Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3264/03.4TBPTM-A.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: TAXA DE JUSTIÇA
CÁLCULO
DISPENSA
PAGAMENTO
REMANESCENTE
Data do Acordão: 06/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
1. Tendo em conta princípios como os da lealdade e da cooperação processuais, afigura-se de toda a razoabilidade que seja reconhecida à parte responsável por custas a possibilidade de suscitar, em sede de reclamação da conta, a discussão sobre a exata quantificação da sua responsabilidade, já que só nessa conta se procede a tal quantificação.
2. Essa será a interpretação mais coerente com aqueles princípios e a mesma conforma-se à literalidade abrangente do artº 31º do RCP, que contempla a possibilidade de «oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou dos interessados, o juiz mandará reformar a conta se esta não estiver de harmonia com as disposições legais».
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

A presente acção ordinária que AA intentou contra BB, CC, «DD, Ltd.» e «EE, Lda.», e actualmente a correr termos em Secção Cível da Instância Central de Portimão da Comarca de Faro (depois de iniciada em Juízo Cível do Tribunal Judicial de Portimão), respeitante a pretensões fundadas na nulidade de contratos de compra e venda de imóveis, terminou com a prolação de sentença final que julgou parcialmente procedente a acção, condenando a 1ª R. na entrega ao A. de determinadas quantias, num total de 133.316,21 €, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde os respectivos recebimentos e até integral pagamento, e absolvendo os demais RR. da totalidade dos pedidos (cfr. sentença de fls. 57-75). Nessa sentença teve ainda lugar a condenação da 1ª R. nas custas respeitantes à acção.

Essa decisão foi objecto de recurso do A. para a Relação, que a confirmou integralmente, condenando o apelante pelas custas do recurso (cfr. acórdão de fls. 76-99). Interposto pelo A. recurso de revista para o STJ, veio este a confirmar a decisão recorrida, condenando também o recorrente nas custas do respectivo recurso (cfr. acórdão de fls. 100-117).

Tornada definitiva a sentença proferida nos autos, na sequência dos mencionados recursos, veio a ter lugar a elaboração da respectiva conta de custas, da qual os RR. foram notificados, e na qual se imputou aos RR. uma dívida de custas no montante de 43.975,80 € (cfr. fls. 18-119). Dessa conta reclamaram então os RR. (cfr. reclamação de fls. 121-131), alegando, no essencial, ser essa reclamação o meio processual próprio para requerer a sua dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, quanto à parcela excedente a 275.000,00 €, ao abrigo do artº 6º, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), e requerendo tal dispensa, nos termos desse preceito, com fundamento em o valor de custas colocado a seu cargo ter por base aquele remanescente e em ser esse valor excessivo e desproporcionado, face ao desajustamento do valor da acção em relação ao preço real das vendas de imóveis efectuadas e face à menor complexidade da actividade processual desenvolvida e à correcção da conduta processual das partes.

Sobre essa reclamação recaiu despacho do tribunal de 1ª instância, que a indeferiu (cfr. despacho de fls. 135-137, datado de 26/6/2015). Na fundamentação desse despacho sustentou-se que foi nas próprias anteriores decisões da causa proferidas por 1ª instância, Relação e STJ que se «entendeu não aplicar a norma excepcional de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça», sem que nada obrigasse esses tribunais a justificar esse entendimento, já que só a dispensa, por ser excepcional, terá de ser expressamente fundamentada.

É desta decisão que vem interposto pelos RR. o presente recurso de apelação (cfr. fls. 4-40), cujas alegações culminam com as seguintes conclusões:

«1.ª Vem o presente recurso de apelação interposto pelas Rés BB, CC, DD. Lda. e EE, Lda., ora recorrentes, da decisão proferida nos autos à margem referenciados, em 26.06.2015, que indeferiu o pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, por entender o Tribunal que:

a) O art.º 6º, nº 7, do RCP, que prevê que nas causas de valor superior a 275.000€ o Juiz possa dispensar o seu pagamento, quando a situação o justificar, é de aplicação excepcional;

b) No caso em apreço o Tribunal, aquando da prolação da sentença e dos Acórdãos, terá entendido não aplicar tal excepção, porquanto não se pronunciou expressamente sobre tal dispensa e nada obriga o julgador a justificar a decisão que não toma, quando ela é excepcional.

