Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4099/14.4T8STB-A.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO
GARANTIA BANCÁRIA "À PRIMEIRA SOLICITAÇÃO"
ACTIVIDADE BANCÁRIA
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Toda a extensa argumentação sobre a globalização e a internacionalização dos mercados financeiros esbarra com uma cristalina evidência: a entidade emitente da garantia bancária não está autorizada pelo Banco de Portugal a operar em território nacional. E se essa entidade não está autorizada a actuar em Portugal, não se vê como pode a mesma prestar validamente garantia bancária para produzir efeitos em local em que não pode operar e, neste caso, perante autoridade judiciária portuguesa.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 4099/14.4T8STB-A.E1-2ª (2015)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Em processo, a correr actualmente termos na Secção de Execução da Instância Central da Comarca de Setúbal (depois de iniciado na Comarca do Alentejo Litoral), instaurado por «(…), Lda.» contra (…) e «(…) Unipessoal, Lda.», e na sequência do qual foi proferida sentença condenatória dos RR., de que estes interpuseram recurso, foi pelos mesmos, na qualidade de recorrentes, pretendida a atribuição de efeito suspensivo ao respectivo recurso, a fim de sustar a execução da decisão recorrida, por alegadamente tal execução lhes causar prejuízo considerável.

Para o efeito, deduziram incidente de prestação de caução, a ser processado autonomamente, ao abrigo do artº 988º do CPC (actual artº 913º do NCPC), por apenso aos autos principais, no âmbito do qual se propuseram apresentar como garantia o alvará de um estabelecimento de farmácia. Sobre essa pretensão se pronunciou o tribunal de 1ª instância, por despacho de 17/1/2014 (a fls. 27-28), que fixou o valor da caução em 235.500,00 €, julgou inidónea a caução oferecida (por faltar a prova do valor do alvará e da disponibilidade do seu titular para a oferecer como tal) e determinou a devolução à parte contrária do direito de indicação do modo de prestação da caução, para o que ordenou a respectiva notificação da requerida, nos termos dos artos 909º, nº 3, e 910º do NCPC.

Depois de indicado pela requerida que pretendia a prestação da caução por depósito bancário ou garantia bancária (requerimento de fls. 30), e admitida que foi pelo tribunal de 1ª instância a prestação da caução por qualquer desses meios (conforme despacho de 7/2/2014, a fls. 36-37), vieram os requerentes apresentar documentação que consubstancia a prestação de garantia bancária, no valor fixado para a caução, emitida por entidade denominada «Portuguese World Bank», com sede nas Ilhas Cayman (a fls. 53-56). Entretanto, foi obtida nos autos informação do «Banco de Portugal» sobre a instituição emitente da garantia bancária prestada, na qual se declara que essa instituição «esteve inscrita no Registo Especial de Instituições do Banco de Portugal como Escritório de Representação em Portugal (…) no período de 20/03/1989 a 07/01/2002», que o cancelamento desse registo ocorreu em 7/1/2002 e que tal instituição «não se encontra habilitada ao exercício de qualquer actividade bancária em território nacional» (conforme ofício de fls. 59).

Perante a apresentação da referida garantia bancária, veio o tribunal de 1ª instância a proferir despacho em que, considerando relevante a informação constante do ofício do «Banco de Portugal» sobre a não autorização de exercício de actividade bancária em território nacional da instituição emitente da garantia bancária, decidiu declarar inidónea a caução assim oferecida, julgando a mesma não prestada (conforme despacho de 11/6/2014, a fls. 65).

É desta decisão que vem interposto pelos requerentes o presente recurso de apelação (a fls. 76-91), cujas alegações culminam com as seguintes conclusões:

«I. A Recorrente apresentou nestes autos recurso da decisão com a qual não se pode conformar, pelo que manifestaram as Recorrentes intenção de prestar caução a fim de assegurar a aposição de efeito suspensivo ao acto recursório.

II. As recorrentes interpuseram recurso da douta sentença, tendo apresentado incidente de prestação de caução, por forma a acautelar a existência de prejuízos advenientes dos efeitos da mesma.

III. Assim, as Recorrentes procuraram prestar caução, nos termos dos artigos 988º do CPC e 623º do Cód. Civil, a fim de suspender a execução da sentença, por forma a prestar de garantia a favor da Recorrida, a fim de suspender a execução, nos termos do artigo 623º do Cód. Civil.

