Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1575/18.3T8MMN-A.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
TÍTULO EXECUTIVO
OBRIGAÇÃO CAUSAL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Data do Acordão: 12/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
i) os documentos particulares em que o devedor reconheça uma dívida, podem ser dados à execução, devendo o exequente, se a causa da obrigação não constar do respetivo documento, invocar descritivamente tal obrigação no requerimento executivo, sob pena de, não o fazendo, tal requerimento padecer de falta de causa de pedir, o que o torna inepto.
ii) não alegando o exequente, no respetivo requerimento executivo, a causa da obrigação subjacente ao documento de reconhecimento de dívida, não pode vir a fazê-lo em momento posterior, sem o acordo do executado, uma vez que se trata de alteração da causa de pedir, até aí inexistente.
Decisão Texto Integral: Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. Sociedade …, Lda. (SAQCV), veio, por apenso à execução em que é exequente I…, Lda., (…) deduzir embargos de executado e oposição à penhora, invocando, além do mais, a falta de causa de pedir, a falsidade do título executivo e do conteúdo da declaração, e a existência de outras confissões de dívida com a mesma data e tentativa de enriquecimento ilícito por parte da exequente.

2. A exequente contestou, sustentando a improcedência dos embargos e o prosseguimento da acção executiva, alegando que o documento dado à execução, denominado de “confissão de dívida e acordo de pagamento” constitui título executivo.

3. Realizou-se a audiência prévia e foi proferido despacho saneador, onde se concluiu pela procedência dos embargos, decidindo-se:
a) Julgar procedente a excepção dilatória de nulidade de todo o processado por força da ineptidão do requerimento executivo;
b) Absolver “Sociedade …, Lda.” da instância executiva;
c) Determinar a extinção dos autos executivos.

4. Inconformada recorreu a exequente, pedindo a revogação da decisão e o prosseguimento dos autos executivos e dos embargos, com os seguintes fundamentos [segue transcrição das conclusões do recurso]:
1.ª O núcleo deste recurso prende-se com a apreciação da força e suficiência do documento dado à execução, enquanto título executivo a par da imperiosa improcedência da excepção de ineptidão do requerimento executivo.
2.ª O documento dos autos trata-se de uma “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento”, subscrito pelo representante da Executada em 17 de Janeiro de 2006.
3.ª Aí a Executada confessa-se devedora de uma obrigação pecuniária, com montante determinado e prazo de pagamento fixado, pelo que os requisitos da certeza, exigibilidade e liquidez estão presentes (artº 802º CPC, actual 713º NCPC).
4.ª De acordo com artº 46º, n.º 1 do CPC (CPC por contraposição ao NCPC), aplicável ao caso atenta a data de subscrição do documento, nenhuma dúvida pode subsistir que este constitui título executivo.
5.ª E é tal título, tendo presente a função dos títulos executivos, que determina o fim e os limites da acção executiva.
6.ª É o que sucede no caso dos autos, uma vez que o título contém os requisitos necessários para, por si só certificar a existência da obrigação e o direito correspondente.
7.ª Está, pois, verificada a suficiência do título executivo.
8.ª A exequibilidade da pretensão decorre da sua incorporação no título executivo.
9.ª A fonte da obrigação exequenda emerge do título em apreço nos autos.
10.ª Ainda assim, nunca poderia ser ignorado o comando que resulta do art° 458º CC.
11.ª Em documento particular, se o devedor ainda que por declaração unilateral, confessar e reconhecer uma dívida sem menção ao negócio causal, este presume-se até prova em contrário.
12.ª O citado artº 458 do CC prevê uma presunção legal a favor do credor, recaindo sobre o devedor o ónus de provar que aquela causa não existe.
13.ª Porém o acesso à acção executiva não impede, obviamente, o devedor de questionar o direito exequendo, podendo até, quando se tratam de títulos extrajudiciais como é o dos autos, deitar mão de qualquer meio de defesa admissível no processo declarativo (artº 846º CPC, actual artº 731º NCPC)
14.ª Aliás, e como bem resulta dos embargos de executado agora em apreço, o “devedor” teve oportunidade de apresentar uma extensa defesa em contraponto ao direito exequendo invocado pelo credor.