2.ª As questões a apreciar e a decidir são as seguintes: a de saber se as Rés estão em tempo a que lhes seja reconhecido o direito a beneficiar da dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos autos principais, nos termos do disposto no n.º 7 do artigo 6.º do RCP e se o Tribunal a quo, ao ser interpelado sobre a aplicação de tal normativo, em sede de reclamação de conta final, tinha o ónus de se pronunciar sobre tal pedido e se, não o tendo feito, incorreu em omissão de pronúncia sobre questão sobre a qual se deveria pronunciar, sob pena de violação do princípio da garantia de acesso aos tribunais (art.º 2º do CPC).

3.ª Nos presentes autos o Tribunal não observou o disposto nos normativos dos nºs 9 do art.º 14º e nº2 do art.º 15º do RCP, nunca notificou as Rés para pagamento do remanescente da taxa de justiça devida pelo impulso processual, aquando da notificação das sentenças e acórdãos, o que consubstancia a omissão de acto prescrito por lei.

4.ª Apesar de a lei não fazer depender de requerimento das partes a intervenção do Tribunal a dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça, o Tribunal pode e deve exarar decisão a título oficioso na decisão final do processo, considerando-se que quando o juiz não procede à avaliação e à ponderação dos pressupostos previstos no n.º 7 do artigo 6.º do RCP, omite acto prescrito por lei; e não tendo sido tomada tal decisão por nenhuma das instâncias, tal não obsta a que a decisão seja tomada agora em sede de reclamação de conta, desde que se verifiquem os requisitos legais de que o legislador faz depender a aplicação do regime excepcional de dispensa de pagamento.

5.ª Posto isto, a decisão recorrida deveria ter-se pronunciado sobre o pedido formulado pelas reclamantes da conta, deveria ter analisado e ponderado se os requisitos de que depende a aplicação do regime excepcional previsto no nº 7 do artº 6º do RCP se verificam, ou não, em concreto, no caso em apreço, pelo que, ao ter-se recusado a apreciar a fundamentação do pedido de reclamação da conta, com o argumento de que as instâncias terão ponderado a situação, o que a decisão conclui apenas por mera intuição e não suportada em nenhuma prova documental, a decisão recorrida omitiu pronúncia sobre questão que foi suscitada pelas partes e sobre a qual se deveria ter pronunciado, violando o princípio da garantia de acesso aos tribunais (art.º 2º do CPC).

6.ª No caso sub judice, são imputados às recorrentes os montantes de € 22.974,00 (remanescente da taxa de justiça devida pela apresentação da contestação), de € 11.495,40 (remanescente da taxa de justiça devida pela apresentação de alegações para o Tribunal da Relação) e de € 9.047,40 (remanescente da taxa de justiça devida pela apresentação de alegações para o Supremo Tribunal de Justiça), que perfazem quase 20% do valor dos imóveis em causa na acção.

7.ª Tais montantes são manifestamente incomportáveis para a capacidade contributiva de um cidadão médio, categoria na qual se incluem as ora recorrentes, sendo excessivos e desproporcionados ao trabalho que foi desenvolvido e aos serviços prestados e, por assim ser, inconstitucionais por violação do princípio da proporcionalidade e do direito de acesso à justiça, tal como decidiu, em acórdão recente (421/2013), o Tribunal Constitucional.

8.ª De acordo com a ratio legis da norma prevista no n.º 7 do artigo 6.º do RCP e que emana dos fundamentos expostos pelo legislador no Preâmbulo do Regulamento das Custas Processuais, para apuramento do montante de taxa de justiça devida a final, não há que ter em conta apenas o valor atribuído à acção, mas também a complexidade da causa, porque se assim fosse, em determinados processos, chegar-se-ia ao apuramento de montantes quiçá exorbitantes, quiçá incompatíveis com o trabalho desenvolvido pelo tribunal e quiçá incomportáveis para quem não tem acesso ao apoio judiciário.