IV. Pelo que nos termos do artigo 623s do Cód. Civil se requereu a suspensão de efeitos da sentença até ao trânsito em julgado dos autos.

V. A pretensão de prestação de caução advém da necessidade da parte vencida, na proporção em que o foi, acautelar os efeitos da condenação enquanto tal decisão não transitar em julgado, ocorreu in casu.

VI. Ou seja, pretende a Recorrente caucionar o montante da sentença condenatória, na proporção do sacrifício patrimonial que a mesma lhe inflige.

VII. Assim, após prolação de decisão, a fls., que fixou o valor a caucionar, foi prestada garantia bancária, cfr. requerimento enviado aos autos, via Citius, em que as caucionantes, conforme ordenado por despacho, informaram que através de garantia bancária, foi prestada caução, junto do Portuguese World Bank, no montante de 235.500,00 € (duzentos e trinta e cinco mil e quinhentos euros), conforme original da respectiva garantia, que protestamos juntar em dois dias, a expedir o respectivo original, por correio postal – com efeito, foi prestada caução.

VIII. Do documento supra referido consta, expressamente, que a pedido de (…) Unipessoal, Lda., NIPC (…), com sede em Quinta dos (…), Rua (…), nº 15-B, 2 frt, 1600-272 Lisboa, o Portuguese World Bank presta a favor do Tribunal de Santiago do Cacém, Juízo de Grande Instância Cível – Juiz 2, sito em Av. D. Nuno Álvares Pereira – 7540-104 Santiago do Cacém, no âmbito do Proc. nº 1116/11.3T2STC-E, uma garantia bancária de 235.500,00 € (duzentos e trinta e cinco mil e quinhentos euros), destinada a caucionar o integral cumprimento da sentença condenatória e assegurar o efeito suspensivo ao recurso interposto no âmbito do Processo nº 1116/11.3T2STC.

IX. Ainda no mesmo documento consta que "Fica bem assente de que o Banco garante, no caso de vir a ser chamado a honrar a presente garantia, não poderá tomar em consideração quaisquer objecções do garantido, sendo-lhe igualmente vedado opor à entidade beneficiária quaisquer reservas ou meios de defesa de que o garantido se possa valer ao garante".

X. Quanto à validade da mesma consta que "A presente garantia permanece válida até que seja expressamente autorizada a sua libertação pela entidade beneficiária, não podendo ser anulada ou alterada sem esse mesmo consentimento e independentemente da liquidação de quaisquer prémios que sejam devidos".

XI. O referido documento foi enviado na versão traduzida supra referida, bem como em língua inglesa.

XII. Pelo que consta expressamente mencionado e declarado no documento em apreço a vontade inequívoca de prestar garantia, no âmbito do processo sub judice, a qual foi constituída on first demand, sem qualquer condição ou restrição à mesma.

XIII. O Portuguese World Bank esteve inscrito no Registo especial de instituições do Banco de Portugal, conforme consta da informação do Banco de Portugal, e assim, conforme ordenado por despacho, foi, através de garantia bancária, prestada caução, junto do Portuguese World Bank, no montante de 235.500,00 € (duzentos e trinta e cinco mil e quinhentos euros), conforme original da respectiva garantia e respectiva tradução, juntos aos autos.

XIV. Releve-se que a informação remetida pelo Banco de Portugal não invalida, nem coloca em causa a garantia bancária prestada, na verdade, a garantia foi, efectivamente, prestada perante instituição bancária internacional.

XV. E precisamente por essa razão foi a referida garantia redigida em língua inglesa, tendo sido remetida a respectiva tradução para língua portuguesa.

XVI. O certo é que, nos termos e para todos os efeitos legais, a garantia bancária foi prestada junto de instituição bancária, da mesma constando a indicação expressa destes autos, bem como os fins a que a mesma se destina e ainda sem quaisquer reservas apostas à mesma.

XVII. Ora, sendo a entidade garante uma entidade internacional, tal facto não contende com o teor [e] validade, nem com a natureza da garantia prestada, sendo a mesma idónea aos fins a que se destina.

XVIII. Pois que, por via da garantia bancária prestada, o Portuguese World Bank garantiu que, sendo chamado para honrar a garantia prestada, não poderá lançar mão de quaisquer objecções, sendo-lhe vedada oposição por via de quaisquer reservas ou meios de defesa.

