Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | GOMES DE SOUSA | ||
Descritores: | CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL PENA DE PRISÃO REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 03/28/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | I. A execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes (artigo 42.º/1 CP). II. A pena concreta deve fixar-se dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração - entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos -, podendo e devendo atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo estes em último termo que a determinarão. III. A pena concreta deverá, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade. Só deste modo e por esta via se alcançará a eficácia ótima de proteção dos bens jurídicos vulnerados. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório No Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Local Criminal ..., J... - correu termos o processo abreviado supra numerado, no qual é arguido: AA, solteiro, nascido a .../.../1969, natural de ..., filho de BB e de CC, jardineiro, residente na Quinta ..., ... – ..., imputando-lhe factos passíveis de integrar a prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro. * Por sentença de 03-11-2022, na mesma data depositada, decidiu o tribunal recorrido: a) CONDENAR o arguido AA, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 10 (dez) meses de prisão. b) CONDENAR o arguido no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC, reduzida a metade, nos termos dos arts. 344.º, n.º 2, al. c), 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e no art. 8.º, n.º 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais. * Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões: 1. O Arguido foi condenado, como autor material de um crime de condução sem habilitação legal, previso e punido pelo artigo 3.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de janeiro, na pena de 10 (dez) meses de prisão; * A Digna magistrada do Ministério Público no tribunal recorrido respondeu ao recurso defendendo o decidido, sem conclusões. * O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal. * B - Fundamentação B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos: 1. Em 9 de Maio de 2022, pelas 19H40, o arguido conduzia o ciclomotor de matrícula ..-OL-.., na Estrada Nacional ..., ao ..., em ..., área desta comarca, sem que possuísse qualquer título válido para o efeito. Dos antecedentes criminais: 13. O arguido foi condenado:13.1. No processo n.º ...1, que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão de 14.01.1992, pela prática a 19.02.1990 de um crime de receptação, na pena de prisão de 2 anos, suspensa na sua execução. 13.2. No processo n.º ...2, que correu termos no ... Juízo do Tribunal do Círculo ..., por decisão de 7.4.1992, pela prática a 2.9.1991 de um crime de furto qualificado, na pena de prisão de 18 meses, suspensa pelo período de 3 anos. 13.3. No processo n.º ...2, que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão de 5.6.1992, pela prática a 5.06.1992 de um crime de condução sem carta, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 200$00. 13.4. No processo n.º ...2, que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão de 19.03.1993, pela prática a 27.8.1992 de um crime de furto qualificado, na pena de prisão de 3 anos. 13.5. No processo n.º 159/93...., que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão transitada em julgado a 16.06.1993, pela prática a 15.5.1998 de um crime de furto de uso de veículo, na pena de prisão de 8 meses. 13.6. No processo n.º ...3, que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão de 14.01.1994, pela prática a 3.7.1992 de um crime de furto qualificado, na pena de prisão de 16 meses. 13.7. No processo n.º ...3, que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão de 21.º6.1994, pela prática a 8.6.1992 de um crime de furto qualificado e de um crime de introdução em lugar vedado ao público, na pena única de prisão de 2 anos. 13.8. No processo n.º 265/98...., que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão de 12.03.1999, pela prática a 10.5.1998 de um crime de furto qualificado, na pena de prisão de 2 anos e 6 meses de prisão. 13.9. No processo n.º 288/98...., que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão de 12.05.1999, pela prática a 20.5.1998 de um crime de detenção e uso de arma proibida, na pena de prisão de 7 meses de prisão. 13.10. No processo n.º 345/98...., que correu termos no 4. º Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão de 26.02.1999, pela prática a 11.7.1998 de um crime de furto qualificado e um crime de consumo de estupefacientes, na pena única de prisão de 5 anos e 3 meses de prisão. 13.11. No processo n.º 294/98...., que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão transitada em julgado a 12.04.2000, pela prática a 23.05.1998 de um crime de furto qualificado, na pena de prisão de 1 ano suspensa pelo período de 3 anos. 13.12. No processo n.º 298/98...., que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão transitada em julgado a 02.05.2001, pela prática a 23.05.1998 de um crime de furto qualificado, na pena de prisão de 2 anos e 9 meses de prisão. 