9.ª Os serviços prestados e a taxa de justiça cobrada aos cidadãos que recorrem aos tribunais têm que ser correspectivos entre si, não podendo o custo do serviço de justiça aumentar proporcionalmente ao valor da causa, nem ilimitadamente em função deste, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa e do direito de acesso ao direito e aos tribunais acolhido no artigo 20.º do mesmo diploma legal.

10.ª No caso em apreço encontram-se verificados todos os pressupostos previstos no n.º 7 do artigo 6.º do RCP que justificam a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça. Demonstrando-se.

A) O Autor instaurou a acção pedindo a título principal que fossem declarados nulos diversos negócios de compra e venda, alicerçando a sua pretensão na alegação de que essas vendas dissimulariam doações, por nunca ter recebido qualquer preço e por o preço declarado nas respectivas escrituras ser muito inferior ao valor dos bens alienados.

B) Da factualidade dada como provada não resultou nenhum facto susceptível de integrar os requisitos da simulação, mas sim que os imóveis foram efectivamente vendidos pelo preço declarado, ou seja, pelo preço total de € 266.632,42, valor que o tribunal também considerou como sendo o preço real das vendas efectuadas, vendas essas cuja validade e eficácia foram reconhecidas judicialmente.

C) Uma vez que obtiveram ganho de causa, as recorrentes apresentaram ao Autor, atempadamente, a respectiva nota discriminativa e justificativa de custas de parte, através da qual reclamaram o reembolso da quantia total por si despendida no montante de € 7.465,92 (sete mil, quatrocentos e sessenta e cinco euros e noventa e dois cêntimos), referente às quantias efectivamente pagas a título de taxa de justiça e a título de honorários.

D) Na referida nota de custas de parte não foi contabilizado e, consequentemente, reclamado o montante agora apurado de € 43.975,80 (quarenta e três mil, novecentos e setenta e cinco euros e oitenta cêntimos), o qual só foi apresentado a pagamento com a notificação da conta de custas nº 917100010462015, efectuada em 01 de Abril de 2015; porque o Acórdão do STJ transitou em julgado há mais de três anos, e porque não foi efectuada qualquer notificação nos termos do n.º 9 do artigo 14.º do RCP, não podem as recorrentes reclamar agora ao Autor o reembolso do montante de € 43.975,80 em sede de custas de parte, por extemporaneidade.

E) Relativamente ao pressuposto da complexidade da causa, deverá o mesmo ser apreciado levando-se em consideração os factores índice que o legislador consagrou no n.º 7 do artigo 530.º do Código de Processo Civil, e nos termos do qual se consideram de especial complexidade as acções e os procedimentos cautelares que contenham articulados ou alegações prolixas, que digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou que importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso ou que impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas − cf. alíneas a) a c); as questões de facto e de direito apreciadas e julgadas não exigiram o conhecimento de questões jurídicas de elevada especificidade/exigência técnica ou que importassem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; a acção em causa consubstancia uma típica acção de apreciação da validade e eficácia de negócios jurídicos de compra e venda de bens imóveis; a prova produzida, para além da testemunhal e documental, assentou numa perícia colegial de avaliação de imóveis, prova que o Tribunal considerou relevante, mas que é também ela uma prova de uso corrente nos nossos tribunais e que está ao alcance do julgador para a sua apreciação e valoração; o número de sessões de julgamento não ultrapassou a média neste tipo de acções (quatro sessões), e o tempo médio de duração das audiências não ultrapassou em nenhuma das situações o horário normal de funcionamento do tribunal.

F) No que respeita à conduta processual das partes, importa ter presente o dever de boa-fé processual previsto no artigo 8.º do Código de Processo Civil, de acordo com o qual as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação, de forma a obter-se, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio; as recorrentes adoptaram sempre um comportamento irrepreensível como litigantes, traduzido numa atitude cooperante com a justiça, nunca suscitando questões desnecessárias e nunca fazendo uso injustificado de quaisquer expedientes dilatórios, como se infere da consulta dos autos; a conduta das ora recorrentes em todo o decurso do processo, não mereceu qualquer censura, assistindo-lhes, por esse motivo, o direito a não serem tributados com o penoso pagamento da quantia que é manifestamente excessiva e desproporcional do montante de € 43.975,80.