XIX. Sendo ainda que a mesma permanece válida até que seja expressamente autorizada a sua libertação pela entidade beneficiária, isto é, a garantia bancária prestada está, expressa e inequivocamente, associada aos presentes autos, estando sob a disponibilidade deste douto Tribunal.

XX. Deste modo, pugnamos que a garantia bancária ajuizada é idónea, válida e eficaz, sendo que, o facto do Portuguese World Bank ser uma entidade estrangeira não coloca em crise a idoneidade da mesma.

XXI. Ademais, as Garantias Bancárias Internacionais que obrigam o Garante a pagar a quantia garantida à primeira solicitação, ou seja, assim que o pagamento lhe for exigido pelo Beneficiário, sem que possa formular qualquer objecção a esse pagamento, acresce que, in casu, não existem excepções ao cumprimento resultantes do texto da garantia bancária emitida.

XXII. Ora, a garantia foi prestada nos termos do disposto no art. 906º e ss. do CPC, cumprindo os requisitos da mesma, tal como preenche os requisitos do disposto no art. 623º CC, visando constituir garantia a favor da Recorrida, a fim de suspender os efeitos da eventual execução de sentença, ainda não transitada em julgado, nos termos do artigo 623e do Cód. Civil, mediante garantia prestada.

XXIII. Assim, a Garantia Bancária é uma operação de crédito através da qual o Banco assegura a alguém (Beneficiário) o pagamento de uma certa quantia em dinheiro no caso do seu afiançado não cumprir uma obrigação ou não efectuar um pagamento a que se tenha comprometido.

XXIV. Ora, o facto de in casu o garante ser uma entidade estrangeira não contende com a regularidade ou admissibilidade da garantia prestada, aliás, ponderar de outro modo é reverter a natureza das entidades ajuizadas, bem como subverter as modalidades negociais em prática na actualidade.

XXV. A Economia actual, tanto na modalidade empresarial entre privados, singulares ou colectivos, seja nas operações com entidades bancárias ou instituições de créditos, determina uma crescente internacionalização dos sujeitos de mercado.

XXVI. Assim, é compreensível que actos como o ora sob sindicância, isto é, garantia bancária, seja prestada por entidade internacional, o que se requereu no caso vertente.

XXVII. Acresce que o reconhecimento do Portuguese World Bank como entidade acreditada vem declarada na informação veiculada pelo próprio Banco, cfr. ofício desta entidade junto aos autos.

XXVIII. Ou seja, este Portuguese World Bank constou do Registo especial de instituições do Banco de Portugal, tendo, contudo, sido rejeitada a garantia bancária por a referida inscrição ter cessado.

XXIX. Pugnamos ser admissível a referida garantia bancária, pois que a entidade garante continua a ser uma entidade bancária de acordo com as leis do país da respectiva constituição.

XXX. Não havendo justificação para colocar em crise a idoneidade da declaração deste garante que declarou peremptoriamente a constituição da garantia bancária, nos termos e para todos os efeitos legais.

XXXI. Ademais, a referida entidade possui personalidade jurídica que permite que a mesma seja accionada e chamada à responsabilidade, caso tal se afigure necessário, sendo que, face à declaração deste Portuguese World Bank, é inequívoco que o mesmo admitiu e aceitou a sua posição de garante nestes autos.

XXXII. Não se alcançam os fundamentos para colocar em crise a idoneidade da declaração do Portuguese World Bank para prestar a garantia em apreço.

XXXIII. O direito à fundamentação, relativamente aos actos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos, tem hoje consagração constitucional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias consagrados na CRP (art. 268º).

XXXIV. Assim sendo, resulta que a decisão está insuficientemente fundamentada, o que equivale a falta de fundamentação, pois que, face à natureza das operações de mercado, bem como operações bancárias, importa esclarecer em que medida a declaração do Portuguese World Bank, numa economia globalizada à escala praticada actualmente, não corporiza suficiência e segurança bastante para os fins em apreço.

XXXV. Pois que, sendo uma entidade bancária constituída em conformidade com as normas exigíveis no país de origem, autorizada a exercer a referida actividade, deverá ser relevado que o mesmo é idóneo à prática dos actos em apreço.»