13.13. No processo n.º 145/02...., que correu termos do Tribunal Judicial ..., por decisão transitada em julgado a 21.11.2003, pela prática a 23.08.2002 de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 210 dias de multa, à taxa diária de €2,50. 13.14. No processo n.º 1071/03...., que correu termos no ... Juízo Criminal do Tribunal Judicial ..., por decisão transitada em julgado a 04.06.2004, pela prática a 19.01.2004 de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 210 dias de multa, à taxa diária de €2,50. 13.15. No processo n.º 1066/03...., que correu termos no ... Juízo Criminal do Tribunal Judicial ..., por decisão transitada em julgado a 12.07.2005 de três crimes de furto qualificado, praticados a 18.12.2003, a 20.12.2003 e 22.12.2003, três crimes de condução de veículo sem habilitação legal praticados a 26.12.2003 e 26.01.2004, dois crimes de desobediência qualificada, praticados a 26.12.2003, e de um crime de condução perigosa de veículo automóvel praticado a 26.12.2003, na pena de 10 anos de prisão. 13.16. No processo n.º 1094/03...., que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão transitada em julgado a 15.09.2005, pela prática a 16.12.2003 de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €3,00. 13.17. No processo n.º 108/04...., que correu termos no ... Juízo Criminal do Tribunal Judicial ..., por decisão transitada em julgado a 29.09.2005, pela prática a 25.01.2004 de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de desobediência, na pena única de 168 dias de multa, à taxa diária de €2,00. 13.18. No processo n.º 49/15...., que correu termos no Juiz ... da Instância Local Criminal ..., por decisão transitada em julgado a 03.07.2015, pela prática a 23.04.2015 de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 10 meses de prisão, suspensa pelo período de 1 ano. 13.19. No processo n.º 673/15...., que correu termos no Juiz ... da Instância Local Criminal ..., por decisão transitada em julgado a 20.04.2016, pela prática a 11.09.2015 de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 11 meses de prisão. 13.20. No processo n.º 26/16...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., por decisão transitada em julgado a 8.04.2016, pela prática a 16.12.2016 de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 12 meses de prisão, substituída por 360 horas de trabalho a favor da comunidade. 13.21. No processo n.º 68/16...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., por decisão transitada em julgado a 01.06.2017, pela prática a 07.05.2016 de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão. 13.22. No processo n.º 48/16...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., por decisão transitada em julgado a 7.11.2016, pela prática a 28.03.2016 de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 13 meses de prisão, tendo sido posteriormente efectuado neste processo o cúmulo entre esta pena e as penas aplicadas nos processos 26/16...., 673/15...., fixando-se a pena única em 21 meses de prisão. 13.23. No processo n.º 2916/16...., que correu termos no Juízo Local Criminal ... – J..., por decisão transitada em julgado a 25.10.2017, pela prática a 24.10.2016 de um crime de falsidade de testemunho, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 5,00. * B.1.2 – Factos não provados: inexistem. * B.1.3 – E apresentou a seguinte motivação de facto: «A convicção do Tribunal quanto à factualidade dada como provada assentou na confissão integral, livre e sem reservas da mesma pelo arguido. ***** Cumpre conhecer B.2 – Não se verificam quaisquer circunstâncias de conhecimento oficioso. Mas impõe-se uma correcção factual na medida em que o facto provado sob 13.5 menciona – e por referência ao processo nº 159/93...., que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ... – à prática do ilícito a 15.5.1998, quando se pretenderia dizer 15.05.1988, conforme consta do CRC do arguido. Haverá, portanto, que alterar tal facto no sentido indicado. É, assim, questão suscitada pelo recorrente, a aplicação da pena de prisão efectiva imposta pela sentença recorrida ao invés do cumprimento da pena de permanência na habitação com vigilância electrónica, a pretendida pelo arguido. O arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.º 1 do DL n.º 2/98, de 3-01, na pena de 10 meses de prisão, efectiva, vindo interpor recurso pretendendo, exclusivamente, a conversão da pena de prisão efectiva em regime de Permanência na Habitação, com meios de controlo técnico à distância. Nos termos do disposto no artigo 42.