11.ª O Tribunal recorrido violou expressamente as normas previstas nos n.º 1, 2 e 7 do artigo 6.º e no artigo 11.º do RCP ao não ter apreciado e deferido o pedido de reclamação de custas apresentado pelas Rés ora recorrentes.

12.ª E violou ainda os princípios constitucionais previstos nos artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa e do direito de acesso ao direito e aos tribunais acolhido no artigo 20.º do mesmo diploma legal, ao não deferir o pedido de aplicação da norma excepcional ao caso concreto e interpretada no sentido em que foi feita, porquanto os serviços prestados e a taxa de justiça cobrada aos cidadãos que recorrem aos tribunais têm que ser correspectivos entre si, não podendo o custo dos serviços de justiça aumentar proporcionalmente ao valor da causa, nem ilimitadamente em função desta.

13.ª Razão pela qual, fazendo-se uma correcta interpretação das normas legais invocadas, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em sua consequência, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que aprecie o pedido de reclamação de custas apresentado pelas recorrentes e, em sua consequência, dispense o pagamento do remanescente da taxa de justiça. Sem prescindir,

14.ª Sem Prescindir do acima invocado, por dever de patrocínio, e para o caso de não ser acolhido o entendimento jurídico que neste se defende, de não ser atempado o pedido formulado em sede de reclamação de conta quanto à aplicação do regime excepcional previsto no nº 7 do art.º 6º do RCP e também para o caso de o mesmo não vir a ser deferido, o que não se espera, mas se admite como hipótese de trabalho, então as recorrentes vêm arguir a inconstitucionalidade das normas do RCP aplicadas ao caso concreto.

15.ª Constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade o conjunto normativo resultante dos artºs 6º, nº 7, 25º e 30º do RCP quando interpretado no sentido de que (a) Pode ser exigido à parte que já suportou a taxa de justiça (devida no decurso do processo) o pagamento da taxa pela qual é responsável outra parte, cabendo-lhe depois exigir a esta a devolução da quantia correspondente nos termos aplicáveis às custas de parte, (b) Pode ser exigido da parte o remanescente da taxa de justiça apurada com base no valor (exorbitante) atribuído à acção pela parte que não obteve vencimento na pretensão, e não pelo valor (inferior) fixado judicialmente, e quando tal exigência de pagamento é feita após o decurso do prazo para a parte vencedora obter o reembolso a que tem direito da parte vencida.

16.ª O juízo de inconstitucionalidade que se imputa às normas aplicadas à conta final elaborada assenta no facto de ser exigido à parte que já suportou a taxa de justiça (devida no decurso do processo) o pagamento da taxa pela qual é responsável outra parte, cabendo-lhe depois exigir a esta a devolução da quantia correspondente nos termos aplicáveis às custas de parte.

17.ª É de elementar bom senso o entendimento de que as normas do RCP aplicadas na elaboração da conta final permitem um resultado injusto e até imoral, ao cobrarem-se valores, na conta final, às partes (2ª, 3ª e 4ªs rés) que não foram condenados em custas em qualquer fase processual.

18.ª A interpretação normativa de que nos ocupamos traduz-se na imposição, à parte que já pagou a totalidade da taxa de justiça que lhe competia pagar no decurso do processo, de um ónus de desembolsar parte do que cabe à parte contrária e vencida e de, posteriormente, ter de lançar mão das vias previstas para obter o reembolso.

19.ª Não existem argumentos lógicos para se aceitar que o legislador tenha criado uma norma, através da qual imponha o pagamento de uma taxa de justiça, no final de um processo, à parte que nele obteve total vencimento, como é o caso das 2ª, 3ª e 4ª rés. E também não se vislumbra a justeza e correcção da norma do art.º 6º, nº 7, 1ª parte, numa interpretação sistemática.