15.ª Aqui chegados, e não obstante a Embargante ter arguido a ineptidão do requerimento executivo com base na al. a) do n.º 2 do artº 186º NCPC, ficou bem demonstrado que aquela havia “interpretado convenientemente” o requerimento executivo, não podendo assim ser julgada, como erroneamente aconteceu na decisão ora recorrida, procedente a arguição da ineptidão, por força do disposto no n.º 3 do art° 186º NCPC.
16.ª O devedor/executado não pode ser desonerado do ónus de provar que o negócio causal não existiu, por contraposição à já supra alegada presunção legal (art° 458º CC).
17.ª A decisão recorrida libertou prematura e indevidamente o Executado/Embargante da obrigação de provar, no patamar de excelência de produção de prova - julgamento - a não existência do dito negócio causal.
18.ª Por último e por tudo quanto ficou dito não podia ser julgada procedente a excepção dilatória da nulidade de todo o processado, por ineptidão do requerimento executivo, não podendo, em consequência, ser determinada a extinção dos autos executivos.
19.ª Ao invés, devem os autos executivos prosseguir, bem como a oposição (embargos), afim de, em sede de julgamento, se apreciar a prova ou não dos factos invocados pela Embargante.
20.ª Ao assim não decidir, a decisão recorrida violou as supra referidas disposições legais, designadamente, os artºs, 46°, n.º 1, 46°, n.º 1, c) CPC, 458º, 350º, CC, 846º CPC (actual 731º NCPC), 186°, n.ºs 2, a) e 3 NCPC.

5. Contra-alegou a recorrida, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão essencial a decidir consiste em saber se o título executivo, consubstanciado no documento de “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento”, do qual não conste a menção da relação causal, contém os requisitos necessários para, por si só, certificar a existência da obrigação e o direito correspondente, ou se é necessária a alegação no requerimento executivo da relação fundamental, sob pena de ineptidão.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos, com relevância para apreciação da excepção:
1. Em 09.11.2018, “I…, Lda.” intentou execução sumária contra “Sociedade …, Lda.,” para pagamento da quantia de € 9.750,00, que corre termos neste juízo sob o n.º 1575/18.3T8MMN;
2. Deu à execução um documento escrito denominado “Confissão de Dívida e Acordo Pagamento” com o seguinte teor relevante para os autos: “Sociedade …, Lda. (…), aqui representada pelo seu gerente, o Exmo. Sr. J… (…), confessa-se devedora da quantia de € 9.750,00 (nove mil, setecentos e cinquenta euros) à sociedade comercial I…, Lda. (…), aqui representada pelo sócio gerente Sr. A… (…).
Mais declara que o pagamento da referida quantia será efectuado até ao primeiro dia útil do mês de Dezembro de 2006.
Por estar ciente do ora declarado e que exprime a vontade da sua representada vai assim devidamente assinada a presente confissão.
Borba, 17 de Janeiro de 2006”
(Assinatura com o nome J…)
3. No formulário electrónico, da exposição dos factos que fundamentam a pretensão, consta o seguinte com relevo para os autos:
“1.º Em 17 de Janeiro de 2006, o exequente subscreveu com o executado uma “confissão de dívida”, no valor de € 9.750,00.
2.º Sucede que, até à presente data, o executado nenhuma quantia liquidou.
3.º O documento em questão – confissão de dívida – é um titulo executivo, pois foi celebrado entre as partes, antes da entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2013
4.º (…)
5.º Pelo exposto, é devida a quantia de €9.750,00 ao Exequente, pois que, apesar de interpelado, o executado nada liquidou.”.
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B) – O Direito
1. Como resulta do ponto 2 dos factos provados o exequente deu à execução o documento intitulado de “Confissão de Dívida e Acordo Pagamento”.
Na decisão recorrida entendeu-se que, não constando do título dado à execução a indicação da relação causal, tinha o exequente o ónus de alegar esta relação no requerimento executivo, sob pena de ineptidão, o que se declarou.
