes conclusões:

«I. Na sentença sob recurso o M.mo Juiz decidiu pela incompetência em razão da matéria da secção de comércio e em consequência concluiu pela absolvição da Ré.

II. Ora, salvo o devido respeito que é muito a ora Apelante não concorda com a sentença sob recurso.

III. A ora Apelante intentou a acção onde requer:

- seja declarado inexistente o crédito constante da factura nº 8, no valor de 1.585.365,84 euros (um milhão quinhentos e oitenta e cinco mil trezentos e sessenta e cinco euros e oitenta e quatro euros), acrescido de IVA no valor de 364.634,14 euros, totalizando a quantia de 1.949.999,98€ (um milhão novecentos e quarenta e nove mil novecentos e noventa e nove euros e noventa e oito cêntimos), [de] que a “… – … Hotel, S.A.”, agora “Massa Insolvente … – … Hotel, S.A.”, alegadamente diz ser titular.

IV. Mais, requereu que a mesma acção seja apensada à acção de insolvência.

V. Ora, salvo o devido respeito, declarada a insolvência verifica-se a utilidade da acção declarativa proposta contra a massa insolvente, uma vez que irá influir no seu activo e passivo porquanto o direito que se pretende acautelar só pode ser tutelado no âmbito do processo de insolvência.

VI. Para além do mais, a declaração de insolvência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva, o que significa que mesmo no caso de procedência da acção, ora recorrida, a sentença nunca poderia ser dada à execução para cumprimento coercivo do crédito, pelo que, salvo o devido respeito entendendo-se pela não aplicação do artigo 85º do CIRE, poderia o M.mo Juiz a quo recorrer à aplicação do nº 3 do artigo 5º do CPC.

VII. Pelo que, assim, a apensação da presente acção e caso o M.mo Juiz entendesse pela não aplicação do regime do artigo 85º do CIRE, o referido diploma permite a apensação de acções através dos regimes previstos no artigo 89º e 146º.

VIII. A douta sentença ora recorrida faz assim uma errada interpretação da aplicação do direito.

IX. Assim, salvo o devido respeito, entende a Apelante que a expressão, constante do art. 89°/2 do C.I.R.E., "acções relativas a dívidas" abarca todas e quaisquer acções em que da formulação do pedido conste a condenação ao pagamento de prestações pecuniárias alegadamente devidas pela insolvente ao peticionante, independentemente do facto que constituirá a fonte da obrigação, o dever de pagamento ou a natureza da dívida: é indiferente que a dívida seja proveniente de uma relação civil, de uma relação comercial ou de uma relação laboral.

X. Também à luz do próprio sistema instituído pelo regime jurídico das insolvências e das respectivas finalidades se verifica pela competência material do tribunal onde corre o processo de insolvência.

XI. Nesta linha, o processo de insolvência é caracterizado como sendo um "processo de execução universal", no qual, por assim ser, terão que se concentrar todos os actos e acções relacionadas com essa execução universal de património do insolvente, concentrando apenas em um único processo – o de insolvência – todos os créditos sobre o insolvente, bem como todas as acções que coloquem em causa a existência de créditos detidos pela Insolvente.

XII. Porém, devemos atender ao conteúdo do disposto no artº 89º, nº 2, do CIRE, ora, de acordo com tal norma, as acções, incluindo as executivas, relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência, com exceção das execuções por dívidas de natureza tributária.

XIII. Desde logo, cumpre explicitar que estão ali mencionadas as "dívidas da massa insolvente", ou seja, as que, por oposição às chamadas "dívidas da insolvência", se constituem após a data da declaração de insolvência e são como tal qualificadas pelo CIRE, nomeadamente no seu artº 51º.

XIV. Com efeito, desde que a acção seja "relativa às dívidas da massa insolvente", tanto basta para que deva correr por apenso ao processo de insolvência.

XV. Ora, se assim é para as dívidas, também o deverá ser para os créditos.

XVI. Aliás, no caso dos autos, o não reconhecimento do crédito irá influenciar a massa insolvente, quer o seu activo quer o seu passivo, pelo que será sempre materialmente competente o tribunal onde corre o processo de insolvência atinente, ainda que a matéria em causa fosse, em princípio, da competência de tribunais de competência genérica.

XVII. Não concorda a ora Apelante quando a decisão ora recorrida refere da falta de legitimidade da Apelante para requerer a apensação da acção à acção de insolvência, porque tal apensação "haveria de ser requerida pelo senhor Administrador de Insolvência", nos termos do artº 85º, nº 1, do CIRE, uma vez que a apensação prevista nesta disposição se refere a acções pendentes na data de declaração de insolvência e, como tal, relativas à insolvência e não à massa insolvente.