20.ª É, portanto, inconstitucional, por infracção dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, inconstitucionalidade que deve ser declarada na aplicação que, em concreto, no caso é feita do conjunto normativo resultante dos art.º 6º, nº 7, 25º e 30º do RCP.»


Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações dos recorrentes resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar do acerto do despacho recorrido, do ponto de vista da verificação da ocorrência de nulidade da decisão, por alegada omissão de pronúncia, com referência ao artº 615º, nº 1, al. d), 1ª parte, do NCPC, por esse despacho ter deixado de se pronunciar sobre a substância da reclamação da conta, enquanto nesta se formulava pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, quanto à parcela excedente a 275.000,00 €, ao abrigo do artº 6º, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), com fundamento no excesso e desproporção do valor das custas colocadas a cargo dos RR. reclamantes – e, subsidiariamente (i.e., caso se entenda inexistir a arguida nulidade), aferir da inconstitucionalidade das normas do RCP em que se fundou a elaboração da conta de custas e na interpretação que permitiu por a cargo dos RR. o respectivo montante de custas sem dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Cumpre apreciar e decidir.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO:

Estando assentes – tanto quanto resulta dos presentes autos de recurso em separado – os elementos descritos no relatório, cabe, com base neles, aferir do acerto da decisão recorrida.

Pela análise desses elementos, podemos percepcionar os seguintes dados: que, após o trânsito em julgado da decisão final do processo (na sequência de recursos interpostos em dois graus de jurisdição), foi elaborada conta de custas, em que foi imputada aos RR. responsabilidade pelo pagamento da quantia de 43.975,80 €, por não ter sido expressamente concedida, nas sucessivas decisões de fundo do processo, a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça; que os RR., perante a notificação dessa conta de custas, ao verificarem então qual o montante de custas que concretamente foi colocado a seu cargo, e por o considerarem excessivo e desproporcionado, vieram apresentar reclamação da conta, em que formularam pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça; que o tribunal de 1ª instância, perante essa reclamação da conta, decidiu indeferir a mesma, essencialmente com o argumento de que as anteriores decisões de fundo do processo, nos segmentos relativos a custas, já haviam excluído (implicitamente) a possibilidade de dispensa do pagamento do mencionado remanescente, sem que fosse exigível constar daquelas fundamentação expressa sobre tal matéria – e dessa decisão de indeferimento recorrem agora os RR..

Pelo contexto da decisão recorrida, conforme descrito, afigura-se-nos evidente que (mesmo sem o dizer expressamente) o tribunal a quo considerou extemporânea a formulação pelos RR., no âmbito de uma reclamação da conta, do pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, com base no artº 6º, nº 7, do RCP e fundamentado em violação de princípios de proporcionalidade e de acesso aos tribunais. Entendeu-se naquela decisão (ainda que de forma não claramente explicitada) que o regime excepcional previsto no artº 6º, nº 7, do RCP apenas poderia ser aplicado pelos prolatores das decisões de fundo da acção e que a omissão de referência expressa nessas decisões a esse regime excepcional deve ser interpretada como um juízo implícito de não-verificação das condições de aplicação de tal dispensa de pagamento do mencionado remanescente (e sem que esses julgadores tivessem um dever de fundamentação desse juízo implícito, já que só a aplicação positiva do regime do artº 6º, nº 7, do RCP, por excepcional, impunha um tal dever de fundamentação).

Ou seja: do ponto de vista formal, há, efectivamente, uma recusa de pronúncia do tribunal a quo sobre a substância da reclamação da conta (possibilidade de aplicação da dispensa do pagamento do remanescente, em sede do incidente de reclamação da conta), com fundamento em que a questão já fora implicitamente decidida em momento anterior (e daí a sua extemporaneidade). E, além disso (e mais uma vez de forma não plenamente assumida), parece entender o tribunal a quo que o único meio processual de obter aquela dispensa teria sido o de suscitar a respectiva questão perante os julgadores das decisões de fundo do processo (ou por via de recurso; ou por via de incidente de reforma dessas decisões quanto a custas, ao abrigo do artº 616º, nº 1, do NCPC, anteriormente previsto no artº 669º, nº 1, al. b), do pretérito CPC).