Para tanto, aduziu-se a seguinte fundamentação:
«Resulta da leitura do artigo 552º, n.º1, al. d) do Código de Processo Civil que, como antecedente lógico da pretensão formulada, o autor terá de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção.
Define o artigo 581º, n.º 4, do mesmo diploma, que a causa de pedir é o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida. Ou seja, é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido. (…)
No domínio particular da acção executiva, tendo a execução por base um título executivo que deve acompanhar o requerimento executivo, a indicação da causa de pedir só tem de ter lugar quando não conste do título.
Como refere Lopes do Rego (in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. II, 2ª ed. 2004, Almedina, pág. 25.), em anotação ao artigo 810.º, n.º1, al. c), do C.P.C., “a especificidade da acção executiva, assente necessariamente no título executivo, leva, em regra, a que não caiba ao exequente o ónus de “expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção”, ressurgindo tal ónus de alegação dos factos que servem de “causa petendi”, nos casos em que eles não constem integralmente do título executivo, cabendo, então ao exequente a exposição sucinta da matéria de facto que fundamenta a pretensão executiva”.
Segundo Miguel Teixeira de Sousa (in “A Acção Executiva Singular”, LEX, Lisboa 1998, pág. 68 e 69), relativamente aos fundamentos da obrigação exequenda e à suficiência do título executivo, haverá que distinguir entre as obrigações abstractas e as causais. As primeiras dispensam a alegação de qualquer causa de aquisição da prestação, pelo que, sempre que o título executivo respeite a uma prestação abstracta, o título executivo é suficiente para fundamentar a execução, mesmo que dele não conste qualquer causa debendi. Se por ex., o direito de crédito se encontra titulado por uma letra ou uma livrança, o exequente só tem o ónus de apresentar esse título de crédito, porque ele incorpora a relação cambiária que constituiu a causa de pedir do pedido executivo. Se a obrigação exequenda for causal ela exige a alegação da causa debendi, pelo que se ela não constar ou não resultar do título executivo, este deverá ser completado com essa alegação. (…)
A falta ou ininteligibilidade de causa de pedir traduz-se numa falta de objecto do processo, constituindo nulidade de todo ele. (…)
Entende a executada/embargante que o requerimento executivo é inepto por não constar do mesmo a causa de pedir, designadamente, a natureza, a origem ou causa da dívida de que a embargante/executada alegadamente se confessa devedora no documento dado à execução. A primeira questão que se coloca é a de saber se, estando em causa - enquanto título executivo – uma confissão de dívida, cabe à exequente alegar a causa de pedir no requerimento executivo ou se o documento já integra em si próprio a causa da obrigação.
Desde já se admite que é entendimento deste Tribunal que o documento particular que corresponde a uma confissão de dívida não integra, em si próprio, a causa da obrigação, sendo essencial ao exequente alegar os factos inerentes a tal realidade.
Não se olvida que quando o exequente tem a seu favor um título que incorpora o direito de crédito, existe a presunção de que é portador do crédito que se arroga, daí que o título executivo permita o recurso à acção executiva, para satisfação ou cobrança coerciva do seu crédito.
Para tanto, exige-se que o título executivo respeite determinados requisitos que certifiquem a existência da obrigação e do direito correspondente. Nas palavras de Alberto dos Reis (in processo de Execução, vol. I, 2.ª edição, pág. 174) é o apelidado princípio da suficiência do título executivo (cfr. ac. STJ de 27.04.2017, in “www.dgsi.pt”).
No entanto, na sequência do já explanado neste aresto, existem documentos que reconhecem a obrigação exequenda, mas de forma menos expressa, daí que necessitem de ser conjugados com elementos factivos complementares, que serão adquiridos processualmente, mediante a respectiva alegação feita pelo exequente, no requerimento executivo.
Nessas circunstâncias (isto é, quando os elementos essenciais da obrigação exequenda não resultem do próprio documento oferecido como título executivo), o requerimento executivo deve conter, além do mais, uma exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido.