º, nº 1 do CP, “A execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes». A questão colocada no recurso centra-se, pois, em saber se no caso concreto a execução de tal pena se justifica no momento presente. Isto porquanto não está em causa nem a opção pela pena de prisão – mais que justificada pelo comportamento anterior do arguido – nem o seu quantum concreto. As considerações doutrinais e jurisprudenciais feitas na sentença recorrida sobre o regime de permanência na habitação são certeiras e abstractamente doutas, mas o que importa considerar é o caso concreto. Bem afirma Figueiredo Dias que «§ 304 A medida da necessidade de tutela de bens iurídicos não será pois um acto de valoração in abstracto (essa foi levada a cabo pelo legislador ao determinar a moldura penal aplicável: (…) mas um acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo aplicador à luz das circunstâncias do caso. Factores, por isso, da mais diversa natureza e procedência - e, na verdade não só factores do «ambiente», mas também factores directamente atinentes ao facto e ao agente concretos - podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos e da necessidade da pena» - in «Direito Penal Português – “As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, 1993, pag. 228. E continua o mesmo Mestre: «§ 309 Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos -, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socíalízação, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos” – aut. e ob. cit., pags. 230-231. Descendamos ao caso em apreciação! Trata-se de arguido de 53 anos de idade – realmente com um raro e assinalável percurso anterior, já suficientemente punido em sede de medida concreta da pena, muito próxima do seu limite máximo – mas o próprio tribunal reconhece como provado que: 4. O arguido confessou integralmente os factos. Por outro lado o Relatório para Determinação da Sanção menciona: AA dispõe de enquadramento laboral, estabilidade económica e apoio familiar o que a par da manutenção do quadro de abstinência são passíveis de se constituírem como importantes fatores facilitadores do seu atual processo de reinserção. Este cenário actual e concreto – actualizado à data relevante, isto é, a da decisão condenatória - reduz sobremaneira a uma diminuta dimensão o anterior comportamento do arguido. Sem esquecer o ilícito praticado nas suas reais características, a condução, ora criminalizada, de uma simples motorizada de 50 cc para ir para o trabalho. O que revela um paradoxo social muito típico deste país, a criminalização sucessiva de condutas sociais anteriormente atípicas ou de simples obtenção para o cidadão comum – o título “dado” pelas Câmaras Municipais, como o arguido revela em interrogatório e de que era possuidor – num processo que se burocratiza e se torna mais oneroso, colocando-o na situação – como ocorre no caso em apreço – de ter acrescidas dificuldades que se reflectem no simples objectivo de pretender ir trabalhar, incapaz que está de se locomover. Ora, fazendo apelo ao mesmo doutrinador, as circunstâncias da prática do ilícito também relevam. «§ 336 Toma-se aqui a «execução do facto» num sentido global e complexivo, capaz de abranger «o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente», «a intensidade do dolo ou da negligência» e ainda «os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins ou motivos que o determinaram» (art. 72.°-2, a), b) e c). A multidão dos factores aqui implicados desdobra-se, assim, por circunstâncias que pertencem ou ao tipo-deilícito ou ao tipo-de-culpa e que relevam para a medida da pena quer pela via da culpa, quer pela da prevenção.» - aut. e op. Cit., pag. 245. É claro que todas estas são considerações sobre a medida da pena, mas verificados os requisitos para a Permanência na Habitação, designadamente o consentimento de todos os interessados e a verificação do requisito previsto na al. a) do art. 43º do CP [a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos], as necessidades de prevenção especial - eventualmente resultantes do comportamento anterior do arguido – esbarram nas reduzidas circunstâncias da prática do actual ilícito, baixa ilicitude e culpa reduzida. Acresce que os motivos que conduziram o arguido à prática dos ilícitos criminais anteriores se mostram afastados. Desde logo a idade. Depois, o abandono do consumo de estupefacientes, a confissão, a actual consciência crítica. Ou seja, a necessidade da pena efectiva é hoje e face a este cenário, reduzida. Naturalmente que o cumprimento da pena em regime de Permanência na Habitação sujeito a vigilância electrónica deverá prever a possibilidade de o recorrente poder continuar a trabalhar para obter o seu sustento, abrangendo o período entre a 07:30 e as 19:30 horas dos dias úteis e sábados entre as 07:30 e as 13 horas, em caso de trabalho efectivo ao Sábado. O recurso é, pois, procedente nos termos expostos. * C - Dispositivo Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em declarar procedente o recurso interposto e determinar: - oficiosamente a correcção do facto dado como provado em 13.5 que se deverá ler: «13.5. No processo n.º 159/93...., que correu termos no ... Juízo do Tribunal Judicial ..., por decisão transitada em julgado a 16.06.1993, pela prática a 15.5.1988 de um crime de furto de uso de veículo, na pena de prisão de 8 meses; - com autorização de saída para o trabalho abrangendo o período entre a 07:30 e as 19:30 horas dos dias úteis e sábados entre as 07:30 e as 13 horas, em caso de trabalho efectivo ao Sábado. Sem tributação. Évora, 28 de Março de 2023. (processado e revisto pelo relator). João Gomes de Sousa Carlos Campos Lobo Ana Bacelar |