XVIII. A lei (artº 85º, nº 1, do CIRE) refere que as acções "em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente", o que é realidade diversa de acções relativas "às dívidas da massa insolvente" (artº 89º, nº 2, do CIRE), pois estas, como é óbvio, nascem após a declaração de insolvência.

XIX. Ora, salvo o devido respeito, entende a Apelante que decidiu mal o M.mo Juiz, uma vez mesmo que se entenda que a competência não se encontra prevista no artigo 85º do CIRE, o M.mo Juiz encontraria sempre a solução para esta questão no art. 146º, nº 1, do CIRE, que expressamente prevê a hipótese de acções a propor já depois da declaração de insolvência.

XX. Ainda de acordo com este preceito legal, estas acções declarativas têm pressupostos específicos e são absolutamente autónomas.

XXI. Como se vê, nenhuma destas especificidades contende com a inutilidade superveniente da lide; ao contrário, resulta expressamente consagrado no art. 146º, nº 1, do CIRE, a possibilidade destas acções e a necessidade do seu conhecimento.

XXII. O conhecimento da acção e verificação dos respectivos pressupostos compete ao Tribunal competente, que é aquele onde corre o processo de insolvência, por imposição do art. 148º do CIRE, que determina que tais acções corram por apenso, sendo esta apensação, ao contrário das acções pendentes a que alude o art. 85º do CIRE, não está sequer sujeita a critérios de oportunidade ou a requerimento do administrador da insolvência, ao contrário do que é referido pelo M.mo Juiz a quo que deveria ser o administrador de insolvência a requerer a apensação da acção quando por imposição do artigo 148º do CIRE a acção corre por apenso da acção de insolvência.

XXIII. Assim, conclui-se, salvo o devido respeito, que andou mal o M.mo Juiz quando declarou a incompetência do tribunal de comércio em razão da matéria.

XXIV. Concluindo-se, assim, pela revogação da sentença proferida, ordenando-se a apensação da presente acção ao processo de insolvência.»


Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações da recorrente resulta que a matéria a decidir se resume, muito singelamente – e apesar da prolixidade das conclusões das alegações de recurso –, a apreciar se haveria fundamento para a recusa de apensação dos presentes autos a processo de insolvência (respeitante à sociedade cuja massa insolvente é aqui demandada) e consequente declaração de incompetência material do tribunal a quo, com absolvição da R. da instância – sendo que, em caso negativo, se imporá a revogação do despacho liminar recorrido e a sua substituição por outro que determine o prosseguimento dos presentes autos, devidamente apensado ao mencionado processo de insolvência.

Cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO:

Estando assentes os elementos descritos no relatório, cabe, com base neles, aferir do acerto da prolação do despacho liminar sob recurso.

Comece-se por salientar que não oferecerá qualquer dúvida – como, aliás, bem demonstrou o tribunal a quo – que a presente acção, enquanto acção declarativa de processo comum, não se enquadra nas acções da directa competência de secções de comércio (ou de juízos de comércio, na nova designação atribuída pela Lei nº 40-A/2016, de 22/12, que introduziu alterações à LOSJ), tal como descritas no artº 128º, nos 1 e 2, da LOSJ. Porém, poderá a competência de tal tribunal (com a caracterização do tribunal a quo) para a presente acção ainda advir do disposto no nº 3 do artº 128º, quando nele se prevê que essa competência abrange os processos que devam ser apensados aos previstos no nº 1, entre os quais se encontram os processos de insolvência.

Ora, esta eventualidade remete-nos para a delimitação do âmbito de aplicação de norma como a do nº 1 do artº 85º do CIRE, que determina a apensação ao processo de insolvência de processos pendentes no momento da declaração de insolvência, e em que esteja em causa a apreciação de «questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente» ou «cujo resultado possa influenciar o valor da massa». Note-se, desde logo, que tal norma não permite uma apensação imediata ou automática, já que faz depender a mesma de alguns pressupostos: a apensação tem de ser requerida pelo administrador da insolvência, este tem de invocar e demonstrar a conveniência da apensação para os fins do processo e cabe ao próprio tribunal da insolvência determinar a apensação, mediante o reconhecimento da referida conveniência.

No caso presente, é manifesto não se terem verificado as condições de aplicação da norma em apreço: a presente acção é posterior à declaração de insolvência e nada foi requerido pelo administrador da insolvência. Sendo assim, é forçoso ter de reconhecer razão ao tribunal a quo, quando este entendeu que não está verificada situação determinante de apensação dos presentes autos ao abrigo do artº 85º do CIRE. Se ainda se pode admitir que uma acção cuja pretensão é a de declaração de inexistência de crédito da insolvente se enquadrará no conceito de acção respeitante a «bens compreendidos na massa insolvente» ou «cujo resultado possa influenciar o valor da massa», seguramente falham os demais pressupostos – pelo que se torna inevitável a recusa de apensação por essa via, tal como entendeu o tribunal recorrido.