Ora, volvendo ao caso em apreço, verifica-se que o documento dado à execução é um documento particular onde alegadamente a executada declara que reconhece uma dívida perante a exequente.
Dúvidas inexistem de que tal documento particular é título executivo, à luz do disposto no artigo 46.º, n.º1, al. c), do C.P.C. de 1961, por ter sido emitido em data anterior à entrada em vigor do NCPC (para mais aprofundamentos quanto a esta matéria que não está em causa, vide ac.TC n.º 408/2015, de 14.10, publicado em DR n.º 201/2015, serie I, de 14.10.2015)
Mas tal documento, por si só, certifica unicamente a existência da obrigação, mostrando-se omisso quanto à causa da obrigação ali declarada. Sendo assim, para sustentar uma execução, necessita de ser conjugado com elementos factivos complementares da relação fundamental, que serão adquiridos processualmente, mediante a respectiva alegação feita pelo exequente, no requerimento executivo.
Estando em causa um reconhecimento de dívida, importa estudar o teor do artigo 458.º, do C.C..
Reza este normativo que:
“Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”.
A interpretação de tal preceito legal encontra-se devidamente explanada no ac. RP de 14.05.2013 (disponível in www.dgsi.pt), com a qual se concorda na íntegra, e que se passa a transcrever:
“O reconhecimento de dívida e promessa de pagamento a que se refere o art. 485º do CC, configura um título em que alguém, unilateralmente, se confessa devedor de uma prestação, sem indicação da respectiva causa, isto é, do negócio que está na origem do crédito, ou ainda, da obrigação anteriormente constituída.
Explicitando o teor de tal norma, afirma Fernando Pessoa Jorge: “Significa este preceito que o credor que disponha de um documento escrito do devedor em que este unilateralmente declara prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, não precisa de provar a causa da obrigação, cuja validade e existência se presume. Não se está, portanto, em face de um negócio abstracto, mas sim de um acto causal, embora com presunção de causa, presunção que, sendo ilidível, determina a inversão do ónus da prova: não será o credor quem terá de demonstrar a existência e a licitude da causa, mas será sim ao devedor que caberá provar que a prestação que prometeu ou reconheceu não tem causa ou esta é ilícita[8]”. (…)
Antunes Varela adverte ainda que o art. 458º não foge à regra de que o negócio unilateral não é fonte de obrigações: nenhum dos actos a que nele se alude (promessa de uma prestação ou reconhecimento de uma dívida), constituiu, com efeito, fonte autónoma de uma obrigação. Criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extra-negocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação. Por isso se inverte o ónus da prova, mediante uma verdadeira relevatio ab onere probandi. Se o declarante ou os seus sucessores alegarem e provarem que semelhante relação não existe (porque o negócio que a promessa de prestação ou o reconhecimento de dívida pressupõem não chegou a constituir-se, porque é nulo ou foi anulado, porque caducou ou os seus efeitos se extinguiram entretanto, etc.), a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida[10].
Ou seja, haverá que atentar-se em que, tratando-se de declarações negociais causais, a sua causa não reside na promessa de cumprimento ou no reconhecimento da dívida – a fonte da obrigação continua a ser a relação fundamental que subjaz à promessa de cumprimento ou de reconhecimento da dívida.
Como salienta Pedro Pais Vasconcelos, as promessas unilaterais de uma prestação ou do cumprimento e os respectivos reconhecimentos unilaterais de dívida, feitos sem indicação da respectiva causa não são originariamente constituintes das obrigações a que se referem, tendo subjacentes uma relação fundamental ou relação subjacente que lhe constituiu a respectiva causa civilis obligandi:“A um nível mais profundo, pode concluir-se do art. 485º que não são a promessa de cumprimento ou o reconhecimento da dívida, unilaterais e nus, que constituem a fonte ou o fundamento jurídico, isto é, a causa das obrigações a que se referem. As obrigações cujo cumprimento é unilateralmente prometido e as dívidas que são unilateralmente reconhecidas ad nutum foram geradas ou constituídas por uma outra causa, que constituiu o seu fundamento jurídico originário[11]”.