A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações dos recorrentes resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar do acerto da decisão recorrida – ou seja, e muito singelamente, saber se assiste razão ao tribunal de 1ª instância quanto ao seu entendimento, contrário ao dos requerentes apelantes, de que não deve ser julgada como caução validamente prestada (com vista a obter a atribuição de efeito suspensivo ao recurso de decisão condenatória exequível proferida nos autos principais) a que consiste em garantia bancária emitida por instituição bancária não autorizada a exercer actividade bancária em território nacional.

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:

1. Comece-se por duas observações prévias.

a)Uma primeira observação prende-se com a utilização pelos requerentes, ora apelantes, de processo autónomo de prestação de caução (mediante a dedução de requerimento próprio para início de procedimento incidental de prestação espontânea de caução, a correr por apenso, ao abrigo dos artos 913º e 915º do NCPC, correspondentes aos artos 988º e 990º do anterior CPC) para a obtenção do efeito suspensivo de recurso interposto nos autos principais.

Trata-se de um uso impróprio desse meio processual, já que (como, aliás, assinalou a contraparte na respectiva contestação) o incidente de prestação de caução para obtenção de efeito suspensivo de recurso se encontra expressamente previsto no artº 647º, nº 4, do NCPC – e do respectivo regime decorrem duas consequências que aqui não foram consideradas: que o pedido de prestação de caução é formulado pelo apelante no próprio requerimento de interposição de recurso (e não em requerimento autónomo); e que o incidente é processado nos próprios autos (e não por apenso, prevalecendo como regime especial sobre a norma de carácter mais geral do artº 915º, nº 1, do NCPC), só o sendo por apenso, se ocorrer a situação prevista no artº 650º, nº 2, do NCPC (demora na prestação da caução, por prazo superior a 10 dias), caso em que se extrai traslado para processamento do incidente em separado. Neste duplo sentido, perante normas equivalentes do anterior CPC, cfr. Ac. RL de 26/6/2008 (Proc. 4507/08-2, in www.dgsi.pt), com conclusões que merecem a nossa adesão: «(…) 3 – Processando-se o incidente de prestação de caução no processo onde foi proferida a decisão, a alegação do prejuízo e o modo de prestação de caução terá de ser feita no requerimento de interposição de recurso, e não em processo autónomo. 4 – O incidente de prestação de caução corre nos próprios autos e a passagem de traslado para constituição do apenso só ocorre se a prestação de caução ou a falta dela der causa a demora excedente a 10 dias.»

Porém, a questão dessa impropriedade do meio processual não é objecto do presente recurso, sendo certo que o tribunal a quo, não obstante alertado para a mesma pela parte requerida, entendeu não a considerar e dar andamento à tramitação autónoma do incidente de caução (ainda que a mesma tivesse posteriormente de ocorrer, por via do artº 650º, nº 2, do NCPC, dado o tempo decorrido sem a caução estar prestada). Nessa medida, e inexistindo matéria de conhecimento oficioso, apenas resta a este Tribunal de recurso aceitar o processado, tal como agora se nos apresenta – e isto sem prejuízo de se dever entender, para salvaguarda da substância do incidente suscitado, que o mesmo se destina à prossecução da finalidade prevista no artº 647º, nº 4, do NCPC (sendo, por isso, tramitado como incidente urgente, nos termos do artº 915º, nº 2, do NCPC).

b)Uma segunda observação consiste numa simples nota sobre a eventualidade de a decisão a proferir em sede do presente recurso carecer já, neste momento, de utilidade substantiva, apesar de não dispormos de elementos bastantes para aferir de tal ocorrência.

Como vimos, os presentes autos têm (ou tinham) como finalidade a obtenção de efeito suspensivo de recurso interposto de sentença proferida nos autos principais, mediante a prestação de caução – e para, desse modo, obstar à execução dessa sentença enquanto a mesma não transitar em julgado. Compulsados os autos, encontramos elementos que nos dão notícia de esse recurso já ter sido decidido em 2ª instância, no sentido da improcedência da respectiva apelação (conforme certidão de fls. 246-290, emitida em 7/10/2014, contendo cópia de acórdão proferido neste Tribunal da Relação em 22/5/2014). Mais se colhe (da referida certidão) que foi interposto recurso desse aresto para o STJ, sem que haja informação posterior sobre o seu desfecho, sendo que o tempo já decorrido levará a admitir que possa já ter sido decidido. Porém, o tribunal a quo só muito recentemente admitiu o presente recurso e ordenou a sua subida (conforme despacho de 13/5/2015, a fls. 295) – o que faz duvidar sobre a efectiva consumação do trânsito em julgado da sentença a que se reporta a pretensão de prestação de caução que constitui objecto do presente recurso (e que tornaria este inútil).