Contudo, será ainda de ponderar uma outra via de eventual imposição dessa apensação – e que, aliás, vem agora, em sede de recurso, sustentada pela recorrente. Trata-se da hipotética aplicação da previsão do artº 89º, nº 2, do CIRE, da qual resulta que devem correr por apenso ao processo de insolvência (e aí, seguramente, sem necessidade de intermediação do administrador da insolvência ou de reconhecimento de conveniência pelo tribunal da insolvência) as acções declarativas «relativas às dívidas da massa insolvente» (e ainda as acções executivas, com exclusão das relativas a dívidas fiscais). Trata-se, nessa hipótese, de acções que podem ser propostas autonomamente, sem que seja caso de os credores terem de fazer uso da reclamação de créditos do artº 128º do CIRE ou da verificação ulterior do artº 146º do CIRE (assim, ANA PRATA, JORGE MORAIS CARVALHO e RUI SIMÕES, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Coimbra, 2013, p. 270).

Porém, a letra da norma em apreço é muito clara: essas acções declarativas que devem ser apensadas têm de respeitar a «dívidas da massa insolvente».

Ora, no caso presente, não respeita a respectiva acção a dívida da sociedade insolvente, mas a hipotético crédito dessa entidade, cuja inexistência se pretende que seja declarada. Afirma a apelante que «se assim é para as dívidas [a imposição da apensação], também o deverá ser para os créditos» (cfr. conclusão XV supra) – mas é óbvio que essa leitura consiste num mero wishful thinking da A., sem qualquer base normativa, nem fundamento bastante. Se o legislador quisesse que o nº 2 do artº 89º do CIRE abrangesse, em simultâneo, dívidas e créditos da massa insolvente, certamente teria usado outra formulação da norma: não falaria em «dívidas», e aludiria eventualmente (como no artº 85º) a acções «cujo resultado possa influenciar o valor da massa». Não o fez, pelo que a presente acção se encontra manifestamente fora do âmbito de aplicação do artº 89º, nº 2, do CIRE.

Igual juízo se pode formular quanto a uma eventual aplicação dos artos 146º e 148º do CIRE, quando deles resulta a apensação ao processo de insolvência de acções que visam a verificação ulterior de créditos ou o reconhecimento do direito à separação ou restituição de bens – e que a apelante também ensaia como via alternativa de obter a pretendida apensação da presente acção à insolvência (cfr. conclusões VII, XIX, XXI e XXII supra). Também aqui cabe afirmar que a presente acção não visa o reconhecimento de um crédito da A. (e de uma correlativa «dívida da massa insolvente»); e igualmente não se pretende exercitar um direito à separação ou restituição de bens. Estamos, assim, claramente fora do âmbito da aplicação das normas em apreço.

Resta, pois, concluir que não fornece o CIRE qualquer fundamento para a pretensão de instauração da presente acção declarativa por apenso ao processo de insolvência em causa. Idêntica conclusão, com fundamentação próxima da aqui adoptada, foi alcançada em caso paralelo dirimido em recente Ac. RE de 27/4/2017, que corrobora a solução ora acolhida (Proc. 442/14.4TBVRS-C.E1, in www.dgsi.pt).

Assiste, assim, razão ao tribunal a quo no seu entendimento de que ocorre a sua incompetência material, impondo-se a solução que o mesmo enunciou: deve a presente acção ser instaurada no tribunal competente (que será a secção cível da instância central – actualmente, juízo central cível –, atento o valor da acção, conforme o disposto no artº 117º, nº 1, al. a), da LOSJ) e aí citada a massa insolvente na pessoa do administrador da insolvência, seguindo-se os demais termos. E sem que caiba, ao menos por ora, ao tribunal da insolvência (e a este tribunal de recurso) curar do modo como a questão da pretensa inexistência de hipotético direito de crédito da massa insolvente venha a relevar no contexto dessa insolvência.

Acolhem-se, deste modo, os fundamentos da decisão recorrida e não se vislumbra, pois, qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

Em suma: o tribunal a quo não violou qualquer disposição legal, não merecendo censura a decisão do tribunal a quo no sentido da declaração da sua incompetência em razão da matéria, pelo que deve improceder o presente recurso.


III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela apelante (artº 527º do NCPC).

Évora, 13 / 07 / 2017

Mário António Mendes Serrano

Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)

Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)