Para explicitar o regime contido no art. 458º CC, José Lebre de Freitas socorre-se da figura da abstracção processual[12], traduzida numa inversão do ónus da prova, baseada no conceito de causa eficiente, isto é, de causa de efeitos jurídicos, a qual coincide com o próprio facto que a dívida resulta: “Libertar o credor do ónus de provar a relação fundamental significa libertá-lo da prova, que de outro modo lhe competia (C.C., art. 342º-1), do facto constitutivo do seu direito. A disposição do art. 458º do C.C. nada tem, pois, a ver com a figura substantiva do negócio abstracto, nem o conceito de causa nele utilizado se confunde com o de causa do negócio jurídico (…).
Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa o ónus da alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir (art. 467º-1-c), o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência da forma do art. 458º-2 do C.C., que pressupõe o conhecimento da relação fundamental. Este facto ficará provado por apresentação do documento, isto é, por ilação tirada, nos termos do art. 458º-1 do CC, da declaração representada nesse documento conjugada com a alegação do credor, a qual, ao mesmo tempo que satisfaz uma exigência processual com mera relevância substantiva. Não se verifica, pois, o perigo de a prova se fazer relativamente a qualquer possível causa constitutiva do direito, pois se faz apenas relativamente àquela que for invocada pelo credor, e configurando-se assim uma prova por presunção[13]”.
Em conformidade com a referida norma do Código Civil, se deve entender a al. c), do art. 46º do CPC, ao reconhecer como título executivo os documentos particulares assinados pelo devedor que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético.
A situação aí prevista em último, de título executivo que incorpore o reconhecimento de uma dívida pré-existente, reporta-se precisamente à promessa de cumprimento ou de reconhecimento de dívida prevista no art. 458º do CC.”
Como sustenta Fernando Amâncio Ferreira (in “Curso de Processo de Execução”, 11ª ed., Almedina 2009, pág. 160.) por não se consagrar aqui o princípio do negócio abstracto, mas apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental, não fica o credor desonerado do ónus da alegação da relação fundamental, a servir de causa de pedir, aquando da apresentação do requerimento executivo sob pena de recusa do recebimento deste (art. 811º, nº1, al. a), com referência ao art. 810º, nº1, al. e). Mas não lhe incumbe provar o facto constitutivo da obrigação. É ao devedor que compete provar, em oposição à execução, que a relação fundamental não existe ou é nula.
No mesmo sentido, veja-se também o recente ac. RC de 20.02.2019 (disponível in www.dgsi.pt)
Em síntese, ensina o ac. RE de 11.05.2017 (disponível in “www.dgsi.pt”) que “Os documentos particulares em que o devedor reconheça uma dívida, podem ser dados à execução, devendo o exequente, se a causa da obrigação não constar do respectivo documento, invocar descritivamente tal obrigação no requerimento executivo, sob pena de, não o fazendo, tal requerimento padecer de falta de causa de pedir, o que o torna inepto (art.ºs 186º, n.º2, a) e 724º, n.º1, e), ambos do NCPC e art.º 458º, n.º1 do Cód. Civ.)
Não alegando o exequente, no respectivo requerimento executivo, a causa da obrigação subjacente ao documento de reconhecimento de dívida, não pode vir a fazê-lo em momento posterior, sem o acordo do executado, uma vez que se trata de alteração da causa de pedir, até aí inexistente (art.ºs 186º, n.º2, a) e 265º, n.º1, ambos do NCPC)
A ineptidão da Petição Inicial, para além da situação prevista no n.º3 do art.º 186º do NCPC, é insanável, por inexistência do objecto do processo, materializado na respectiva causa de pedir, aqui ausente, o que conduz à absolvição dos executados da instância executiva (art.ºs 196º, n.ºs 1 e 2 a), 278º, n.º1, b), 577º, b), 578º, todos do NCPC)”.