Na ausência de informação sobre o estado do recurso de revista, mas sendo de admitir que ainda esteja pendente (perante a referida decisão de fls. 295), e uma vez que dispomos de todos os elementos necessários à decisão do presente recurso, entendemos não caber a este Tribunal proceder a qualquer averiguação adicional e ser de adoptar o normal procedimento devido perante qualquer recurso cujo objecto possa ser conhecido: proceder à sua apreciação, independentemente da utilidade que ainda possa ter – e sem prejuízo da posterior aferição dessa utilidade (ou da utilidade de qualquer subsequente decisão no âmbito deste incidente de caução), que caberá ao tribunal de 1ª instância verificar.

2. Debrucemo-nos, pois, sobre a questão nuclear do recurso, que, como vimos – e apesar da prolixidade das alegações de recurso e suas conclusões –, se confina à averiguação sobre se o tribunal a quo decidiu bem (ou não) ao entender, no despacho recorrido, que não será de admitir, como caução validamente prestada, a garantia bancária emitida por instituição bancária não autorizada a exercer actividade bancária em território nacional.

Estando assentes os elementos descritos no relatório, apreciemos então a questão suscitada.

A matéria afigura-se-nos de elementar clareza. Toda a extensa argumentação sobre a globalização e a internacionalização dos mercados financeiros esbarra com uma cristalina evidência: a entidade emitente da garantia bancária não está autorizada pelo Banco de Portugal a operar em território nacional. E se essa entidade não está autorizada a actuar em Portugal, não se vê como pode a mesma prestar validamente garantia bancária para produzir efeitos em local em que não pode operar e, neste caso, perante autoridade judiciária portuguesa.

De acordo com o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31/12, estão confiados ao Banco de Portugal amplos poderes de autorização de exercício de actividade bancária e financeira em Portugal e de posterior supervisão da actividade das entidades autorizadas. Desse regime resulta, genericamente, que só entidades autorizadas e registadas pelo Banco de Portugal podem exercer actividade bancária e financeira (designadamente, quanto a instituições com sede no estrangeiro: cfr. artos 44º e seguintes) – sendo o regime particularmente restritivo quanto a instituições de crédito não autorizadas noutros Estados membros da União Europeia ou em Estados pertencentes ao Espaço Económico Europeu (cfr. artos 48º e 57º), bem como quanto a actividades a desenvolver por entidades sem estabelecimento em Portugal (cuja prestação de serviços em território nacional é condicionada: cfr. artos 60º e 61º) ou só com escritório de representação em Portugal (que dependem de registo prévio no Banco de Portugal: cfr. artos 62º e seguintes).

Neste contexto, não se encontra qualquer fundamento para aceitar como validamente prestada, como caução, uma garantia bancária emitida por entidade que não está autorizada a desenvolver actividade bancária e financeira em Portugal. E isto sem necessidade sequer de considerar os riscos associados a uma entidade sedeada em paraíso fiscal (como é o caso das Ilhas Cayman), em que seguramente seria de grande dificuldade (se não mesmo impossível) executar a garantia bancária prestada, em caso de incumprimento. Como seria interessante poder saber se algum devedor, caso estivesse na situação de credor, aceitaria uma garantia bancária emitida por instituição sedeada em paraíso fiscal e não autorizada a exercer actividade bancária em Portugal: certamente nenhum, ainda que não fosse de esperar que qualquer deles o admitisse…

Entendemos, pois, que a informação recebida do Banco de Portugal é um óbvio indicador da inidoneidade da garantia bancária apresentada pelos requerentes. De tudo se extrai, pois, que o tribunal de 1ª instância ajuizou correctamente a situação, não havendo razão para alterar o que por aquele foi decidido. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

3. Em suma: concorda-se com o juízo decisório formulado pelo tribunal a quo, pelo que não merece censura a decisão sob recurso.
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes (artº 527º do NCPC).

Évora, 09 / Julho / 2015

Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)