A dúvida que subsiste é a de saber se essa recusa de pronúncia do tribunal a quo era lícita. Ou seja: se a questão da apreciação da dispensa do pagamento do remanescente ficou definitivamente precludida com a prolação das decisões de fundo do processo; ou, dito de outro modo, se ainda é possível suscitar essa questão no âmbito da reclamação da conta (i.e., depois de conhecido o exacto montante de custas colocado a cargo da parte reclamante), por esse incidente – que seguramente já não permite discutir a definição de quem é responsável pelas custas – ainda permitir a discussão sobre a concreta dimensão quantitativa dessa responsabilidade (ou outras questões de índole semelhante), ao abrigo de uma leitura ampla da possibilidade de reclamação da conta consagrada no artº 31º do RCP.

Há que reconhecer que o tribunal que profere uma sentença de fundo tem o poder de, desde logo, aplicar o regime excepcional do artº 6º, nº 7, do RCP, mesmo oficiosamente, se estiverem verificados os pressupostos da dispensa do pagamento do remanescente – e isso quer porque a decisão quanto a custas deve fazer parte da sentença, conforme dispõe o artº 607º, nº 6, do NCPC, ainda que este só se refira à definição da responsabilidade por custas, quer porque a dispensa do remanescente só pode resultar de decisão judicial, podendo dizer-se que ainda constitui parte integrante da sentença no seu segmento relativo às custas. E, neste enquadramento, poderia pretender-se sustentar que apenas por via da reforma da sentença quanto a custas seria possível obter a dispensa do pagamento do remanescente, caso o tribunal que proferiu a sentença não tivesse considerado na sentença a aplicação do regime excepcional do artº 6º, nº 7, do RCP. Nesse sentido parece posicionar-se, prima facie, o Ac. RC de 29/4/2014, quando ali, a propósito da caracterização da mencionada dispensa, se afirma que «(…) trata-se de uma dispensa excepcional que, podendo ser oficiosamente concedida (à semelhança do que ocorre com o agravamento previsto no nº 7 do artº 7º), depende sempre de avaliação pelo juiz, pelo que haverá de ter lugar aquando da fixação das custas (o que o regime que decorre do nº 9 do artº 14º e nº 2 do artº 15º também inculca) ou, no caso de ser omitida, mediante requerimento de reforma dessa decisão, não parecendo por isso a reclamação da conta o meio e o momento processualmente azados para o efeito» (Proc. 2045/09.6T2AVR-B.C2, in www.dgsi.pt). Porém, logo em seguida, e abrindo a possibilidade de discussão da questão num outro momento processual, esse mesmo aresto declara o seguinte: «Todavia, se o juiz não procede a esta avaliação e se encontram reunidos os pressupostos respectivos, não deixa de ser omitido acto prescrito por lei, e se a aplicação das regras relativas a custas conduz a resultados em que é manifesta a desproporcionalidade entre a actividade jurisdicional desenvolvida e a taxa de justiça a cobrar, poderão estar mesmo em causa princípios constitucionais estruturantes da ordem jurídica – nomeadamente o direito de acesso aos tribunais e o princípio da proporcionalidade – a impor que o ajuste, que a lei previu se fizesse através daquela específica norma, se possa ainda fazer na sequência de reclamação da conta final, por ser afinal esta que revela o excesso, que na maior parte das vezes só então ficará patente para as partes do processo. Tal solução afigura-se possível de acolher, atendendo a que não implica qualquer alteração quanto à atribuição da responsabilidade pelo pagamento das custas e favorece ambas as partes (posto que o valor da causa, para efeitos de custas, sofre assim uma limitação). Ademais, dir-se-á que o artº 31º do RCP, ao preceituar que o juiz mandará reformar a conta se esta não estiver de harmonia com as disposições legais, aponta no sentido de poderem servir de fundamento à reclamação não apenas erros materiais, mas ainda outras questões, sem embargo de se deverem ter seguramente por excluídas as relativas à definição da responsabilidade pelas custas, que tiveram de ficar decididas em momento anterior».