Discutida, ainda que sumariamente, a disciplina jurídica aplicada ao caso em apreço, e revertendo ao mesmo, constata-se que a exequente instaurou a presente execução sustentada no documento intitulado de “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento”, limitando-se a alegar que em 17.01.2006, o exequente subscreveu com o executado uma confissão de dívida no valor de €9 750,00 e que até à presente data o executado não liquidou qualquer quantia, apesar de interpelado para tanto.
A causa da dívida, embora não seja um conceito unívoco, significa, para efeitos do disposto no artigo 458º, n.º 1, do Código Civil, a fonte ou o facto constitutivo dessa dívida (vide António Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, Volume 1º, 1994, páginas 565).
Aplicando ao caso esta noção, é de afirmar que a relação fundamental (causa da dívida) é a relação de onde procede a dívida da sociedade executada, à ora exequente (neste sentido, vide ac.STJ de 27.04.2017, disponível in “www.dgsi.pt”); relação que não foi alegada no requerimento inicial que deu início aos autos de execução a que estes estão apensos.
Verifica-se, deste modo, que o requerimento executivo é totalmente omisso quanto à relação fundamental que esteve na origem da declaração que a executada fez constar do documento dado à execução.
Sendo o requerimento executivo omisso quanto à causa de pedir, encontra-se o mesmo ferido de ineptidão nos termos do artigo 186.º, do C.P.C., excepção que é de conhecimento oficioso e que determina a absolvição da executada da instância.
Resta anotar que, nesta fase, a exequente já não poderia efectuar tal alegação, na pendência do processo, por tal implicar uma alteração da causa de pedir e esta exigir o acordo das partes, o que não se verifica nos autos, bastando, para tanto, olhar ao teor da P.I. dos presentes embargos (cfr. artigo 264º CPC),
Por conseguinte, deverá proceder a excepção dilatória de nulidade de todo o processado por força da ineptidão do requerimento executivo e, em consequência, absolver-se a executada da instância executiva, determinando a extinção da execução.»

2. A recorrente discorda deste entendimento, argumentando, em síntese, com a suficiência do título e que, em face do disposto no artigo 458º do Código Civil, a declaração unilateral de confissão e reconhecimento de uma dívida sem menção ao negócio causal constitui presunção do negócio causal, até prova em contrário.

3. Porém, não assiste razão à recorrente, precisamente pelas razões aduzidas na decisão recorrida, com apoio na doutrina e jurisprudência citadas e que aqui subscrevemos.
De facto, no caso, estamos perante uma acção executiva para pagamento de quantia certa, baseada em documento escrito de “reconhecimento de dívida”, sem indicação de causa, subscrito pela executada.
Tal documento, à luz do que se dispunha na alínea c) do n.º 1 do artigo 46º do Código de Processo Civil de 1961, aqui aplicável em função da data de emissão do documento (cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, de 14 de Outubro), constitui título executivo.
Porém, este documento, por si só, certifica apenas a existência da obrigação de pagamento, sendo omisso quanto à causa da obrigação declarada, pelo que, para sustentar a execução, necessita de ser conjugado com elementos fácticos complementares da relação fundamental, que serão adquiridos processualmente, mediante a respectiva alegação feita pelo exequente, no requerimento executivo (cf. artigo 724º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil).
E o disposto no n.º 1 do artigo 458º do Código Civil, onde se estipula que «[s]e alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário», não isenta o exequente da alegação da obrigação causal.
Deste preceito resulta uma presunção da existência de uma relação obrigacional ou de outra natureza que está na base da promessa ou do reconhecimento a que se reporta, mas não se consagra o princípio do negócio abstracto. O que se estabelece é apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.
Este entendimento corresponde ao seguido no acórdão da Relação do Porto, de 14/05/2013 (proc. n.º 180/08.7TBAMT-A.P1), disponível, como os demais citados, em www.dgsi.pt, citado na decisão recorrida, e que acima transcrevemos, onde se conclui que:
«I - A declaração de reconhecimento de dívida ou de promessa de cumprimento previstos no art. 458º do CC, não configura um negócio abstracto, mas um negócio causal.
II - A causa do negócio não é constituída pelo reconhecimento da dívida ou promessa de cumprimento, mas pela relação fundamental que lhe subjaz.
III - O regime contido no art. 458º do CC, apenas dispensa o credor da prova da existência da relação fundamental, que se presume até prova em contrário pelo executado/oponente.
IV - O credor de uma obrigação causal, cuja causa não conste do título exequendo, deverá alegá-la no requerimento executivo, sob pena de ineptidão inicial, nos termos do art. 193º, nº1 do CPC.
V - Apenas tal alegação permitirá ao executado a prova de que tal relação fundamental não existe, sob pena de ter de ser defender contra uma infinitude de causas possíveis. (…)»
Neste sentido, pronunciaram-se ainda, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/09/2011 (proc. n.º 192/10.0TBCNT-A.C1.S1), onde se concluiu que: «I - Quando a obrigação é abstracta, o credor pode exigir a prestação ao devedor, sem alegação da causa justificativa do recebimento, mas quando a obrigação dada à execução é causal, só pode ser requerida com a invocação da relação causal subjacente ou fundamental. II - Só assim se pode demonstrar que se constituiu ou reconheceu uma obrigação pecuniária individualizada, sob pena de ineptidão do requerimento executivo por falta de causa de pedir (art. 193.º, n.º 2, al. a), do CPC). III - O credor, por força do art. 458.º do CC, apenas está dispensado de provar a relação subjacente que se presume, mas não de alegar.», e os acórdãos da Relação de Évora, de 11/05/2017 (proc. n.º 1047/14.5TBABF-A.E1), e de 23/04/2020 (proc. n.º 1576/18.1T8MMN-A.E1).

4. Em suma, acolhendo-se a tese expendida nos citados arestos, que é maioritária na doutrina e jurisprudência, conclui-se que os documentos particulares em que o devedor reconheça uma dívida, podem ser dados à execução, devendo o exequente, se a causa da obrigação não constar do respectivo documento, invocar descritivamente tal obrigação no requerimento executivo, sob pena de, não o fazendo, tal requerimento padecer de falta de causa de pedir, o que o torna inepto (cf. artigos 186º, n.º 2, alínea a), e 724º, n.º1, alínea e), ambos do Código de Processo Civil, e artigo 458º, n.º 1, do Código Civil).
Assim, e não alegando o exequente, no respectivo requerimento executivo, a causa da obrigação subjacente ao documento de reconhecimento de dívida, não pode vir a fazê-lo em momento posterior, sem o acordo do executado, uma vez que se trata de alteração da causa de pedir, até aí inexistente (cf. artigo186º, n.º 2, alínea a) e 265º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.
E, não se argumente que a ineptidão, no caso, ficou sanada nos termos do n.º 3 do artigo 186º do Código de Processo Civil, porquanto, embora a executada tenha embargado a execução, e arguido a ineptidão, não se pode concluir que tenha “interpretado conveniente a petição inicial”, no caso o requerimento executivo, pois a sua defesa não consistiu na impugnação da relação causal ao título, a qual não consta do mesmo, nem foi alegada no requerimento executivo, mas sim na invocação da inexistência de qualquer possível causa constitutiva do direito do credor, como bem salienta executada nas contra-alegações. Ou seja, dos embargos não resulta que a embargante tenha identificado a relação fundamental subjacente ao título, de modo a poder afastar a presunção da sua existência, nos termos do n.º 1 do artigo 458º do Código Civil.

5. Deste modo, não tendo a exequente alegado no requerimento executivo a causa da obrigação titulada pela declaração de reconhecimento da dívida tal omissão implica a absolvição da executada da instância executiva, por ineptidão do requerimento executivo, e a procedência dos embargos (cf. em face do disposto nos artigos 186º, n.º 2, alínea a), 278º, n.º 1, alínea b), 577º, alínea b), e 724º, n.º 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil, e artigo 458º, n.º 1, do Código Civil, e art.º 458º, n.º1 do Código Civil).
Assim, improcede a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante.
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Évora, 3 de Dezembro de 2020
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança
(documento com assinatura electrónica)