Com efeito, a prática judiciária comum dos tribunais é a de se confinarem nas sentenças à definição da responsabilidade por custas, sem atenderem a aspectos específicos como a concreta dimensão quantitativa dessa responsabilidade, pelo que, logo por aí, se afigura excessivo o entendimento de que a omissão de referência na sentença à dispensa excepcional (e na falta de pedido de dispensa por iniciativa da parte no quadro da reforma da sentença) faz precludir a possibilidade da aplicação do regime do artº 6º, nº 7, do RCP. E, por outro lado, é também certo que só com a quantificação decorrente da conta de custas se torna possível perceber plenamente o alcance da obtenção (ou não) daquela dispensa: só nesse momento a parte dispõe de todos os elementos necessários a uma escolha conscienciosa entre requerer ou não requerer a dispensa do pagamento do remanescente, pelo que não será aceitável exigir à parte que o direito de requerer a dispensa tenha de ser exercido antes de a mesma saber o quantitativo das custas que serão colocadas a seu cargo.

Tendo em conta princípios como os da lealdade e da cooperação processuais, afigura-se de toda a razoabilidade que seja reconhecida à parte responsável por custas a possibilidade de suscitar, em sede de reclamação da conta, a discussão sobre a exacta quantificação da sua responsabilidade, já que só nessa conta se procede a tal quantificação. Essa será a interpretação mais coerente com aqueles princípios e a mesma conforma-se à literalidade abrangente do artº 31º do RCP, que contempla a possibilidade de «oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou dos interessados, o juiz mandará reformar a conta se esta não estiver de harmonia com as disposições legais».

Revertendo ao caso dos autos, e atentas as anteriores considerações, é de entender que poderiam os RR. formular, em sede de reclamação da conta, a pretensão de aplicação do regime de dispensa excepcional do artº 6º, nº 7, do RCP. E, consequentemente, não deveria o tribunal a quo ter deixado de apreciar essa pretensão, no quadro da reclamação deduzida pelos RR. (com o fundamento de que essa questão já havia sido apreciada, ainda que implicitamente, em momento anterior ou de que a mesma já não poderia ser apreciada nessa sede). Ao não apreciar tal matéria, incorreu efectivamente esse tribunal em omissão de pronúncia – pelo se considera procedente a arguição de nulidade da decisão recorrida.

Com isso fica prejudicada, em sede de recurso, a discussão sobre a ocorrência dos pressupostos de aplicação do regime do artº 6º, nº 7, do RCP (cuja apreciação incumbirá ao tribunal de 1ª instância fazer e sem a qual também não poderá haver pronúncia por tribunal de recurso – dada a exigência de os recursos, no nosso sistema processual, e como é entendimento pacífico, terem uma finalidade de reapreciação pelo tribunal superior de matéria ponderada na decisão recorrida). E o mesmo se diga quanto ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade suscitadas pelos recorrentes, que pressupunham a improcedência da arguida nulidade, que afinal se deu por verificada.

Impõe-se, assim, a anulação do despacho recorrido e a sua substituição por outra decisão que proceda à apreciação do requerimento de reclamação da conta (a fls. 121-131) e da pretensão nela ínsita de aplicação da dispensa excepcional de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no artº 6º, nº 7, do RCP, mediante a tramitação processualmente devida e nos termos que o tribunal de 1ª instância entender mais adequados.

Em suma: pelas razões aduzidas, a presente apelação merece provimento, devendo determinar-se a anulação da decisão recorrida e a sua substituição por outra decisão que conheça da substância da reclamação da conta (e que havia sido objecto de indeferimento no despacho recorrido).
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a presente apelação, anulando o despacho recorrido (a fls. 135-137) e determinando a sua substituição por outra decisão que conheça da reclamação da conta (a fls. 121-131) e da pretensão nela ínsita de aplicação da dispensa excepcional de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no artº 6º, nº 7, do RCP, nos termos acima descritos.

Sem custas, por o apelado a elas não ter dado causa (artº 527º, nos 1 e 2, a contrario, do NCPC).

Évora, 02/06/2016
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)